Resumo: O presente artigo tem por objetivo apontar que as mulheres participaram, e participam, de forma ativa dos processos históricos – ainda que a história dita oficial diga o contrário. Ao trazer para si o título de “sujeito universal”, os homens se sentem no direito de serem os únicos capazes de falar. Nesse processo, no qual constroem a imagem feminina mediante a sua perspectiva machista e estereotipada, as mulheres exercem o papel de coadjuvantes de suas próprias histórias. Por meio de um percurso na história contra-hegemônica, sustentada pela epistemologia feminista, é possível se aproximar das vozes das mulheres, suas memórias, movimentações e lutas. Por isso, este texto traz a história da professora Suely Gomes Costa para análise.
Palavras-chave: Gênero, História das mulheres, Memórias femininas, História contra-hegemônica.
Abstract: The present article aims to point out that women participated, and still participate, actively in historical processes – even though the so-called official history, which brings a male and white narrative, says otherwise. By bringing to themselves the title of “universal subject” men feel entitled to be the only ones capable of speaking. In this process, in which they construct the female image through their sexist and stereotypical perspective, women play the role of supporting characters in their own stories. Through a journey through counter-hegemonic history, supported by feminist epistemology, it is possible to get closer to women’s voices, their memories, movements and struggles. Therefore, this text brings the story of Professor Suely Gomes Costa for analysis.
Keywords: Gender, Women’s history, Women’s memories, Counter-hegemonic history.
Mulheres na história e narrativas femininas: protagonismo de Suely Gomes Costa na política de saúde reprodutiva no Hospital Universitário Antonio Pedro (HUAP)
Women in History and Feminine Narratives: The Protagonism of Suely Gomes Costa in Reproductive Health Policy at the Antonio Pedro University Hospital (HUAP)
Recepción: 01 Octubre 2024
Aprobación: 01 Diciembre 2024
Este texto nasce a várias mãos. Ele é resultado de nosso projeto de pesquisa, “Por uma história de gênero e feminismos no Serviço Social” (Cf. Freitas; Almeida; Lole, 2018), que estuda as pioneiras do Serviço Social nas discussões de gênero e na aproximação aos feminismos nas décadas de 1980 e 1990. Nossa pesquisa partiu da certeza da necessidade de pensar o Serviço Social como uma história de mulheres, de modo a resgatá-las enquanto sujeitos e protagonistas. Nesse processo, um dos nomes de destaque é o da professora Suely Gomes Costa, cuja trajetória foi objeto de pesquisa de doutoramento de Monique de Souza Carvalho (Cf. Carvalho, 2023). É a trajetória dessa mulher que trazemos aqui. Na verdade, uma parte dessa trajetória, pois daremos ênfase neste momento à sua participação como docente e pesquisadora no Hospital Universitário Antonio Pedro (HUAP).
Romper com as amarras ou mordaças que nos inibem a falar é um processo árduo, e que requer uma investigação minuciosa na busca da presença feminina na história. Assim, recuperar estas memórias faz sobressair o protagonismo feminino que, em toda a história, modela-se e remodela-se a fim de pôr luz à vida que nós, de fato, temos. Somos plurais, não possuímos uma identidade universal. Os feminismos4, nesse sentido, foram importantes ao resgatar muitas dessas histórias e apontar que a nossa vida é permeada de dificuldades que, no ato coletivo de respeitar as nossas diferenças, podemos nos aproximar de superá-las.
Parte dessa superação está no rompimento da ideia de que existe um “sujeito universal” ao pensarmos na história. Um sujeito que, embora seja do gênero masculino e integre o grupo racial dominante, tem a autoridade de representar toda a pluralidade de sujeitos presentes na sociedade, afinal, sua narrativa é objetiva e neutra. A escritora Grada Kilomba (2016, p. 7-8) aponta que as narrativas trazidas por esses homens, embora afirmem ter um discurso “neutro” e “objetivo”, “não estão reconhecendo que também escrevem a partir de um lugar específico, que, naturalmente, não é neutro nem objetivo, tampouco universal, mas dominante. Eles/as escrevem a partir de um lugar de poder”.
Como Leonardo Boff (1998, p. 9) diz, “todo ponto de vista é a vista de um ponto”, logo, seria impraticável cogitar que alguém pudesse falar de um lugar “neutro” ou imparcial. Nessa mesma acepção, Rita Freitas e Luciene Medeiros (2021, p. 89) nos recordam que “todo conhecimento é situado; ou seja, sempre falamos de algum lugar e a partir desse lugar”.
Para Grada Kilomba, pelo homem branco, historicamente, se entender como o “sujeito universal”, acaba por se tornar um “centro ausente”, na medida em que não vê necessidade de nomear as suas identidades, sejam raciais ou de gênero. Segundo suas reflexões: “uma mulher Negra diz que ela é uma mulher Negra, uma mulher branca diz que ela é uma mulher, um homem branco diz que é uma pessoa” (Kilomba, 2016, p. 8).
Se, por um lado, os homens brancos são considerados como a “normalidade”, por outro, pessoas negras vivenciam o extremo oposto. Essa dinâmica social ocorre porque, conforme Neusa Santos Souza, “a sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior” (Souza, 1983, p. 19). Desenvolver a perspectiva que intersecciona as identidades sociais, nesse aspecto, é de suma relevância. Nas palavras de Kimberlé Crenshaw (2002, p. 117), “a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”.
O ato de reivindicar as nossas identidades nos faz caminhar para romper com o fazer história como algo pertencente somente aos homens brancos. A poetisa Alice Ruiz, em “Carta Aberta a Caetano”, diz que “a história foi feita pelos homens. E escrita por eles. Aliás, tudo foi escrito, analisado, estudado pelos homens. Inclusive as mulheres. Quer dizer, tudo que se fala e sabe sobre mulher foi dito pelos homens”5. Se tudo foi escrito, pensado, analisado e estudado por homens, não é mera coincidência que a história hegemônica, a história que conhecemos, seja contada na perspectiva masculina. Ao tratar desse conceito no campo filosófico, Antonio Gramsci (2011) compreende que tal supremacia pode se manifestar por meio da dominação per si, mas também como um direcionamento intelectual e moral.
Neste subtítulo, quando questionamos, “De onde partimos?”, queremos destacar que, neste texto, parte-se da história contra-hegemônica, que compreende que as mulheres protagonizaram inúmeros momentos políticos, embora não tenham recebido os devidos créditos. Gerda Lerner é precisa quando diz que “o registro gravado e interpretado do passado da espécie humana é apenas um registro parcial, uma vez que omite o passado de metade dos seres humanos, sendo, portanto, distorcido, além de contar a história apenas do ponto de vista da metade masculina da humanidade” (Lerner, 2019, n.p). Se os registros a que temos acesso não trazem a perspectiva feminina, onde podemos acessá-la? Neste artigo, recorremos à epistemologia feminista como ponto de partida para atingir o objetivo de mostrar, a partir de uma trajetória particular, que as mulheres são participantes ativas dos processos históricos.
Com o auxílio da epistemologia feminista, como diz Patricia Ketzer (2017), podemos elucidar os preconceitos de gênero e questioná-los. Ao ter ciência de que as nossas relações sociais, para além de outras variáveis, são permeadas pelas estruturas criadas pelas construções do gênero, a epistemologia feminista se caracteriza, de acordo com Louro (1997), como o “reverso da medalha”. Em suma, a epistemologia feminista se preocupa em pesquisar o papel do gênero na produção do conhecimento. Isso significa ter um olhar questionador ao acessar o material bibliográfico que traz o embasamento teórico e material deste artigo.
Adotar, bem como defender, uma epistemologia feminista nos trabalhos que realizamos na academia vai ao encontro do processo de descolonização do conhecimento proposto por Kilomba (2016). A perspectiva feminista nos permite retirar as máscaras (físicas ou metafóricas) que a cultura machista e patriarcal historicamente impõe às mulheres. Ao tirar tais máscara, podemos, finalmente, falar. Em outros termos, em um movimento coletivo, podemos fazer nossas vozes serem ouvidas, porque a verdade é que sempre falamos.
Grada Kilomba (2019, p. 42) questiona: “Quem pode falar? Quem não pode? E acima de tudo, sobre o que podemos falar?”. Os questionamentos trazidos por Kilomba nos remetem ao texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de Lélia Gonzáles, quando a intelectual aponta que, historicamente, “[nós, negros] temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos)” (Gonzáles, 1984, p. 225). Há, na nossa sociedade, uma cultura em que pessoas negras não podem falar, porque o grupo dominante (branco) não tem interesse em ouvir. O mesmo ocorre com as mulheres e demais ditas minorias sociais que, de modo geral, se veem subordinadas às narrativas hegemônicas. Dentro desse imbróglio, as mulheres são imaginadas na história, não descritas ou contadas (Perrot, 2007).
A prolixidade do discurso sobre as mulheres contrasta com a ausência de informações precisas e circunstanciadas. O mesmo ocorre com as imagens. Produzidas pelos homens, elas nos dizem mais sobre os sonhos ou os medos dos artistas do que sobre as mulheres reais. As mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem descritas ou contadas (Perrot, 2007, p. 17).
É preciso recorrer, neste ponto, às reflexões de Bourdieu (2002) sobre poder simbólico. Este age por meio da ausência de importância dada a sua existência, fundamentando uma série de outros poderes e atos, como até mesmo a violência simbólica. Resumidamente, os conceitos de poder simbólico e violência simbólica são importantes para percebermos o modo como a cultura predominante produz discursos que reproduzem as desigualdades e os preconceitos que favorecem a manutenção da ordem hegemônica. Souza (1983, p. 30) aponta que “o negro acreditou no mito, e passou a ver-se com os olhos e falar a linguagem do dominante”. Nesse processo, não questionamos o que a história hegemônica nos diz ser “a” verdade, a única versão legítima da história. Esse movimento é possível, porque a narrativa hegemônica produz uma história que:
[...] também é a história da colonização que é a narrativa da benevolência da doação da civilização europeia aos povos ditos primitivos e perdidos. É a partir de uma pretensa razão superior que operam a hierarquização entre diferentes sociedades e a manutenção de estruturas de opressão de raça, gênero e sexualidade (Passos; Puccinelli; Rosa, 2019, p. 9).
Joan Scott (1992, p. 144) aponta que “reivindicar a importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra definições de história e seus agentes já estabelecidos como ‘verdadeiros’, ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que aconteceu (ou teve importância no passado)”. Embora a autora fale especificamente das mulheres, aqui também podemos citar a importância de reivindicar a história de pessoas negras, indígenas, pobres e de todas as outras ditas minorias sociais.
É importante ressaltar que o silenciamento das vozes femininas é uma prática presente até em espaços predominado por mulheres, como é o caso do Serviço Social. Pode-se afirmar que o Serviço Social é uma profissão de mulheres para mulheres – uma vez que a maioria das usuárias também são mulheres –, contudo, as narrativas que temos sobre a história da profissão minimizam a participação feminina desse processo.
Freitas, Almeida e Lole (2018) refletem sobre a existência de duas visões ao pensar na história da profissão. Há aqueles e aquelas que defendem a importância de escrever a história da profissão por meio de um olhar sensível às relações de gênero e raça/etnia, juntamente com o debate de classes sociais. No contraponto, existem os e as que acreditam que, para compreender toda a dinâmica da sociedade e, assim, da profissão, basta se aproximar do debate das classes sociais. As autoras enfatizam que não se deve discernir “uma visão como necessariamente antagônica à outra, mas sim imputamos como importante a necessidade de agregar outros elementos, novas cores para pensar essa história, nossa história” (Freitas; Almeida; Lole, 2018, p. 7).
Assim, se para a narrativa hegemônica as pioneiras do Serviço Social eram apenas “damas de caridade”, em uma leitura feminista trata-se de mulheres que viram no Serviço Social a oportunidade de realizarem a sua “saída” (Perrot, 1991) para o mundo público – mundo historicamente pertencente aos homens.
Nas palavras de Adichie (2019, n.p), “o problema com estereótipos não é que eles sejam falsos, mas sim que eles são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história”. Esse processo é possível porque, na relação entre o “nós” e os “outros”, há a ideia de que existem “os estabelecidos e os outsiders” (Elias; Scotson, 2000). À medida que construímos a nossa subjetividade por meio da subjetividade do outro, o discurso dos estabelecidos incorpora-se ao discurso de autoimagem dos outsiders. Há a urgência de descolonizarmos as nossas histórias e que, desse modo, possamos romper com a visão do “outro” sobre o que é nosso.
Gerda Lerner (2019, n.p) aponta que “até o passado mais recente, esses historiadores eram homens, e o que registravam era o que homens haviam feito, vivenciado e considerado significativo. Chamaram isso de História e afirmaram ser ela universal”. Ou seja, como diz Cristina Stevens (2017, p. 257): “Na historiografia tradicional, na mitologia, na literatura, não se sabe quase nada sobre a vida de muitas dessas mulheres; como então escutar o que elas não puderam dizer, ou que ficou com registros equivocados, distorcidos?”
Michelle Perrot (2007) aponta que a emergência da mulher enquanto objeto da história se deu a partir dos anos 1960, tendo como propulsionadores fatores científicos, sociológicos e políticos. Um dos adventos científicos trazidos por Perrot (2007, p. 19) é que a “história alia-se à antropologia e redescobre a família”; e, como se aprende com Teixeira (2010), falar de famílias é, muitas vezes, falar do papel de cuidado que as mulheres devem exercer no núcleo familiar. Por fatores sociológicos, Perrot (2007, p. 20) destaca o ingresso das mulheres nas universidades que, paralelamente, culminou no “movimento de liberação das mulheres”: um processo político que fez nascer “o desejo de um outro relato, de uma outra história”.
Nas palavras de Rachel Soihet (1998, p. 77), “grandes transformações assinalavam a historiografia, os grandes temas em que os donos do poder ocupavam o cenário, cediam lugar a temáticas e grupos sociais até então excluídos do seu interesse”. Nesse momento, é imprescindível o resgate das memórias femininas. De acordo com Perrot (2007, p. 20), “de início, em busca de ancestrais e de legitimidade, por seu desejo de encontrar vestígios e torná-los visíveis, começou um ‘trabalho de memória’ que continua a se desenvolver desde então no seio da sociedade em seu conjunto”.
Dessa forma, Freitas e Braga (2012) suscitaram o debate da invisibilização da participação feminina na construção da Universidade Federal Fluminense (UFF), dando ênfase ao silenciamento existente no curso de Serviço Social da instituição. Por intermédio dessa pesquisa, foi possível conhecer as histórias de mulheres como Nilda de Oliveira Ney, Arlete Braga, Violeta Campofiorito Saldanha da Gama, entre outras pioneiras do curso.
Resgatar a memória feminina para, então, construir uma história de mulheres enquanto sujeitos históricos é apontar que a ciência não é neutra, tampouco racional e objetiva. Para tanto, faz necessária a aproximação com a micro-histórica, pois, como aponta Helena Rosa (2007, p. 1), a micro-história “tende a envolver-se cada vez mais com o privado, o pessoal, o vivido”. Para bell hooks (2018, n.p), “produzir um corpus de literatura feminista junto com a demanda de recuperação da história das mulheres foi uma das mais poderosas e bem-sucedidas intervenções do feminismo contemporâneo”. É possível afirmar, assim, que o ato de falar é uma arma dos feminismos, afinal, como diz a poetisa Audre Lorde (2019), nosso silêncio não é capaz de nos proteger.
Nessa dinâmica do “falar enquanto instrumento de luta”, conhecemos “a história das conquistas femininas, os nomes das pioneiras, a luta das mulheres do passado que, de peito aberto, denunciaram a discriminação, por acreditarem que, apesar de tudo, era possível um relacionamento justo entre os sexos” (Duarte, 2019, p. 26). Além disso, rompemos com “o pudor feminino que se estende à memória” (Perrot, 2007, p. 17), porque as mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais de sua existência. Assim, nos resta a narrativa que traz a visão masculina sobre as mulheres, que é “reduzida ou ditada por estereótipos. E claro que falam das mulheres, mas generalizando” (Perrot, 2007, p. 17).
Virginia Woolf (2019, p. 37) é enfática quando provoca: “Vocês fazem ideia de quantos livros sobre mulheres são escritos ao longo de um ano? Vocês fazem ideia de quantos são escritos por homens? Vocês sabem que somos, talvez, o animal mais discutido do universo?”. Em consonância, Alice Ruiz (apud Murgel, 2007, p. 1) reflete: “Somos o que vocês [homens] disseram que somos. Em outras palavras, até o conceito de mulher é masculino, ou era, até recentemente”.
“Somos o que vocês disseram que somos” acreditamos que possa ser um convite para que nós, mulheres, falemos por nós mesmas ao invés de deixarmos que os outros (homens) nos definam ou que falem por nós. Nós somos o que nós dizemos que somos. E reconhecer isso é fundamental para valorizarmos o resgate da memória feminina.
É falar, protagonizar, na medida em que não estamos protegidas com o nosso silêncio (Lorde, ٢٠١٩); pelo contrário, nossos silêncios são utilizados como mecanismos para manter a legitimidade social da ciência “neutra” produzida pelos homens. Tais silêncios se imbricam, tornam-se ensurdecedores (por mais contraditória que seja essa afirmação), naturalizam-se – e, para sairmos do dito “senso comum”, devemos desconstruir o familiar e, “pelo estranhamento que esse tipo de distanciamento provoca, abre espaço à observação sistemática” (Ferreira, 1996, p. 82).
Em suma, resgatar a história das mulheres, em toda a sua pluralidade, é perceber o modo como elas impactaram, ao longo da história, políticas públicas em diferentes áreas, como no âmbito do trabalho, saúde, no enfrentamento da violência, entre outros. Ou seja, o protagonismo feminino não se limita à esfera das suas vivências individuais, mas impactaram toda a sociedade e uma profissão. Para dar concretude a essa discussão ouçamos a voz de uma mulher excepcional e conheçamos a sua contribuição para o Serviço Social.
O enfoque às contribuições de Suely Gomes Costa no que se refere a saúde reprodutiva se justifica, pois essa mulher foi uma das percussoras dos estudos de gênero e feminismos no interior do Serviço Social brasileiro. Suely nasceu em 11 de setembro de 1938; ingressou no curso de Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense em 1959; e em 1967, já ocupava o cargo de professora celetista da mesma instituição. Entre idas e vindas, permaneceu ativa na instituição até o ano de 2017. Além de assistente social, “foi também economista, historiadora, professora e feminista. Foi também a mais velha de oito irmãos, esposa e mãe de dois filhos. Suely, portanto, é múltipla e não permite ser confinada nos padrões claustrofóbicos da cultura machista” (Freitas; Lole; Carvalho, 2022, p. 5).
É sabido que o Serviço Social, desde a sua gênese, se consolida enquanto uma profissão predominantemente feminina. No entanto, a história “oficial” sobre a profissão, contada nos primeiros anos do curso, traz a imagem da mulher enquanto sujeito passivo desse processo histórico; distante de qualquer protagonismo. Entretanto, ao se debruçar sobre a história das mulheres pioneiras da profissão, se descobre mulheres enquanto “sujeitos sociais e políticos e ainda como sujeitos de conhecimento” (Louro, 1997, p. 149). Nesse aspecto, é fundamental lembrarmos Dona Ivone Lara, mulher negra, sambista e:
[...] uma das primeiras assistentes sociais do país; ou ainda, uma das primeiras mulheres negras a adquirirem educação no nível de terceiro grau [...] ela é uma das poucas representantes vivas de uma manifestação cultural popular brasileira – o samba – que moldou e continua dando formas ao que se quer entender como sendo a debatida identidade nacional (Santos, 2005, p. 17).
Seria ultrajante dizer que Dona Ivone Lara (1921-2018), nos 97 anos que viveu, era “sujeito passivo”. Da mesma forma, Freitas e Braga (2012) mostram que a filantropia, no que concerne o contexto fluminense, foi um campo legítimo para que inúmeras mulheres, em sua maioria professoras do interior do estado, penetrassem no mundo público.
Nas palavras de Ledig (2015, p. 95), a filantropia propiciou a criação de “novas frentes de atuação feminina no campo da proteção social”. Ou seja, estamos falando de mulheres que foram (são) participantes ativas, protagonistas, de todo um processo histórico. O não reconhecimento dessa história e trajetória silencia vozes como as das professoras Dona Inayá Moraes, Nilda de Oliveira Ney, Nair de Souza Motta, Arlete Braga, Maria Bittencourt, Violeta Campofiorito Saldanha da Gama e – avançando no tempo – de Suely Gomes Costa, dentre outras. Concomitantemente, invisibiliza a assistência social enquanto um campo fértil para a criação e consolidação de políticas sociais.
Acreditamos ser importante dar visibilidade a participação feminina nos ciclos das políticas públicas, especialmente no que concerne ao processo de formação de agenda, pois, como diz Audre Lorde (2019, p. 137), “as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande”. Os direitos concernentes à saúde sexual e reprodutiva não foram iniciativas únicas e exclusivas daqueles que governam o país, emergiram da iniciativa de mulheres de apontarem a necessidade de se ter o direito à vida sexual segura, “tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo”6.
Não se nasce feminista. Esse é um caminho que podemos ou não tomar em nossas vidas. Foi em sua trajetória que Suely Gomes Costa se reconheceu como feminista, como podemos ver em Carvalho (2023) e em Lole (2021). Ao fazer esse reconhecimento, Suely Gomes Costa se empenhou em levar os seus conhecimentos e ideários, disruptivos à época, para as instituições em que atuava. Suely Gomes Costa passou por um processo reflexivo em que questionou os papeis de gênero e, assim, o seu próprio papel na sociedade. Após um longo processo, reconheceu-se feminista – impactando as instituições em que trabalhava, como a ESS/UFF e o Centro de Saúde Santa Rosa (Carvalho, 2023; Lole, 2021).
Os anos passaram e o alcance de sua atuação também se expandiu: na década de 1990, o Hospital Universitário Antonio Pedro (HUAP) foi um dos locais em que Suely Gomes Costa mostrou ser possível alinhar a política de saúde às perspectivas feministas. Quando concluiu o seu doutorado, no ano de 1996, Suely Gomes Costa vai para o HUAP. Sobre essa ida, relembra: “Eu fiquei horrorizada [...] eles trabalhavam ainda com o Programa de Assistência Materno Infantil [...] é como se o tempo tivesse parado dentro do HUAP” (Costa, 2005a).
Ao se deparar com uma realidade conservadora, que pensava já ter sido superada nas instituições de saúde, Suely Gomes Costa afirma ter percebido que “ninguém nunca tinha ouvido falar do PAISM [Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher]” (Costa, 2005a) no HUAP:
[...] alguns profissionais desse hospital, envolvidos na área do planejamento familiar, nada conheciam da agenda desse programa [...] As preocupações enunciadas pelo PAISM – apropriadas pela administração de saúde como um conjunto de ações de “atenção primária” – não se incluem no quadro das complexidades do HUAP (Costa, 2005b, p. 126).
Nesse momento, Suely Gomes Costa percebeu que a avaliação do PAISM era urgente. Assim:
Entre 1996 e 1998, eu trabalhei com uma série de avaliação do PAISM, todos os meus trabalhos com os alunos, de levantamento do sistema de referência, contrarreferência, de como é que está o PAISM, maternidade segura, tudo ligado à avaliação do Programa, do que seria o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Costa, 2005a).
Ao identificar as falhas na condução do PAISM no HUAP, Suely Gomes Costa tomou a iniciativa de transformar a sua sala dentro do hospital como uma sala de aula, a fim de orientar assistentes sociais e enfermeiras sobre os conhecimentos que detinha acerca da melhor forma de se conduzir o atendimento às mulheres. Assim, a partir do entendimento de que para compreender a complexidade da saúde reprodutiva se faz necessária a participação de toda a categoria de profissionais de saúde – cada profissão contribuindo com o que lhe compete –, é importante salientar que as questões do Planejamento Familiar no HUAP eram abordadas por meio de uma equipe interdisciplinar.
No que se refere às problemáticas da saúde reprodutiva, é perceptível que essa é uma questão que perpassa diversas áreas da vida dos sujeitos sociais – sobretudo, das mulheres. Como exemplo, a maternidade. Da gestação à criação dos filhos, a mulher necessita de uma rede de apoio multiprofissional para que, neste processo, não seja reduzida às suas características biológicas. Fruto desse entendimento, Suely Gomes Costa realiza, no HUAP, um seminário para falar sobre maternidade segura: “Então eu fiz um grande seminário sobre maternidade segura no Hospital, avaliando, entrei em contato com a Tisuko7, retomei todos os contatos com o movimento feminista, agora na defesa de uma maternidade segura” (COSTA, 2005a).
Concomitantemente, Suely Gomes Costa produz o texto “A produção social do alto risco e impactos sobre a saúde da mulher” (1997), para o Dossiê Mulher, cujo objetivo “é chamar atenção para procedimentos que ampliam e, em dadas circunstâncias, produzem as situações de alto risco vividas pelas mulheres no ciclo grávido-puerperal e no trato das ocorrências ginecológicas no HUAP” (Costa, 1997, p. 1). Nesse processo, ela diz que retomar o contato com o movimento feminista foi importante, porque:
Você não tinha mais o movimento de grupo que você tinha na década de 1980, não tinha. Você tinha hoje, na década de 1990, as mulheres feministas organizadas em ONGs, [...] estão na estrutura organizacional da saúde tocando projetos, fazendo mais ou menos o que eu estava fazendo (Costa, 2005a).
Suely Gomes Costa (2009) percebe essa dissipação do movimento feminista, na década de 1990, como uma “sororidade interrompida”. Tal sensação de “suspensão” de um movimento, outrora muito latente, deriva do fato de que, se na segunda onda feminista o que unia as mulheres eram as vivências de gênero partilhadas por todas; na terceira onda, as desigualdades entre as próprias mulheres são visualizadas. A sororidade “[...] não impede que a tomada de consciência sobre as desigualdades entre mulheres, entre homens e entre mulheres e homens, nas diferentes experiências humanas, prossiga” (Costa, 2009, p. 21). Assim:
Se, antes, a “sororidade” presumida havia mobilizado mulheres, desiguais entre si, na busca de igualdade de direitos, já nos anos 90, entre nós, essa mesma sororidade se mostra, como nos EUA, interrompida. Desigualdades, cada vez mais patentes em usos e costumes comuns, permitiram, sem resistência, a consolidação de nosso desigual sistema de saúde, de previdência e de assistência, e muitos são os silêncios em torno delas (Costa, 2009, p. 22).
Como Suely Gomes Costa (2009) nota, as pluralidades femininas são nitidamente reconhecidas a partir da terceira onda dos feminismos e, claro, isso causa impactos estruturais ao movimento. É importante recordar, no entanto, que “as lutas com base na diferença não foram vãs” (Costa, 2007, p. 43). O conceito de “maternidade transferida”, cunhado pela própria Suely Gomes Costa (2002), nasce a partir da compreensão das diferenças de classe e raça que existem entre as mulheres, inclusive. É interessante pensar que quando Suely Gomes Costa diz que as feministas estavam “fazendo mais ou menos o que eu estava fazendo” (2005a), ela também se reconhece nesse lugar de uma profissional feminista que, embora leve os feminismos para os seus trabalhos, perdeu o hábito de se reunir com frequência com outras feministas para discutir quais pautas e bandeiras políticas o movimento defenderia no momento.
Esse é um movimento característico da “terceira onda”, onde, como Suely Gomes Costa afirma, “as questões feministas se veem diante de mulheres diferentes e desiguais” (Costa, 2009, p. 23). Os problemas das desigualdades não estavam superados8, é claro, infelizmente persistem até hoje, em 2024; no entanto, na década de 1990, já tínhamos uma política mais sensível às necessidades das mulheres. Nesse ponto, há de se entender os direitos enquanto processos, como propõe Flores (2009), porque a existência de uma legislação atenta às necessidades das mulheres não significa que tais direitos serão materializados de fato: a luta precisa ser constante. Isto posto, nesse imbróglio, Suely Gomes Costa (1997, p. 2), ao avaliar o PAISM dentro do HUAP, percebe:
[...] algumas [ocorrências] contribuem para permanentes transgressões de dispositivos éticos das várias profissões envolvidas com a saúde da mulher e, até mesmo para a negação de direitos humanos, levando a experiências profissionais cotidianas tensas e estressantes.
Embora essas mulheres ativas nos feminismos fossem ocupando outros espaços, as pautas dos movimentos que representavam eram carregadas consigo, não eram esquecidas. Exemplo disso é o fato de que, mesmo após sua aposentadoria da ESS/UFF, em 1998, Suely Gomes Costa retorna ao HUAP – dessa vez, enquanto pesquisadora, com o projeto de pesquisa intitulado “Saúde Reprodutiva e Cidadania”.9
Eu me aposento sem minha bolsa [de pesquisa], a bolsa que eu tinha pedido ao CNPq. Resultado: eu volto pro [Hospital Universitário] Antonio Pedro [...] volto com quotas de iniciação científica, com bolsas, porque esse tempo todo eu tive bolsistas de iniciação, bolsistas de extensão (Costa, 2005a).
Ana Lole (2021, p. 317) recorda: “[...] fui uma bolsista de Suely de iniciação científica neste Projeto ‘Saúde Reprodutiva e Cidadania’, e todas nós realizávamos pesquisa e extensão nas Salas de Planejamento Familiar”. Contudo, a pesquisa não transcorreu sem percalços. Assim:
[...] encontramos diversas dificuldades em obter informações acerca da inserção do masculino nas práticas de reprodução. A falta de estudos sobre a participação dos homens na esfera da reprodução e, principalmente, sobre o movimento de transformação que vem ocorrendo neste universo, põe-se como um obstáculo a ser vencido e revela o quanto este é um campo ainda a ser explorado (Lole, 2004, p. 1).
A inclusão do “masculino” quando se pensa a esfera da reprodução é algo que, nessa altura, já estava presente nas reflexões de Suely Gomes Costa há pelo menos uma década – quando, ao trabalhar com “linha da vida” no Centro de Saúde Santa Rosa (CSSR), percebe que a reprodução diz respeito aos homens tanto quanto diz respeito às mulheres. Em entrevista à Elaine Silva (2015, p. 23), Suely Gomes Costa afirma que “a junção de homens e mulheres marca a experiência inaugural do PAISM, nessa unidade [CSSR]”.
Isto posto, com tais perspectivas já elaboradas, Suely Gomes Costa conheceu a assistente social Leila Guidoreni no HUAP e, juntas, foram trabalhar com o Planejamento Familiar. Esse momento foi importante porque:
[...] acabara de sair a Lei nº 9.263 de 1996, conhecida como Lei do Planejamento Familiar, e posteriormente a Portaria nº 48 em 1999 que regulamentava a esterilização masculina e feminina. Suely e Leila leram toda a documentação do Planejamento Familiar e perceberam que tinham que atender homens e mulheres (Lole, 2021, p. 317).
Para Suely Gomes Costa, “é esse [o] milagre do conhecimento [...] como o conhecimento leva você a um processo de mais consciência” (Costa, 2005a). A nosso ver, essa é a premissa do ato de pesquisar: ao pesquisar determinado tema, você, eventualmente, acaba conhecendo outros. Na trajetória de Suely Gomes Costa, é possível acompanhar sua transição do estado de “negação” dos estudos dedicados às vivências femininas para o status de pioneira nos estudos de saúde reprodutiva. A tomada de consciência é, de fato, constante. Assim, no encontro de Suely Gomes Costa com Leila Guidoreni, o tema da “masculinidade” surge enquanto uma discussão primordial para se atingir os objetivos da política de Planejamento Familiar. Afinal, não há planejamento familiar se excluímos o “masculino” desse debate.
Diante de tantos estigmas envolvendo a participação masculina nos debates sobre o planejamento familiar, não é dificultoso notar que tal processo não se deu de forma rápida, tampouco transcorreu sem enfrentar alguma resistência. Com o assunto da masculinidade efervescendo em seu projeto de pesquisa, Suely Gomes Costa lembra: “Caiu no meu colo, os estudos de masculinidade que estão florescendo nos anos [19]90 no Brasil” (Costa, 2005a).
Em suma, o estudo das masculinidades serve para enfatizar que o conceito de gênero é muito mais abrangente. Da mesma forma, “planejamento familiar” se encontra distante de ser um tema que se refere apenas às mulheres. Afinal, como aponta Margareth Arilha (1999, p. 456):
[...] a transformação nos indicadores de saúde das mulheres só poderia ser concretizada na medida em que a população masculina – jovem e adulta – também modificasse seus padrões de comportamento, por exemplo, em relação à transmissão das doenças sexualmente transmissíveis – em especial a AIDS – e ao uso de contraceptivo.
Durante décadas, se lutou para que as mulheres tivessem o seu direito à uma vida sexual segura garantido, mas como ter essa garantia se nossos olhares também não se voltarem para os homens? Afinal, não se pode desconsiderar o caráter “relacional” das construções de gênero.
Ao buscar respostas para as suas dúvidas, além do aprofundamento bibliográfico, Suely Gomes Costa participou de diversos encontros sobre saúde reprodutiva – o que a levou a revisar essa perspectiva do PAISM escrevendo o texto publicado em 1999 na Revista Em Pauta, intitulado “Repensando o PAISMCA”.
Embora tenha se deparado com dificuldades em sua nova empreitada, Suely Gomes Costa e Leila Guidoreni persistiram no processo de reflexão de que prazer e reprodução não são opostos: são faces de uma mesma moeda. Nesse processo, Suely Gomes Costa diz ter sido fundamental a entrada de duas estagiárias na equipe; “não só pelo desembaraço, como pela segurança [...] elas estavam um pouco que ensinando a mim, essa nova geração, como lidar com a sexualidade” (Costa, 2005a). Além dessas estagiárias, o contato de Suely Gomes Costa com jovens estudantes de Serviço Social foi muito frutífero, pois rendeu estudos que desfeminilizavam o planejamento familiar ao considerar, também, o papel dos homens nessa temática. Assim, futuramente, nos anos 2000, algumas alunas que passaram pelas salas de planejamento familiar do HUAP estudaram, em seus Trabalhos de Conclusão de Curso em Serviço Social, o tema da reprodução (Carvalho, 2023).
O trabalho em equipe que, além de multiprofissional era multigeracional, fora primordial para instigar a participação dos homens nas salas de Planejamento Familiar. Suely Gomes Costa diz que o primeiro passo foi a realização de salas mistas. No entanto, a aceitação dos homens nos grupos não foi imediata. É verdade que, nas relações sociais, os homens tradicionalmente ocupam um lugar hierarquicamente superior ao das mulheres, logo, a simples presença masculina poderia inibir e/ou intimidar a fala de algumas delas. Para Suely Gomes Costa, “havia uma certa desconfiança inicial [...], era uma coisa nova, absolutamente nova” (Costa, 2005a). O estranhamento inicial rompeu, de certa forma, com vários conceitos que Suely Gomes Costa já havia estabelecido na década anterior.
Eu aprendi a lidar com o masculino nas salas de Planejamento Familiar numa metodologia que mudou completamente aquilo que eu aprendi nos anos 1980. Daquilo não ficou nada, não sobrou pedra sobre pedra, a não ser a ideia da horizontalidade, de se colocar na reunião como uma pessoa, uma pessoa que tem experiência na vida reprodutiva (Costa, 2005a).
O fato é que discutir a sexualidade, vida reprodutiva, dentre outros temas que perpassam a saúde sexual e reprodutiva, também é reprimido e proibido aos homens. Uma das dificuldades que Suely Gomes Costa e Leila Guidoreni enfrentaram foi a falta de conhecimento sobre o corpo masculino: “houve um momento inicial que a gente não sabia bem como lidar, como discutir o órgão masculino, como sentir, discutir prazer. Isso a gente foi aprendendo fazendo, não tinha receita” (Costa, 2005a). Um dos aprendizados que extraíram dessa jornada foi a necessidade de não se definir modelos, tampouco dinâmicas, pois “cada sala é uma sala” (Costa, 2005a). Ou seja, cada encontro é um encontro, pois as vivências e experiências das pessoas podem – e vão – ser diferentes. Nessa dinâmica, como recorda Ana Lole (2006, p. 46):
O relacionamento horizontal entre a equipe e entre equipe e usuários(as) favorece a desconstrução de hierarquias e a maior aproximação entre participantes. O exercício de avaliação da experiência de grupo pelos participantes, após cada encontro, passa a demonstrar a eficácia da dinâmica empregada nas reuniões; homens e mulheres partilham de assuntos da intimidade.
Desta maneira, como aponta Lole (2006, p. 47), “compreender o masculino implicou, necessariamente, rever o feminino” – um processo de extrema importância. Exemplo disso, é a percepção de que “o medo de engravidar também é masculino” (Lole, 2003). Acreditamos que tal entendimento só foi possível porque Suely Gomes Costa e Leila Guidoreni, ao trabalharem com as salas mistas de planejamento familiar, valorizavam as experiências pessoais dos indivíduos. Lole (2024, p. 94) relata:
[...] o quão importante a professora Suely Gomes Costa e a assistente social Leila Guidoreni foram para a implementação de salas mistas de planejamento familiar no estado do Rio de Janeiro. [...] [Destaca] a importância dos sujeitos, porque essa experiência das salas de planejamento familiar no HUAP poderia não ter sido dessa forma, foi inovadora porque Suely e Leila estavam lá. O contexto vivenciado no HUAP naquele momento foi favorável, mas, com certeza, os sujeitos também fazem toda a diferença.
Na mesma direção, Suely Gomes Costa pontua: “essa experiência de trazer a vida da gente a público [...] era muito interessante. Um ponto interessante é que desde o início dessas salas [...] sempre teve presente [...] essa experiência de articulação das três atividades: ensino, pesquisa e extensão” (Costa, 2005a). A indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão – o famoso “tripé da educação” – é essencial para que os saberes produzidos no espaço acadêmico ultrapassem os muros da universidade. O Seminário “Masculino, Feminino, Singular, Plural”, realizado pela equipe de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar no dia 06/08/2002 no HUAP (Lole, 2006) materializou a união dessas três importantes esferas que compõem o ensino. Nesse cenário, o pioneirismo do trabalho realizado por Suely Gomes Costa é reafirmado, pois, em seus projetos no HUAP, possibilitou que as alunas e alunos de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, que atuavam em seus projetos no HUAP, se desenvolvessem para além dos conhecimentos disponíveis nos livros didáticos: participavam ativamente, em parceria com os demais profissionais da instituição, do planejamento e do desenvolvimento das ações que envolviam a saúde reprodutiva.
As ações integradas de ensino, pesquisa e extensão – características das atividades desenvolvidas dentro do HUAP – ganharam tanta relevância que, além da participação das alunas bolsistas de iniciação científica e das estagiárias do Hospital, a sala de planejamento familiar coordenada por Leila Guidoreni e Suely Gomes Costa também passou a ser procurada por pesquisadoras de outras instituições de ensino (Cf., por exemplo, Almeida, 2004).
Assim, “Suely permanece com as atividades de pesquisa e extensão no HUAP até 2006” (Lole, 2021, p. 318). O fato é que as iniciativas lideradas por Suely Gomes Costa, Leila Guidoreni e demais profissionais do HUAP, majoritariamente mulheres, deixaram marcas nesse período no que tange à saúde sexual e reprodutiva, bem como na produção acadêmica nesta área.
Aqui, cabe novamente reforçar que esse processo apenas foi possível por meio dos encontros entre as mulheres. É possível perceber a continuidade dos trabalhos de Suely Gomes Costa; impulsionado pelos encontros que ela teve com alunas, estagiárias, pesquisadoras, dentre outros profissionais que tiveram os seus caminhos atravessados por essa figura tão importante para a história da saúde reprodutiva no estado do Rio de Janeiro, sobretudo em Niterói10.
Se a Suely Gomes Costa da juventude se posicionava na “linha de frente” das lutas políticas; seja reivindicando direitos na qualidade de estudante de Serviço Social ou enquanto professora participando do Seminário Direitos da Reprodução (ALERJ, 1984); em sua velhice, afirmou: “Hoje, acompanho os movimentos à distância. Aqui ou ali, faço uma intervenção, como esta [entrevista], contribuindo com reflexões e debates ao meu alcance. Não estou mais filiada a nenhum movimento, em especial” (Almeida; Lole, 2016, p. 388).
Ainda que tenha mantido uma distância física dos movimentos feministas e de mulheres, nos seus últimos anos de vida; intelectualmente, as distâncias não se estabeleceram: as marcas que Suely Gomes Costa deixou na luta pela saúde reprodutiva não foram, nem serão, apagadas. Seus ensinamentos se perpetuam e nos recordam que podemos (e devemos) alinhar nossas convicções feministas com as nossas práticas profissionais. Afinal, foi tocando em assuntos historicamente considerados “proibidos”, como a saúde sexual e reprodutiva, que nós, mulheres, galgamos espaços e rompemos os limites simbólicos impostos historicamente pelos homens brancos e cisgênero.
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٢ Graduada em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra e