Resumo: O estudo teve como objetivo analisar a reincidência penitenciária entre as travestis e mulheres transexuais privadas de liberdade na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Trata-se de uma pesquisa quantitativa, descritiva e transversal na forma censitária envolvendo 151 entrevistadas, entre abril e junho de 2021, para descrever o perfil sociodemográfico e prisional. O teste qui-quadrado com p<0,05 revelou que a escolarização foi um fator de proteção contra a reincidência (p=0,025). Entretanto, as que se prostituíam antes da prisão (p=0,045), e as que cometeram crimes de roubos (p=0,002) reincidiram com maior frequência. Resultados que reforçam o paradigma necropolítico trans em nossa sociedade.
Palavras-chave: Pessoas transgênero, Travestilidade, Prisões, Reincidência.
Abstract: The study aimed to analyze prison recidivism among travestis and transgender women inmates in the metropolitan region of the State of Rio de Janeiro. A quantitative, descriptive, and cross-sectional research in the form of a census involving 151 interviewees, between April and June 2021, to describe the sociodemographic and prison profile. The chi-square test with p<0.05 revealed that education was a protective factor against recidivism (p=0.025). However, those who prostituted themselves before prison (p=0.045), and those who committed robberies (p=0.002) recidivated more frequently. Results that reinforce the trans necropolitical paradigm in our society.
Keywords: Transgender persons, TransvestismPrisons, Recidivism.
Travestis e mulheres transexuais nas prisões: o fenômeno social da reincidência penitenciária
Travestis and transgender women in prisons: the social phenomenon of prison recidivism
Recepción: 01 Noviembre 2023
Aprobación: 01 Octubre 2024
O sistema penitenciário brasileiro, além de suas características estruturais e históricas em que se evidencia a superlotação, ambientes insalubres e violações de direitos humanos básicos (RANGEL e BICALHO, 2016; SÁNCHEZ et al., 2021; BRASIL, 2023, p. 6), se configura pela inefetividade ou inexistência de práticas (re)socializadoras3 (BRASIL, 2023). É patente o descumprimento da Lei de Execução Penal (LEP) em vigor no país, que determina que o processo de privação de liberdade deve compreender estratégias de (re)socialização, questão basilar na prevenção ao crime e orientação para o retorno à convivência em sociedade (BRASIL, 1984).
O resultado desse binômio de condições estruturais desumanas das unidades prisionais e práticas (re)socializadoras inefetivas ou inexistentes é o elevado índice de reincidência penitenciária, observado ao longo do tempo em nosso país, como demonstrado em estudo realizado na década de 1980 com a população privada de liberdade no estado do Rio de Janeiro (LEMGRUBER, 1989) e, mais recentemente, nos relatórios governamentais (IPEA, 2015; BRASIL, 2022a).
A reincidência penitenciária é um conceito definido como um novo ingresso de uma pessoa no sistema penitenciário, independente do crime praticado, do tempo transcorrido entre as reclusões, ou do fato da pessoa ter sido condenada ou não. Esta definição é adotada em alguns estudos nacionais e internacionais (CAPDEVILLA e PUIG, 2009; IPEA, 2015; SAPORI; SANTOS; MASS, 2017).
O reingresso no sistema penitenciário em nosso país é um fenômeno social atravessado por questões de raça e classe, que se reflete na maciça presença de negros e pobres no interior de nossos cárceres (SOARES e BUENO, 2016). Ademais, são essas pessoas que, quando na situação de egressas do sistema penitenciário, recebem um rótulo estigmatizante de difícil reversão ou apagamento, quando comparado com egressos brancos e ricos, conforme descrito pela teoria do etiquetamento (PENTEADO FILHO, 2012, pp. 92-94).
Sob a égide do empreendimento moderno/colonial, as sociedades estabelecem critérios para categorizar as pessoas e definem os atributos considerados “comuns”, “desejáveis” e “naturais”, segundo raça, gênero, sexualidade, dentre outros. Assim, cria-se estruturas de exclusão/inclusão social destinadas a legitimar ou deslegitimar a existência dos diversos grupos sociais frente ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado (LUGONES, 2008; SANTOS, 2018, p. 300). Ao transgredir normas de uma sociedade cisheteronormativa, travestis e mulheres transexuais se tornam objeto de várias formas de estigmatização, seja pela abominação dos seus corpos, pela patologização das suas identidades ou pela rotulação como pessoas pervertidas e contaminantes, culminando, enfim, no não reconhecimento de suas humanidades (GOFFMAN, 1981, p.7; VERGUEIRO, 2016). Em situação de prisão, essas mulheres são alvos fáceis de um processo de exclusão social radical. Nesse sentido, se aproximam do “sujeito criminal”, como discutido por Misse (2010), “não é qualquer sujeito incriminado, mas um sujeito por assim dizer especial, aquele cuja morte ou desaparecimento pode ser amplamente desejado” (p.17-18).
Em recente levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), que passou a ser denominado em 2023, Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), o Rio de Janeiro tinha cerca de 180 travestis e mulheres transexuais em situação de prisão, ocupando o segundo lugar no ranking nacional (BRASIL, 2022b). Igualmente ao observado nas prisões do estado de São Paulo (ZAMBONI, 2020), do Rio Grande do Sul (FERREIRA, 2014) e do Ceará (NASCIMENTO; MARQUES; OSTERNE, 2020), nas prisões fluminenses, a maioria da população de travestis e mulheres transexuais permanece custodiada em unidades prisionais masculinas e convive com o coletivo de presos cisgêneros e heterossexuais. Essas unidades prisionais são denominadas “neutras”, no sentido de não serem dominadas pelas tradicionais organizações criminosas que controlam territórios da cidade e do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, observa-se a crescente dominação dessas unidades prisionais pela facção conhecida como Povo de Israel, apesar de não possuir territorialidade fora das prisões (CANHEO, 2017, p. 40; LIMA, 2019, p. 61).
Apesar dos desafios na condução de pesquisas científicas no interior das prisões (SALLA, 2013, pp. 13-25), é de extrema importância dar visibilidade a essa realidade de travestis e mulheres transexuais encarceradas, principalmente diante dos escassos estudos nacionais e internacionais sobre a temática (RODRIGUES; SILVA; ARAÚJO, 2019; GLEZER; McNIEL; BINDER, 2013). Esta pesquisa teve como objetivo analisar os fatores sociais e prisionais associados à reincidência penitenciária entre as travestis e mulheres transexuais em privação de liberdade na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Desta forma, foi necessário descrever os aspectos sociodemográficos e prisionais dessa população, e analisá-los frente à variável de reincidência penitenciária.
Trata-se de uma pesquisa de abordagem quantitativa, descritiva e transversal na forma censitária, compreendendo onze unidades prisionais denominadas masculinas localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Algumas informações sobre essas prisões são apresentadas no Quadro 1, assim como o número total de presos, e o número de travestis e mulheres transexuais por unidade prisional.
A identificação das travestis e mulheres transexuais privadas de liberdade foi realizada inicialmente por meio da consulta à base de dados do Sistema de Identificação Penitenciária (SIPEN) da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP-RJ), base de dados que registra informações sobre todas as pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário. Outras travestis e mulheres transexuais foram captadas posteriormente, quando durante às entrevistas, as participantes informavam da existência de outras transfemininas na unidade prisional, e que não constavam na listagem nominal emitida pelo Sipen. A utilização desta técnica conhecida como “bola de neve” possibilitou o recrutamento de uma população considerada “escondida” (VINUTO, 2014), contornando inconsistências nas informações sobre a identidade de gênero e orientação sexual das pessoas que ingressam no sistema penitenciário. Foram incluídas no estudo todas as pessoas que se autodeclararam travesti, mulher transexual, ou outra identidade de gênero feminina, totalizando 151 participantes. Dessas, 42 (27,8%) foram identificadas por meio da técnica “bola de neve”.
A coleta de dados foi realizada entre os meses de abril e junho de 2021 (Quadro 1). Foi utilizado um questionário estruturado, contendo um bloco para as variáveis sociodemográficas (Tabela 1), e outro bloco para as variáveis prisionais (Tabela 2). A reincidência penitenciária foi estudada por meio da análise bivariada, em que as variáveis de exposição foram identidade de gênero, idade, raça/cor, escolaridade, trabalho e condições de moradia antes da prisão atual, tipificação criminal, assessoria jurídica, acesso a cursos profissionalizantes na prisão, acesso à escola penitenciária, acesso ao trabalho na prisão, e acesso às atividades religiosas na prisão. Algumas dessas variáveis independentes foram selecionadas por terem sido também utilizadas em alguns estudos anteriores realizados no Brasil (IPEA, 2015; SAPORI; SANTOS; MASS, 2017), entretanto, outras variáveis foram aleatoriamente selecionadas pelos autores.
Os dados coletados foram analisados por meio da utilização do programa JASP (Jeffrey’s Amazing Statistics Program) versão 0.17.1.0, sendo descrito percentualmente o perfil sociodemográfico e prisional. Foram realizadas análises bivariadas aplicando o teste qui-quadrado em todas as análises de reincidência penitenciária, sendo adotado o nível de significância de 5% (p<0,05).
A pesquisa foi devidamente aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF-Fiocruz), sob o CAAE nº 36338520.2.0000.5269, sendo observadas todas as questões éticas envolvidas em pesquisas com pessoas privadas de liberdade, incluindo a assinatura dos termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) de todas as participantes do estudo. A realização da pesquisa foi autorizada pela Vara de Execuções Penais (VEP) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pela Escola de Gestão Penitenciária da SEAP-RJ, por meio do processo SEI-21/087/000987/2019.
Quadro 1 - Unidades prisionais selecionadas e número de travestis e mulheres transexuais participantes.
Fonte: SEAP-RJ, 2021. Legenda: PPL – Pessoa privada de liberdade; N – número amostral de entrevistadas; (1) – Sem escola penitenciária.
Perfiladas nas encruzilhadas da raça, gênero e sexualidade
Os dados sobre o perfil sociodemográfico da população estudada estão apresentados na Tabela 1. Entre as entrevistadas, 64,9% se autodeclararam mulher transexual e 35,1% travesti. As respostas utilizando os termos “transex” e “trans” foram incluídas com o termo mulher transexual, já o termo “trava” foi incluído como travesti.
A maioria das travestis e mulheres transexuais do estudo não possuía nenhum documento oficial com o nome feminino, apesar da manifestação de interesse em seus nomes civis readequados ou possuir a carteira de identidade com o nome social. Esse baixo percentual na efetivação desse direito de cidadania apontou para possíveis obstáculos ao acesso dos aparelhos públicos prestadores desses serviços. Obstáculos que podem estar associados à falta de dinheiro para arcar com os custos na emissão de documentos e à falta de conhecimento a respeito desses direitos e dos trâmites para alcançá-los têm sido dificuldades relatadas para a efetivação da alteração da identidade civil (ARAÚJO, 2021, pp. 8-9).
Dentre as entrevistadas, 85,4% se autodeclararam preta ou parda, refletindo o perfil das prisões brasileiras que são ocupadas majoritariamente por pessoas negras. Conforme os dados anuais do DEPEN, referentes aos anos de 2021 e 2022, a população carcerária autodeclarada negra era respectivamente de 67,0% e 67,2% (BRASIL, 2021; BRASIL, 2022b). Jaqueline de Jesus (2016, p.7), no prefácio do livro “Travestis e prisões: Experiência social e mecanismos particulares de encarceramento no Brasil”, afirma que “as prisões são territórios ocupados pelo padrão PPP, ou seja, por pretos, pobres e putas”. A intersecção raça/gênero/sexualidade vulnerabiliza ainda mais essa população transfeminina encarcerada.
A escolaridade descrita entre as travestis e mulheres transexuais em situação de prisão foi compatível com a realidade prisional brasileira segundo informações do relatório da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), referente ao segundo semestre de 2023 (BRASIL, 2024). Mais da metade das entrevistadas (51,0%) não concluiu o ensino fundamental, ciclo da educação básica que deve ser cursado regularmente entre os seis e catorze anos de idade. A baixa escolaridade entre as travestis e mulheres transexuais é consequência de diversos fatores que excluem essas pessoas das instituições de ensino, seja pela ausência de ações afirmativas para contemplar as necessidades de crianças e adolescentes trans nas escolas (MÉNDEZ, 2014, pp. 192-193; PONTES; SILVA; NAKAMURA, 2020, p. 122), seja pelo (des)preparo dos profissionais de ensino para o acolhimento, respeito e inclusão de pessoas trans no convívio escolar, desde as questões básicas por meio do uso do nome social, até questões ainda polêmicas como a utilização de banheiros e vestiários (XAVIER e VIANNA, 2023; ALVES e MOREIRA, 2015).
A população transfeminina nos presídios fluminenses se revelou jovem, onde 64,9% das entrevistadas tinham idade inferior a 30 anos, e somente 2,6% tinham idade superior a 50 anos. Esse perfil etário é semelhante ao encontrado em um estudo realizado em 2020 nas prisões brasileiras (BRASIL, 2020, p. 24), porém é superior ao encontrado nas prisões fluminenses em 2023 (45,9%), segundo relatório do SENAPPEN (BRASIL, 2024, p.85). É importante destacar que ao analisar qualquer indicador social que envolva o grupo populacional de travestis e transexuais, não se pode esquecer que a expectativa de vida dessas pessoas no Brasil é de aproximadamente 35 anos de idade, a menor expectativa de vida no mundo, fenômeno diretamente associado ao grande número de assassinatos transfóbicos registrados (BENEVIDES, 2023, p.61). Essa expectativa de vida se torna ainda menor quando se interseccionam raça e gênero, ou seja, as travestis e mulheres transexuais negras vivem em média até os 28 anos de idade, o que pode ser relacionado ao alto transfeminicídio negro. Conforme o último dossiê publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), cerca de 80% dos assassinatos transfóbicos são cometidos contra as pretas e pardas (BENEVIDES, 2023, pp. 103-104).
Uma questão importante para o processo de (re)socialização às populações privadas de liberdade como prevista na LEP é o acesso às atividades religiosas, porém a inexistência de cultos ou práticas religiosas de matrizes africanas, nas unidades prisionais visitadas nesse estudo, é a demonstração das barreiras enfrentadas pelas pessoas em situação de prisão no Brasil, conforme descrito por Bruno Araújo de Oliveira (2018), territórios maciçamente ocupados por igrejas neopentecostais salvacionistas
O elevado percentual de travestis e mulheres transexuais que relataram utilizar alguma substância ilícita antes do aprisionamento (81,4%), foi compatível com a realidade descrita em estudos realizados nas últimas décadas no Brasil (GARCIA, 2008; ROCHA et al., 2013; LEAL et al., 2024). Dados e relatos que apontam para a necessidade urgente de políticas públicas de saúde voltadas à essa população com estratégias específicas, na perspectiva orientada pela redução de danos pertencentes ao campo social e da saúde (RIBAS e SILVA, 2024).
Tabela 1 - Perfil sociodemográfico de travestis e mulheres transexuais em privação de liberdade na região metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil, 2021
Fonte: Autores, 2023.
A maioria das travestis e mulheres transexuais antes do aprisionamento tinha sua principal fonte de renda econômica por meio de trabalhos informais, principalmente em atividades sexuais (61,6%), enquanto 18,5% delas estavam desempregadas. Uma realidade de vulnerabilidade apontada nos poucos estudos nacionais que abordam essa temática (BENEDETTI, 2005; CARRARA e VIANNA, 2006; GARCIA, 2008; HENRIQUES et al., 2019; BENEVIDES, 2023 p.23). A prostituição é uma das poucas oportunidades de empregabilidade para muitas transfemininas, sobretudo entre as pobres e negras. Infelizmente ela é exercida majoritariamente em locais públicos cercados de violências, drogas e tristezas (BOVO, 2020; CARAVACA-MORERA, 2018), funcionando como uma antessala para o sistema penitenciário.
Aprisionadas em violências, exclusões e estigmas
Não é nas prisões que as travestis e mulheres transexuais são apresentadas, pela primeira vez, às violências, sofrimentos e abandonos, mas o cárcere pode potencializar essas experiências que marcam suas trajetórias de vida, conforme mostram os dados sobre o perfil prisional da população estudada, apresentados na Tabela 2.
Do grupo entrevistado, somente metade delas tinha visitantes cadastrados (50,3%), e menos ainda (41,1%) recebia objetos e alimentos permitidos pela administração penitenciária por meio de suas visitas, o que pode estar relacionado à precariedade dos vínculos familiares, especialmente com a família de origem (SILVA et al., 2021).
Por analogia, o fenômeno da desvinculação familiar que se observou pode ser comparado a uma diáspora cronicamente estabelecida na vida das travestis e transexuais. O deslocamento geográfico e social como consequência da ruptura de seus núcleos familiares, por meio de fugas e/ou expulsões de casa, em idade ainda de adolescência, traz como provável consequência a situação de rua (MARTINEZ et al., 2014), ou guetos de prostituições (BENEDETTI, 2005), dentre outras vulnerabilidades, traumas e dores. Como discutido por alguns autores que analisam a problemática contemporânea observada nos grandes deslocamentos populacionais (LEWIS, 2006; HANDERSON, 2015), as travestis e transexuais vivenciam igualmente suas dinâmicas diaspóricas marcadas por rupturas e reconfigurações sociais, perseguindo um lugar seguro, longe das violências domésticas e preconceitos que motivaram suas partidas, e perto de seus semelhantes que não apresentem ameaças para suas existências.
Contudo, os espaços diaspóricos para as travestis e mulheres transexuais são, muitas vezes, caracterizados por outras violências, sejam por outros núcleos familiares em que poderão vivenciar restrições às suas expressões femininas, sejam pelas ruas ou locais restritos à prostituição, nos quais poderão vivenciar experiências dolorosas. Esse padrão de aprisionamento coaduna com as situações de vulnerabilidades sociais enfrentadas por grande parte dessas pessoas. Diante do abandono de seus familiares (FERREIRA, 2015, pp. 128-129), dos obstáculos ao acesso às instituições de ensino e ao mercado de trabalho, dos estigmas pervasivos na sociedade – situações que as tornam alvos fáceis para o crime – geralmente, os espaços diaspóricos podem se configurar também como um aprisionamento sem grades.
É importante se destacar que o período de realização desse estudo foi logo após a liberação das visitas às pessoas privadas de liberdade nas unidades prisionais do Estado do Rio de Janeiro devido a pandemia da Covid-19, ou seja, em abril de 2021. Contudo, mesmo diante deste afastamento social por motivos sanitários, o recebimento de correspondências sob qualquer formato alcançou somente 17,9% das travestis e mulheres transexuais em situação de prisão.
Os delitos praticados foram, em sua grande maioria (74,2%), relacionados à apropriação indevida de objetos alheios por meio de furtos e assaltos, praticados na grande maioria durante suas atividades comerciais de sexo com seus clientes (GARCIA, 2008).
Os dados demonstraram que somente 18,5% das entrevistadas acessaram os espaços de ensino ao longo de seu encarceramento, ou participaram de qualquer curso profissionalizante. Poucas (15,9%) tiveram acesso ao trabalho, ou às atividades religiosas (14,6%) dentro das unidades prisionais. Experimenta-se na prisão situações que já eram conhecidas antes dela: a obstrução dos caminhos que dão acesso ao sistema escolar, à profissionalização, ao mercado de trabalho e ao seu reconhecimento em comunidades religiosas.
Tabela 2. Perfil prisional entre travestis mulheres transexuais em privação de liberdade na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, Brasil, 2021
Fonte: Autores, 2023.
Dentro e fora da prisão: a reincidência como conexão do estado de exceção
A maioria (64,2%) das entrevistadas estava em privação de liberdade no sistema penitenciário por mais de uma vez, resultado superior a outros estudos que abordam a temática (LEMGRUBER, 1989; IPEA, 2015; SAPORI; SANTOS; MASS, 2017). Desse modo, viver parte da vida na prisão não parece ser a excepcionalidade, mas uma dimensão de um tipo perverso de normalidade que marca vidas precárias (BUTLER, 2019). O estado de exceção vivido nas prisões do Brasil parece um continuum do estado de exceção que caracteriza a realidade extramuros das periferias brasileiras (RIGON e FRANÇA, 2014), nas quais o Estado aplica sistematicamente a violência sobre as populações negras, pobres, LGBTI e outras em situação de exclusão (CAVALCANTI; BARBOSA; BICALHO, 2018). Os fatores contribuintes associados à reincidência penitenciária analisados nessa amostra revelaram que a escolarização das participantes antes do aprisionamento demonstrou ser um fator de proteção (p=0,025), sendo observado que a reincidência diminui diretamente com o aumento da escolarização. Entretanto, o que se observou ao longo do encarceramento das travestis e mulheres transexuais entrevistadas foi um processo de exclusão das salas de aulas, já que 81,5% das entrevistadas nunca frequentaram as escolas penitenciárias, e 91,4% das entrevistadas não realizaram qualquer tipo de curso profissionalizante.
As entrevistadas que exerciam a prostituição antes da prisão foram as que mais reincidiram quando comparadas às desempregadas ou às que trabalhavam em outras atividades. Esses resultados apontaram para um sistema cíclico da liberdade-prisão, alimentado por diversas estruturas de exclusão social de pessoas travestis e transexuais, que se potencializam quando estas recebem a etiqueta de pessoa egressa do sistema penitenciário.
A análise da tipificação criminal também mostrou que 71,3% das travestis e mulheres transexuais cometeram crimes relacionados a roubos e furtos, crimes relacionados ao patrimônio. Essas transfemininas tendem a retornar às prisões com maior frequência quando comparadas com aquelas que cometeram outros delitos (p=0,002).
O percentual elevado de reincidência penitenciária encontrada nesta pesquisa aponta para um cenário que merece reflexões sobre as condições insuficientes ou inexistentes de acesso à escolarização, cursos profissionalizantes e trabalhos intramuros, ao longo do encarceramento das travestis e mulheres transexuais. Este cenário é o espelho de iniquidades sociais enfrentadas por essas pessoas para além das fronteiras das prisões brasileiras, nas quais também sofrem perseguições e truculências dos operadores de segurança pública em suas abordagens policiais envolvendo travestis e mulheres transexuais (RIGON e FRANÇA, 2014; CAVALCANTI; BARBOSA; BICALHO, 2018).
Tabela 3. Associação entre perfil social e prisional com a reincidência penitenciária das travestis e mulheres transexuais em privação de liberdade na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, Brasil, 2021.
Fonte: Autores, 2023.
Considerações finais
A reincidência como fenômeno social deve ser analisada por diferentes ângulos, principalmente por afetar predominantemente grupos sociais vulneráveis. O objetivo desse estudo foi alcançado ao desvelar, por meio de dados e estatísticas, algumas conexões já conhecidas entre as condições de vida das travestis e mulheres transexuais da região metropolitana do Rio de Janeiro, e os fatores de riscos que as levam às prisões. Espaços prisionais majoritariamente habitados por pretos, pardos e pobres, onde as travestis e as mulheres transexuais não fogem à regra de exclusão social. Contudo, devemos atentar para outras questões que interseccionam esse grupo específico, como o espaço em que vivem, cidade turística que enfrenta a prática do turismo sexual (SILVA, 2012), com guetos dominados por prostituição feminina, e com grandes bolsões de pobreza urbana.
Essa problemática pode ser melhor compreendida por meio das análises sobre as linhas ou “dobras” que atravessam as dinâmicas de dentro e de fora das unidades prisionais, principalmente no sentido de formular pesquisas que extrapolem as análises das dinâmicas vivenciadas pelas travestis e mulheres transexuais em privação de liberdade (MALLART e CUNHA 2019, pp. 7-15). Nesse sentido, é imprescindível que se conheça de fato, por meio das falas, das experiências e das vivências delas, o impacto dos sistemas que operam nos dois lados das muralhas prisionais, e nos poros das fronteiras contínuas e contíguas. Estudos realizados com grupos populacionais privados de liberdades e seus territórios extramuros demonstraram a conexão direta entre esses dois espaços geográficos: prisões-guetos e o sistema crime-prisão-liberdade-crime-prisão (BARBOSA, 2005; BONY, 2015).
O circuito do aprisionamento-guetização das travestis e mulheres transexuais analisadas neste estudo está diretamente associado à criminalidade e prostituição, aos diversos tons de “não” que essas pessoas recebem no seu cotidiano, nas famílias, nas escolas, no mercado de trabalho, nos espaços de participação social, dentre outros. A precariedade do sistema penitenciário no processo de re(socialização) também contribui consideravelmente nesse processo necropolítico. Seis das onze unidades prisionais selecionadas nesse estudo sequer possuíam escolas penitenciárias, nenhuma das onze unidades ofertavam qualquer oferta de curso profissionalizante. Em suma, nenhuma estratégia educativa com impacto direto no processo de reincidência penitenciária, muito menos na promoção da formação de suas subjetividades, refletidas e reformuladas com elas e para elas, dentro de suas realidades e vivências extramuros.
No bojo dessa discussão, não se pode deixar de sistematizar alguns dos fatores contribuintes para alta reincidência penitenciária no sistema penitenciário brasileiro, principalmente, a reincidência de pessoas que fogem às normas de uma sociedade cisheteronormativa: as condições precárias e/ou inexistentes de acesso às instituições de ensino (LIMA, 2020), aos serviços de saúde (FERREIRA e BONAN, 2021; MONTEIRO e BRIGEIRO, 2019), ao mercado de trabalho (SILVA, 2020), dentre outras faltas e ausências. O dinamismo da desfiliação social entre as travestis e mulheres transexuais é evidenciado tanto pelo processo de invisibilização/apagamento/desumanização/morte quanto pela falta de acesso aos direitos sociais básicos, tais como: como saúde, educação e trabalho (CASTEL, 1997, pp. 15-48), dentre tantos outros direitos humanos, como descrito na trajetória de vida da professora travesti Sara Wagner York (GONÇALVES JUNIOR, 2018). Assim se forma um ciclo necropolítico de existência (Figura 1), como um padrão social destinado às travestis e mulheres transexuais em situação de prisão, guardadas as raríssimas exceções das que conseguem alcançar sucesso profissional, acadêmico e/ou político. A necropolítica trans é como qualquer sistema necropolítico, que elege quem vai morrer, que se caracteriza pelas intensidades dessas mortes por questões interseccionais de raça e classe social; esse mesmo sistema também trabalha com a meritocracia, desviando o foco sistêmico para o individual, que responsabiliza a travesti ou mulher transexual pelo seu próprio fracasso (CARAVACA-MORERA e PADILHA, 2018).
Figura 1 - Modelo de um ciclo necropolítico destinado as travestis e mulheres transexuais em situação de prisão.
Fonte: Autores, 2023.
Importante destacar que esse ciclo é repleto de violências, abandonos, preconceitos, traumas e mortes, e cada vez que ele gira trezentos e sessenta graus aumenta exponencialmente a vulnerabilização dessas pessoas, porque nem sempre existe uma família para as receberem pós encarceramento, e as condições para o acesso ao trabalho se tornam ainda mais distantes. Neste estudo, foi verificado que algumas travestis e mulheres transexuais perfizeram esse giro por mais de cinco vezes e, como definido nos relatos contidos no estudo de Sakamoto e Cabral (2018, pp. 121-127), em que as experiências depois do cárcere impelem ao reingresso delas ao sistema penitenciário de forma quase que compulsória, como um destino predestinado.
Para além da realização de um diagnóstico sobre o fenômeno social da reincidência penitenciária entre as travestis e mulheres transexuais em situação de prisão na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, este estudo pretende contribuir para a formulação de propostas articuladas entre as instituições penais, órgãos que atuam na defesa dos direitos humanos, organizações sociais dos movimentos LGBTI e instituições do ensino público e privado que possam mitigar o elevado processo de reincidência penitenciária nessa população, por meio de intervenções efetivas em cada etapa desse ciclo necropolítico que a condena a essa realidade desumana.
Portanto, por mais que este estudo tenha sinalizado a importância do processo de escolarização como potente fator protetivo para a reincidência penitenciária, é importante refletir o enunciado do livro de Ângela Davis (٢٠١٨, p. 47): “quem lucra (além do próprio estabelecimento prisional) com presos estúpidos?”. Com esse questionamento, guardadas as devidas diferenças sociais e olíticas, que devemos nos debruçar sobre os desafios e investimentos a serem adotados para mudar essa triste realidade da elevada reincidência penitenciária, entre as travestis e mulheres transexuais privadas de liberdade em nosso país.
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