Resumo: Este artigo teve o objetivo de caracterizar a concepção de vínculos comunitários de psicólogos e assistentes sociais na Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social no Brasil. Com 144 participantes, a análise revelou uma concepção coesa entre os dois grupos, destacando a importância da interdisciplinaridade promovida pela Política Nacional de Assistência Social. As classes identificadas como resultados da pesquisa indicam uma concepção de vínculo comunitário que inclui relações territoriais, senso de comunidade, convivência solidária e participação social. O estudo ressalta a relevância desses resultados dentro dos referenciais teóricos e normas técnicas do trabalho social com famílias.
Palavras-chave: Vínculo comunitário, Sistema Único de Assistência Social, Redes comunitárias.
Abstract: This article aimed to characterize the conception of community bonds among psychologists and social workers in the Basic Social Protection (PSB) of the Unified Social Assistance System (SUAS) in Brazil. With 144 participants, the analysis revealed a cohesive conception among the two groups, highlighting the importance of interdisciplinarity promoted by the National Social Assistance Policy (PNAS). The identified classes as research outcomes indicate a conception of community bonds that encompass territorial relationships, sense of community, supportive coexistence, and social participation. The study emphasizes the relevance of these findings within the theoretical frameworks and technical standards of social work with families.
Keywords: Community bond, Brazilian Unified Social Assistance System, Community networks.
Concepção de vínculos comunitários entre psicólogos e assistentes sociais da proteção social básica do SUAS
Conception of community bonds among psychologists and social workers in the basic social protection of SUAS
Recepción: 01 Agosto 2023
Aprobación: 01 Octubre 2024
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) representa um marco na busca pela garantia dos direitos sociais das populações em situação de vulnerabilidade (BRASIL, 2012). Neste contexto da Assistência Social como uma política pública de direitos, os vínculos comunitários emergem como elementos fundamentais para a construção de uma rede de apoio social sólida, capaz de prevenir e enfrentar as vulnerabilidades enfrentadas por essas famílias e comunidades ao longo dos ciclos de vida (ALVES E SEMZEZEM, 2013). Entretanto, a conceituação e operacionalização dos vínculos comunitários apresentam lacunas teóricas e operacionais, constituindo um desafio fortalecer conceitualmente e em termos práticos este tema, o que requer uma atenção aprofundada.
A PNAS enfatiza a importância dos vínculos comunitários para prevenir vulnerabilidades e riscos sociais (BRASIL, 2012), no entanto, a legislação e as normas técnicas oficiais mencionam vínculos familiares e comunitários conjuntamente, sem estabelecer distinções mais claras entre eles e, portanto, sem oferecer definições precisas destes conceitos (BRASIL, 2006; BRASIL, 2012; BRASIL, 2017;BRASIL, 2004). Diante desse contexto, destaca-se o quanto que a falta de clareza conceitual sobre os vínculos comunitários pode levar a práticas assistenciais superficiais e pouco eficazes no âmbito da assistência social, tais como o Serviço de Atenção Integral a Famílias (PAIF), bem como em relação ao Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) – fundamentais na promoção dos vínculos familiares e comunitários (RODRIGUES, GUARESCHI E CRUZ, 2013).
As pesquisas existentes que abordam os vínculos comunitários também enfrentam os problemas em relação a consenso e/ou precisão conceitual (SIQUEIRA E DELL’AGLIO, 2011; SIQUEIRA, 2012; RODRIGUES, GUARESCHI E CRUZ, 2013; FURTADO, DE MORAIS E CANINI, 2016; SILVA, 2004; SILVA, DIAS E BARROS, 2012). Muitos estudos enfatizam a importância dos vínculos familiares, mas deixam lacunas na compreensão dos vínculos que se estabelecem na esfera comunitária, sem distinguir estes níveis. Diante disso, faz-se necessário explorar e dialogar com conceitos consolidados em outras áreas da Psicologia, como a Psicologia Social e Comunitária, para construir uma base teórica sólida que possa subsidiar a atuação dos profissionais da assistência social.
Na dimensão pragmática do trabalho de psicólogos e assistentes sociais em equipes interdisciplinares do PAIF, é consolidada a efetividade das ações em relação à coletividade, a qual não se separa da noção de territorialidade (MAHEIRIE et al., 2021). Destaca-se a potência na produção dos fazeres com e a partir do território, por meio de seus significantes e possibilidades singulares, como um dos vetores potentes no enfrentamento ao sofrimento ético-político produzido pelas desigualdades sociais (MAHEIRIE et al., 2021).
A territorialização refere-se ao conhecimento do espaço em que as pessoas vivem, suas vulnerabilidades e potencialidades, envolvendo as relações de reconhecimento, afetividade e identidade que se mostram pelos contextos socioculturais e econômicos do território (SCOTT et al., 2020). Isso significa que, ao compreender a dinâmica concreta de vida que se processa no cotidiano das pessoas, é possível desenvolver ações mais adequadas e efetivas para atender às demandas da comunidade e os fluxos do território. Além disso, a construção de uma rede de interação entre os atores sociais envolvidos, ao buscar equalizar as propostas dos serviços, das diferentes políticas públicas, pode minimizar as vulnerabilidades sociais, principalmente de acesso a bens e serviços. Portanto, a noção de território é importante para o trabalho com vínculos comunitários, pois permite uma intervenção contextualizada às particularidades e necessidades de uma comunidade.
À guisa de uma ampliação epistemológica, no âmbito da Psicologia Comunitária internacional, autores como Chavis et al. (1986) têm contribuído com o estudo do senso de comunidade, enfatizando a importância das relações interpessoais e da identidade compartilhada na formação de vínculos entre os membros de uma comunidade. Essa abordagem traz à tona a relevância do sentimento de pertencimento e da cooperação para o fortalecimento dos vínculos comunitários. Assim, o conceito de senso de comunidade com suas dimensões, surge como um elemento potencial para a compreensão e construção de vínculos no âmbito de intervenções da PNAS.
No contexto da Psicologia Social Comunitária, a convivência e a participação social emergem como conceitos intrinsecamente ligados à construção de comunidades, nas quais se hipotetiza que os vínculos comunitários estão sedimentados (SIQUEIRA & DELL’AGLIO, 2011, SIQUEIRA, 2012; NEPOMUCENO et al., 2013). A convivência como conjunto de interações e trocas que ocorrem entre os indivíduos de uma comunidade, abrange desde relações interpessoais até a interação com o ambiente físico e cultural. A participação social, por sua vez, refere-se ao engajamento ativo dos membros da comunidade em decisões coletivas e no controle social, destacando-se os avanços alcançados com essa proposta no Sistema Único de Saúde (SUS) (BAIMA E GUZZO, 2020; NEPOMUCENO, 2013). Esses aspectos estão entrelaçados, pois uma convivência comunitária promove a participação social, enquanto a participação social também contribui para a convivência comunitária. Assim, considerar a relação entre convivência e participação social também se caracteriza como relevante para conjecturar a concepção de vínculo comunitário.
Diante desse panorama, esta pesquisa propôs avançar no entendimento dos conceitos e práxis relacionados aos vínculos comunitários, a partir do diálogo entre as concepções presentes na formulação do PNAS e as concepções de assistentes sociais e psicólogos(as) que efetivam a política em seu cotidiano de atuação. Almeja-se, assim, contribuir para o aprimoramento PNAS, proporcionando uma base conceitual sólida que guie a atuação dos técnicos envolvidos nesse campo. Dessa forma, acredita-se que esta pesquisa possa contribuir para um debate mais amplo sobre a importância dos vínculos comunitários na construção de uma sociedade mais justa, solidária e resiliente.
Diante das considerações apresentadas, o presente artigo teve como objetivo caracterizar a concepção de vínculos comunitários entre psicólogos e assistentes sociais da Proteção Social Básica (PSB) do SUAS, ao realizar a descrição de uma concepção de vínculos comunitários comum a esses profissionais, bem como comparar diferenças e nuances entre eles.
A pesquisa se caracterizou como um delineamento com objetivo exploratório e descritivo, o qual consistiu na aplicação de questionário online para coleta de dados qualitativos (SAMPIERI, COLLADO E LUCIO, 2013). Amostrados por conveniência, participaram da pesquisa 144 técnicos de nível superior do SUAS, entre assistentes sociais (n = 77) e psicólogos (n = 67), de todas as regiões do Brasil (Sul = 76; Nordeste = 35; Sudeste = 24; Norte = 5; Centro-Oeste = 4).
O procedimento de coleta de dados consistiu na divulgação da pesquisa entre grupos e coletivos das categorias de profissionais que trabalham na Proteção Social Básica do SUAS em todo território nacional brasileiro. Este escopo incluiu divulgação em redes sociais como Instagram, Facebook e Twitter.
O instrumento de coleta de dados consistiu em um formulário, no qual os participantes responderam quatro questões relacionadas a características profissionais (profissão, tempo de trabalho, cidade e estado) e três questões relacionadas a vínculos comunitários (concepção de vínculos comunitários, cinco palavras evocadas a partir de vínculos comunitários e justificativa para a escolha da primeira palavra).
O procedimento de análise de dados consistiu na tabulação dos dados e na operacionalização dos procedimentos de (1) análise de similitude, (2) análise de quadrantes baseada no Teste de Associação Livre de Palavras (TALP) e a (3) Classificação Hierárquica Descendente (CHD) proposto por Reinert (1990). A análise de similitude foi conduzida para identificar possíveis eixos estruturantes de co-ocorrência de evocação de palavras para representar a concepção de vínculos comunitários entre os diferentes subgrupos da amostra, a saber, assistentes sociais e psicólogos. A análise de quadrantes foi conduzida para identificar as matrizes mais centrais e periféricas de representação de vínculos comunitários, também comparando potenciais diferenças entre os subgrupos. A CHD foi conduzida para rastrear uma possível dimensionalidade de representações em relação à concepção de vínculos comunitários, por meio da organização de clusters gerados a partir da semelhança vocabular de segmentos de textos (ST’s), decompostos do conteúdo verbal gerados pelas respostas dos participantes. Os procedimentos de análise foram realizados por meio do software Iramuteq, software gratuito e licenciado por GNU GPL (v2), seguindo as orientações descritas por Camargo (2020).
A presente pesquisa seguiu a todos os procedimentos éticos previstos na Resolução 510 de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi previamente avaliada e aprovada (CAAE - 65352622.6.0000.0121) pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Dentre os resultados observados, verificou-se homogeneidade entre a concepção de vínculos comunitários apresentadas entre os assistentes sociais e psicólogos participantes da pesquisa. Tal condição suscitou a hipótese da importância do trabalho da PNAS na formação dos profissionais, promovendo uma base de compreensão e trabalho interdisciplinar. Não obstante, as possíveis nuances da formação desses profissionais, bem como a condição da falta de uma definição mais precisa frente a uma certa polissemia conceitual, nos abre espaço para discutir alguns achados sensíveis ao avanço da área.
Em relação às palavras evocadas pelos participantes de pesquisa acerca de vínculos comunitários (“Escreva cinco palavras que lhe ocorrem quando você pensa em vínculos comunitários”), a análise de similitude evidenciou algumas diferenças entre os subgrupos (Figura 1). Identificou-se uma co-ocorrência de termos diferentes entre psicólogos e assistentes sociais. Entre assistentes sociais, houve maior representatividade de termos como território, apoio, pertencimento e participação. A justificativa de um(a) assistente social ao caracterizar território como o termo mais importante para vínculo comunitário contribui à hipótese de que a formação acadêmica pode ter influenciado nessa diferença: “Trata de uma forma de trabalho para mostrar a importância às pessoas do seu papel social e a importância de ocuparem os espaços públicos em busca de direitos.[...]”. A justificativa encontra-se na compreensão de que a concepção de território, assim como outras concepções de territórios, apresenta significativa reverberação em publicações da área do Serviço Social (DA SILVA et al., 2022; SANTOS, 2018; JOAZEIRO & MARIOSA, 2013).
Figura 1 - Sumarização da análise de similitude baseada no Teste de Associação Livre de Palavras (TALP) de psicólogos e assistentes sociais do SUAS acerca de vínculos comunitários
Fonte: próprios autores, 2023.
Já entre os(as) psicólogos(as) houve maior representatividade dos termos consciência, cidadania, solidariedade e convivência. A hipótese para uso de tais termos entre os psicólogos também sugere a influência da matriz teórica vinculada a Psicologia. Foi possível identificar, por exemplo, que termos como afeto/afetividade, relações e laços de solidariedade foram observados em algumas justificativas apresentadas por participantes psicólogos(as) para manifestar a importância do termo convivência como o mais prioritário na definição de vínculo comunitário. Tais concepções também reverberam de maneira significativa na literatura da Psicologia Social (GUARESCHI, 2012; AGUIAR, 2000; SAWAIA, 1998).
O termo unificador “comunidade” foi um elo significativo no modelo gerado pelos dados. A compreensão de comunidade, depreendida a partir dos 18 participantes que evocaram o termo como primeira opção, abrangeu um escopo de justificativa de que comunidade engloba a convivência em grupos com interesses comuns, a partilha de demandas e de apoio coletivo. Envolve também ação solidária, coletividade, alianças para enfrentamento e participação nos problemas enfrentados coletivamente. Tal compreensão é possível de ser verificada tanto na descrição de psicólogos (“São os elos que formam uma rede de proteção social dentro de um determinado espaço territorial. Fundamental no SUAS”) como na de assistentes sociais (“É ter participação e conhecimento sobre os direitos e o papel social nos problemas enfrentados em uma comunidade”).
Em que pese o viés polissêmico do termo comunidade e o radical comum (comuni), foi possível compreender o quanto o conceito é central para a concepção de vínculos comunitários. A dimensão das respostas apresentadas pelos participantes reverbera em compreensões teóricas significativas, como, por exemplo, da matriz epistêmica envolvida na Psicologia Comunitária, advinda de todo movimento social associado a Psicologia Social Crítica (LANE & CODO, 1982; SARRIERA & SAFORCADA, 2020). Silva e Corgozinho (2011) argumentam que a contribuição da Psicologia Comunitária é fundamental para o trabalho desenvolvido no SUAS, o qual possui referenciais teórico-metodológicos ainda em construção.
Além da própria noção de intervir na comunidade, é possível obter contribuições da Psicologia Comunitária em relação a pelo menos quatro aspectos, a saber: desenvolvimento de consciência crítica, participação comunitária, autonomia dos sujeitos e a transformação social (SILVA e CORGOZINHO, 2011). É possível observar a pertinência de tal proposição, sobretudo pela convergência desses ideais da Psicologia Comunitária em relação às seguranças afiançadas na PNAS, sobretudo às seguranças de convivência e autonomia (BRASIL, 2012).
Avançando em relação a outros dados, o segundo procedimento de análise conduzido foi a análise de quadrantes, a qual permitiu complementar a informação interpretada na análise de similitude (Tabela 1 e Tabela 2).
Tabela 1 - Sumarização da análise de quadrantes entre psicólogos(as)
Fonte: próprios autores, 2023.
Conforme é possível observar na Tabela 1, no quadrante do Núcleo Central, encontram–se os termos de maior frequência na evocação de psicólogos, sendo também estes termos os de maior preferência na ordem de evocação, ou seja, o que os participantes escreveram primeiro. O termo mais evocado entre os psicólogos foi comunidade, sendo a concepção análoga à já apresentada na análise de similitude. Uma demonstração complementar pode ser evidenciada na descrição de outros dois participantes psicólogos que justificaram a preferência do termo comunidade para caracterizar vínculo comunitário, aproximando dos termos mais utilizados pelos assistentes sociais: “São os laços de solidariedade que se desenvolvem nos territórios e que possibilitam a construção de uma identidade coletiva e valores partilhados”.
Condição similar ao termo comunidade apareceu com outros termos mais evocados entre psicólogos(as), como convivência, solidariedade e território. Convivência, por exemplo, abrangeu uma concepção de esta ser uma condição necessária para realização de ações coletivas, solidariedade, inclusão social e, por conseguinte, para o desenvolvimento de vínculos comunitários (“São as interações que promovem a inclusão social e a valorização da diversidade na comunidade de um território”). Tais evocações priorizadas em conjunto às justificativas podem sugerir a existência de uma representação típica de vínculos comunitários dos psicólogos advinda de marcos teóricos conceituais presentes na literatura psicológica do campo da Psicologia Social.
Não obstante, problematiza-se que ambos os quatro termos apresentados com maior frequência e ranking (comunidade, convivência, solidariedade e território) são polissêmicos, e tal condição remete ao problema de uma definição constitutiva ausente, não consensual ou imprecisa na literatura, o que pode se tornar um desafio para a homogeneização de bases conceituais fundamentais para a Política Nacional de Assistência Social. Tal problema caracteriza-se em outros meandros da PNAS, em tópicos até de maior sensibilidade como é o caso dos conceitos de vulnerabilidade e risco social (CARMO E GUIZARDI, 2018; MOREIRA, 2020). Não obstante, retoma-se face a tal condição o problema já abordado da necessidade de desenvolvimento de referenciais teórico-metodológicos mais claros e precisos para o SUAS (SILVA e CORGOZINHO, 2011).
Em relação aos demais dados da análise de quadrantes dos psicólogos participantes da pesquisa, a primeira periferia (frequência alta e ranking baixo) e a segunda periferia (frequência baixa e ranking baixo), dentro do procedimento analítico realizado, sinalizam representações para vínculos comunitários que são secundárias, ou por não serem tão priorizadas nas primeiras evocações ou por aparecerem poucas vezes. Em relação a essa dimensão secundária os dados sugerem a hipótese da influência de elementos comuns da Política Nacional de Assistência Social (cidadania, consciência e participação), o que demonstra coerência com a condição de atuarem e transitarem em relação a esses repertórios conceituais.
Nos aspectos de contraste da análise (quadrante inferior esquerdo com frequência baixa e ranking alto), encontram-se os termos que são evocados poucas vezes, mas apresentam prioridade por um limitado recorte da amostra. Nesse sentido, este quadrante indica um conteúdo latente de reverberação restrita a um subgrupo menor. Nesse meandro observou-se a ocorrência de classes mais comumente observadas na literatura da Psicologia Social Brasileira, como, por exemplo, atenção, potência e conexão (LANE & CODO, 1982).
Para viabilizar a comparação com os dados dos psicólogos, na Tabela 2 é apresentada a análise de quadrantes dos assistentes sociais.
Tabela 2 - Sumarização da análise de quadrantes entre assistentes sociais
Fonte: próprios autores, 2023.
Conforme é possível observar na Tabela 2, o Núcleo Central da representação dos assistentes sociais indica significativa equivalência das categorias mais evocadas e com maiores rankings em comparação a dos psicólogos (correspondência entre comunidade, território e convivência, porém, em ordens diferentes). Destaca-se a diferença em relação a evocação do termo pertencimento, identificado apenas uma vez em primeira evocação e outras nove vezes em segunda evocação.
Em relação à primeira periferia (frequência alta e ranking baixo) e a segunda periferia (frequência baixa e ranking baixo) as evocações também replicaram uma perspectiva similar a observada entre os psicólogos, uma vez que se organizam em torno de concepções inerentes a PNAS (termos com maior ressonância teórica: Cidadania, Direitos, Participação social).
Em relação ao contraste dos(as) assistentes sociais observa-se uma prevalência de termos que remetem a coletividade. É o caso das palavras vizinhança, partilha, união e proximidade. Tais termos apresentam uma frequência comparativa similar a zona de contraste dos psicólogos, porém o ranqueamento foi menor (palavras evocadas em segunda ou terceira ordem). Ainda assim, conjectura-se a hipótese da potencial influência epistemológica que a formação em Serviço Social pode apresentar para explicar tal ocorrência.
Por fim, os resultados também foram analisados por meio da CHD, baseada na análise da questão referente às concepções de vínculos comunitários (Para você o que são vínculos comunitários?) (Figura 2). Conforme é possível observar, a primeira classe foi nome de convivência solidária. Nessa classe identificou-se regularidade na concepção de vínculos comunitários enquanto relações de solidariedade, apoio e cooperação entre indivíduos que vivem em um mesmo território. Essa classe pode ser demonstrada na descrição apresentada respectivamente por um(a) psicólogo(a) e um(a) assistentes sociais: “são vínculos que se constroem junto à comunidade trazendo referência e geram reciprocidade e confiança para eles, aumentando a rede de apoio” e “os vínculos comunitários para mim refletem a capacidade de união e mobilização para resolver problemas e enfrentar desafios em comunidade”.
Conforme é possível conjecturar a partir das descrições observadas, os vínculos comunitários se fortalecem quando os usuários buscam enfrentar os desafios coletivos e às mudanças para construir uma comunidade mais cidadã. Os laços de amizade e confiança são fatores importantes nesse processo de desenvolvimento comunitário. Inclusive é possível hipotetizar uma relação dessa interação comunitária com o senso de pertencimento, o qual apareceu na segunda classe identificada. Tal elaboração é corroborada por Rodrigues, Guareschi e Cruz (2013, p. 13), as quais sinalizam que “a promoção e a defesa do direito a convivência familiar e comunitária” é condição fundamental para o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
A segunda classe identificada na CHD foi nomeada como senso de comunidade, dada a ocorrência de descrições acerca de vínculos comunitários enquanto aspectos psicossociais associados à comunidade, como, por exemplo, o senso pertencimento e identidade que se formam entre os moradores de um território. Essa condição de compreensão de vínculo comunitário pode ser demonstrada na resposta de um(a) assistente social: “o vínculo comunitário acredito ser o senso coletivo de identidade e pertencimento de uma comunidade”. Em condição análoga, outros psicólogos(s) também coadunam dessa perspectiva: “o vínculo é o sentimento de pertencimento e responsabilidade com uma comunidade”.
Figura 2 - Sumarização da análise da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) de psicólogos e assistentes sociais acerca da concepção de vínculos comunitários
Fonte: próprios autores, 2023.
O conceito de senso de comunidade desenvolvido por Chavis e colaboradores (1986, p. 11), corrobora, em alguns aspectos, com a construção identificada nesta pesquisa, sobretudo, em relação à dimensão do pertencimento, quando definem senso de comunidade como um “[...] sentimento que os membros têm de pertencimento e de serem importantes uns para os outros, e uma fé compartilhada que as necessidades dos membros serão atendidas pelos seu compromissos de estarem unidos”. Embora parta-se de referenciais epistemológicos distintos, sugere-se a potencial contribuição que a concepção de senso de comunidade, bem como seus instrumentais técnicos (índice de senso de comunidade), possa ter para o trabalho de fortalecimento de vínculos comunitários no SUAS, destacando os resultados positivos em relação ao uso desse referencial no Brasil em condição mais restrita (MOURA JR et al., 2021; MOURA JR et al., 2020).
A terceira classe identificada foi nomeada como participação social. Descrições advindas dessa classe auxiliam na sua caracterização: (1) “refletem a importância da participação feminina e do empoderamento de mulheres na comunidade” e (2) “é ter participação e conhecimento sobre os direitos e o papel social nos problemas enfrentados em uma comunidade”. É possível sintetizar que essa classe se trata da concepção de vínculo comunitário como a forma como os indivíduos se integram com o território, engajando-se em questões sociais, promovendo a participação política e buscando soluções para problemas locais.
A convivência em espaços públicos e a participação nos diversos setores da sociedade contribuem para o desenvolvimento comunitário (CARVALHO et al., 2022;MARTINS E SILVA, 2020). Com efeito, a participação social é condição estruturante da Proteção Social como política pública, o que consequentemente influencia para que a comunidade atue de forma colaborativa, enfrentando desafios e promovendo o bem-estar coletivo (MARTINS E SILVA, 2020).
Destaca-se, alicerçado nos dados encontrados, a importância da participação e do controle social dentro do SUAS, o qual ainda é um desafio em sua implementação (LISBOA, 2023). Observa-se que, tanto no discurso como na prática, a concepção de controle social requer ainda um maior esclarecimento para poder superar limitações que impedem um exercício democrático (DA SILVA et al., 2008). Um dos principais impasses para o exercício do controle social no SUAS é a pouca participação da sociedade civil, acompanhada da fragilidade de sua organização e, ainda, da falta de informação dos usuários sobre os seus direitos e sobre a política da Assistência Social.
A quarta classe identificada na CHD foi nomeada como relações territoriais. Nessa classe observou-se a ocorrência de termos associados a concepção de vínculos comunitários estabelecidos entre as pessoas de um território, bem como a conexão entre os moradores e os serviços públicos. Evidencia-se tal escopo na descrição de participantes: “são aqueles criados entre os vizinhos e as pessoas que residem no mesmo bairro ou em bairros próximos, ligadas por frequentarem os mesmos lugares, projetos, igrejas, escolas, ubs, padaria, comércio em geral e que acabam se tornando rede de apoio de alguma forma” (assistente social) e “São formas de se relacionar com o território e seus habitantes, compreendendo as formas de representação que se tem desse território e como este é compreendido pelos seus membros assim como suas potencialidades e vulnerabilidades” (psicólogo(a)).
Os vínculos comunitários apresentam uma estreita relação com o conceito de vizinhança e de território e são fundamentais para a construção de uma rede de apoio, em que as pessoas compartilham recursos, se ajudam mutuamente e enfrentam desafios sociais cotidianos. Balizado em Koga (2013), território pode ser definido como o espaço físico e simbólico que engloba relações sociais, culturais e econômicas, sendo um elemento estruturante da organização e da identidade das comunidades.
Para Milton Santos (2005), o território é concebido como uma construção social e política, refletindo as relações de poder e as dinâmicas sociais que ocorrem nesse espaço. Assim, o território é um espaço de resistência e apropriação, no qual as comunidades desenvolvem suas práticas cotidianas e estabelecem laços de pertencimento. Nesse contexto, a Gestão Territorial da Proteção Social Básica do SUAS emerge como uma abordagem estratégica para promover o desenvolvimento sustentável das comunidades, integrando diferentes atores sociais e governamentais na busca por soluções coletivas (BRASIL, 2012).
A partir de uma perspectiva integradora, a gestão territorial busca conciliar interesses diversos e respeitar as especificidades locais, contribuindo para a promoção da justiça social e do bem-estar coletivo (BRASIL, 2009; SOUZA E BRONZO, 2020). Assim, a compreensão do território e sua gestão tornam-se fundamentais para o planejamento e a implementação de políticas públicas efetivas, voltadas ao fortalecimento dos vínculos comunitários e à construção de uma sociedade mais inclusiva e participativa (SOUZA E BRONZO, 2020).
Em relação aos dados, observou-se que para os participantes da pesquisa a convivência em espaços públicos concretos e a participação nas atividades da comunidade contribuem para a formação dos vínculos comunitários (“são as conexões e contatos em uma comunidade tanto com os membros como com o serviço e ONGs”). Além disso, observou-se também que a valorização do território, o sentimento de pertencimento e a representação do controle social são elementos que impulsionam o engajamento e a união da comunidade em busca de uma sociedade mais justa e solidária.
Avançando em direção a discussões acerca dos temas identificados em relação às PNAS, como forma de síntese dos achados, esboçou-se um modelo (Figura 3) que visa articular essas dimensões do vínculo comunitário com as partes do Trabalho Social com Famílias, no âmbito do PAIF, indicados Caderno de Orientações Técnicas (BRASIL, 2012).
Figura 3 - Sumarização do modelo dos dados da pesquisa associado a hipóteses de articulação do Trabalho Social com Famílias no âmbito do PAIF
Fonte: próprios autores, 2023.
Conforme sumarizado na figura 3, as classes identificadas nas descrições apresentadas pelos participantes dessa pesquisa configuram-se nesse instante como marcadores iniciais que possivelmente potencializam e/ou promovem vínculos comunitários. Face a essa proposição incidem o escopo de atividades do Trabalho Social com Famílias no âmbito do PAIF, as quais sabe-se de maneira implícita, que exercem significativa função sobre os vínculos comunitários. Resta o desafio de planejar a operacionalização destes conceitos em práticas da Assistência Social, a fim de fortalecer o SUAS e a necessária ampliação do PAIF como um serviço e não mais como um programa.
Os vínculos comunitários desempenham um papel importante na construção da cidadania e estão intimamente relacionados aos objetivos da PNAS. Dentro da delimitação proposta, entende-se que esta pesquisa ofereceu contribuição à consolidação da concepção de vínculos comunitários, trazendo subsídios para a melhoria de ações neste âmbito por parte de psicólogos e assistentes sociais do SUAS.
Apesar dos indicadores iniciais proporcionados por este estudo, é importante reconhecer algumas limitações. A amostra por conveniência e o tamanho da amostra limitam a generalização dos achados, ainda que aponte importantes indicadores para pensar o conceito e sua possibilidade de operacionalização. Como os achados dessa pesquisa são exploratórios, a testagem do modelo proposto na Figura 3 deve ser ainda realizada, como forma de confirmação das interrelações conceituais propostas, bem como para ampliação de construtos. Além disso, a pesquisa explorou apenas algumas dimensões dos vínculos comunitários, deixando espaço para futuras investigações que abordem outras perspectivas mais ampliadas.
Por fim, recomenda-se a realização de novas pesquisas que explorem mais profundamente o tema dos vínculos comunitários. Algumas possibilidades incluem explorar os engendramentos possíveis das associações hipotetizadas na figura 3. Além da investigação das possíveis relações entre construtos de vínculos comunitários e trabalho social com famílias no âmbito do PAIF, entende-se que a proposição de delineamentos que permitam aprofundamento das questões apresentadas também possa contribuir para a compreensão do fenômeno dos vínculos comunitários.
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