Resumo: O artigo apresenta a trajetória de Alice Tibiriçá. Uma mulher da elite paulista que – à frente da Sociedade de Assistência e Prevenção à Lepra da cidade de São Paulo – irá estender as mãos aos lázaros. Torna-se depois feminista e comunista, atuando em diversos campos de luta contra as desigualdades de gênero e de classe. Na análise de seu devir filantrópico, de suas itinerâncias na vida doméstica e no cenário político, buscam-se os significados da filantropia nos embates por direitos sociais desse seu tempo.
Palavras-chave: Filantropia, Lepra, Movimento Feminista, Comunismo.
Abstract: The article presents the trajectory of Alice Tibiriçá. A woman from São Paulo’s elite who - at the head of the Leprosy Assistance and Prevention Society in the city of São Paulo - will extend her hands to the lazarians. She later became a feminist and communist, working in different fields of struggle against gender and class inequalities. In the analysis of his philanthropic development, his itinerancy in domestic life and in the political scene, the meanings of philanthropy in the struggles for social rights of his time are sought.
Keywords: Philanthropy, Leprosy, Feminist Movement, Communism.
Pelas portas da filantropia .... A trajetória política de Alice Tibiriçá
Through the doors of philanthropy.... The political trajectory of Alice Tibiriçá
Recepción: 01 Octubre 2024
Aprobación: 01 Diciembre 2024
Alice abriu a porta e viu que dava para uma pequena passagem, não muito maior que um buraco de rato: ela ajoelhou-se e avistou o mais adorável jardim que jamais vira: como ela gostaria de sair daquela sala escura e passear por entre aqueles canteiros de flores viçosas e aquelas fontes geladas (Carroll, 2009, p. 24).
Ao entrar pelas portas da filantropia Alice Tibiriçá, assim como a Alice no país das maravilhas, se aventurou em um caminho repleto de desafios e possibilidades, construindo uma trajetória política que a levou em 29 de setembro de 1949, aos 63 anos de idade, a ser detida pela Delegacia de Ordem Política e Social (DEOPS) quando pretendia tomar parte em uma reunião de mulheres, na cidade de São Paulo. A prisão, nesses tempos, fora motivada pelo fato de a referida senhora manter “estreito contato com líderes do PCB [Partido Comunista Brasileiro], por intermédio do Instituto Feminino do Serviço Construtivo, entidade de caráter eminentemente marxista, da qual é presidente”2.
Sua trajetória mostra que a filantropia não só se define como um lugar de atuação de mulheres “virtuosas”, mas também como locus de mudança do estado de consciência sobre questões sociais, também assuntos de natureza política. Essa percepção irá defini-las como mulheres “perigosas”3.
Após seu falecimento em 1950, coube à Maria Augusta, sua filha caçula, assumir o papel de “guardiã” da memória materna. Na tarefa de reproduzir a memória de Alice Tibiriçá, de sua família e do Brasil, fundem-se registros de duas gerações de mulheres: os da mãe e os da filha. Ao narrar a trajetória de sua mãe, na obra “Alice Tibiriçá: Lutas e ideais”, Maria Augusta produz imagens e representações de Alice Tibiriçá, para si e para o outro. Nela, estão presentes, como destaca Levillain (2003), as seleções, as ênfases, os crivos e as acomodações dos interesses em jogo, realizadas pela escritora. Na construção da personagem, além desses crivos, existem os que a própria Alice Tibiriçá, em conferências, livros e artigos constrói: uma imagem de si na política, na família e na filantropia.
Em minha tese de doutoramento (Cf. Ledig, 2016) examinei sua trajetória a partir da releitura da biografia conhecida desde 1980, mas também de dados dispersos em livros, matérias de jornais da época, conferências e artigos. Das imagens públicas construídas sobre ela, é possível identificar algumas das muitas condições sociais que moveram essa e outras filantropas para novos lugares do universo político. “Vasculhando” as fontes descritas, foram extraídos aspectos que evidenciam as experiências cotidianas vividas por filantropas e o quanto essas experiências são significativas para o entendimento da história das mulheres. Elas oferecem muitas informações sobre processos sociais de muitos significados da política social do tempo presente.
De uma lagoa de lágrimas a ação: o encontro com a dor do outro4
“Devia ter vergonha”, disse Alice, “uma menina grande como você” (podia bem dizer isso), chorando dessa maneira! Pare já, já estou mandando” (Carroll, 2009, p. 24).
Foi ainda na infância em Ouro Preto, MG, onde nasceu em 1886, que a segunda filha do general do Exército José Florêncio Toledo Ribas e de Maria Augusta Rangel Ribas, apelidada de bugrinha5, se encontrou pela primeira vez com o sentimento de compaixão, descrito por Laqueur (1992)6, nas práticas de ajuda ao próximo desenvolvidas por sua mãe: “Vi aquelas lindas mãos lavando chagas de doentes. Augusta acolhia sempre os que dela necessitavam” (Miranda, 2005, p. 5).
Mas foi na cidade de São Luís do Maranhão, em 1913, onde seu esposo, o jovem engenheiro João Tibiriçá Neto, filho de uma tradicional família de políticos paulistas7, foi dirigir a construção de uma estrada de ferro, que Alice se encontrou com a dor da lepra. Em uma época na qual, como descrito por Cavaliere (2013), “ainda pesava sobre os hansenianos um terror bíblico”, “Alice via as esmolas lhes serem atiradas à distância. Impressionou-se vivamente” (Miranda, 2005, p. 14). Nesse período, o filho Jorge de dois anos adoeceu. Coberta de furúnculos, a criança: “[...] não tinha posição para sentar-se ou deitar-se. Certa vez, ao almoço, fez um uf! de alívio. Conseguira uma posição mais confortável [...] deitando-se de barriga sobre elas (uma fila de almofadas), comendo como um bichinho. Todos se comoveram e os olhos de Alice se encheram de lágrimas” (Miranda, 2005, p. 14). Residiria aí a mensagem explícita quanto à motivação de Alice para suas ações filantrópicas em direção àqueles corpos descarnados pela “lepra” e pela miséria? Acredito que sim, pois como afirma Laqueur (1992, p. 242), “as grandes causas parecem originar-se do poder que tem um dorso dilacerado, uma fisionomia doentia, uma morte prematura de estimular a imaginação moral”.
Anos mais tarde, em 1921, quando a família já residia em São Paulo, o filho Jorge foi novamente acometido de uma doença que lhe causou feridas pelo corpo, dessa vez, tifo exantemático. Alice vivenciará um novo encontro com a dor e o sofrimento de um corpo dilacerado por feridas. Daí a observação de que a experiência antes descrita possa ter lhe suscitado a compaixão capaz de mobilizá-la: “[...] quando estendia a mão a um enfermo, declarava estar praticando um dever, que cumpria com todo o calor da solidariedade humana” (Miranda, 2005, p. 44).
Para Alice, bastava um pequeno passo para levá-la da vocação humanitária à ação, perspectiva essa que converge para as observações de Laqueur (1992). Assim, no dia 21 de fevereiro de 1926, realizava-se, na residência da Rua Tamandaré, a reunião de fundação da primeira Sociedade de Assistência às Creanças Lázaras de São Paulo que, em março do mesmo ano, passou a se chamar Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra de São Paulo. O “Correio Paulistano” assim exprimiu o nascimento da nova Sociedade:
Agora mesmo podemos contar com uma iniciativa a mais victoriosa, entre as que se propõem, não somente a amparar os infelizes, sinão também preservar a sociedade da disseminação de um mal horrível, entre os que mais o sejam; como é a morphéa. Mau grado a assistência official e particular, as estatísticas accusam um accrescimo no computo dos atacados pela impiedosa doença; e foi deante dessa perspectiva que uma dama da nossa alta sociedade, verdadeiro modelo de caridade, a Snra. D. Alice de Toledo Tibiriçá, se constituio como elemento central de uma associação, cujo objetivo é a defesa social contra a lepra, e especialmente o tratamento, o conforto e o isolamento das creanças lazaras [sic] (Relatório, 1926-1927).
Segundo dados do relatório da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Combate à Lepra de São Paulo, entre 1926 e 1927, a “Caravana Paulista”, com Alice Tibiriçá à frente, percorreu vários municípios do Brasil. Ao viajar pelo Brasil em prol da campanha contra a lepra, Alice deixa de ser uma figura circunscrita à região paulista, tornando-se reconhecida no cenário nacional: “A sua pregação doutrinária foi ouvida em praticamente todos os pontos do território nacional. Onde houvesse uma consciência a despertar, lá chegava à voz daquela que à causa dedicará sua vida” (Miranda, 2005, p. 39).
Se, inicialmente, seu prestígio político estava vinculado ao nome da tradicional família de políticos paulista, os Tibiriçá, agora Alice se torna sujeito de seus próprios trânsitos políticos. Na tessitura de uma rede nacional de proteção aos portadores do Mal de Hansen, seu nome ganha cada vez mais reconhecimento. Mas, ao colocar o debate sobre a lepra e o isolamento na ordem do dia, Alice desagrada interesses econômicos e inicia uma contenda com o governo, sendo “convidada” a comparecer ao gabinete do Dr. Júlio Prestes, Presidente do Estado:
– Dona Alice – disse o presidente do Estado – sua campanha atingiu a tal ponto que está perturbando a emigração para o Brasil, por ser considerado um “país de lepra”. O governo resolveu assim chamá-la para solicitar que não prossiga na propaganda que vem realizando.
– Mas, Sr. Presidente, há, realmente, o problema da lepra no Brasil, respondeu lhe Alice Tibiriçá, e não será silenciando que o resolveremos. Deixará de ser um “país da lepra” no momento em que povo e governo se movimentarem para sua solução (Miranda, 2005, p. 32).
Diante da “ordem de silêncio” dada pelo governo paulista, Alice, “a bugrinha”, dirigiu-se imediatamente à sede da Sociedade de Assistência aos Lázaros de São Paulo, na qual se empilhavam cinco mil exemplares de um relatório recém-editado. E, numa pronta resposta à ordem que recebera, “contratou, no mesmo dia, dois auxiliares e lhes deu a ordem de que, no menor prazo possível, todo aquele material fosse endereçado e remetido pelo Correio” (Tibiriçá, 1934, p. 32). Nascia, naquele momento, sob a direção de Alice Tibiriçá, o Boletim da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa da Lepra, revista mensal que, durante os anos de 1929-1936, foi um importante instrumento de propaganda da campanha.
Alice nunca deixou escapar uma oportunidade de fazer política. Assim, quando o quadro político lhe pareceu desfavorável às ações da Sociedade de Assistência aos Lázaros de São Paulo, resolveu fundar uma entidade que unificasse o grande número de sociedades congêneres espalhadas pelo Brasil, de modo a assumir, inclusive, o papel, até então, desempenhado pela Sociedade de São Paulo – de criação de novas entidades congêneres. No dia 24 de fevereiro de 1932, na sede da Sociedade em São Paulo, Alice seria eleita presidenta da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Como presidenta, Alice ampliava seu poder político e saia do raio de controle do governo de São Paulo.
Para Gomes (2005), o Estado pós-1930 tivera caráter revolucionário justamente porque tratou a questão social como uma questão “política”, ou seja, um problema que só se resolveria pela intervenção do Estado. No caso específico da saúde pública, criam-se dois ministérios: Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC) e o Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP). O primeiro será encarregado da previdência e assistência, tendo como legítimos destinatários das ações de saúde aqueles inseridos no mercado de trabalho, consolidando o que Wanderley Guilherme dos Santos (1994) conceituou como “cidadania regulada”; e o segundo com a responsabilidade de cobertura de serviços de várias áreas da saúde, de forma universal, como obrigação unilateral do Estado. A esse último, caberiam as ações de profilaxia da lepra.
Assim, quando o Dr. Francisco de Sales Gomes Jr. – favorável à centralização do combate à lepra na esfera pública – assume, em agosto de 1932, a Inspetoria de Moléstias Infecciosas de São Paulo, a quem se subordinava a Inspetoria de Profilaxia à Lepra, tem início o que Alice denominou como uma campanha para “difamar o trabalho da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra de São Paulo e entregar ao desprezo público a pessoa de sua presidente”8. Mas porque o Sr. Sales Gomes teria interesse em desmoralizar uma figura pública que dedicou anos de sua vida à causa da lepra? Seria apenas uma “competição pessoal”? Ou a necessidade política de transformar o campo da saúde pública num campo sem “concorrentes” para a ação intervencionista do Estado?
Fonseca (2007) indica que, em um contexto de instabilidade, ceder mais espaço para que os interesses privados – como os de Alice Tibiriçá à frente da Sociedade de Assistência aos Lázaros – se fortalecessem no interior do espaço público, significava correr o risco de perder o comando político. Por conseguinte, fortalecer o poder político do governo central nos Estados, naquele momento, era fortalecer a esfera pública. De acordo com Santos (2006), a administração de Sales Gomes foi marcada pelo autoritarismo, sobretudo na imposição do isolamento compulsório aos portadores da lepra.
Aqui, recorremos aos argumentos de Ana Paula Vosne Martins (2014) sobre o esquecimento histórico das filantropas, detendo-nos na estratégia utilizada pelo Dr. Sales Gomes de omitir as realizações de seus antecessores, tornando invisíveis, assim, as ações filantrópicas desenvolvidas por Alice, em uma orientação do conjunto de autoridades sanitárias desse mesmo período. Residiria aí uma das causas do esquecimento histórico de Alice Tibiriçá? Acreditamos que, em parte, sim. Afinal, na história das políticas sociais brasileiras, o governo Vargas é considerado um marco zero. Acho que essa análise remove Alice do lugar que atingira nessa política da lepra.
Mas havia, segundo o Dr. Sales Gomes, um outro motivo: a questão do recebimento de salário por parte de Alice Tibiriçá. Ele afirma: “Quem quer proteger o próximo não precisa de ordenado”9. Como feminista, Alice provavelmente ampliou sua percepção sobre o trabalho feminino. As atividades filantrópicas tinham deixado de ser apenas um trabalho voluntário; tornam-se um espaço da atuação feminina. Mas, ao transformar suas ações à frente da Sociedade de Assistência aos Lázaros, em meio de suprir à necessidade de sobrevivência econômica, ela rompe com a lógica da “bondade” e do voluntariado presente na filantropia e macula a “mulher virtuosa”, imagem construída para as filantropas. Sem formação profissional e diante do fim do casamento, Alice via nesse campo o caminho para construir sua autonomia financeira. Mas, para o Dr. Sales Gomes, não era “cabível que a diretora de uma instituição de caridade perceba vencimentos. Assim sendo, não mais há philantropia”.
Nuvens carregadas cobriam os céus paulistas, silenciando as atividades desenvolvidas por Alice à frente da Sociedade de Assistência aos Lázaros de São Paulo. Em busca de dias melhores, Alice, estrategicamente, desloca sua atuação para o espaço da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, cuja sede, em 1935, fora transferida para o Rio de Janeiro, então Capital Federal. Mas diante das pressões políticas em 1935, Alice sai da presidência da Federação, estabelecendo o critério rotativo para a escolha da direção dessa instituição. Segundo ela, isso se daria “para que outros valores pudessem dar à causa a sua colaboração plena” (Miranda, 2005, p. 63). Por sua indicação, Eunice Weaver – Vice-presidente da Federação e presidente da S.A.L. de Juiz de Fora – assume a presidência da Federação, tendo Alice na vice-presidência.
Mas depois de empossada, dona Eunice lança uma nota na imprensa “comunicando a criação da Federação” (Miranda, 2005, p. 64). E, daí por diante, baixou uma cortina de silêncio sobre o que antes se havia realizado pela causa. A memória de uma Federação mais autônoma e liberal, com Alice à frente, fora subtraída em favor da memória de uma Federação mais articulada ao modelo centralizador do Estado Varguista, na gestão de dona Eunice. “Ao longo do governo Vargas, observa-se o alinhamento gradativo dessas sociedades à política de combate à doença que seria adotada a partir de 1935” (Cabral, 2013, p. 302). E, mais uma vez, a memória das mulheres que, no início do século XX, atuaram na montagem de uma vasta rede de proteção social foi sendo apagada. Com a Federação alinhada ao projeto de saúde do governo Vargas, não havia mais espaço para os questionamentos políticos de Alice. Ela, então, decide se afastar definitivamente da Federação e da campanha de combate à lepra. “Achava que para obras em execução não faltava quem as quisesse levar a bom termo. O principal era dar início” (Miranda, 2005, p. 64). de proteção às crianças sadias, filhas de pais leprosos, que poderiam ser construídos próximo aos leprosários (Santos, 2006, p. 92). Contudo, seu afastamento não significou um descompromisso com a causa da hanseníase. Em 1947, Alice será uma atuante cooperadora da Campanha de Solidariedade para a aquisição de Promim, medicamento de que necessitavam os enfermos do leprosário de Curupaiti, no Rio de Janeiro (Miranda, 2005, p. 159).
Inquieta, Alice tratou logo de abrir novas trilhas da atuação. Segundo Martins (2023, p. 262), sua experiência filantrópica a levou para o sanitarismo. E, assim, em março de 1938, iniciava uma nova fase, fundando na capital da República a instituição Carlos Chagas, por ela dirigida até o seu falecimento. Nesse tempo “estadonovista, marco da construção das políticas públicas de Saúde e de Assistência Social no Brasil, tornara-se urgente capacitar, de forma rápida, as mulheres para atuarem nas novas estruturas de proteção social”. Como afirma Freire (2006), as práticas femininas se ampliam e, agora, com a chancela da ciência, inauguram novos campos de atuação profissional. É nesse quadro que, em 1939, à frente do Instituto Carlos Chagas, Alice inaugura o Instituto de Serviços Sociais, no qual, sob os auspícios da Universidade do Brasil, organizou um curso técnico de Assistência Social, com duração de três anos. No ano de 1942, Alice Tibiriçá, uma filantropa sem formação universitária, proferia o juramento na formatura da primeira turma de assistentes sociais do Instituto Carlos Chagas, a seguir:
Prezados alunos do Instituto de Serviços Sociais: A instituição Carlos Chagas, ao entregar-vos o diploma que vos confere o título de assistente social, expedido pela Universidade do Brasil, espera que vossa cooperação no campo do Serviço Social seja profícua e de grande utilidade para o Brasil. Certamente, sereis devotados e laboriosos no desempenho de tão nobre missão! Como sabeis, tal sacerdócio vos obriga a colocar a causa que vos propusestes defender acima de vossos próprios interesses, evitando que nessas obras, viajem, como plantas daninhas, a vaidade, a inveja e o comodismo. Os que não se sentirem tocados de simpatia pelos que sofrem e vegetam sem as alegrias da vida, não devem militar nas fileiras dos servidores sociais, pois a vossa missão implica múltiplos sacrifícios e renúncias nem sempre fáceis. Sintetizando as lições que foram ministradas no Instituto de Serviços Sociais, deveis, ao receber o diploma que vos confere o direito de exercer uma nobre profissão e um digno sacerdócio, prestar o seguinte compromisso (e os alunos de pé o proferiram):
Prometo, no exercício de minha profissão, trilhar sempre a senda do dever com o coração empenhado no sucesso da causa sob minha guarda, não me intimidar com tarefas de responsabilidade ou com possíveis derrotas; ser paciente e compassivo; jamais às almas atribuladas levar vãs esperanças; guardar sigilo sobre o que vir e ouvir, procurar proporcionar ao assistido aquilo que em seu lugar gostaria que me fosse concedido, não poupar sacrifícios no desempenho de trabalhos que visem à grandeza de meu país e ao bem estar da humanidade. (Miranda, 2005, p. 126).
Na comemoração do 4º aniversário da Instituição Carlos Chagas, Alice anunciava a fundação do Instituto de Serviços Preventivos e a aquisição de um aparelho de roentgenfotografia. Pretendia-se com ele que “[...] supostos sadios passassem para a descoberta quando ainda é possível a cura da tuberculose” (Miranda, 2005, p. 127). No intuito de fazer em relação à tuberculose o mesmo que conseguira na luta contra a lepra, “coubera à instituição Carlos Chagas, para melhor êxito das iniciativas, esforçar-se pela unidade de ação das entidades congêneres, procurando estabelecer pontos de contato e elos entre as já constituídas” (Miranda, 2005, p. 130). Em 25 de julho de 1944, com a adesão das principais entidades do Rio de Janeiro e das de outros Estados, fundava-se, na Capital da República, a Federação das Associações de Combate à Tuberculose, mas, com a chegada de Gaspar Dutra à Presidência da República em 1946, o Dr. Rafael de Paula Souza assume o Serviço Nacional de Tuberculose e deixa claro que o governo se encarregaria da Campanha Nacional Contra a Tuberculose, coordenando os trabalhos ele mesmo, como diretor do Serviço Nacional de Tuberculose, e que nenhum auxílio seria prestado à Federação. Alice evita o atrito e, em um recuo estratégico, confirma que o Instituto Carlos Chagas prossegue apenas em seu trabalho de assistência preventiva contra a tuberculose.
Assim, quando, em 1947, as psiquiatras Nise da Silveira e Alice Marques dos Santos procuraram Alice para propor-lhe organizar uma Associação de Assistência aos Doentes Mentais, foram prontamente acolhidas e, em 14 de maio de 1948, funda-se na sede da Instituição Carlos Chagas a Associação de Amparo aos Psicopatas. Eleita presidenta do conselho deliberativo, Alice afirma que sua tarefa seria apenas a formação da entidade, dotando-a de meios para iniciar suas atividades. Com a eleição do ministro Antônio Carlos Lafayette para presidente efetivo, Alice entrega mais uma tarefa concretizada.
De atividades filantrópicas, como as realizadas por Alice à frente da campanha contra a lepra, as práticas vinculadas ao “cuidar” se tornam campo de várias profissões femininas, entre as quais se destaca a de Serviço Social. Dessa forma, Alice, com seu estilo próprio, move-se em direção à consolidação do campo da proteção social brasileira. Definem-se, nele, múltiplas possibilidades de construção de novos signos sociais e de novas experiências pessoais e profissionais para as mulheres.
Conselho de uma lagarta: o feminismo entre atalhos10
Quem é você? perguntou a lagarta.
Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio encabulada: Eu... eu mal sei, Sir, neste exato momento... pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então. (Carroll, 2009, p. 55).
Na travessia do mundo privado para o mundo público, como muitas mulheres ainda hoje, Alice precisou contar com “extensas redes de proteção e dependência armadas na intimidade das casas” (Costa, 2002, p. 306). As presenças da “vó Margarida” e das tias Margarida e Mimi, que a criaram após a orfandade em 1889, sempre foram uma constante na sua vida. Essa vasta rede feminina de cuidados também é composta por laços e cumplicidades entre mulheres de classes sociais diferentes: “É uma regularidade histórica que obrigações maternas sejam transferidas de mulheres que saem para o espaço público para outras que assumem, em seu nome, os cuidados domésticos; isso reorganiza, permanentemente, relações entre mulheres de diferentes classes” (Costa, 2004, p. 105). Assim, quando, em 1921, o filho mais velho de Alice adoeceu de tifo, a presença da preta Eugênia foi fundamental no seu tratamento.
Eugênia – que grande preta – era pessoa considerada da família. Entrou em nossa casa quando meu irmão teve terrível tifo exantemático, em 1921. [...]. Dali por diante, era um pouco nossa mãe também e ajudou a criar-nos [...]. Como era boa a Eugênia (Miranda, 2005, p 18).
Apesar da presença dessa rede feminina de cuidados, a saída de Alice para o mundo público vai ocorrer tardiamente, aos 39 anos de idade, quando seus filhos Jorge e Maria Augusta já tinham doze e oito anos, respectivamente. E não se fez sem conflitos e tensões, pois, até 1925, “preponderava a mãe de família, preocupada com a educação dos filhos, ou desejosa de proporcionar, aos entes de sua afeição, a imensa ternura de seu imenso coração”, como relatou Barbosa Lima Sobrinho, no prefácio de sua biografia.
Sua presença em iniciativas filantrópicas pode ser associada à condição de parentesco e à situação de prestígio político de que gozava a família de seu esposo. Suas redes familiares lhe conferiram status e poder, permitindo seu reconhecimento como autêntica “mulher virtuosa”. Mas, quando Alice resolve aprender a usar a máquina de escrever para redigir artigos, palestras e livros que a deslocaram para o campo dos intelectuais, torna-se objeto da crítica e da zombaria de seu esposo11. Dizia ele: “Alice, papagaio velho não aprende a falar” (Miranda, 2005, p.12). Nessa e em tantas outras manifestações de sentimentos contraditórios dos homens quanto à marcha que desloca as mulheres do ambiente restrito ao lar para o espaço público, há muitas tensões, como as descritas por Suely Gomes Costa (2004). A filantropia, desde sempre, admite e consolida ações femininas no espaço público. Também, com base em costumes e tradições de longa história, estimula iniciativas humanitárias que associam homens e mulheres, em relações de âmbito doméstico e institucionais, religiosas e laicas, as mais variadas. Por séculos, ela impulsiona ações solidárias. Elas traduzem iniciativas que articulam e alimentam interações entre o mundo privado e o público e que conduzem a diversas iniciativas de proteção social. Como regra social, essas iniciativas se apoiam em processos associativos e sociabilidades de muitos tipos, voltados à proteção social de pessoas em muitas situações de vida.
O exercício dessa e de outras atividades vinculadas à filantropia deslocavam as mulheres para a vida pública e para o campo intelectual em geral. E esse movimento era questionado: “Num embate permanente entre as esferas públicas e privadas, tensões e conflitos vividos nessas saídas, foram, por muito tempo, conceituados como próprios a uma presumida oposição natural dos sexos masculino e feminino” (Costa, 2004, p. 103). Tais tensões e conflitos teriam levado ao fim o casamento entre Alice e João Tibiriçá? Embora não existam na biografia de Alice registros da separação do casal e tenha ela mantido o nome de casada até o fim de seus dias, é de se admitir que essa tensão fora vivida por Alice. Em 1939, quando falece João Tibiriçá, Alice já morava, desde 1937, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, onde permaneceria até 1950, ano de sua morte.
Em 1927, já diplomada pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e à frente da Primeira Sociedade Paulista de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, Alice se muda com a família para uma grande casa em Perdizes. Ali, instala o Instituto de Ciências e Artes Santa Augusta, nome que parece traduzir uma homenagem à sua mãe. Alice tornara-se filantropa e professora. Nesse ambiente em que a casa e o colégio estão sediados no mesmo espaço geográfico, a ideologia das esferas separadas parece diluir-se. Talvez movida pela imagem ideal de boa mãe, que marca a construção de imagens do feminino, Alice − como muitas mulheres ainda hoje – procurava se equilibrar entre os dois domínios.
Para Rachel Soihet (2006), embora a atuação feminina na filantropia e na educação fosse convencionalmente aceita pelos homens, as mulheres se apropriam desses espaços de um modo que, nem sempre, segue o “receituário” masculino. As atividades profissionais de Alice no campo da educação feminina mostram uma trajetória que lhe abriria novos caminhos no mundo público. Sua larga campanha pela educação especializada de moças da zona rural vai apoiar-se em conferências e, também, em publicações de matérias de interesse, como as de jornais e revistas, num conjunto de iniciativas que lhe daria uma considerável visibilidade e, que, possivelmente, aproximaram-na das lutas feministas12.
Segundo June Hahner (2003, p. 27), “as primeiras defensoras da emancipação feminina viram na educação um modo de ampliar as opções para sua independência econômica e também sua melhoria social”. Assim, em 22 de setembro de 1927, sua carta aberta, intitulada: Ainda a Educação das Mulheres, ocupava toda a primeira página do Jornal Cidade de Botucatu. Nela, Alice afirmava: “Nesse caminho, procurei os mais desamparados e encontrei os lázaros! Procurei os mais sacrificados e encontrei a mulher” (Miranda, 2005, p. 25). Anos depois, as ações médico-sociais desenvolvidas à frente da campanha contra a hanseníase já lhe tomavam a maior parte do tempo e reclamavam sua dedicação. Era preciso escolher que caminho seguir: a filantropia ou a educação. Em 1933, encerraram-se as atividades do Instituto. As preocupações de ordem prática referentes à necessidade da criação de educandários especializados para moças que vivem no interior podem ter aproximado Alice do pensamento feminista. Mas seu contato com tal abordagem também pode ter surgido antes mesmo da fundação do Instituto de Ciências e Artes Santa Augusta, no âmbito das ações desenvolvidas pela Sociedade de Assistência aos Lázaros e Combate à Lepra. Nesse espaço, feministas e filantropas, organizadas em torno de um autêntico projeto de intervenção social, percorrem caminhos que, às vezes, se cruzavam e, às vezes, se distanciavam (Soihet, 2006).
Em 30 de abril de 1926, Bertha Lutz e outras escritoras enviam “por cartas, a sua inteira adhesão” à campanha em prol dos Lázaros. A imprensa da época identifica como feministas as escritoras ligadas à Federação Brasileira para o Progresso Feminino, das quais as filantropas se aproximam. Nessas ações, elas se movimentam no centro do poder do Estado. A circulação de Alice por lugares tidos femininos, como cultura e a filantropia, no início do século XX, teria favorecido sua nova parceria com o grupo de escritoras feministas ligadas à Bertha Lutz. Nessas redes, as mulheres ampliavam seus vínculos com mais outras organizações femininas, partilhando vidas e projetos. Mas, a partir desse encontro, a imagem da Alice “virtuosa”, vinculada a práticas filantrópicas e educacionais, foi cedendo, cada vez mais, espaço para a da Alice “perigosa”, essa agora vinculada ao movimento feminista.
Nessas primeiras décadas do século XX, num claro indício da aliança estabelecida entre mulheres e médicos, tão bem descrita por Martha Freire (2006), Alice recebe, então, o convite para proferir a conferência sobre o tema da lepra. Astuciosa, na ocasião, ela, tática e oportunamente (De Certeau, 1994), em dia 19 de julho de 1928, no salão da Academia Nacional de Medicina, vai proferir a conferência intitulada: O Feminismo e o Combate à Lepra13.
Consciente do tempo e do espaço em que estava inserida, Alice, como muitas feministas de seu tempo, seguiu a trilha mais adequada aos seus objetivos (Soihet, 2006). Em sua trajetória, a filantropia serviu como meio de as mulheres negociarem novas condutas, ampliando o espaço e o status femininos de ação no campo da política. No feminismo defendido por Alice, encontrara um paradoxo fundamental: “a necessidade de, a um só tempo, aceitar e recusar a diferença sexual” (Scott, 2002).
De fato, a Alice “virtuosa” já era conhecida no meio social paulista por suas ações filantrópicas e educacionais, agora seria também (re) conhecida como feminista. Dois anos depois da realização e da publicação desta conferência, Alice é eleita a feminista mais expressiva do Estado de São Paulo e representante de São Paulo no II Congresso Internacional Feminista, conforme a publicação de O Correio da Tarde de São Paulo, em 25/5/1931:
Como representante da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino com jurisdição no Estado de São Paulo, a Sra. Alice de Toledo Tibiriçá vem dirigindo com elevação e sabedoria a propaganda do Congresso obtendo um êxito significativo e, o que é mais importante, um apoio dos mais expressivos. A causa, por ser justa e oportuna, vem merecendo franco aplauso de todas as mulheres paulistas. Inúmeras colaboradoras, portanto, tem tido a distinta paulista: d. Vicentina Soares, que, por intermédio de A Reação, vem batalhando incansavelmente pela emancipação feminina; D. Branca de Canto Melo e muitas outras senhoras de relevo em nosso mundo social, que não medem esforços, nem tampouco sacrifícios, para levarem de vencida a grandiosa cruzada que a mulher brasileira, no momento empreende em prol da conquista dos direitos que por justiça lhe devem ser conferidos (Miranda, 2005, p. 144).
Na trajetória de Alice, é possível perceber o quanto “na saída em direção à vida pública as mulheres vivenciam ganhos e dilemas políticos. Ganham espaços diversos e tomam consciência de si e do outro” (Costa, 2002, p. 304). Porém, também localizamos nessa experiência os impasses decorrentes de suas tradicionais responsabilidades domésticas. Assim, ao mesmo tempo em que participava como filantropa e professora do II Congresso Internacional Feminista, responsável pelo tema A mulher como fator social, Alice, como muitas mulheres do seu e do nosso tempo, viveria “os dilemas de firmarem seu nome profissional ou de tudo abdicarem em favor da família” (Costa, 2004, p. 109).
[...] a necessidade de deixar a presidência dessa agremiação, a fim de desenvolver atividades próprias, pois encargos de família tinham ficado enormemente – irreparavelmente, quase – prejudicados com a minha permanência naquelle posto, cujos trabalhos augmentando sempre, reclamavam um tempo que não podia dispor [sic] (Tibiriçá, 1934, p. 21).
Durante a Revolução Constitucionalista de1932, Alice encontra com Maria Lacerda de Moura durante uma viagem de trem e a convida para hospedar-se em sua casa antes de seguir a viagem que a levaria a Guararema. Sendo duas feministas e intelectuais de uma mesma geração, é provável que suas trajetórias tenham se cruzado por diversas vezes, em inúmeros momentos e espaços, construindo, apesar das diferenças políticas, laços afetivos. Se o encontro com a anarquista Maria Lacerda de Moura a aproximou do pensamento de esquerda, não sabemos! Mas, progressivamente o discurso de esquerda vai ganhar expressão na trajetória de Alice, que apaga suas bandeiras de lutas por questões específicas, lançando-se, exclusivamente, às lutas gerais das reivindicações econômicas e políticas. Dizia ela: “Perdi 20 anos de minha vida em lutas parciais. Só quando o Brasil for emancipado econômica e politicamente, todas essas causas serão resolvidas” (Miranda, 2005, p.175).
E foi em torno das chamadas “lutas gerais”, como a carestia que se fazia sentir nos lares brasileiros, que mulheres de diferentes classes sociais se mobilizavam nas Uniões Femininas14. Alice alinha-se a esse novo “feminismo de esquerda”. E, em 1946, a Instituição Carlos Chagas fundava o Instituto Feminino de Serviço Construtivo, que – sob a direção de Alice Tibiriçá – funcionou como elo entre numerosas Uniões e outras entidades femininas no Rio de Janeiro.
No ano seguinte, o novo Instituto é convidado para participar em Praga, na Tchecoslováquia, da reunião do Conselho da Federação Democrática Internacional de Mulheres – instituição com sede em Paris, vinculada às feministas socialistas da Europa. Eleita por unanimidade para representar o Brasil, Alice corria o risco de não viajar por falta de recursos. Contudo, as Uniões Femininas realizaram uma campanha financeira relâmpago e, em dez dias, conseguiram a quantia necessária. Alice partia para sua primeira viagem internacional. Em Praga, certamente ouviu falar do marxismo e travou contato com experiências socialistas. Ali, provavelmente, não se discutiam questões referentes à condição das mulheres, mas sim de que forma as mulheres poderiam atuar no processo revolucionário. O impacto dessa experiência deve ter sido complexo para Alice. Na carta enviada às amigas brasileiras, já é possível localizar “palavras de ordem” do pensamento socialista:
[....] É preciso ouvir-se o que dizem as mulheres da Grécia, Palestina, Trieste, Vietnã, Mongólia, China e Espanha, para compreender-se o que significa a ação do imperialismo nesses países. Noutros, como Yugoslávia, Tchecoslováquia, Bulgária e França, que puseram para fora de suas fronteiras os alemães nazistas e falsos amigos, a situação é desafogo e reconstrução. Não mais é permitido, nesses países, a vigência, sem contraste, de regimes de exploração. Na Eslováquia, visitamos uma importante fábrica de linhas, nacionalizada. As operárias não se julgam humilhadas. São participantes conscientes da economia estatal. Ali não se sente no ar as partículas do algodão, a poluição. Observam-se limpeza e conforto. Pagas as despesas, o lucro das vendas efetuadas reverte ao fundo social.
Movimento Feminino: É importante acompanhar-se o movimento internacional feminino. Como são corajosas as mulheres! [...] Um grande abraço. Saudades de Alice Tibiriçá (Miranda, 2005, p. 153).
Embora Alice não proclame a tutela das organizações de esquerda e do Partido Comunista Brasileiro sobre suas atividades, tal influência pode ser claramente sentida, não somente por sua filiação à Federação Democrática Internacional de Mulheres, mas, principalmente, a partir de “palavras de ordem” e táticas utilizadas por Alice em suas ações. A vinculação de Alice ao Partido Comunista ganhava a opinião pública. No dia 2 de março de 1948, o Jornal O Globo publicava uma pequena nota em que dizia que a passeata contra a carestia organizada por várias militantes comunistas, entre elas Alice Tibiriçá, seria impedida, pela chefatura de polícia do Distrito Federal, de sair da Cinelândia em direção à Câmara Federal e Municipal.
No final da década de 1940, foram criadas várias associações femininas, entre as quais se destacam a Federação das Mulheres do Estado de São Paulo (FMESP), fundada em abril de 1948, por Alice Tibiriçá. “Desde a sua fundação, a FMESP era percebida pelos agentes policiais como um braço do Partido Comunista, tendo como objetivo atrair mulheres para a causa comunista” (Morente, 2015, p. 20). Enquanto associação feminina, recebeu uma atenção especial da Polícia Política de São Paulo. É interessante observar que Alice, mesmo residindo no Rio de Janeiro, permanecia uma referência para o movimento feminista de São Paulo. Em 1949, o país já contava com instituições femininas atuantes e organizadas em inúmeras entidades pelos Estados brasileiros. Todavia, elas demandavam uma estruturação mais eficiente. Para tanto, funda-se na capital federal a Federação de Mulheres do Brasil, (FMB) tendo como sua presidenta Alice Tibiriçá. Maria Augusta, sua filha, numa clara tentativa de desvincular a militante comunista da imagem de filantropa construída para Alice, silencia-se sobre a atuação de sua mãe à frente da FMESP e da FMB. Na trajetória feminista de Alice Tibiriçá, há mudanças de objetivos. Agora, além da defesa dos direitos da mulher, torna-se um imperativo a luta de caráter nacionalista. Alice adere à campanha “O Petróleo é Nosso”.
Alice já se encontrava adoentada quando, no dia primeiro de agosto, sua casa, juntamente com outras casas da cidade, foi cercada pela polícia e muitas prisões se fizeram. Diante da intimação para comparecer à delegacia, sem mandado judicial, “Alice recusou-se a atender à arbitrariedade”. E disse que só iria se fosse à força. Diante de tal negativa, a intimação transformou-se em um convite para que Alice comparecesse à Delegacia. Isso ocorreu na companhia do Deputado Euclides da Cunha Figueiredo. Após prestar esclarecimentos, Alice foi liberada15.
No mês seguinte, sua irmã Maneta comemoraria bodas de casamento e Alice resolveu ir a São Paulo tirar uns dias de descanso. Chegando à capital paulista, recebeu o convite de Amigas da Federação das Mulheres do Estado de São Paulo para participar de uma reunião de organização “de uma mesa redonda, destinada a debates em relação à carestia”. A reunião ocorreria na sede da FMESP, no centro da cidade. Como Alice não resistia a um convite de trabalho, mesmo adoentada, decidiu comparecer.
Ao chegar ao local, Alice “estranhou” o grande número de policiais. Ao ser questionada pelo policial se iria ao dentista ou à reunião de mulheres, em um ato de sobrevivência, respondeu: “Ao dentista”. E entrou realmente no consultório. Sentou-se na cadeira e pediu um exame. Sua estratégia teria dado certo. Mas as demais sócias da Federação, distribuídas em diversos bares das redondezas, acreditaram que Alice havia sido presa e “vieram-lhe ao encontro, reclamando: Liberdade para Alice Tibiriçá. A violência explodiu. A água jorrou de grossas mangueiras. Cassetetes foram utilizados”. Ouvindo a confusão, Alice saiu ao encontro das demais senhoras atingidas. Todas foram presas e encaminhadas à Polícia Política.
Após intensa mobilização de familiares e amigos, Alice finalmente é libertada em 05 de outubro, por ordem de habeas-corpus. Seu estado de saúde, porém, agravara-se. Em 9 de janeiro de 1950, quando comemorava 64 anos, recebeu vários amigos e familiares em sua casa. Sua saúde já estava bastante fragilizada, mas ela não parava e, contrariando as ordens médicas da filha, participou das comemorações pelo Dia Internacional da Mulher, em 1950. Em seu discurso, ressaltou que “somente por meio da emancipação econômica e, consequentemente, política do Brasil, poderíamos realmente vencer as doenças e os males sociais” (Miranda, 2005, p. 193). Foi sua última apresentação em público. No dia 8 de junho de 1950, após uma árdua luta contra um retículo-sarcoma, Alice falecia.
Na experiência de Alice, práticas filantrópicas voluntárias ganham continuidade em um campo de ação tendencialmente feminino, atualizando antigas tradições, também presentes na orientação das várias profissões femininas. Mas, então, isso se dá por intermédio de estreitos vínculos com o Estado. Sua trajetória aponta para um claro movimento de rupturas e continuidades, práticas vinculadas ao padrão filantrópico, como as desenvolvidas por Alice, tornam-se capazes de garantir-lhes uma renda e se situam na interface com o movimento feminista. Entendendo sua trajetória como parte da história política, foi possível verificar que com suas muitas singularidades e experiências filantrópicas, ela ganha crescentemente novos significados. Sua circulação no espaço político também amplia referências de cunho maternalista em iniciativas privadas de proteção social e as supera, contribuindo decisivamente com o processo de montagem de redes e serviços de proteção social a cargo de um dado Estado Social, cada vez mais entendido e situado como lugar de garantia de direitos sociais.
Assim, a trajetórias de Alice guarda informações que permitem reconstituir não só a dimensão e extensão dessas ações filantrópicas na montagem privada do sistema de proteção social brasileiro, mas também as diversas possibilidades de ampliação desses serviços no espaço público, com presença de mulheres nessas tarefas e sob aplausos masculinos. Trespassada pela compaixão, Alice, move-se com sinal político e seus estilos próprios em busca da consolidação do campo da proteção social brasileira. Definem-se, aí, múltiplas possibilidades de construção de novos signos sociais e de novas experiências pessoais e profissionais para as mulheres.
Acompanhando a sua trajetória, percebo que ela se consagra no espaço político, sobretudo por meio de um padrão de maternidade social que, em uma continuidade histórica, persiste associando mulheres a ações filantrópicas e voluntárias. Nessas experiências, a montagem do sistema de proteção social se faz com continuidade e, também, com rupturas de práticas filantrópicas de longa duração, que reafirmaram o imaginário social sobre papéis femininos na prática dos cuidados (pré) definidos na divisão sexual do trabalho. Mas esse mesmo movimento é o de “saída” das mulheres e de seu ingresso no mundo público. E isso também mudou.
A filantropia, outrora pensada como uma tarefa feminina, de caráter privado e quase sempre de iniciativa religiosa, também parece favorecer e permitir uma inusitada e extraordinária capacidade de tomada de consciência sobre as desigualdades sociais e os deveres do Estado, matéria que a desloca para o campo da política.
Em um variado e complexo movimento de acatar e desobedecer, as mulheres irão distinguir momentos e práticas do campo dos direitos sociais. Assim, reconhecem os desafios desse campo e permitem-se ora avançar, ora recuar, em busca de justiça social e de novas concepções de sociedade – caso não igualitária, pelo menos, mais justa, por meio de políticas sociais. Alinham-se também – e sob muitos riscos – a associações socialistas e mesmo comunistas. Localiza-se nessa experiência feminina tão plural a fertilidade e a complexidade da filantropia como campo de luta por direitos e um fértil espaço de empoderamento feminino. Há, nela, muitos desafios a enfrentar nas muitas pesquisas a serem empreendidas.
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