Resumo: O presente artigo objetiva apresentar a incidência das ideias progressistas na vida e no trabalho em saúde mental desenvolvido por Nise da Silveira e Ivone Lara, por meio de seus vínculos com organizações coletivas. Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratória ancorada em revisão de dissertações, teses, artigos, entrevistas e documentários. Identificou-se as expressões da resistência política, ética e social desenvolvida por ambas, tanto nos espaços coletivos ocupados quanto no trabalho em saúde mental.
Palavras-chave: Ivone Lara, Nise da Silveira, Saúde Mental, Mulheres, Resistência.
Abstract:
This article aims to present the incidence of progressive ideas in the life and work in mental health developed by Nise da Silveira and Ivone Lara, through their links with collective organizations. This is exploratory research based on a review of dissertations, theses, articles, interviews, and documentaries. The expressions of political, ethical, and social resistance developed by both were identified, both in the collective spaces occupied and in the work in mental health. Ivone Lara, Nise da Silveira, Mental Health, Women, Resistance.
Keywords: Ivone Lara, Nise da Silveira, Mental Health, Women, Resistance.
Nise da Silveira e Dona Ivone Lara: do Partido Comunista ao Partido-Alto, expressões da resistência no trabalho em saúde mental
Nise da Silveira and Dona Ivone Lara from the Communist Party of Brazil to the Alto Party: expressions of resistance in mental health work
Recepción: 01 Octubre 2024
Aprobación: 01 Diciembre 2024
As mulheres querem se reapropriar dos fragmentos dessa história sem memória, não para cristalizarmos e fabricar novas múmias, mas para que estejam presentes na nossa consciência e nas nossas práticas cotidianas, para que façam parte da nossa revolta, nossas experiências, nossos sonhos (Souza-Lobo, 2011, p. 218).
Em março de 2022 foi inaugurado o Bosque Dona Ivone Lara na antiga área do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira, localizado no bairro do Engenho de Dentro, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. O local, conhecido como Centro Psiquiátrico Pedro II, foi palco do trabalho e do encontro entre duas mulheres insurgentes: Nise da Silveira e Ivone Lara.
Ainda com pouca produção sobre o encontro entre essas mulheres insurgentes e o instigante trabalho desenvolvido no interior do centro psiquiátrico (Passos; Moraes, 2021) podemos dizer que ambas desenvolveram práticas que são bases inspiradoras para as experiências antimanicomiais. Recuperar as atuações e retirar esse encontro da invisibilidade é tarefa primordial para as estudiosas e militantes que articulam as relações de gênero, raça e classe para pensar saúde mental e atenção psicossocial.
Não é de hoje que estudos desenvolvidos por pesquisadoras revelam o silenciamento das mulheres nos hospitais psiquiátricos, principalmente em relação às práticas que levaram as internações forçadas e demais violências praticadas (Cunha, 1986; Garcia, 1995; Pereira; Passos, 2017; 2019; Pereira, 2020). Entretanto, não foi apenas o tratamento dispensado, mas também a invisibilização do trabalho realizado pelas mulheres, em especial, aqueles desenvolvidos pelas mulheres negras (Passos, 2017).
É importante situar que já existem estudos sobre a psiquiatra alagoana. Já as produções sobre Dona Ivone Lara são mais recentes e vêm tratando de perspectivas diversificadas de sua vida, enquanto compositora (Santos, ٢٠٠٥; Burns, 2019), assistente social e trabalhadora da saúde mental (Scheffer, 2016; Passos; Moraes, 2021), enfermeira e terapeuta ocupacional.
No presente artigo, pretendemos apresentar a angulação analítica a partir da trajetória juvenil de Nise da Silveira e Dona Ivone Lara, com ênfase na elucidação de seus enlaces das ideias progressistas, cujo encontro ocorrido no hospício forjou a inédita abordagem na saúde mental por meio da arte plástica e da música3 no tratamento de pessoas em sofrimento psíquico grave. Nossa hipótese é que os valores adquiridos na fase juvenil perpassam por inspiração das ideias feministas e antirracistas de seu tempo, que entraram em contradições e confronto com relações manicomiais estabelecidas no Centro Psiquiátrico Pedro II, gerando a rebeldia frente ao tratamento violento dispensado aos sujeitos institucionalizados. Consideramos que esse trabalho foi fruto de “Bom Encontro”, conforme Espinosa concebe, seria a relação que se compõe, que nos convém, que nos conserva e nos ajuda a prosperar, é o encontro que aumenta a nossa potência de existir, e que favorece a nossa capacidade de afetar e ser afetado. Por isso, dirá Espinosa, “toda Alegria é diretamente boa”.
Justificamos a relevância do estudo acerca do trabalho dessas mulheres, uma vez que contribuem para o fortalecimento da memória da resistência das mulheres, além de possibilitar entender que a especificidade da contribuição aos movimentos de mulheres e feministas vêm revelando as articulações entre política e vida cotidiana, ou seja, a relação entre as esferas privada, social e política na heterogeneidade das experiências a partir das relações de gênero (Souza-Lobo, 2011).
Estudar essas personas praticamente míticas na história brasileira não é uma tarefa intelectual fácil, pois não se trata de biografias isoladas, requer apreender o domínio da existência dessas mulheres articulando-se ao coletivo do trabalho, da cultura, da história, dos valores que experimentam em suas vidas imbricadas na dialética entre determinação e liberdade. (Freire, 1983). Neste sentido, se faz necessário tratar das diferenças entre ambas, que constituem suas visões de mundo a partir da cultura, marcadas por suas condições de raça e classe que forjam suas distintas perspectivas, as quais se encontram no trabalho em saúde mental. Portanto, o ponto de encontro é o hospício.
Aprendi lutar na ribeira
Vender e trocar lá na feira
Ser fiel e ser companheira
Ser sambista por brincadeira
[...] No que faço sou capaz
Nos combates desta vida
(Dona Ivone Lara)
Neste primeiro momento trataremos das trajetórias de Nise da Silveira4 e Dona Ivone5, buscando traçar os aspectos econômicos, sociais e culturais que foram antecessores às suas inserções no Setor de Terapêutica Ocupacional, criado no antigo Centro Psiquiátrico Pedro II. Entendemos que Nise da Silveira e Dona Ivone Lara são mulheres que romperam os padrões patriarcais a partir da formação médica e na integração na ala de compositores de samba, pois ambos eram vistos como universos naturalmente masculinos na sociedade brasileira de sua época.
As décadas de 1920 e 1930 se caracterizam por grandes mudanças na cultura brasileira. Isso se constata a partir da mudança do padrão urbano-industrial que abalou os antigos modelos de relações sociais e de comportamentos psíquicos, dando origem às novas representações culturais (Costa, 2006). Ocorreram, também, a ascensão de significativos movimentos políticos e eventos no período, entre eles: tenentismo, Semana de Arte, as fundações em 1922 do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), liderada por Bertha Lutz.
A aproximação de Nise da Silveira com as ideias feministas de seu tempo pode ser observada em sua formação médica, cujo trabalho de conclusão de curso foi intitulado “Ensaio sobre a Criminalidade da Mulher no Brasil”, em que traçou um “perfil das mulheres que cometiam crimes no Brasil, antecipando temas pouco discutidos na academia à época, como o aborto e a prostituição” (Pondé, 2022). Seu estudo saiu na primeira página da edição de janeiro de 1927 do Jornal do Recife, “para a felicidade de todos nós o bom feminismo vem cuidando dos altos interesses sociais” (Pondé, 2022).
Ressaltamos que a carreira médica para mulheres, desde o final do século XIX, era muito difícil, pois sofriam inúmeras pressões sociais. Nesse período entendia-se ser uma profissão imprópria para o sexo feminino. No imaginário cultural do século XIX foi marcado pelas ideias do determinismo biológico (Rago, 2000, p. 224).
Nise da Silveira, após formada, ainda jovem, chega em 1927 na cidade do Rio de Janeiro, para se especializar em psiquiatria. Nessa época, Nise da Silveira se insere na militância no Partido Comunista Brasileiro. As mulheres militantes comunistas da primeira geração procuravam associar as pautas feministas juntamente com as demandas das mulheres pobres e trabalhadoras, visando garantir que o trabalho político feminino combinasse a construção dos movimentos de mulheres e a vitalidade das ações do PCB6 (Soares, 2021).
Durante a ditadura getulista, a questão da mulher foi marcada por inúmeras contradições e tensões sobre a sua inserção no mundo do trabalho, atravessado por demandas feministas e a reação conservadora da Igreja Católica. Em 1935, Nise da Silveira participou da construção União Feminina do Brasil (UFB), cujas fundadoras eram advindas da classe alta e com ensino universitário, atuando em diferentes campos sócio-ocupacionais como artistas, educadoras, funcionárias públicas e escritoras, muitas inclusive tinham um certo destaque no cenário nacional da década de 1930. A UFB considerava certas entidades feministas do período, como burguesas, reformistas, politiqueiras e distantes da realidade das mulheres trabalhadoras. A entidade não durou muito tempo:
[...] em decorrência do autoritarismo do governo de Getúlio Vargas, sobreviveu por apenas dois meses. Durante o curto período de existência lançou um manifesto convocando as mulheres à luta. A organização defende pautas específicas para as mulheres: reivindicou a emancipação feminina; mais acesso à educação formal e que na escola tivessem a mesma formação que os homens; defendeu o fim das disparidades salariais entre os sexos, a partir do princípio do igual salário para igual trabalho e pautou a valorização do trabalho doméstico como trabalho produtivo (Alves, 2028, p.441).
Em fevereiro de 1936, Nise da Silveira foi denunciada por possuir livros e materiais de comunista em seu trabalho no Hospital da Praia Vermelha, no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental. A prisão marcou definitivamente seu trabalho na saúde mental: “Porque passei pela prisão, eu compreendo as pessoas e os animais que estão doentes, pobres, que sofrem. Eu me identifico com eles. Sinto-me um deles” (Silveira, s.d). Ela também aponta que “alguém que viveu um naufrágio, um incêndio, a prisão ou tortura não pode mais ser o mesmo indivíduo, sofre transformações. Imagine-se então quem passa pelas metamorfoses do ser, que são as chamadas doenças mentais. (Silveira, 1981 apud Magaldi, 2018, p.128).
Nessa perspectiva feminista, a psiquiatra alogana, em 1948, no Jornal (RJ) na matéria intitulada “A ausência da mulher brasileira nos postos de comando”, afirma:
Parece-me que a ausência da mulher brasileira, seu afastamento dos grandes problemas nacionais é apenas um aspecto das relações sociais ainda predominantes num país como o Brasil, de atrasada estrutura econômica. Se estamos ainda em etapa que permite aos homens ocupantes dos postos de direção atitudes de fazendeiros ou de senhores de engenho, e assim acontece na maioria dos casos, é muito lógico que nesse quadro social de tonalidades tão acentuadamente patriarcais, a mulher não possa desempenhar papel de primeiro plano (Silveira, 1948 apud Pondé, 2022, s.p).
Na visão de Silveira, é interessante observar que “tonalidades” do machismo estavam relacionadas a herança racista da estrutura econômica escravista da casa-grande, que se reproduz nas relações sociais do espaço urbano, desvelando uma lógica de subalternização no mundo do trabalho.
Já Dona Ivone Lara, em sua mocidade, integrou a escola samba7 de Prazer da Serrinha8. A Prazer da Serrinha foi fundada por volta de 1926, originária do bloco carnavalesco Cabelo da Mana. O samba, enquanto criação das classes populares negras, traz consigo um potencial de luta política, que abre possibilidade para uma consciência crítica acerca das opressões e explorações de raça e classe. As escolas de samba nascem no Rio de Janeiro representando uma síntese cultural das heranças dos cortejos processionais, a tradição carnavalesca dos ranchos de blocos e cordões, e os sons das macumbas, batuques e sambas cariocas (Mussa, Simas, 2023).
Para Moura (2019), as escolas de samba têm sua gênese na situação concreta de marginalidade do negro do morro, favelado que buscou se organizar para reverter suas situações de “marginalidade”. As escolas, custaram-lhes sacrifícios, dinheiro, tempo e paciência para conquistar no asfalto o espaço do carnaval. Numa perspectiva ampla, as escolas de samba se inscrevem numa conjuntura em que a sociedade brasileira fazia uma revisão dos seus valores resultantes de seus conflitos estruturais expressando-se no campo da cultura, como foi o evento da Semana de Arte Moderna; “Enquanto a cultura dominante buscava autoafirmar o modernismo, visando suprir o descompasso entre realidade e a cultura das elites” (Moura, 2019, p.182). O negro do morro trazia através dos desfiles do carnaval sua contracultura para o asfalto. “O negro, dessa maneira, não via o carnaval como uma simples festa da mesma forma que o branco o vê. Era, de certo modo, o momento mais importante de sua vida, do ponto de vista de sua autoafirmação social, cultural e étnica.” (Moura, 2019, p.182). Vejamos que questão na ilustração do trecho da música Força da Imaginação:
Quando uma escola traz de lá do morro
O que no asfalto nem é sonho
Atravessa o coração um entusiasmo medonho
Força da imaginação
Se espalhando na avenida
Não pra animar a fraqueza
Mas pra dar mais vida à vida
(Caetano Veloso / Dona Ivone Lara)
Na década de 1930, no discurso oficial ditatorial de Vargas, “o mestiço vira nacional”, ao lado de um processo de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente embranquecidos. A feijoada, por exemplo, que era uma comida das pessoas escravizadas, se converte em “prato nacional”, carregando consigo a representação simbólica da mestiçagem. O feijão e o arroz remetem metaforicamente aos dois grandes segmentos formadores da população (Schwarcz, 2012).
Muitos historiadores apontam uma profunda ambiguidade do regime varguistas acerca do tratamento dos negros na sociedade brasileira, que ora era visto como cultura nacional, ora sofria criminalizações, o que perpassava os diferentes posicionamentos do Ministério da Educação e Departamento Nacional Informação e Propaganda (DIP). Por exemplo, o DIP, em 1939, criou uma portaria que proibia oficialmente a exaltação da malandragem, e, no início de 1940, acreditava haver muitos “sambas de malandragem”. Tal departamento censurou os compositores, apontando a necessidade de elogiar o trabalho e condenar a boemia. A postura estatal fez com que surgisse, naquele momento, sambas do trabalhador (Schwarcz, 2012).
No texto “Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira”, os autores apontam a relação entre o racismo científico e a manicomialização da vida, por meio da criação de estereótipos que precisavam ser controlados e condenados pela loucura ou pela periculosidade. As estratégias adotadas para difundir a miscigenação eram propagadas pela medicina e outras áreas do conhecimento, o que objetivava combater o que representava a negritude e estimulava o embranquecimento da população, dos saberes e práticas (David; Vicentin, 2020). A malandragem seria uma característica do homem negro e, por isso, tinha que ser vigiada e combatida pela polícia, sendo, inclusive, um desvio social.
Dona Ivone Lara aproxima-se, em 1947, da Escola Império Serrano, oriunda de uma dissidência de sua antiga Escola de samba o Prazer da Serrinha, cuja agremiação buscava uma gestão democrática, sem dono, em que as decisões fossem tomadas em conjunto. Dessa forma, adotava conduta que se opunha ao autoritarismo da antiga escola. A maioria de seus fundadores era constituída por trabalhadores do Sindicato da Estiva. Em entrevista a sambista relata:
O Império Serrano começou com os estivadores, com a estiva. A maior parte dos componentes do Império Serrano, entre os homens, era de estivadores. Inclusive o meu primo, Fuleiro, era estivador, os meus outros compadres, o Mano Décio... todos eles eram da estiva. Tanto que o Mano Elói, que foi o primeiro presidente do Império, um dos fundadores do Império, ele é que era um dos presidentes da estiva. Então ele trouxe aquela raça toda pro Império Serrano. Inclusive o Império tornou-se uma família (Lara apud Santos,2005, p. 162).
Em depoimento9, o senhor Aniceto de Menezes, integrante da fundação da escola, explicita vínculos entre seu trabalho no Cais do Porto e sua inserção no Sindicato da Resistência. A escola de samba do Império se propunha criar um espaço de lazer, assistencial e educacional na região. No artigo 2º da escola, a intenção não era só de dar assistência social e financeira aos moradores e participantes do Grêmio, mas de oferecer uma “maior assistência moral”. Já no artigo 3°, tem-se como objetivo a criação de centros de instrução primária (Barbosa, 2015).
Em relação a história do Império Serrano, identificamos sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), estando relacionada com a criação da União Cívica de Escolas de Samba (UCES) em 1950. A União Geral das Escolas de Samba do Brasil (UGESB) não recebia verba da Prefeitura do Rio de Janeiro, porque tinha ligação com o PCB. Cabe observar que em 1934 foi fundada a União das Escolas de Samba, que apontava como finalidade cultivar a verdadeira música nacional, imprimindo seu cunho de brasilidade. (Oliveira, 2024, p.s).
Com base em Chauí (1989, p.141), podemos observar a escola de samba como uma expressão da “consciência popular elaborando sua própria sociologia, organiza a realidade a modo de torná-la inteligível e de maneira a tornar compreensíveis as ações realizadas”.
A partir dos breves fragmentos das biografias dessas notáveis mulheres, observamos aspectos em comum: ambas enfrentaram estruturas da sociedade patriarcal. Além disso, se organizavam coletivamente em sua juventude a partir de suas realidades de raça e classe. A psiquiatra nordestina percorreu em sua juventude os caminhos organizativos do PCB e UBF. Já a jovem sambista Ivone Lara trilhou os rumos de resistência de sua ancestralidade dos ranchos carnavalescos até criação das Escolas de Sambas no Rio de Janeiro. A partir dessas trajetórias, muito singulares, vinculadas ao Partido Comunista Brasileiro e ao Partido-Alto10 do Samba, gerou-se diálogos das artes e da música que instigaram um deslocamento das práticas manicomiais violentas para campo da cultura, pautado nos valores da liberdade e da humanização.
Olha como a flor se acendeQuando o dia amanheceMinha mágoa se escondeE a esperança apareceO que me restou da noiteO cansaço, e a incertezaLa se vão na Beleza deste lindo alvorecer
(Dona Ivone Lara e Delcio de Carvalho)
O encontro de Dona Ivone Lara e Dr.ª Nise da Silveira, se inscreve no cenário nacional de euforia e esperança pela redemocratização e por caminhos pela liberdade; numa conjuntura internacional após horrores nazistas da Segunda Guerra Mundial, cujos impactos na saúde mental se desdobraram em críticas11 à lógica hospitalocêntrica na atenção ao tratamento da loucura que impulsionou a criação de novos modelos em saúde mental pautados na liberdade. No Brasil, década de ١٩٥٠ amplia-se a reflexão acerca de questões raciais que tiveram sob ataque desses regimes totalitários que tomaram força com as pesquisas promovidas pela UNESCO, cujo financiamento era atrelado à investigação da suposta “democracia racial” brasileira. Entretanto, os pesquisadores demonstraram que não passavam de “fantasia” projetada pela classe dominante brasileira nos ocultamentos de conflitos raciais na sociedade de classes.
Nise da Silveira retomava suas atividades como médica psiquiatra após a crise e queda da Ditadura de Vargas em 1944. A ambiência do hospício era balizada pelo autoritarismo e tratamentos violentos como eletrochoque e lobotomia. Diante de seu descontentamento e revolta com a dinâmica institucional e os tratamentos, foi alocada no Setor de Terapêutica Ocupacional. Ao longo de seu trabalho, vai tecendo três dimensões articuladas no trabalho em saúde mental, que, conforme Melo e Ferreira (2013), são: 1) Dimensão Clínica, que buscava criar espaço e recursos terapêuticos: relacionais, recreativos, plásticos, dramáticos e culturais. 2) Dimensão Investigava sobre produção criativa e artística dos frequentadores do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras, atrelado à biografia e aos conteúdos inconscientes. 3) Dimensão pedagógica, que constitua em orientações e supervisões clínicas, cursos de atualização, organização do Centro de Estudos do Museu de Imagens do Inconsciente e do Grupo de Estudos C.G. Jung, além de sua produção escrita.
A criação da Casa das Palmeiras, visou abarcar os aspectos afetivos e expressivos, por meio de um ambiente que possibilitasse o tratamento orientado na liberdade, objetivando a reinserção social dos sujeitos egressos do hospital (Melo; Ferreira, 2013). Portanto, o espaço buscava evitar reinternações por meio do fortalecimento dos laços entre comunidade- família-sociedade no acompanhamento dos egressos. As constantes internações eram vistas enquanto resultantes de ‘rodopio’ entre hospital-mendicância-prisão, que expressavam na trajetória de louco, vagabundo e marginal (Scheffer; Borges; Moura, 2021).
O encontro de Dona Ivone Lara com a psiquiatra alagoana ocorreu em 1947 no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde esteve construindo esse trabalho inovador, conforme apontado acima. Foi nesse mesmo ano que concluiu seu curso de Serviço Social na Escola Anna Nery. Sobre sua formação, ela aponta: “Eu estava fazendo Visitadora Social quando surgiu a Assistência Social [...]. Eu só fiz o seguinte: depois disso eu me aperfeiçoei mais na Ana Nery” (Lara apud Santos, 2005, p.162). Ao término do curso de Serviço Social foi abordada pelo diretor do hospital para escolher os rumos de sua carreira no hospital, conforme relato:
[...] Ô, Ivone, você quer continuar como enfermeira, ou você quer ser transferida para a carreira de Assistente Social? Tá aqui o seu diploma, e você vai ter que escolher, ou uma coisa ou outra”. E eu já estava toda influenciada como Assistente Social, então eu quis ser Assistente Social (Lara apud Santos, 2005, p.162).
Sobre dinâmica do trabalho e a escola de samba, vejamos a descrição do imperiano:12
Quando o Império Serrano foi fundado, em 1947, a partir de uma dissidência da Prazer da Serrinha, a jovem sambista foi aos poucos se chegando à nova escola. [...] Ao mesmo tempo em que trabalhava como enfermeira e assistente social, primeiro na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, depois no antigo hospital psiquiátrico Pedro II, onde foi assistente da doutora Nise da Silveira, Ivone ia firmando seu nome como compositora de sambas de terreiro. E, em 1965, emplaca no Império Serrano seu samba-enredo “Cinco bailes da história do Rio”, composto em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau. No mesmo ano, seu samba “Amor inesquecível” é gravado num disco que reunia repertório de diversas escolas cariocas, sob a batuta de Moacyr Silva (Lima, 2017, s.p).
No documentário “Ocupação Dona Ivone Lara13”, Abel Machado, músico e coordenador musical do bloco carnavalesco Loucura Suburbana, destaca a participação de Dona Ivone Lara na equipe de saúde mental. Ao assumir o cargo de assistente social, ela realizava investigações sociais, incluindo a busca “ativa” de familiares de pessoas internadas em hospitais psiquiátricos, percorrendo diversas regiões do Brasil. Acerca da dimensão investigativa da profissão, Iamamoto e Carvalho (2004, p.193) apontam:
Enquanto, pesquisadoras sociais, se dedicarão através dos inquéritos familiares a diversos levantamentos nos bairros operários, pesquisando as condições de moradia, situação sanitária, econômica e moral (situação civil, promiscuidade, alcoolismo, desocupação etc.) do proletariado.
Além disso, nas palavras do depoente Abel Machado (2015), ela também em seu trabalho profissional atuava como uma “espécie de produtor cultural”14 junto ao segmento fabril da região na captação de apoio para realização das atividades musicais por meio da doação de instrumentos e outros materiais.
Para Santos (2005), Dona Ivone foi pioneira nas atividades de musicoterapia. Já Leite Junior, Farias e Martins (2021), assinalam que a Dama do Samba ao realizar o seu trabalho utilizando a música e realizando o trabalho com as famílias dos sujeitos internados, trouxe contribuições para o avanço do cuidado humanizado, além de articular saberes culturais e populares no tratamento em saúde mental.
Eu descobri muitos doentes que eram músicos, esquizofrênicos que ninguém sabia que eram músicos. [...] A doutora Nise montou uma sala de música com piano, cavaquinho e pandeiro. À tarde, tinha ensaio geral e eu estava sempre lá, dançando com eles, sambando, cantando com eles. Tinha um doente que era catatônico, mas a doutora Nise ria muito porque dizia assim: Ivone, vai ter ensaio hoje... e depois caia no mundo dele, só conversava comigo (Lara, 2005 apud Santos, 2005, p.58).
Na música Força do Criador, observar a nítida relação entre sua atividade de compositora e seu exercício profissional na Saúde Mental, vejamos abaixo o trecho ilustrativo da:
Alegria de viver cantando
Companheira desses longos anos
Fonte de inspiração tão bela
Essa luz sempre a me guiar
Da loucura resgatou insanos
Pois nas trevas os meus desenganos
O encontro que me seduz
Meu tesouro maior
A certeza de estar sempre a sonhar
Nos braços de uma canção
Atravesso fronteiras [...]
(Dona Ivone Lara e Bruno Castro)
Nesse caminho, podemos identificar como a cultura popular brasileira, fruto da produção da resistência da população negra, foi sendo incorporada na produção do cuidado em saúde mental. Ao mesmo tempo que Ivone Lara trabalhava no Centro Psiquiátrico Pedro II, estava inserida nas rodas de compositores, o que demonstra sua imersão nos espaços de resistência e afirmação da cultura negra. Se por um lado produz uma intervenção contra a predominância patriarcal, por outro promove no espaço de tratamento em saúde mental uma mudança importante acionando a música como estratégia.
Para Chauí (1989), a cultura popular, como resistência, pode assumir tanto um caráter difuso no cotidiano, expressando-se no humor anônimo, nos ditos populares e nos grafites dos muros da cidade quanto nas ações coletivas ou grupais. Portanto, nem sempre na cultura popular haverá um caráter deliberado de resistência, mas estará em suas práticas uma lógica que as transforma em atos de resistência. Além disso, aponta que tanto os seres quanto objetos culturais não são dados definidos de “isto” ou “aquilo”, pois seu significado se inscreve nas práticas sociais e históricas determinadas, por formas de sociabilidade marcadas por relações de intersubjetiva, grupal, de classe, bem como, na relação com o visível e o invisível, com o tempo e o espaço, com possível e impossível, com o necessário e o contingente. Em suma, o sentido depende do campo de práticas que a constituem e nas quais se insere.
Por fim, de forma hipotética, podemos estabelecer o encontro delas e seus ideários feminista e antirracista que incidiram no trabalho em saúde mental desenvolvido por meio dos acompanhamentos sistematizados por Nise da Silveira em seu livro Imagens do Inconsciente (2019), no qual, por exemplo, aborda os casos de Adelina e Fernando, ambos de origem negra, de famílias de baixa renda e cujas trajetórias foram marcadas pela opressão de raça e gênero.
‘As pessoas não morrem, ficam encantadas’
(Guimarães Rosa)
Nos saberes populares dizem que o gato significa independência; sendo seres energéticos que contribuem na limpeza das energias carregadas do ambiente e das pessoas. O pássaro por sua vez representa a liberdade e significa espiritualmente o mensageiro do divino. Tais aspectos, nos leva metaforicamente a esse encontro mítico do gato - Carlinhos15 e do pássaro - Tiê16, ou seja, de Nise da Silveira e Dona Ivone Lara, agora encantadas, nos deixam um legado fundamental da resistência na história brasileira. Ao estudar suas trajetórias e seu encontro nos permitiram acessar simultaneamente a processualidade histórica das lutas que antecederam seu trabalho na saúde mental em seus enlaces com pautas feministas e antirracistas de sua época que forjaram um trabalho antimanicomial precocemente nos trópicos.
O encantamento é parte do encontro dessas duas mulheres que a partir dos seus respectivos lugares, trajetórias e influências culturais e políticas, transformaram a realidade e desviaram o curso da história da loucura. Compreendemos que encantamento é o “ato de desobediência, transgressão, invenção e reconexão: afirmação da vida” (Simas; Rufino, 2020, s/p.), ou seja, são práticas e saberes criados na experiência afrodiaspórica brasileira que modificam os modos de ser, existir e práticas, produzindo uma gira política, ética, estética e poética destoante do hegemônico.
No Brasil, a encantaria faz parte da sua constituição, pois foi sendo redesenhada nos porões dos Navios Negreiros e nos quilombos, transmutando-se e sendo “plasmada na vida dos tambores, das matas e no transe de sua gente” (Simas; Rufino, 2020, s/p.). Tal encantaria trazida pelos negros aliou-se as práticas ancestrais dos povos originais, sendo ensinada tanto nos terreiros quanto nas aldeias, sendo praticada por muita gente e encarnada pela população. Tais tradições permeiam a cultura e ocupam os espaços do samba e, também, das práticas e ensinamentos de mulheres, pois lá na casa grande as figuras das mães pretas, mucamas e amas-de-leite já ensinavam encantaria para as crianças e mulheres.
Portanto, todo o encantamento de Nise da Silveira e Ivone Lara e sua produção de saúde mental são resultado daquilo que é constitutivo de um Brasil que foi silenciado: a resistência. Uma encantaria que emerge dos quilombos e das aldeias, pautadas em uma liberdade de ser e existir cultivada nas matas e com batuques proporcionando outras práticas de cuidado. O legado da humanização do cuidado em saúde mental deixado por essas mais velhas nos mostra que é possível aprender com as experiências cotidianas e culturais forjadas pela nossa população, novas formas de relações, modos de vida e processos de subjetivação, e para isso é preciso resgatar uma história ainda não revelada.
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