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A expedição militar ao norte do Paraguai antes da Retirada da Laguna

The military expedition to the north of Paraguay before Laguna Withdrawal

La expedición militar al norte de Paraguay antes de la Retirada de la Laguna

Mário Maestri
Universidade de Passo Fundo, Brazil

A expedição militar ao norte do Paraguai antes da Retirada da Laguna

Revista História : Debates e Tendências (Online), vol. 18, núm. 2, pp. 293-312, 2018

Universidade de Passo Fundo, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História

Recepção: 02 Janeiro 2018

Aprovação: 24 Janeiro 2018

Resumo: A coluna militar enviada em inícios de 1865 através do interior do Império do Brasil para atacar o norte do Paraguai tinha sobretudo objetivos propagandísticos. Acreditava-se que a guerra terminaria muito antes que chegasse ao seu destino. Malcomandada e mal-organizada, ela deixaria rastro de mortos por doenças e deserções, antes de avançar, em junho de 1867, alguns quilômetros adentro do norte desabitado do território paraguaio, antes de empreender desastrada retirada. Pouco se destaca que essa última operação foi coordenada com o, igualmente paradoxal, assalto, a conquista e o abandono da vila de Corumbá, pelo apenas momeado presidente da província, o jovem Couto Magalhães.

Palavras-chave: Coluna expedicionária ao Mato Grosso, Guerra do Paraguai, Mato Grosso.

Abstract: The military column sent in early 1865 through the interior of the Brazilian Empire to attack the north of Paraguay had mainly propagandistic objectives. It was believed that the war would end long before it reached its destination. Badly commanded and poorly organized, she would leave a trail of death from illness and desertion, before advancing in June 1867, a few miles into the uninhabited north of the Paraguayan territory, before embarking on a disastrous retreat. Little is noted that this last operation was coordinated with the equally paradoxical assault, conquest and abandonment of the town of Corumbá, by the only momeado president of the province, young Couto Magalhães.

Keywords: Expeditionary column in Mato Grosso, Mato Grosso, War of Paraguay.

Resumen: La columna militar enviada a comienzos de 1865 a través del interior del Imperio de Brasil para atacar al norte de Paraguay tenía sobre todo objetivos propagandísticos. Se creía que la guerra terminaría mucho antes de que llegara a su destino. Mal dirigido y mal organizada, habría rastro de muertes por enfermedades y deserciones, antes de pasar, en 1867 Junio de unos pocos kilómetros en el territorio de Paraguay norte deshabitado, antes de emprender la desastrosa retirada. Poco se destaca que esta última operación fue coordinada con el igualmente paradójal asalto, conquista y abandono de la villa de Corumbá, por el sólo momeado presidente de la provincia, el joven Couto Magalhães.

Palabras clave: Columna expedicionaria al Mato Grosso, Guerra del Paraguay, Mato Grosso.

Em inícios de junho de 1867, o que restava da Coluna Expedicionária do Mato Grosso chegava a Nioac, concluindo ingloriamente o recuo que se seguira à invasão de alguns quilômetros do norte semi-desabitado do Paraguai. Durante a retirada trágica, sempre na defensiva, as tropas imperiais foram acossadas sem interrupção pelos paraguaios, até aquela vila, sofrendo grandes baixas. Esse episódio menor da guerra contra o Paraguai teve destaque historiográfico devido ao relato publicado, antes do fim do conflito, pelo jovem oficial de engenharia Afonso de Taunay, que se consagraria após a guerra como novelista. Essa narrativa de viés realista constitui a melhor peça literária produzida até hoje sobre aqueles sucessos. Os relatos e estudos sobre os fatos circunscrevem-se em geral ao arranque final da coluna, desde a vila de Nioac, em 25 de fevereiro de 1867, até a fazenda Laguna, tida erroneamente como propriedade de Solano López - tratava-se de Estancia de la Patria [estatal] - e, dali, em debandada crescente, até o ponto de partida, em inícios de junho do mesmo ano. Quase não se aborda o arrastado, desorganizado e imprevidente périplo terrestre da Coluna Expedicionária do Mato Grosso, enviada desde inícios de 1865, para atingir, apenas dois anos mais tarde, a fronteira do Paraguai! Uma demoradíssima marcha que deixou atrás de si rastro indelével de ineficiência, deserções e mortes (FRAGOSO, 1950 apud SOUZA, 1972, p. 133; CARDOZO, 2010, p. 280).

Pouco se tem discutido sobre os objetivos reais daquela iniciativa, espécie de expedição militar de faz de conta, que sinalizaria sobretudo para a opinião pública que o governo imperial não abandonara o Mato Grosso. Instituída em 25 de janeiro de 1865, imediatamente após a invasão do sul matogrossense, pelo Decreto 3.381 quedestacoupara o Mato Grosso, por “espaço de um ano”, três mil guardas nacionais paulistas.1 Porém, a Coluna Expedicionária constituiu-se com tropas fluminenses, paulistas, mineiras e goianas, que se incorporariam em diversas etapas da marcha. As tropas destinadas no papel àquela operação eram já insuficientes. A dificuldade em arregimentar combatentes para partirem para o Prata contribuiu para que as forças que compuseram a expedição fossem ainda menores. Em fins de 1866, ao serem informados da aproximação dos imperiais da fronteira do rio Apa, o comando paraguaio estimou as tropas invasoras em uns seis mil soldados, o mínimo para avançar aquela operação. Porém, a coluna apenas ultrapassou, de pouco, nos seus melhores momentos, os dois mil combatentes!

A fragilidade da Coluna Expedicionária pouco importaria, devido à sua função inicial possivelmente simbólica. Quando de sua constituição, ninguém acreditaria que ela, que devia reunir forças em Campinas, Uberaba, Coxim, vencesse a pé agrestes sertões goianos e mato-grossenses, chegasse ao sul do Mato Grosso, antes da conclusão de guerra, que se esperava que não duraria uns seis meses. Foi devido a essa expectativa que o tenente Alfredo Taunay aderiu à coluna, ao temer, ele e sua família, morte no fronte de batalha. Em suasMemórias, Taunay revelou que seguira a carreira militar, que logo abandonaria, apenas devido à pressão familiar, não muito abonada. Em inícios de 1865, o segundo-tenente Taunay esperava, receoso, que chegasse ao Rio de Janeiro o batalha de artilharia do Pará com o qual seguiria para o Paraguai. Sua incorporação na expedição ao Mato Grosso foi idéia de Catão Roxo, seu colega da Escola Militar, jáemboscadona coluna. Ele apontou a expedição como caminho da salvação! “Vamos viajar por todo o interior do Brasil e, com todas as demoras obrigadas, quando chegarmos à zona do [rio] Apa, a guerra com certeza estará mais que acabada” (TAUNAY, 1946, p. 69). EmMemórias, manuscrito deixado no IHGB para ser publicado apenas em 1943, Taunay lembra, sem pudor: “Voltei naquele dia muito animado para a casa e imediatamente falei nesta combinação a meu pai que, ato contínuo, foi a São Cristóvão pedir a intervenção do Imperador”, prontamente concedida (TAUNAY, 1946, p. 69). Nada como ter um pai amigo do rei!

Afonso de Taunay viu na expedição também meio de conhecer o interior agreste do país e servir-se dele como matéria para seus projetos literários, nos quais dera já alguns vacilantes passos. Sobretudo para os jovens deboa família, o sucesso nas Letras e Artes era caminho seguro para conquistar o beneplácito do Imperador e da Corte, garantindo-se uma carreira política e administrativa. Um projeto que se materializou em forma jamais sonhada pelo jovem. O seu indiscutível sucesso literário, político e administrativo deu-se embalado pelos relatos de sua experiência na coluna expedicionária, que não se restringiram à célebre narrativa daRetirada da Laguna, anotada pelo Imperador e publicada em francês e português sob a chancela do Estado imperial. Entretanto, em 1867, dois anos após a partida do litoral, com o exército paraguaio em plena defensiva, a coluna participou de ambiciosa e totalmente fracassada operação conjunta de recuperação de todo o sul do Mato Grosso.

Taunay parte para a guerra

EmMemórias, Taunay relata o embarque, em 31 de março de 1865, garbosamente fardado, de espada e revólver à cintura, no vapor Santa Maria que levava ao porto de Santos a Repartição de Saúde da Coluna, a Comissão de Engenheiros, da qual ele participara, e outros membros da expedição. Gastara os dias anteriores em despedidas e na procura do equipamento necessário para a expedição, nas melhores lojas da Corte. O bota-fora, em cais do Rio de Janeiro, com a presença de Pedro II, de seus dois genros, de outras autoridades e da família Taunay, realizou-se ao som de ternos trechos da Traviata, que arrancaram copiosas lágrimas ao jovem oficial, então com 22 anos. O Imperador escolhera o coronel Manuel Pedro Drago como comandante de expedição, devido a sua marcialidade e elegância, ao manobrar o Corpo de Polícia da Corte, diante do soberano (TAUNAY, 1946, p. 91-92; SOUZA, 1972, p. 47). Uma outra péssima decisão imperial.

A viagem de São Paulo até a vila de Miranda, no Mato Grosso, através das província de São Paulo, Minas Gerais e Goiás, foi registrada, “dia por dia”, no “Relatório geral da Comissão de Engenheiros”, que teve como principal redator Afonso de Taunay. O documento foi publicado como anexo ao Relatório do Ministro da Guerra, de 1867, e mais tarde, corrigido e anotado, na Revista do IHGB, de 1874, como publicação de Taunay (1874). Trata-se de relatório ao estilo da época e do redator. Sob a forma de diário, nele se anota a progressão das tropas, destacando-se apaisagem. A flora, a fauna, os acidentes geográficos, etc. são descritos em linguagem romântica, cientifista e pedante.Viés narrativo reforçado no texto corrigido e anotado da Revista do IHBG. Pouca atenção é dada à tropa, propriamente dita. São raras as informações sobre as condições de alimentação, saúde, alojamento e disposição para com a guerra dossubalternos, vistos não raro como chegados de planeta diverso do habitado pelos oficiais.

Na cidade de São Paulo, o primeiro núcleo da coluna formou-se com uns quinhentas praças do “corpo fixo” paranaense e da “cavalaria de linha” e do “corpo policial” paulistas. O 7º Batalhão de Voluntários que se agregaria à tropa foi enviado para o Prata, assinalando a secundarização da expedição. Na madrugada de 10 de abril, com dezenas de cargueiros, carroças e carretas e um grande número de mulheres de soldados e de oficiais, a tropa bisonha partiu, desconjuntada, para Campinas, onde chegou, cinco dias mais tarde. Na aglomeração paulista, a magra coluna acampou no “pitoresco” bairro [fazenda] de Santa Cruz. Os oficiais se aboletaram em confortáveis hotéis e hospedarias. A Coluna Expedicionária permaneceu longamente na cidade, importante centro cafeicultor, sob a escusa da espera da “repartição fiscal”, da “pagadoria”, do “contrato” de fornecimento e de transporte para a “grande bagagem” que seguia na cola das tropas (TAUNAY, 1874, p. 92; SOUZA, 1972, p. 48).

“[…] aqueles sessenta e seis dias” teriam sido um “dos mais alegres e divertidos períodos” da vida de Taunay, devido aos “jantares, partidas, piqueniques, festas, bailes” que não deixaram aos oficiais “momento de folga”. O mais combativo nessas batalhas sociais seria o coronel Drago, criticado nos jornais da Corte por terempacadana cidade paulista. Durante a “demora das forças desertaram 25 praças da companhia de cavalaria; 3 do corpo do Paraná, 67 do policial de São Paulo e 18 do de guarnição da mesma província” - anotou Taunay no “Relatório Geral”. O estado sanitário da tropa foi tido como “regular”, mesmo tendo falecido seis praças de bexigas! A varíola atacou sobretudo os membros do pequeno Corpo de Artilharia do Amazonas. Quando da partida de Campinas, desertaram mais 46 praças de “diferentes corpos”. Um total de 159 praças, no mínimo! Vivíamos o início da guerra e o proposto, por muitos autores, momentos de exaltação patriótica! A deserção acompanharia a expedição, do início ao fim. Em 20 de junho, às 10:00 horas, a coluna partiu de Campinas, com a cavalaria na vanguarda, seguida pelos “presos” e sua guardas. A tropa marchava a passo de cágado, avançando alguns dias não mais de seis quilômetros, “deixando desertores em quase todos os pousos”. A disposição de combater era escassa. Porém, a coluna seguia por estrada que tinha “à direita e à esquerda, mais ou menos próximas, casas, habitações e rancharias”, que forneciam alimentos variados e a baixo preço. Entretanto, tudo “era pretexto para demoras e adiamentos” (TAUNAY, 1874, p. 92-96; SOUZA, 1972, p. 49; TAUNAY, 1946, p. 128).

Deus é grande, o mato é maior!

Em 18 de julho de 1865, a coluna chegou a Uberava, vila com uns 2.500 moradores, onde foi engrossada por tropas da Brigada Mineira de Ouro Preto, 1.212 homens, que ali se encontravam, completando a junção das tropas. Esse contingente fora quase totalmente vacinado contra a bexiga. Da província do Amazonas, chegara também o núcleo do “corpo de artilharia”. Em Uberaba, houve deserções, em forma individual e em grupos, sobretudo de soldados mineiros, que levaram o “fardamento distribuído, utensílio de campanha, cantina, cinturões e armamento”. “A debandada” foi “completa, diremos até conscienciosa”, apoiada pelos oficiais mineiros, segundo Taunay. A populosa província de Minas Gerais se destacou pela resistência em fornecer tropas para a guerra, em bem sucedida resistência a participar no conflito (SOUZA, 1972, p. 55; TAUNAY, 1946, p. 132).2

Antes da partida, o comandante Drago comunicara ao governo que tomaria a estrada de Rio Claro, em busca do norte e de Cuiabá, temendo ataque paraguaio. Desobedecia às ordens de se dirigir para o sul do Mato Grosso, para desalojar os invasores, por considerar possivelmente não ter tropas suficientes para a ofensiva. No dia 7 de setembro, a coluna interrompeu a marcha, para celebrar a data magna nacional (SOUZA, 1972, p. 57; TAUNAY, 1946, p. 135). Dias mais tarde, no distante Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina, as tropas paraguaias entregavam-se sem resistir em Uruguaiana. A guerra prometia fim rápido, como esperado.

Em 22 de setembro de 1865, a coluna iniciou e concluiu em oito dias a travessia do rio Parnaíba, em parte devido à enorme bagagem que carregava. A tropa, diminuída para uns 1.600 homens, sobretudo devido às deserções, fazia-se acompanhar de 2.500 muares. “Transposto o Parnaíba com a habitual morosidade, seguimos viagem, indecisos ainda o comandante Drago sobre a direção de devia tomar” - anotava Taunay, 27 anos após os sucessos. O chefe da coluna vacilaria em seguir para Cuiabá, capital da província, com sete mil habitantes, ou para o “distrito de Miranda, ocupado ainda todo pelos paraguaios”. A última seria a “indicação expressa” do governo imperial (SOUZA, 1972, p. 58; TAUNAY, 1946, p. 138). A indecisão do comandante se explica. Se tomasse a direção de Miranda, depararia-se com as tropas paraguaias, que acreditava ali se encontrar, contando com escassa infantaria e ainda menor cavalaria, imprescindível para qualquer operação naquelas regiões.

Nas margens do rio Paraíba, a tropa recebeu reforços, elevando-se a 2.080 homens. A coluna marchara, inicialmente, para o norte, em busca de Cuiabá. Sob as injunções do governo, Drago teria corrigido a orientação, avançando para o oeste. Em 8 de outubro de 1865, já em Goiás, chegava-se à margem do rio dos Bois, que exigiu quatorze dias para ser superado! O material da artilharia, transportado por “contratador”, cruzou o rio apenas no dia 28! No dia 18 de outubro, enquanto se atravessava o rio, Drago recebeu ordem de retornar ao Rio de Janeiro e entregar o mando ao coronel José Antônio da Fonseca Galvão. Drago foi “exonerado […] de presidente e comandante de armas da província do Mato Grosso” e teria respondido à conselho de guerra (TAUNAY, 1946, p. 159; TAUNAY, 1874, p. 171; SOUZA, 1972, p. 58). No final do mês, as tropas paraguaias cruzavam derrotadas o grande rio Paraná de volta ao país.

De Goiás ao Mato Grosso

De 24 a 28 de outubro de 1865, a coluna não marchou, “à espera de que o fornecedor reunisse os carros de gêneros que haviam atrasado”. As interrupções devido ao retardo das carretas, carroças e cargueiros dos fornecedores foram constantes na expedição, em época em que o abastecimento das tropas e parte do transporte, até mesmo de armas e munição, eram entregues a particulares, pagos pelos serviços. Ainda por décadas, as forças armadas imperiais não conheceriam serviço de intendência militar. Taunay registrou, em 28 de setembro de 1865, no “Relatório” que, em Goiás, as “dificuldades para prover o sustento das praças começam a surgir imensas”, devido aos poucos recursos da região, situação agravada pela forte seca que sofrera. Trata-se de exagero nascido da fartura com que a tropa contara até aqueles momentos. Ele se refere sobretudo à falta de produtos específicos, como a farinha de mandioca, substituída pela de milho. “[…] o arroz e o feijão não são dados em tão abundantes porções”, como antes. “O gado” continuava, porém, a “afluir e por todos os pontos” sendo “encontrado com suma facilidade” (TAUNAY, 1874, p. 171-173).

Entretanto, à medida que a coluna se engolfava nos sertões de Goiás, seguindo por trilhas de gado e não por estradas, crescia a dificuldade dos contratantes de cumprirem os compromissos assumidos, dominando a carne bovina no abastecimento das tropas. A alimentação deficiente, as marchas penosas em solo arenoso, o afastamento da casa, a aproximação do inimigo, etc. aumentaram as deserções. O presidente da província de Goiás determinara a formação de “pontos de abastecimentos” ao longo da rota da coluna, gastando para tal “enormes somas”. Foram enviados mantimentos para a vila de Coxim, “ponto marcado” para acampamento da coluna “durante a estação das águas” (TAUNAY, 1874, p. 213-232; SCHNEIDER, 1875, p. 128).3

Em 17 de dezembro de 1865, sob o novo comando, a Coluna Expedicionário do Mato Grosso alcançou a vila de Coxim, no sertão do Mato Grosso, juntando-se às forças enviadas de Goiás, ali havia há seis meses - um esquadrão de cavalaria e um batalhão de linha, “completado por duas companhias de praças voluntárias”. Fora até ali que, em 24 de abril de 1865, chegaram Resquín e trezentas praças, após superarem regiões insalubres que motivaram baixas de meia centena de homens, por doenças e ferimentos. Na expedição, a tropa paraguaia perdera seus cavalos, pois a região vivia sob o flagelo da “peste de cadeiras”. A coluna imperial viu seus cavalos e muares morrerem às centenas, dificultando igualmente o abastecimento de alimentos (TAUNAY, 1874, p. 251; SOUZA, 1972, p. 66).

Nesse momento, a Coluna Expedicionária do Mato Grosso era conformada por pouco mais de dois mil homens aos quais se agregavam mais um milhar de carreteiros, comerciantes, esposas de soldados e oficiais, vivandeiras, etc. Os médicos eram nove e os enfermeiros, 28. O acampamento, à margem direita do rio Taquari, tinha uma extensão de quase seis quilômetros! As deserções seguiram numerosas. A tropa aquartelou em Coxim, região semi-despovoada, de poucas fazendas, sobretudo após a invasão paraguaia, à espera de instruções do governo central e do fim da estação das chuvas, que se alongava de setembro a maio. A coluna permaneceu em Coxim por 114 dias, sempre acossada pelas enfermidades! Inicialmente, dominou a escassez de alimentos e de gêneros de primeira necessidade, vendidos a “preços exorbitantes” pelos comerciantes. O que agravava as enfermidades. Desde março de 1866, o abastecimento tornou-se mais sistemático, devido às “providências das províncias vizinhas”. Em Coxim, a tropa de 2.003 combatentes passou a ser designada garbosamente como “Forças em Operações ao Sul da Província do Mato Grosso” (TAUNAY, 1874, p. 257-259).

Sem destino

Após um ano de marcha, centenas de deserções e mortes, a coluna expedicionária chegara ao seu destino, sem função militar a cumprir, a não ser o eventual reforço das tropas mato-grossenses ou a ocupação de regiões desocupadas pelos paraguaios. O abandono imperial do forte de Coimbra, de Corumbá e dos depósitos de armamento do sul do Mato Grosso dificultava operações militares maiores na região, que não mobilizasse a fundo as tropas do norte da província. Iniciativa que fora descartada pelas autoridades e classes dominantes do setentrião mato-grossense, com poucos interesses no meridião da província. A conquista do forte de Coimbra permitia que fossem enviados, ao menos em teoria, reforços desde Asunción, através do rio Paraguai. Porém, mais e mais, o sul do Mato Grosso era abandonado pelas tropas paraguaias, transferidas para combater a invasão do país que se anunciava.

Em 25 de abril de 1866, após mais de quatro meses acampada em Coxim e um mês de sol e sem chuvas, a coluna expedicionária tomou a direção da vila de Miranda, no sul, a uns 260 quilômetros em linha reta. Em 8 de maio, após vencer 135 quilômetros de marcha, a tropa chegou às margens do rio Negro, onde acampou. Doravante, para alcançar a Miranda, havia que ultrapassar longas extensões de terrenos alagados durante o tempo de chuvas. Esperava-se que, com o “final das chuvas e a entrada do tempo seco” e a consequente “descida das águas”, aquele trajeto fosse vencido facilmente. Previsão que falhou, com a inesperada retomada das chuvas, muito logo “torrenciais” (TAUNAY, 1874, p. 257-259).

O longo acampamento, nas margens do rio Negro, na “boca” dos terrenos empantanados comprometeu duramente a tropa, que alcançava agora aos 2.700 homens, devido à chegada de voluntários goianos e soldados da cavalaria mato-grossense. Abastecida em forma insuficiente e golpeada por enfermidades, com destaque para a malária, prosseguiram numerosas as deserções. Em 13 de junho, morreu o segundo comandante da expedição, o tenente-coronel João Antônio da Fonseca Galvão. Em 24 de junho de 1866, o novo comandante, o tenente-coronel Joaquim Mendes Guimarães, transferiu o acampamento, que se transformara em um charco, para as margens do rio Taboco, região rica em gado e mais salubre, onde a coluna chegou dez dias mais tarde, depois de superar mais de 160 quilômetros de capinzais, brejos, pântanos. Na marcha, teriam morrido uns cem soldados, mulheres, crianças.

Em 3 de julho de 1866, a coluna expedicionária chegou ao rio Taboco, “Boca do Pantanal”, onde se restabeleceu a seguir o abastecimento em gêneros alimentícios, chegando “todos os dias grandes carregamentos e récovas [tropas], que em breve fizeram reinar tal e qual abundância. Preços moderados imperaram no mercado que começou a ficar bem provido e onde apareceram gêneros completamente novos” para aquelas perdidas paragens. Novos fardamentos e apetrechamento foram também distribuídos para a tropa, que passou a receber “rações completas”. No acampamento do rio Taboco, oficiais e soldados começaram a morrer, acometidos de “moléstia terrível e desconhecida”. As primeiras vítimas do mal teriam ocorrido no acampamento às margens do rio Negro. Tratava-se do “beribéri” “nervoso ou seco”, enfermidade então desconhecida, causada em geral pela carência de vitamina B1 [avitaminose], devido à subnutrição ou alimentação desequilibrada. Entre os principais sintomas da enfermidade estão a fraqueza muscular e a insensibilidade dos pés e mãos, daí a denominação de “perneira” que a enfermidade recebeu entre a tropa. Os médicos militares desconheciam a enfermidade. Taunay propõe que em torno de quatrocentos combatentes e acompanhantes morreram daquela e possivelmente de outras enfermidades no acampamento (TAUNAY, 1874, p. 267-270; SOUZA, 1972, p. 70-76).

Mesmo com a guerra prosseguido por tempo inesperado, materializava-se diante da Coluna Expedicionária do Mato Grosso a possibilidade de que ela avançasse,conquistando terreno, sem jamais combater: “[…] soube-se que a retirada dos inimigos dos pontos do distrito [de Miranda], em que eles tinham conservado destacamentos por mais de ano e meio”. Em fins de junho de 1866, o alto comando paraguaio transferira de volta ao país a maior parte da guarnição da vila de Corumbá. Em agosto, ela abandonara a vila de Nioac. Retoricamente, Taunay propôs que aquela retirada roubava aos “nossos soldados a ocasião de demonstrarem nos combates a coragem” que tinham “patenteado” ao lutar contra a “peste e a fome”. “A pesar disto” - ou precisamente devido a isso - o “comandante das forças” decidiu “seguir para Miranda”. Em 5 de setembro de 1866, sete meses após a chegada à vila de Coxim, com a região despejada de paraguaios, a coluna abandonou o acampamento da margem direita do Taboco, dirigindo-se para o rio Aquidauana, onde chegou no dia 7. A espera dos carros de mantimento atrasou a travessia, que se alongou até 13 de setembro. Na manhã seguinte, ao retomarem a marcha, a coluna deparou-se com um “dos mais importantes vestígios da invasão paraguaia” na região. “[…] uma paliçada de grossos paus de aroeira com canhoneiras nos flancos”, levantada para enfrentar os “ataques insidiosos dos índios”. A fortificação dispunha de um “mangrulho” [mirador] e “algumas casas de palha e ranchos”. Tudo fora queimado quando da retirada paraguaia (TAUNAY, 1874, p. 270-274).

No dia 17 de setembro, a tropa expedicionária chegava à vila de Miranda, também abandonada pelos paraguaios, acampando na praça principal, enquanto as “repartições” instalaram-se nas “ruínas das casas ainda em pé”. “A vila representava-nos - propôs Taunay - o mais assinalado padrão da ocupação paraguaia. O bonito quartel em parte destruído, a [igreja] matriz desrespeitada com as paredes derrubadas, as casas quase todas aniquiladas pelo incêndio que, por muitos dias, lavrou no povoado […]”. Miranda, localizada em terreno baixo, não tinha importância militar e era de todo insalubre, devido aos alagamentos que conhecia na época das águas. Em 22 de setembro de 1866, cinco dias após a chegada da coluna à vila de Miranda, no teatro de guerra no Paraguai, as tropas aliancistas, que esperavam vitória definitiva, conheceram pesadíssimas perdas quando do ataque das defesas de Curupayty, que motivou longos meses de demora para que fosse retomada a ofensiva (THOMPSON, 1969, p. 159-163). As preocupações do alto comando imperial e seu esforço de recrutamento centraram-se ainda mais na restauração das tropasempacadasdiante de Curupayty e Humaitá. As “Forças em Operações ao Sul da Província do Mato Grosso” passaram, então, mais 116 dias,acampadas na insalubre vila de Miranda. Em verdade, não se sabia o que fazer com elas (SOUZA, 1972, p. 73). Em novembro de 1866, o comando da magra guarnição paraguaia de Corumbá informou Asunción que recebera notícias da Bolívia que cinco mil imperiais marchariam desde a vila de Coxim para atacar o sul do Mato Grosso e Corumbá, o que era falso (CARDOZO, 2010, p. 116).

Deixando o comando

Em 31 de dezembro de 1866, o coronel José Joaquim de Carvalho partiu doente para Cuiabá, sem esperar a chegada, no dia seguinte, 1º de janeiro de 1867, do coronel Carlos de Morais Camisão que, por ordem do presidente da Província do Mato Grosso, se apresentava para assumir o comando. Taunay descreve Camisão como homem de “quarenta e sete anos […], de estatura baixa, de aspecto robusto, feições regulares, tez muito morena, olhos negros e vivos”, com uma “testa espaçosa” e “bonito crânio completamente despido”, ou seja, totalmente calvo. Já no dia 11 de janeiro de 1866, o novo comandante ordenou marcha para a vila de Nioac, em regiões mais elevadas, mais salubres, mas mais próxima das tropas paraguaias. A marcha por uns 200 quilômetros deu-se em “estrada” favorável e região sadia, de água “excelente” e “pastos verdejantes”, com bois puxando a artilharia e a tralha da coluna. Doentes foram “transportados em redes, outros em cangalhas [padiola]”. Dois anos após a organização da coluna expedicionária, sem jamais ter lutado, a coluna se reduzia a pouco mais de dois mil homens, apesar dos reforços recebidos (TAUNAY, 1952, p. 95)

Em 24 de janeiro de 1867, a coluna entrou na vila de Nioac, à margem do rio homônimo, abandonada em 2 de agosto do ano anterior pelos paraguaios, onde se demorou por dois meses. A vila tinha um quartel, umas trinta casas telhadas e uns cem casebres. As moradias e construções haviam sido incendiadas, escapando apenas da devastação duas “casas com uma igrejinha de aspecto pitoresco”. Nas duas casinhas, estabeleceu-se o hospital; na igreja, depositou-se a farta pólvora e munições. Próximo da povoação, encontrava-se espécie de povoado formado de “muitas choupanas”, “lugar em que os paraguaios haviam reunido as famílias brasileiras prisioneiras”, antes de enviá-las ao Paraguai. Na vila, com o fornecimento regular de alimentos e em região salubres, interrompeu-se a epidemia de “beribéri” e de febres palustres. Então, desfalcado, o serviço médico possuía apenas dois médicos (TAUNAY, 1952, p. 27-30).

A notícia do recuo dos paraguaios e a designação de Carlos de Morais Camisão como comandante teriam determinado o triste futuro da coluna. Em 2 de janeiro de 1865, Camisão seguira o coronel Carlos Augusto de Oliveira e o tenente-coronel Hermenegildo Porto Carrero na entrega de Corumbá sem resistência. Na época, circulava no mínimo uma canção [soneto] impressa sobre aquele feito de armas ignominioso, que citava seu nome. “Existia” também “nos arquivos do corpo [expedicionário] um ofício do ministro [da guerra] Ferraz, recomendando que marchasse sobre o Apa, caso as circunstâncias o permitissem.” A realização daquela proposta e, talvez, algo mais, seria um “feito brilhante” que chamaria a “atenção da Pátria” para ele e os oficiais da coluna, após as longas e inativas pausas da tropa. Seria a remissão da nódoa que Camisão carregava pela deserção em Corumbá (TAYNAY, 1952, p. 29-30). Depõe em favor de Camisão ter tomado todas as decisões fundamentais em acordo com seus oficiais maiores.

É nesse momento que entra na história da coluna José Francisco Lopes, empurrado ao pináculo da historiografia nacional por Taunay, interessado em introduzir em sua narrativa protagonista com os atributos da região - “sertanejo brasileiro” -, na forma de se comportar, vestir, pensar, viver, como exigia a literatura romântica da época. Ao citá-lo, o narrador aproxima-o ao personagem “Olho de Falcão”, o homem da fronteira que protagonizaO último dos moicanos, do ficcionista estadunidense James Fenimore Cooper (1789-1851). José Francisco Lopes era um protagonista que se acomoda ainda mais ao desenho empreendido pelo Taunay por ser, ao mesmo tempo, um rústico desbravador da região e um proprietário de terras e de cativos. Sobre oguia Lopes, Taunay propõe: “Sóbrio em extremo, viajava dias inteiros sem beber, levando na garupa um saquinho de farinha de mandioca preso à parte posterior da pele macia que punha em cima da sela; nunca largava um machado de tirar palmitos” (TAUNAY, 1952, p. 31). José Lopes era mineiro, homem de destaque na região, sendo posseiro de grande fazenda pastoril nas margens do rio Miranda. Tinha interesse no domínio pleno do Império sobre os território em disputa, o que lhe abriria caminho para a legitimação de sua posse.

Senhores da terra

Em 1836, Gabriel Francisco Lopes, irmão mais velho de José Francisco, casara-se comSenhorinhaMaria da Conceição Barbosa, mineira, nascida em 1815. Em 1846, Gabriel organizou uma posse - a fazendaMonjolinho- nas margens do rio Apa, no coração do território em disputa entre o Paraguai e o Império. Em setembro de 1848, Gabriel foi justiçado por dois seus cativos, a facadas. Um outubro do mesmo ano, sua viúva foi presa por patrulha paraguaia. Com seus três filhos, dois cativos e duas famílias de agregados, foi levada ao Paraguai, com algumas dezenas de outros brasileiros da região. O governo paraguaio exigia o pagamento pela ocupação das terras. Os posseiros brasileiros permaneceram por quase um ano no Paraguai, sendo liberados devido a gestões diplomáticas. Após voltar para o Brasil,Sinhorinhainstalou-se com os filhos na fazendaJardim, desbravada por seu pai, às margens do rio Miranda, em região mais segura. Lá se encontrava vivendo um seu cunhado, José Francisco, reputado como viúvo, com três filhos, que passara sete anos no Paraguai. Ele e os filhos falariam guarani paraguaio. Em fevereiro de 1850,Senhorinha, analfabeta, então com 35 anos, teria se casado com o cunhado - ou regularizado a convivência. Ela teria tido seis filhos do segundo casamento (TAUNAY, 1952, p. 59; MEDEIROS, 2007, p. 56-72).

Os Lopes, os Barbosas, etc. constituíam parte de população de proprietários radicada na fronteira e além dela, à busca de terra. O Império contava com esse tipo deinfiltraçãopara propor direitos territoriais baseados nousis possidentis. Tratava-se de comunidade que sofria, também, a atração do mundo paraguaio devido à proximidade, devido à navegação do rio Paraguai, de Asunción. Em inícios de 1865, quando da invasão do sul do Mato Grosso,Senhorinha, com seus filhos, cativos e agregados, ao igual que outros posseiros, foram levados, em carretas, a cavalos e a pé, primeiro para concentração próxima da vila de Nioac e, a seguir, para a região da vila Horqueta, no Paraguai, a uns quarenta e cinco quilômetros da cidade de Concepción, onde receberam terras, sob a condição de pagar 1/5 da produção como impostos. Seu marido, José Fernandes, partira levando grande boiada para ser vendida na vila de Miranda. Possivelmente em fins de 1869 inícios do ano seguinte, com a libertação dos brasileiros retidos no ParaguaiSenhorinharetornou para a semi-destruída fazendaJardim, com os três filhos menores e dois cativos que a haviam acompanhado no exílio. Foi indenizada pelo governo pelas cabeças de gado cedidas pelo marido à coluna. José Francisco Lopes foi nomeado coronel honorário postumamente.Senhorinhamorreu em 16 de janeiro de 1913, aos 98 anos de idade, em Bella Vista, morava, rodeada de parentes, também latifundiários (TAUNAY, 1952, p. 105-136). A vida romantizada da latifundiária e senhora de trabalhadores escravizados assumiustatusde narrativa paradigmática da mulher desbravadora primeiro mato-grossense, a seguir, sul-matogrossense.

No Paraguai, a família Lopes teria se instalado nas terras designadas, com cativos e agregados, assim como os outros mato-grossenses levados para Horqueta. Eles não teriam conhecido maiores problemas, ao menos até 1867. Em fins de março daquele ano, ao saberem da chegada à ex-colônia de Miranda da coluna imperial, alguns deslocados do sexo masculino, entre eles um filho e um genro de Lopes-Sinhorinha, fugiram de volta para o Mato Grosso, temendo serem recrutados para o exército paraguaio. Já no Brasil, foram confundidos com paraguaios, por estarem falando, entre eles, emespanholou, talvez, em guarani paraguaio. Os deslocados relataram a Camisão que defendiam a fronteira paraguaia alguns poucos soldados, entrincheirados em estacada de madeira, e que os paraguaios estavam desanimados com o curso da guerra, mas decididos a continuar a resistência (TAUNAY, 1952, p. 47).

Taunay propõe que José Francisco Lopes apoiara, incentivara e incorporara-se à expedição com o objetivo de “reunir-se à família e vingar as suas afrontas”. É pouco provável que Camisão tivesse a intenção, com alimentação e munição para um mês, c de chegar à vila de Horqueta, a uns cento e cinquenta quilômetros da Bella Vista, na fronteira do Apa, e a mais de trezentos, da vila de Nioac. Aquela vila encontrava-se nas imediações da cidade de Concepción, ligada à capital paraguaia por via fluvial. Porém, ao ultrapassar o rio Apa, Camisão escreveu, em 23 de abril de 1867, ao jovem Couto de Magalhães, que assumira, em 2 de fevereiro de 1867, a presidência da província do Mato Grosso, sobre seu desejo de alcançar a vila de Concepción para colocar seus canhões sobre as barrancas do rio Paraguai (TAUNAY, 1952, p. 34; SOUZA, 1972, p. 76). No contexto da fraca guarnição paraguaia, a coluna imperial passava a articular as ações associada à presidência daquela província, que organizava expedição para recuperar Corumbá e Coimbra.

A coluna avança

Em 25 de fevereiro de 1867, Camisão partiu à frente da coluna para expedição de um mês, deixando em Nioac parte das munições, as mulheres e crianças da tropa. Confiaria na retirada do inimigo da região de Miranda e na frágil defesa da fronteira paraguaia do Apa. O abastecimento de gado seria feito por José Francisco López. Em marcha, a tropa demora-se dois dias nas imediações da colônia militar dos Dourados, onde o tenente Antônio João Ribeiro e quinze praças haviam defrontado as tropas paraguaias, em 29 de dezembro de 1864. No dia 3 de março de 1867, acampada próximo ao rio Feio, a coluna recebeu mais 250 bovinos trazidos por Lopes de sua fazenda. No dia 4, chegava às ruínas da colônia militar de Miranda, às margens do rio homônimo (TAUNAY, 1952, p. 35-39). As colônias militares dos Dourados e Miranda ficavam em território em litígio, a uns duzentos quilômetros do rio Apa, fronteira reconhecida do território paraguaio. As colônias haviam sido fundadas pelo Império após ter acordado com o Paraguai o congelamento da ocupação da região. Muito logo, impôs-se à coluna imperial a decisão de prosseguir ou recuar na expedição encetada, que não tinha alvo fixo e não se dispunha a estabelecer acampamento definitivo na região.

Circulando um “piquete de cavalaria paraguaia” pelas proximidades, o comando da coluna decidiu atear fogo nos capinzais vizinhos à colônia, a fim de atraí-lo para emboscada. A idéia estapafúrdia teria posto de sobreaviso a guarnição do forte militar paraguaio de Bella Vista, que comunicou a chegada das tropas imperiais a Asunción, perdendo, assim, as tropas imperiais, a vantagem da surpresa. Neste ínterim, Lopes trouxera de sua fazenda outras duzentas cabeças de gado que logo se esgotaram. Da vila de Nioac chegou a informação de que os fornecedores negavam-se a “prover dai em diante o abastecimento de gado” (TAUNAY, 1952, p. 439-440).

Em 23 de março de 1867, Camisão convocou a Comissão de Engenheiros para que se pronunciasse sobre a oportunidade de prosseguir a marcha, comprometida pela falta de alimentos, escassez de munição e ausência de cavalaria. A pergunta era: devia-se avançar ou recuar para a vila de Nioac? A convocação parece sugerir a vontade de Camisão de voltar sobre seus passos, decisão difícil, devido à pecha que pesava sobre ele. Dois membros da comissão votaram a favor da marcha, lembrando que, em última instância, se sucumbiria “utilmente e com gloria” deixando claro à nação e ao inimigo que a expedição era “composta de generosos filhos do Brasil”. Três outros, mais realista e menos patrioteiros, apoiaram o retorno, destacando sobretudo a falta de alimentos. No momento em que o chefe da Comissão de Engenheiros encerrava a discussão propondo a volta a Nioac, Lopes chegou trazendo uma ponta de gado de sua fazenda, levando a Comissão de Engenheiros a aprovar por unanimidade a marcha para a fronteira. Fortaleceu o sentimento de normalidade e abundância a “contínua afluência de carretas […], com toda a sorte de fazendas, outros objectos de luxo que essas paragens desertas jamais tinham certamente visto”. E, com os comerciantes, muitas mulheres transferiram-se da vila de Nioac para a colônia militar de Miranda, agregando novamente seupesoà coluna (TAUNAY, 1952, p. 45-46).

Bandeiras desfraldadas

Em 10 de abril de 1867, após longa estada na antiga colônia militar, a coluna pôs-se em marcha, com bandeiras desfraldadas e musica à frente, com forte companhia feminina e, sobretudo, praticamente sem cavalaria. Avançar sem cavalaria era enorme temeridade. Seguia a tropa um grupo de guerreiros terenas e guaicurus. Nesse mesmo dia, na Argentina, era derrotada importante força federalista sublevada e, dois dias depois, o alto comando paraguaio recebia informação completa sobre a possível invasão da fronteira pela coluna imperial. Algumas tropas foram enviadas, desde Paso-Pacú, inicialmente por barco, comandadas pelo sargento-major Blas Montiel, com instrução de apenas fustigar o destacamento imperial. Elas não levavam consigo artilharia, para não atrasar a marcha. Em todo, as tropas paraguaias possuíam uns dois mil soldados, entre cavalarianos e infantes (TAUNAY, 1952, p. 47; CARDOZO, 2010, p. 409).

Em 11 de abril de 1867, o comando da coluna imperial recebeu informação intrigante: “Uma mulher que chegava de Nioac, veio dizer-nos - relata Taunay - que encontrara à margem de uma torrente vizinha um grupo de cavaleiros, falando entre si o espanhol, e que depois de haver-lhe dirigido algumas perguntas, tinham-na deixado passar tranquilamente”. Os dez cavaleiros eram, como vimos, brasileiros fugidos do Paraguai, em geral de “famílias estimadas e muito conhecidas de proprietários dos arredores de Nioac, os Barbosas, os Ferreiras, os Lopes”. Haviam resolvido fugir, em “bons cavalos paraguaios”, ao saber que havia tropas imperiais nas imediações e correndo o boato de que “tendo falta de gente para o exercito”, o governo de Asunción “tencionava recrutar todos os estrangeiros e até os prisioneiros”. A ordem era para evacuar os brasileiros da vila de Concepción e Horqueta, devido à aproximação da coluna imperial. Não seriam, portanto, muito vigiados (TAUNAY, 1952, p. 47-48).

A informação dada pelos apenas-chegados foi subutilizada. Eles referiram-se à frágil defesa da fronteira, pouco mais de cem homens no forte de Bella Vista, constituído por paliçada de madeira ordinária, e maior concentração de paraguaios na região, sob o comando do major Martín Urbieta. Confirmaram que a chegada dos imperiais fora reportada a Asunción e que de lá viriam reforços. Propuseram que Asunción dera a ordem de que, antes da chegada dos reforços, as tropas fossem se “retraindo ante o ataque e destruindo quanto não pudessem transportar”. O que seria feito, mesmo após chegarem os poucos reforços prometidos, em 6 de maio de 1867, sob o comando do sargento-major Blas Montiel Caballero. Os deslocados declararam que, como também vimos, era “geral o desanimo no interior da Republica” e “que de dia para dia acreditava-se menos no bom resultado da guerra”. O que registra a informação correta sobre a situação do conflito. Porém, lembravam que “não era menor a resolução de se defender até o ultimo extremo” o país e que o “respeito pelo presidente […] era sempre o mesmo”. De certa forma, nesse momento, forjava-se a identificação de Solano López com a resistência aos invasores (CARDOZO, 2010, p. 285).

Em direção do Paraguai

Em 14 de abril de 1867, a tropa retomou entusiasmada a marcha em direção ao rio Apa, sem cavalaria e com bois puxando a artilharia. O rio Miranda foi vencido, sem dificuldades, fazendo-se uma ponte de apoio, sob as ordens dos engenheiros. Seguia-se por estrada batida em campo aberto, defendidos pela poderosa artilharia com que contavam. A tropa acampou na antiga fazenda, havia muito abandonada, de Gabriel Francisco Lopes, irmão de José Francisco e primeiro marido deSenhorinha, a qual fora presa pelos paraguaios, em 1848. Ao longe, avistava-se a floresta ciliar do rio Apa, fronteira com o Paraguai (TAUNAY, 1952, p. 61-63). No dia 19 de abril, pela manhã, os vigias do acampamento anunciaram a proximidade da cavalaria paraguaia em matagal próximo, que logo se retirou. Após o falso alarme, a coluna retomou a marcha. Mais tarde, disparou-se sobre cavaleiros paraguaios distantes, que haviam destruído a ponte sobre o rio Taquarussú. Um cavaleiro ferido caiu do cavalo e salvou-se na garupa de companheiro. Segundo Taunay, Camisão deixou passar oportunidade de atacar o inimigo, que se deixava repousar acintosamente ao lado de seus cavalos, por ser Sexta-Feira Santa. Proposta pouco crível, já que alguns tiros de artilharia dispersaram a tropa que se mofava de coluna sem cavalaria. Ao chegar ao rio Apa, Camisão bebeu água do afluente, pedindo que se anotasse a hora em que o fizera.

No dia 20 de abril, a coluna avançou pela margem direita do Apa, em direção da fazenda de Machorras, “denominada” de propriedade do “marechal López”, levantada, segundo Taunay, em “terreno usurpado, cultivado […] além da fronteira”. Distanciando-se a vanguarda imperial da coluna, ela entrou em combate à entrada da fazenda com linha paraguaia, que defendia a posição, enquanto dava ao fogo às moradias e instalações da sede da estância. A seguir, os paraguaios limitaram-se a recuar, levando o gado vacum e cavalar, segundo parece, considerável. As praças e os auxiliares terenas e guaicurus se dedicaram ao saque sistemático das plantações abundantes, da sede, das moradias e das dependências da fazenda. “Esse saque aliás era legitimo, e sem injustiça não se poderia recusar esse gozo aos soldados, que haviam-no [sic] comprado e pago adiantado com meses de privação e de fome”. Outras vezes Taunay justificou o saque de bens civis por imperiais. A seguir, lançou-se fogo ao que restava (TAUNAY, 1952, p. 55-59).

Ataque a Corumbá

Imediatamente após receber a notícia da invasão da coluna do Paraguai, pelo forte de Bella Vista, Vieira Couto de Magalhães, enviou em 15 de maio de 1867, batalhão provisório de infantaria, apenas organizado, sob o comando do tenente Antônio Maria Coelho, para recuperar Corumbá. Logo em seguida, partiram com o mesmo destino três batalhões da guarda nacional matogrossense. Esperava-se que, muito logo, Humaitá estivesse em mãos aliancistas, o que abriria caminho ao domínio pelo Império de todo o rio Paraguai. A expedição contava com flotilha de cinco pequenos barcos, com quatorze canhões. A coluna que cruzava o rio Apa, comandada por Camisão, e as tropas que baixavam pelo rio Paraguai, desde Cuiabá, sob o comando de Couto de Magalhães, superavam em forma cabal as tropas paraguaias no sul da província ou eventualmente envidas de Asunción. A guarnição paraguaia de Corumbá contava com 295 homens em terra e 165 embarcados noSalto del Guairá,AnhambaíeRío Apa, que formavam a Estación Naval del Alto Paraguay. Na ocasião do ataque a Corumbá, oSalto del Guairáhavia partido à procura de gado (CARDOZO, 2010, p. 314).

Os dois mil soldados e dezessete canhões de Couto de Magalhães reuniram-se no posto naval de São Félix de Dourados, na margem do rio Paraguai, a uns treze quilômetros de Corumbá, sob o comando geral do presidente da província. O plano geral era tomar Corumbá, assaltar o forte de Coimbra, fazer junção na vila de Miranda com a tropa de Camisão, expulsando os paraguaios do sul da província. Em 13 de junho de 1867, às 15h45min, uma vanguarda de uns mil homens, comandada por Antônio Maria Coelho, desembarcou pouco acima de Corumbá, atacando a vila pelo sudoeste, de surpresa. Parte da pequena guarnição paraguaia estava fora da vila, desarmada, fazendo lenha. Muitos soldados estavam no hospital, enfermos. Duzentos imperiais superaram facilmente as trincheiras da vila e atacaram no porto os vaporesApa e Anhambaí, que desatracaram. Em uma hora, os pouco mais de duzentos paraguaios estavam mortos, prisioneiros ou fugiam (SOUZA, 1972, p. 107).

Devido à exígua guarnição de Corumbá, os paraguaios haviam aberto trincheiras de raio menor, à espera do assalto imperial. Elas de pouco serviriam. Os paraguaios mortos no combate teriam sido mais de 150, todos jogados ao rio Paraguai. O que restou da guarnição embarcou-se noApaeAnhambaí, que tirotearam com os canhões que defendiam Corumbá, conquistados pelos assaltantes. Na rapinagem da vila, as tropas imperiais não pouparam os negócios de patrícios e estrangeiros, em parte respeitados pelos invasores. EmNotícia sobre a província de Mato Grosso, de 1869, Joaquim Ferreira Moutinho registrou: “O saque e o extermínio foi geral”, o que não procedia, no referente ao massacre de toda a guarnição. Antônio Maria Coelho foi dignificado como barão doAnhambaí, pela vitória quase sem consequências. Em Asunción, como era já tradicional,El Semanarioapresentou a grave perda de Corumbá como devida à traição de seu comandante e oficial imediato, designados como “infames”. Ainda que o tenente-coronel Hermógenes Cabral e o sargento-major José Fleitas tenham demonstrado indiscutivelmente incompetência, ao não prepararem defesa para ataque esperado, ambos preferiram morrer combatendo. A seguir, as acusações de traição se centraram no tenente-coronel Hermógenes e no capelão de Corumbá, também morto em combate. A notícia da vitória imperial foi um forte golpe, já que fechava as portas da única via de contato do Paraguai com o exterior, e punha fim ao pouco que restava do que se ganhara no início da guerra. Ela abria a possibilidade de assalto imperial desde o norte. Piorando o que já era péssimo, o capitão Romualdo Núñez, após assumir o comando máximo das tropas restante no Alto Paraguai, determinou o abandono total da região, inclusive do forte de Coimbra, desguarnecido entre 23 e 24 de junho de 1867 por seus pouco mais de cinquenta defensores. Como os imperiais recuavam para Cuiabá, em 8 de julho, sem seguirem na ofensiva, o forte foi reocupado pelos paraguaios, o mesmo ocorrente quanto à Corumbá, apesar da proximidade dos imperiais (MOUTINHO, 1869, p. 99; CARDOZO, 2010, p. 324-325).

No dia 23 de junho, com Corumbá libertada, chegaram Couto de Magalhães e o restante das tropas. Encontrando na vila a comunicação oficial do desastre da Coluna Expedicionária do Mato Grosso, perseguida pelos paraguaios até o dia 8 daquele mês, e sobre a eventual chegada de tropas desde Asunción, o presidente da província decidiu abandonar a proposta de ataque ao forte de Coimbra e retornar a Cuiabá! A desculpa registrada pela história foi de que ele temeu infectar suas tropas com a epidemia de varíola que atingia então Corumbá. Em ofício aobriosoHermenegildo Porto Carrero, nos panos de Comandante de Armas da Província do Mato Grosso, o próprio tenente-coronel Antônio Maria Coelho relatou, em 13 de outubro de 1867, a reunião que Couto Magalhães chamou, às quatro horas da manhã, após aportar com toda a flotilha a Corumbá.

O jovem Couto Magalhães conclamou ao abandono imediato da aglomeração conquistada, por quatro razões: 1) os paraguaios podiam tomar o controle da jusante do rio Paraguai, o único meio de comunicação da tropa expedicionária com Cuiabá; 2) como a tropa estava sem vacinação, ao resistirem nas trincheiras ao cerco paraguaio, seriam golpeados pela “fome” e “peste”; 3) o objetivo da expedição, “vingar a afronta” feita pelo Paraguai e libertar “os nossos compatriotas”, “estava plenamente preenchido”; 4) ofício encontrado do vice-presidente do Paraguai relatava que as “praças brasileiras do Apa” - Coluna Expedicionária - “tinham-se retirado”, não se podendo, portanto, contar com “nenhum socorro”. Os oficiais comandantes juraram estarem dispostos a morrer pela pátria e apoiaram os “motivos ponderados” por Couto Magalhães. Então, repartiram-se as ordens para preparar tudo sem detença e recuar sem tardança, diante das fantasmagóricas tropas paraguaias.4

O comando paraguaio mandou menos de cem homens para apoiarem a defesa do Mato Grosso. Tropa certamente incapaz de fazer frente à força imperial, sobretudo se tivesse retomado o forte de Coimbra. O presidente da província partiu em vapor às oito da noite para Cuiabá e parte da tropa embarcou-se nos navios disponíveis. O restante da força seguiu, pela margem do Paraguai, no longo e difícil retorno, temendo ser alcançada pelos navios inimigos! O saque foi embarcado e a pólvora e munição impossível de ser carregada, lançadas ao rio. O arquivo militar paraguaio foi transferido para Cuiabá. A seguir, os paraguaios que escaparam ao massacre voltaram à aglomeração abandonada, retornando literalmente tudo como era “dantes, no quartel de Abrantes!” (MAGALHÃES, 1998, p. 150-151; HENRIQUE, 2009, p. 111; MOUTINHO, 1869, p. 99).

Couto Magalhães seria celebrizado como o libertador de Corumbá e do sul da província do Mato Grosso, que seguiu nas mãos paraguaias. Referindo-se a esses sucessos, em 1911, o coronel Torres Homen assinalaria: “Continuaria assim a zona meridional do Mato Grosso […] à mercê da invasão dos paraguaios, cuja esquadra” abandonou as águas do sul daquela província “apenas nos primeiros meses de 1868”. Ao contrário, foi quase olvidada pela historiografia nacional a organização, por ele, logo após sua chegada, de centro de detenção para todos os paraguaios que vivessem nas imediações de Cuiabá. Quando citado pela historiografia regional, esse local de concentração de paraguaios é apresentado como medida que visava a proteção dos aprisionados. O reduto prisional originaria a cidade de Várzea Grande (TORRES HOMEN, 1911, p. 60).

Após a retomada de Corumbá, Hortêncio Augusto de Seixas e o guarda nacional António Félix partiram, levando a notícia da vitória para Cuiabá, onde chegaram em 29 de junho de 1867, após doze dias de viagem de canoa. O tempo de incubação da varíola é de sete a dezessete dias. Em 30 de junho, António Félix morreu no hospital da capital debexiga. No dia 14 de julho, com a chegada da tropa embarcada, deram entrada no hospital diversos militares enfermos, isolados na apenas construída Casa da Pólvora e, a seguir, em outroslazaretosde ocasião.5 Em sua história da guerra, o tenente-coronel belga Emílio Carlos Jourdan e os conservadores cuiabanos responsabilizaram a Couto de Magalhães pela difusão da epidemia, ao trazer com as tropas a doença, pouco conhecida na província. Desertores disseminaram a doença no interior (JOURDAN, 1893, p. 111; MOUTINHO, 1869, p. 99; PROSMAN, 2016, p. 53). Moutinho propõe quatro mil mortos, entre os doze mil cuiabanos. Famílias inteiras apodreciam no interior das moradias. Procissão religiosa pedindo rogando pelo fim ao mal acelerou a disseminação da epidemia. Os cadáveres, queimados apenas parcialmente, eram devorados pelos animais. Praças do 2º Batalhão de Artilharia a Pé vacinadas cobraram altos preços para enterrar os mortos. Dava-se canja de galinha e açúcar contra a doença e canhões disparavam em “ruas da cidade” para combater os “miasmas” que corrompiam a “atmosfera” (MOUTINHO, 1869, p. 98). A epidemia teria causado maiores estragos na norte da província do que a invasão paraguaia do sul.

O surto de varíola em Corumbá chegara possivelmente de Asunción, onde se instalara entre março e maio de 1867, apesar do esforço das autoridades em imunizar a população, com destaque para o exército, com vacinas produzidas a partir das vacas leiteiras de estâncias do Estado, desde março de 1866, sob as ordens do médico inglês Fox. O flagelo teria golpeado a capital e se estendido pelo interior, ceifando sobretudo velhos e crianças já debilitados pela alimentação insuficiente. Teriam escapado da epidemia velhos atingidos, havia anos, pela doença. A enfermidade golpeou duramente o acampamento militar paraguaio, levando à organização de um novo, nas proximidades da vila de Pilar. Apenas arrefeceu a epidemia de varíola, a cólera abateu-se sobre as tropas paraguaias com maior letalidade. A capital foi atingida, apesar do estabelecimento de estritaquarentenade dez dias (CAPDEVILA, 2010, p. 420-421; CARDOZO, 2010, p. 316).

No dia 20 de abril de 1867, com os melhores uniformes e desfraldando novos e coloridas bandeiras, Camisão comandou a travessia do rio Apa e da fronteira, em frente ao forte de Bella Vista, um “solido palanque de madeira”, também apenas abandonado e incendiado. Mais uma vez, a cavalaria paraguaia manteve-se distante à vista coluna imperial, que, nesse momento, possuía 1.680 homens. A seguir, na tropa imperial, passou-se a encabeçar a documentação e as cartas privadas em forma orgulhosa com adivisa“Forças em operações no norte do Paraguai”. A opção paraguaia de retirar-se com o gado vacum e cavalar deixou claro ao comando da coluna que não contaria com gêneros da região, sendo obrigado a mandar buscar gado, alimento e munição na vila de Nioac, a uns trezentos quilômetros. A coluna acampou junto ao forte paraguaio de Bela Vista por nove dias. A situação difícil em que a expedição se colocara impunha que se decidisse sem tardança pelo arriscado avanço, não se sabia bem em direção do que, ou pela necessária retro-marcha em direção do acampamento de Nioac (MOUTINHO, 1869, p. 60; TAUNAY, 1952, p. 80-81).

O grupo de deslocados fugido do norte da República do Paraguai apontou, como possível objetivo, a fazenda da Laguna, também tida como propriedade de Solano López, a uns trinta quilômetros de Bella Vista. Ali haveria gado abundante, propuseram. Decisão fortalecida pela ideia dominante de que o “inimigo” “não podia deixar de ser pouco numeroso” “visto que a guerra ao sul da republica para lá devia chamar a maior parte das suas forças”. O que era verdade, mas não impedia que reforços fossem mandados por breve tempo para combater a coluna expedicionária. A decisão de avançar no interior do território paraguaio, ainda que fossem alguns poucos quilômetros, recebeu apoio entusiástico dos oficiais. A coluna partiu, em 30 de abril de 1867, chegando em 1º de maio às divisas da propriedade, onde encontram apenas algumas cabanas queimadas e abandonadas e uma mensagem em verso, que Taunay traduz livremente: “Mal-aventurado o general que aqui vem procurar o túmulo, porque o leão do Paraguay rugirá, altivo e sanguinolento, contra o invasor”. A tropa acampou na invernada da Laguna, alguns quilômetros adiante, onde ainda viram o pó levantado pelas boiadas e cavalhadas que os paraguaios levavam consigo (TAUNAY, 1952, p. 83-91). Muito logo, se decidiu pelo retorno ao território do Império do Brasil. Era o começo dos percalços da desastrada expedição, iniciada no distante ano de 1865.

Referências

CAPDEVILA, Luc. Una guerra total: Paraguay, 1864-1870. Ensayo de historia del tiempo presente. Trad. Ana Couchonnal. Asunción: Centro de Estudios Antropológicos de la Universidad Católica-Buenos Aires, Ed. Sb, 2010.

CARDOZO, E. Hace cien años. Tomo II. Assunción: Ediciones Emasa, 2010.

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Notas

1 Decreto n.º 3.381, de janeiro de 1865. Coleção de Leis do Império do Brasil, 21/01/1865, p. 13, vol. I, pt. II.
2 Relatório que a Assembléia Legislativa Província de Minas Gerais apresentou no acto de abertura da sessão ordinária de 1867 o 2o. Vice-presidente, Joaquim José de Sant´Ana. Ouro Preto, Paula Castro, 1867.
3 Relatorio do presidente da provincia de Mato Grosso, o chefe de divisão Augusto Leverger, na abertura da sessão ordinaria da Assembléa Legislativa Provincial, em 4 de dezembro de 1856. Disponível em: <https://archive.org/details/rpemgrosso1856>. Acesso em: 12 dez. 2017.
4 BR, Coleção Arthur Montenegro. Oficio do tenente-coronel Antônio Maria Coelho ao Comandante das Armas da Província, Hermenegildo Porto Carrero, Quartel de Comando do 1º Batalhão Provisório d´Infantaria em Cuyabá, 13 de outubro de 1867. Cx. 16, doc. Dp 01.
5 A Reforma: Órgão Democrático, Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1871, p. 1.
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