Dossiê Temático

Ensino de história e experiência: reflexões sobre uma pequena escola do interior do Estado de São Paulo

History teaching and experience in education: reflections on a small school in São Paulo State

Enseñanza de historia y su experiencia: reflexiones sobre una pequeña escuela del interior del Estado de São Paulo

Marcia Regina Poli Bichara
Universidade Estadual de Campinas, Brasil

Ensino de história e experiência: reflexões sobre uma pequena escola do interior do Estado de São Paulo

Laplage em Revista, vol. 1, núm. 3, pp. 34-46, 2015

Universidade Federal de São Carlos

Copyright © 2015 Laplage em Revista. Todos os direitos reservados.

Recepção: 21 Novembro 2015

Aprovação: 22 Dezembro 2015

Resumo: Este texto analisa uma pesquisa de observação em uma pequena escola de uma pequena cidade do interior do Estado de São Paulo. A região na qual está situada a escola vem passando por um crescimento populacional e econômico acelerado, destoando com outros bairros que permanecem com suas características preservadas. Minhas perguntas iniciais sobre esta escola referem-se a como as professoras estariam enfrentando os novos desafios decorrentes de, principalmente, ter que trabalhar com crianças oriundas de outras regiões do Brasil, a maioria afrodescendente, e de ter que enfrentar o aceleramento do tempo e o esgarçamento das relações, sintomas próprios da modernidade capitalista. Buscar saídas para um ensino de história capaz de atender estas novas necessidades.

Palavras-chave: Ensino de história, Experiência, Formação continuada de professores, Modernidade capitalista.

Abstract: This paper analyzes an observation research in a small school in a small town countryside of the state of São Paulo. The region in which the school is located has been undergoing a quick population and economic growth whereas other neighborhoods have preserved their original characteristics. My initial questions about this school refer as to how the teachers (all of them women) would be facing the new challenges resulting mainly from having to work with children from other regions of Brazil, most of them African descent, and how these teachers would be facing the acceleration of time and ripped relations. These are symptoms of the capitalist modernity. The trying is to propose different ways for history teaching able to meet these new needs.

Keywords: History teaching, Experience, Continuing education of teachers, Capitalist modernity.

Resumen: Este texto analiza un estudio de observación realizado en una pequeña escuela de una pequeña ciudad del interior del estado de São Paulo. La región en la cual está situada la escuela, viene pasando por un crecimiento poblacional y económico acelerado, desentonando con otros barrios que preservan las mismas características. Mis preguntas iniciales acerca de esta escuela se refieren a cómo las profesoras están enfrentando los nuevos desafíos derivados de, principalmente, tener que trabajar con niños procedentes de otras regiones de Brasil, la mayoría afrodescendientes, y de tener que afrontar el aceleramiento del tiempo y el desgaste de las relaciones; síntomas propios de la modernidad capitalista. Buscar salidas para una enseñanza de la historia capaz de atender estas nuevas necesidades.

Palabras clave: Enseñanza de historia, Experiencia, Formación continua de profesores, Modernidad capitalista.

Introdução

Inicio este pequeno texto olhando para as montanhas da Serra da Mantiqueira e ouvindo o som das águas do rio Camanducaia. Dia chuvoso, o verde das árvores sobressaindo e as flores dos cafezais exalando um perfume cítrico. Este lugar paradisíaco tem me chamado a atenção há algum tempo. Não apenas pelas belezas naturais, mas também pelas relações estabelecidas entre seus moradores, entre eles e eu mesma, entre eles e os que vêm de longe.

Por isso iniciei uma pesquisa, na qual tenho observado uma pequena escola da rede municipal da cidade de uma pequena cidade do Estado de São Paulo. Esta é uma cidade histórica da época do café, situada na Serra da Mantiqueira, cortada pelo Rio Camanducaia e cheia de nascentes. Por isso, é uma Estância Hidromineral. A região na qual está situada a escola, diferente do que acontece no centro da cidade, vem passando por um crescimento populacional e econômico acelerado, destoando com outros bairros que permanecem com suas características rurais preservadas e com o centro da cidade voltado para o turismo e para a moradia de pessoas de maior poder aquisitivo.

Como a escola estará convivendo com estas mudanças, este aumento populacional? Será que estão acontecendo estranhamentos entre os estudantes? E entre professores e alunos? Entre pais e professores? Como tem sido a percepção de mudanças (se é que elas vêm acontecendo mesmo)? E a questão da experiência? Como estaria ajudando as professoras desta escola nesta situação? Meu desejo seria o de ajudar estas educadoras a refletir sobre o espaço no qual vivem, nas relações das quais fazem parte, exercitando momentos de formação continuada de professores. Formação esta voltada para a questão do ensino de história na relação com a memória, tentado ajudar a refletir sobre as questões da escola, da percepção do tempo, da necessidade de valorizar e preservar tradições e patrimônios locais, ao mesmo tempo, que é necessário refletir nas mudanças e de como receber alunos muito diferentes dos que estão habituadas (muitos desses novos alunos são afrodescendentes, oriundos do norte de Minas Gerais e sul da Bahia).

Numa cidade que vem sofrendo lentamente, mas vem sofrendo, com as mudanças próprias do avanço da modernidade capitalista, percebo a necessidade de cuidar de duas situações diferentes que tem ocorrido no mesmo espaço. De um lado, uma população tradicional, originária das primeiras imigrações relacionadas com o período áureo da cafeicultura e que agora se encontra em situação de vulnerabilidade (os espaços em que vivem não são mais isolados, têm recebido informações diversas através das novas mídias, têm recebido uma vizinhança estranha, com novos hábitos, têm empobrecido e desistido da vida rural, sofrem um preconceito por serem considerados caipiras). De outro, uma população de migrantes de foge da pobreza extrema e veem neste lugar a possibilidade de viver melhor. Porém, são vulneráveis no sentido de não terem raízes na região, não poderem recuperar seus hábitos de vida originais, seus familiares (na verdade, a violência contra estas pessoas já ocorreu em seu local de origem, a ponto de força-las a sair de lá). Chegam aqui e adquirem hábitos próprios da vida moderna: usar celular e roupas modernas, ouvir músicas muito altas, comprar carros e motos para se locomover mais rápido. Vítimas fáceis do consumismo. Pessoas carentes ao extremo, não apenas no sentido material.

Então fica a questão: como a escola se relaciona com esta situação? A que grupo pertencem as professoras? Qual é o papel da escola, tanto na preservação da cultura e dos hábitos locais, quanto no acolhimento destas populações recém-chegadas? É possível que a escola tenha um papel ativo? Que conhecimento é necessário que uma professora tenha para lidar com estas crianças tão diferentes entre si? De modo que, a pesquisa que tem se desenhado dentro das questões levantadas acima e da observação realizada, é uma pesquisa que parte desta experiência dentro desta pequena escola, capturando pequenas cenas. Estas cenas cotidianas presenciadas por mim, como pesquisadora, têm me trazido lembranças múltiplas como professora que fui, como aluna, como criança. Lampejos de memória que trazem questões, emoções, saudades, medos. Outras cenas chamam mais à razão, ao espirito crítico tão próprio aos historiadores e sociólogos. Questões que motivam a querer entender mais, pesquisar mais, para encontrar onde estaria uma solução.

Percebo um caldeirão de ideias que saem do presente, vão até o passado, geram uma saudade e se voltam para o futuro. Ideias próprias de uma pequena cidade do interior paulista e que se conectam com os problemas das megacidades do Rio ou de São Paulo, ou com os problemas mundiais. Como se esta micro escola, nesta micro cidade fosse uma monada da vida moderna, contendo todos os assuntos pendentes da contemporaneidade. Ideias que conseguem aflorar devido à minha presença nos grupos Gepec1 e Kairós2. Do Gepec, que acompanho desde minha entrada para o doutorado, a necessidade de pesquisar com o professor e não sobre o professor. Tenho feito a tentativa de ouvir, observar e não impor meu olhar sobre o outro. Deste exercício, muitas ideias e percepções iniciais já foram refeitas. A cada dia, a cada situação vivida, meu olhar vai ficando mais apurado, conseguindo captar situações que antes passavam despercebidas. Esta abertura para o outro tem sido uma grande experiência de formação.

A questão da narrativa pedagógica como formadora do educador tem me movimentado a estimular estas educadoras com as quais tenho tido contato. Do grupo Kairós, do qual tenho participado desde sua gestação pela saudosa professora Maria Carolina Bovério Galzerani3, o olhar apurado para as questões do patrimônio histórico e cultural e sua preservação, a questão da memória e de como as pessoas se relacionam com ela na modernidade. A questão do ensino de história e da educação política das sensibilidades. Ensino e educação tomados aqui não como uma atividade mecânica, própria da ideia positivista. É necessário um aprofundamento no entendimento de como as pessoas se relacionam no ato de ensinar e educar para perceber como as sensibilidades são reproduzidas ou não. Quais sensibilidades, de que ordem? Que noção de tempo? Para onde se volta o olhar?

De modo que optei, nesta primeira exposição escrita da pesquisa, a exercitar a liberação destes sentimentos e questões que este contato com a escola tem me proporcionado e, a partir dai, motivada por eles, fazer uma reflexão à luz dos autores que me acompanham. Realizar um movimento entre minha experiência, a experiência das professoras, a vida nesta localidade e a vida de outras localidades. Um relato das relações existentes na tentativa de compreender esta modernidade na relação com sujeitos da experiência, buscando um posicionamento político. O resultado que gostaria de alcançar seria o de lições sobre a vida e a profissão de professor. Refletir sobre formação continuada de professores e os desafios do mundo moderno. Pensar nas possibilidades de um ensino de história que tenha como foco as pessoas, suas vidas, suas tradições. Deixar um retrato de uma comunidade frágil, com necessidade de um olhar mais planejado e respeitador de suas necessidades (que isso talvez possa interferir em políticas públicas). Chamar a atenção para o patrimônio material, imaterial e natural do interior paulista.

Observação do cotidiano e reflexão a partir dos referencias

Passo então a apresentar pequenas cenas cotidianas capazes de detonar sensações, percepções e acima de tudo, vontade de entender o ocorrido.

A primeira imagem que me chamou a atenção foi a dos meninos que desciam correndo a ladeira para chegar a tempo de entrar na escola. A mãe, no alto do morro, vigiava para ver se entravam na escola.

Lá dentro todos os alunos aguardavam na fila, com as professoras na frente. Fui convidada a acompanhar uma aula “ao ar livre”. Na mesa da merenda, a professora do 5º ano dá uma aula prática com massinhas sobre poliedros.

É a professora “Dona” Maria Lúcia415 anos de escola, formada em ciências naturais, com habilitação em matemática. Percebia um certo orgulho na hora que falava sua formação. Ela foi, ao longo das duas horas em que a acompanhei, mostrando como é seu trabalho, mostrando o material didático, o caderno de planejamento que achei sensacional e que ela segurava com carinho. Sobre a apostila explica que deveria ter tido uma licitação com três propostas, mas que só apareceu esta no dia. Mas segundo ela “a apostila é a salada e o professor é o tempero”

Mas o que mais me chamou a atenção foi a capacidade que a professora tinha em cuidar da disciplina ao mesmo tempo em que passava a atividade. A impressão era a de que eram duas em uma. Uma concentrada na matéria a ser passada, na organização e explicação da atividade e outra, intercalando com a primeira, de olho nos comportamentos não desejados. “Tem barro na sua bota? Pra que bater tanto o pé? ”. “Quer vir falar aqui na frente? ” Ameaças que não impediram uma guerra de massinhas na volta à sala de aula e uma articulação dos meninos para colocar a culpa em uma garota que estava quietinha em seu lugar.

A professora é muito experiente. Pesquisa na internet as atividades, não dá nada pronto para os alunos. “Pesquisem nos dicionários, leiam para seus colegas”. Vamos fazer uma dança para apresentar. Pesquisa, arte, leitura, cuidados com quem faltou, preocupação com quem está faltando muito. Ela diz que é muito mais fácil trabalhar aí. Não tem os problemas de outros lugares. Pode ser a explicação para a aceitação de um salário menor do que a rede estadual.

Fiquei saudosa da sala de aula. Empolgada com as atividades e com a resposta positiva dos alunos. Amei estar lá! Espero que me aceitem5.

O escrito apresentado acima, acerca da aula da professora Maria Lúcia, me estimula a pensar na experiência. O que significa, para um professor, ser experiente? O fato da professora trabalhar a 15 anos lhe dá o status de “experiente”? E eu, com meus 25 anos de sala de aula. Que experiência teria? A experiência é válida? Ou uma pessoa com anos de vida e de trabalho já está ultrapassada e deve ser substituída por outra mais jovem, mais capaz de se ajustar aos novos tempos, às novas tecnologias?

Larossa (2015) nos alerta para o fato da ideia de experiência vir sendo utilizada nos meios profissionais de modo a medir capacidades dos trabalhadores e até mesmo professores. Uma experiência mensurável de forma a facilitar a seleção ou a colocação dos profissionais. Hoje em dia a formação de um curriculum adequado para a competição no mercado de trabalho obriga as pessoas a realizarem diversas atividades apenas para constar, para somar pontos. Para o autor, isto nada tem a ver com experiência.

Passo então a exercitar uma tentativa de entender o que seria a experiência. A imagem que me acompanha é a da professora Maria Lúcia, com seu sorriso e o livro na mão. Mas volto ao meu passado e penso em minha trajetória como professora. Converso com autores que possam contribuir com um olhar ampliado: Jorge Larossa, Walter Benjamin a partir da leitura de Caroline Mitrovitch e Eduard Palmer Thompson. São três autores escrevendo em tempos diferentes, mas todos com a preocupação de questionar as relações estabelecidas a partir do avanço da modernidade capitalista. Rastreiam na história, nos costumes, na linguagem, na percepção do tempo, como o ser humano foi se distanciando das coisas mais comuns do dia a dia, mais próximas de seu corpo e de seus sentidos e passa a valorizar atividades próprias do pensamento racional.

Jorge Larossa traz um discurso que nos atinge diretamente. Ele monta, neste pequeno texto(2015), uma argumentação capaz de nos ajudar a entender a experiência como algo que foge dos hábitos cotidianos que nós, que vivemos nas cidades modernas, achamos natural: o excesso de informação e a necessidade de opinião, numa velocidade rápida e sem nunca deixar de trabalhar. Para o autor, estes hábitos modernos impedem a experiência.

O sujeito moderno, além de ser um sujeito informado que opina, além de estar permanentemente agitado e em movimento, é um ser que trabalha, quer dizer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo “natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, segundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito moderno é animado por portentosa mescla de otimismo, de progressismo e de agressividade: crê que pode fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o que percebe como um obstáculo à sua onipotência (LAROSSA,2015. p.24).

Thompson, um historiador inglês, representante do marxismo cultural, escreve a partir da categoria de classe social e pesquisa como as pessoas constroem suas vidas e seus significados a partir de e na relação com sua classe. Neste discurso Thompson (2002, p. 11-47), afirma a necessidade de se manter e ampliar um intercâmbio dialético entre a educação e a experiência.

O autor alerta para diversas visões que podemos ter em relação a esta questão. Trabalhando a partir de um estudo histórico do caso inglês, utilizando fontes literárias, o autor descreve como a percepção entre a experiência das pessoas comuns e o conhecimento adquirido nas instituições educacionais, foram sendo construídas de modo a, de forma romântica, concluir que os trabalhadores seriam pessoas de alma boa, puros por terem suas vidas dedicadas aos trabalhos cotidianos duros. De modo que, nesta construção, foi se condensando a ideia de que, a experiência estaria relacionada às emoções, enquanto que o conhecimento letrado, à razão. Sendo que os componentes se amalgamam à questão de classe, operariado/burguesia.

O resultado da visão dicotômica de educação como resultado do intelecto (próprio de uma burguesia) e da experiência como resultante dos sentimentos (próprios das camadas populares) foi uma separação/expulsão do vivido da escola e da mudança da própria linguagem da escola, além de uma desconfiança das camadas populares em relação aos que dela participavam.

[...] nossa tese: a de que a educação se apresentava não apenas uma baliza na direção de um universo mental novo e mais amplo, mas também como uma baliza para longe, para fora, do universo da experiência no qual se funda a sensibilidade. Além do mais, na maior parte das áreas durante o século XIX, o universo instruído estava tão saturado de reações de classe que exigia uma rejeição e um desprezo vigorosos da linguagem, costumes e tradições da cultura popular tradicional. O homem trabalhador autodidata, que dedicava suas noites e seus domingos à busca do conhecimento, era também solicitado, a toda hora, a rejeitar todo o cabedal humano de sua infância e de seus companheiros trabalhadores como grosseiro, imoral e ignorante. (THOMPSON, 2002, p..32)

Esta discussão, além de me informar acerca da historicidade da separação entre escola e experiência, me remete a questões: O que está sendo chamado de experiência aqui? Qual é a sua singularidade? Construção social de uma classe. Construção histórica. Vidas compartilhadas. Cultura, linguagem, modo de viver. As construções cotidianas de grupos de pessoas. E a professora Maria Lucia? Ao ler o texto de Thompson me vem sua imagem, com o livro na mão, e o orgulho de dizer que fez faculdade de ciências. Vem também a bronca no aluno: está com barro no pé? O barro não pode estar na escola, nem de forma simbólica. Ele é próprio dos camponeses, dos trabalhadores da roça. Quem se atreveria a dizer que, ao sair da escola, vai direto cuidar das plantas e dos animais?

Conversando com os estudos de Walter Benjamin, a partir do trabalho de Caroline Mitrovich (2011). A autora discorre com precisão acerca de como Walter Benjamin trata do fim da experiência e da capacidade de narrar, própria da modernidade capitalista, de maneira dialética, de modo a já nos dar pistas de como recuperar, mesmo que com migalhas, o que nos foi suprimido. Segundo a autora, o sentido da experiência formativa benjaminiana seria o de ir contra o que considerava chave na historiografia progressista burguesa: a empatia. Não é possível se identificar com aquilo que gera ruínas. Mas é possível fazer das ruínas um recomeço.

Contra o sentido de perfectibilidade, o “estado de exceção” se baseia no estado de necessidade, quando a cultura tradicional, centrada no livro, é arrastada para a rua em um dia de inverno cortante. É nesse “estado de exceção” que se baseia a “rigor a escola de nova forma” (Benjamin, 1993, p28), ou seja, no perigo de se acumular um saber livresco morto, em detrimento de uma atitude de abertura e prontidão para se defender de um processo de galvanização e conformismo cultural, social e histórico. Como observa Bolle, Benjamin quer acertar as contas com uma escola que finge formar, mas não forma, ao contrário, “transmite um saber que não está convencida de que é necessário”. Na esteira de Bolle, é preciso destacar que Benjamin critica um saber fingido, que não é transmitido com inteireza e, por isso, não pode cumprir com sua função de indagação sobre os valores que queremos deixar para as gerações futuras” (MITROVICH, 2011, p..70)

Em conversas informais, a professora Maria Lúcia sempre deixou claro que só gosta das matérias relacionadas às ciências e exatas. Que para ela, ensinar história e geografia não faz nenhum sentido. Que tivera uma péssima professora de história que a obrigava a decorar o ponto e que, por isso, história para ela não tem a menor graça. Mostrou-me a apostila que está utilizando e pediu ajuda em como avaliar aquele conteúdo. O assunto: meios de transporte, atualmente e no passado. A metodologia proposta: pesquisa da situação local em relação ao transporte. Ela não fez nada disso. Ateve-se às aulas expositivas e ao conteúdo da apostila.

Acho que este pode ser um exemplo de saber fingido. Cumprir etapas sem sentido. Quantas vezes o uso da autoridade como professora foi o que me salvou da recusa dos alunos em estudar algo que não fazia sentido algum para eles e muito menos para mim. Thompson afirma no início de seu discurso: “...na educação liberal de adultos, nenhum mestre provavelmente sobreviverá a uma aula – e nenhuma turma provavelmente continuará no curso com ele – se ele pensar erroneamente, que a turma desempenha um papel passivo...” (2002, p.43)

O tempo de ensino e estudos me levou a ficar vigilante em relação aos conteúdos e métodos. O que faz sentido? Como é possível levar o aluno a entender a importância ou não de tal estudo? Revela-se daí, o jogo de poderes e sentidos inerentes à escolha dos conteúdos e metodologias em sala de aula. Muitas vezes a única solução era explicar: “tal conteúdo cai no vestibular…Muitas vezes ele serve para determinar quem entra ou não para a universidade, já que são poucas vagas e muita gente boa tentando entrar”. Caso eu não tivesse esta preocupação, que solução teria meu aluno, já que ele não era um adulto, não era capaz de largar meu curso e me deixar falando sozinha? Ficar rebelde, se distrair com outra coisa, provocar outros colegas. E o resultado seria: aluno não conseguiu boas notas por falta de interesse ou mal comportamento. Ou então, poderiam ser ministrados nele remédios para déficit de atenção.

E a professora Maria Lúcia? Seria ela apenas alguém que finge ensinar? Que despreza as crianças mais carentes? Somente preocupada em encher as gavetinhas das mentes dos alunos com informações o mais rápido possível para garantir um ótimo currículo para si mesma? Tenho um compromisso pessoal de, ao entrar nesta escola, observar e ouvir. Estar atenta a tudo e de forma respeitosa trazer à tona o cotidiano desta escola extremamente simples, esquecida no meio do vale da Serra da Mantiqueira. Como Jorge Larossa nos alerta, um dos hábitos que nos afasta da experiência é a opinião. Opinar sobre tudo. Ser crítico. Estar a favor ou contra alguma coisa ou em relação a um assunto. Na minha formação como professora de história e sociologia, esta sempre pareceu ser a tônica. Saber interpretar e avaliar. Olhar para os assuntos e obter uma avaliação precisa.

Não é este tipo de comportamento de minha parte, como pesquisadora, que irá solucionar alguma coisa. Não é uma avaliação bem fundamentada, uma opinião de especialista que irá transformar aquele lugar e salvar as criancinhas do preconceito que porventura poderão sofrer por serem pobres, negras e do meio rural. Em primeiro lugar gostaria muito que esta atividade de observar e ouvir fosse para mim, como pesquisadora, uma verdadeira experiência.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.(MITROVICH, 2011, p.. 25)

Linda e inspiradora passagem, resume bem aquilo que venho tentado encontrar nas idas à esta pequena escola. Exercício de escuta livre e despreocupada. Aberta a tudo o que é diferente. Atenta aos pequenos detalhes, quase insignificantes do cotidiano de uma pequena escola. Não sem perigos. A exposição a que venho passando naquela localidade não está sendo pequena. O que buscar? Pequenos rastros, pequenos cacos, pequenas sobrevivências. E a professora Maria Lúcia? Que rastro poderia ter deixado, para que pudéssemos, a partir deles, entender mais a fundo as relações deste grupo de pessoas?

Volto-me ao caderno abraçado com carinho pela professora: fruto de trabalho coletivo, ano a ano construído e reconstruído. Prova maior da experiência. Não individual apenas. Mas de um grupo que se reúne constantemente e vive de trocas. Aquilo que deu certo passo para minha colega. O que deu errado também. Uma narrativa em constante construção e que agrega várias vozes, inclusive dos pais e dos alunos. Olhar o caderno de planejamento da professora me remeteu aos anos 90, no início de minha atividade como professora quando trabalhávamos com a ideia de professor reflexivo. Tudo o que era planejado e feito na sala de aula passava por avaliação e reformulação. Tudo era pensando.

Estar em contato com o fazer pedagógico das professoras foi como voltar ao tempo: planejamento conjunto, trabalho coletivo, avaliação do que foi proposto. Apesar da apostila e das avaliações exteriores, as professoras conservam estas práticas. Trocam constantemente ideias, textos, experiências. No meio das conversas, coisas pessoais surgem. A vida cotidiana não se afasta do trabalho na escola. Os filhos e parentes das professoras estudam na escola. Muitas crianças são filhas de parentes e/ou vizinhas. A escola é praticamente continuação de suas casas. Outro rastro deixado pela professora é a resistência à imposição do uso da apostila. Não se conformou nem se acomodou. Coloca seu tempero, visando um melhor aprendizado para as crianças. Se, segundo Carolina Mitrovich, as perguntas de Walter Benjamin seriam:

[...] que tipo de conhecimento do próprio tempo a geração atual é capaz de formular? Que tipos de experiências somos capazes de transmitir à geração futura, como tradição e memória? Enfim, o que nos resulta dessa anunciada “pobreza de experiência” presente? (MITROVICH, 2011, p. 66)

Então, o que estaria a professora Maria Lúcia deixando para as futuras gerações? E eu com minha pesquisa?

A experiência do choque é algo que me ajuda a pensar muito nos rumos que a educação toma. A vida na cidade moderna é cheia de perigos, sobressaltos. O indivíduo que a habita, então, desenvolve maneiras de se proteger. E se isola, se retrai, para não ter que encarar os problemas cotidianos, já que estes lhe fogem ao alcance. Ele sente-se pequeno diante dos desafios e se protege.

Acho que esta análise ajuda a entender tanto a proposta da apostila sobre preconceito quanto a atitude da coordenadora em passar um filme durante a reunião toda na qual eu estive presente.

Um dia de grandes emoções. Pude acompanhar a aula da professora Cidinha6, moradora de um bairro rural. Ela coordenou com muita coragem uma aula em que deveria expor os combinados da reunião de pais e começar a apostila nova. Tudo isso com uma plateia repleta de dissidentes.

Chamou-me muito a atenção o caso de uma garota negra, muito bonita, mas indisciplinada. Fazia gracinhas para chamar a atenção.

E como parece que a lua está voltada para mim, a aula tinha como tema o preconceito. Bom, a apostila seguia a regra de aulas já vistas. Introduz o tema, lê um texto, faz exercício de compreensão, procura significados no dicionário. Além disso, toda hora a professora fazia os alunos recordarem outros temas: por que usa aspas, por que sabemos o que estão pedindo, onde encontro na frase?

Tudo isso fazia com que a real importância do tema fosse deixada de lado. Mas os alunos não deixavam barato, e traziam coisas de suas vidas a serem discutidas: “eu quebro a cara de quem mexer comigo”, “um menino tem apelido de Ronaldinho”. A professora se saiu muito bem, sempre dando conselhos. Mas o que ela queria mesmo era acabar este assunto chato, como ela mesma se referiu.

Na sala foi possível identificar uma menina mais sabedora da questão do negro, mas a professora meio que minimizou a questão, falando que todos sofrem preconceito, até brancos. Isto apesar do texto, muito mal escolhido para a idade, falar que negros sofrem problemas com a violência, o trabalho, a polícia e a justiça. Ela passou batido nesta questão. E realmente era triste pensar em como os meninos negros ficariam frente a uma discussão tão complexa.

Outra questão foi a negação da negritude por uma aluna negra da sala. Ao comentar suas origens, afirmou ser descendente de italianos. Em aula sobre preconceito racial, quis ocultar o que sua imagem revela. Quanta ajuda precisa esta menina!

Coisa boa: a professora aprendendo junto. Pesquisa e dúvidas compartilhadas7. (5 de maio de 2015)

Quando cheguei à escola e me referi à questão racial, a diretora e a professora Maria Lucia olharam uma para a outra, e disseram que não, na escola não tem racismo. Na observação cotidiana, posso dizer que elas não estão erradas. As crianças, brancas, negras, pardas e de todos os matizes possíveis estão sempre juntas, brincando, estudando. Menininhas brancas e negras dividem a mesma carteira, andam de mãos juntas. Os meninos se batem mutualmente independendo de origem e raça. Até o garoto negro, com necessidades especiais, vive sendo abraçado e beijado por todos. Tem um cortejo de meninas que cuidam dele constantemente.

Porém, no distrito, a separação é bem nítida. Tirando um comerciante que é originário do norte de Minas, um dos primeiros desta região a se fixar nas Mostardas (o com o qual já tenho entrevista marcada), os restantes dos comerciantes são de brancos, originários da região. A grande maioria dos católicos é branca. É visível que as religiões se dividem conforme a cor de pele e origem. E os conflitos que aparentemente não existem, são denunciados na voz das crianças. Xingamentos, apelidos, ameaças fazem parte do cotidiano destas pessoas. Porém, não podem atravessar os muros da escola, onde qualquer desvio, briga, vai parar na sala da diretora.

Tenho solicitado das professoras qual seria, na opinião delas, uma forma de abordar este assunto tão delicado. Em minha experiência, é um assunto a ser tratado com muita delicadeza e sutileza. Informações, tal como a apostila trouxe, não chegam a atingir o mínimo dos objetivos. Também a afirmação de que existe racismo costuma fazer com que as pessoas, em especial as de tendências racistas, se escondam.

Fico pensando em como os estudos do historiador E. P. Thompson pode nos ajudar a refletir sobre a formação docente para o enfrentamento das desigualdades e conflitos raciais. Em que sentido, a partir das concepções de tempo, história, professor, produção de conhecimentos advindos do pensamento deste historiador, podemos compreender melhor as relações que nos cercam, ajudando a diminuir os sofrimentos resultantes destas relações permeadas de desagradáveis permanências?

Tive uma experiência como estagiária no curso “Escola e conhecimento de História e Geografia”, ministrado por minha querida e saudosa professora Maria Carolina Bovério Galzerani, na Faculdade de Educação – Unicamp, curso este voltado para futuros professores e professoras das primeiras séries dos primeiros anos do Ensino Fundamental. Neste curso, a professora Maria Carolina, propunha um exercício para as alunas e os alunos de pedagogia, no qual eles irão avaliar as diversas propostas pedagógicas do governo do estado de São Paulo e do Brasil. Os alunos eram convidados a perceber em que sentido cada proposta avançava ou não em relação ao conceito de tempo. Se o tempo era concebido de forma tradicional e linear ou se o tempo era percebido na relação entre passado, presente e futuro. Noções de ruptura, duração, continuidade, permanências deveriam ser pesquisadas nos documentos também.

Como cada proposta entende a participação do professor e do aluno na produção de conhecimento? São levados em conta como participantes ativos? Ou são vistos como seres incapazes de pensar por si só e com necessidade de serem conduzidos pelos verdadeiros detentores dos saberes, ou seja, os especialistas das universidades? Este conhecimento está relacionado à vida das pessoas envolvidas ou está distante delas, como algo que não faz sentido? Qual é a relação proposta a respeito de como professor e alunos devem interagir com o material didático? Enfim, os alunos deveriam ampliar seus olhares em relação às propostas. Construir visões, deparando-se com as políticas públicas, avaliando-as de forma autônoma.

As ideias de Eduard Palmer Thompson entram no debate, estando na base da proposta curricular de 1986 no Estado de São Paulo. Uma proposta que foi discutida amplamente com os professores da rede estadual, mas que foi rejeitada por ser considerada radical demais (lembrando que o período era de transição da ditadura militar para a democracia). Na voz da professora Maria Carolina, podemos perceber a preocupação política existente na formação dos docentes e das crianças. E como a maneira como as políticas públicas foram elaboradas podem levar a visões de tempo e de história capazes de prejudicar as relações entre as pessoas e delas e o mundo em que vivem.

Contudo, ainda que os Parâmetros Curriculares Nacionais de História, apresentem, em inúmeras passagens textuais, a noção da identidade do ser aluno de história no Brasil no interior de matizes culturais plurais, o próprio formato destes documentos - enquanto “Parâmetros” únicos, para todo o território nacional – tende a direcionar tal leitura para um prisma unidimensional, homogeneizador. Quanto à visão do aluno como produtor de conhecimentos históricos (Eduard Palmer Thompson,1986), trazendo à tona subjetividades, individuais/ coletivas, culturalmente dissonantes, na leitura dos textos focalizados – contribuição significativa da Proposta Curricular de História da CENP/S.E.E./S.P., 1986 - apresenta-se diluída, apagada nestas produções documentais oficiais. O que prepondera é muito mais a concepção da apropriação de conhecimentos históricos escolares definidos a priori. Prevalecimento da racionalidade instrumental, técnica, esta que hierarquiza os saberes, rotula os conhecimentos experienciais como “senso comum”, determinando à escola o papel de transmutá-los em saberes escolares, científicos, verdadeiros. Predomina, ao mesmo tempo, nestes documentos oficiais ora analisados, o esmaecimento da perspectiva das contradições, dos embates, no enfoque das dimensões sociais. E as sugestões temáticas para os diferentes ciclos, estas se apresentam, tendencialmente, com roupagens genéricas, modelizadas e modelizadoras, como versões muitas vezes desenraizadas – no que respeita às dimensões de tempo e de espaço - portanto, a-históricas. Podemos aqui flagrar uma dada leitura historiográfica estruturalista, construída na relação com uma das tendências epistemológicas da própria História Nova, ou, mais particularmente, com o “efeito Braudel”, como assim o intitula François Dosse (2003). (GALZERANI, 2005, p. 3 e 4)

Os alunos de pedagogia passaram, a partir da leitura dos textos de Thompson, a compreender melhor a relação existente entre produção de conhecimentos, relação com o tempo, a questão da autonomia do professor e do aluno no que diz respeito a esta produção de conhecimento histórico. Estimulados pela professora, passaram a produzir projetos próprios de forma autônoma, podendo agir como professores pesquisadores.

Com este breve relato das atividades construídas pela professora Maria Carolina e os discentes, futuros professores das primeiras séries do Ensino fundamental, pude acompanhar como a leitura de E. P.Thompson possibilita questionamentos acerca da formação docente e posso pensar em possibilidades em relação à questão mais específica relacionada à História da África e às relações etnicorraciais.

Em tempos nos quais o ensino de história tem sofrido com leis e propostas curriculares que o desvalorizam; em tempos nos quais a autonomia dos professores está abalada graças às imposições governamentais de cunho neoliberais, surgem, graças às lutas e pressões de grupos políticos e movimentos negros leis que obrigam o ensino da história da África e da cultura afrodescendente.

Nesta coincidência entre, de um lado, a luta dos negros por uma identidade e espaço e por uma valorização na educação brasileira e, de outro, as investidas cada vez maiores contra a autonomia dos professores e a imposição de visões de história que tendem ao estruturalismo e ao positivismo, existe, no meu ponto de vista, um risco de que a história da África ensinada reproduza estas tendências e todos os males oriundos desta formação. Que a história da África ensinada não faça sentido algum aos estudantes. Que estes estudantes não consigam relacionar os problemas cotidianos vividos por eles com o que estão estudando em sala de aula a respeito da vida de Zumbi dos Palmares ou dos Reinos Africanos do séc. XV. Parece-me que foi isto que flagrei com a aula da professora Cidinha a partir da sugestão da apostila. Um ensino totalmente descolado da vida dos alunos.

Em que sentido, ao lermos os trabalhos de Thompson, poderíamos colaborar para um ensino de história que não reproduzisse verdades absolutas? Que não trabalhasse as relações de poder de forma dicotômica, como se o mundo fosse dividido em pessoas do bem e pessoas do mal? Que não tratasse os acontecimentos históricos como se fossem definidos a priori numa linha do tempo que leva sempre ao progresso? Que não se distanciasse da vida vivida pelos alunos e que não julgasse a cultura por eles trazida como inferior, obrigando a apenas valorizar a cultura letrada escolar. Que desse valor às experiências múltiplas. Que se abrisse à complexidade do ser humano, sem tentar formata-lo em um único modelo.

Em seus embates contra os intelectuais marxistas que pensavam a história e a sociedade de forma estruturalista, Thompson desenvolve um olhar que traz o ser humano devidamente colocado em seu tempo e lugar, em todas as suas ambiguidades. Não um ser humano estático que, por pertencer a uma classe social, só pode agir daquele determinado modo. Thompson entende as relações sociais sem predeterminá-las dentro de um padrão. Também não relativiza, acreditando que tudo pode acontecer. As suas afirmações são baseadas em estudos documentais, de diversas fontes. “Estudo da vida real” ou do “homem real”. Dessa forma, as noções de dominação e resistência não são tomadas de forma dicotômica e estanque. Não existem vencedores e perdedores estabelecidos a priori. E sim, movimentos dialéticos que devem ser observados e estudados com cuidado, sempre a partir dos documentos – estes também tomados como construção de sua época. Sempre com o “pé no chão”, Thompson nos mostra que, ao estudar a sociedade, devemos ficar atentos às diversas situações que ocorrem, aos diversos movimentos, sem tentar enquadrá-los previamente.

A prática histórica está, acima de tudo, empenhada nesse tipo de diálogo, que compreende: um debate entre, por um lado, conceitos ou hipóteses recebidos, inadequados ou ideologicamente informados, e, por outro lado, evidências recentes ou inconvenientes; a elaboração de novas hipóteses face às evidências, o que pode exigir o interrogatório das evidências existentes, mas de novas maneiras, ou uma renovada pesquisa para confirmar ou rejeitar as novas noções; a rejeição das hipóteses que não suportam tais provas e o aprimoramento ou revisão daquelas que as suportam, à luz daquele ajuste.(THOMPSON, 1981, p. 57)

Ao confrontar as relações étnico raciais em um determinado grupo em uma sala de aula, ou ao estimular seus alunos a pesquisar a História da África e dos Afrodescendentes um professor precisa ter este olhar liberto de ideias preestabelecidas. Ficar atento ao como a relação de tempo presente, passado e futuro tem sido colocada nos materiais didáticos por eles trabalhados em sala de aula. Se é possível estabelecer uma relação com a vida das crianças e do lugar em que vivem. Se aquelas informações não estariam impondo um determinado olhar sobre a questão das relações étnico raciais.

Fiquei especialmente preocupada com o teor do texto que a apostila trazia. Acredito que a professora também, tanto que passou pela leitura rapidamente. O texto trazia informações sobre o grau de preconceito sofrido pelos negros e que os homens negros têm muito problema com a polícia, a justiça e falta de emprego. Como um jovem negro de 10 anos, vivendo em uma comunidade isolada, recebe uma informação como esta? Eu, em seu lugar, ficaria com muito medo.

Outra preocupação de Thompson que parece se encaixar como uma luva nos dias de hoje é em relação à hierarquização dos saberes. Sempre preocupado com esta questão, o autor questiona o distanciamento entre a universidade – tida como detentora dos verdadeiros conhecimentos – e a experiência das pessoas que não tiveram a chance de frequentar os bancos escolares.

Nesse ponto devo retornar à minha tese. As atitudes em relação à classe social, à cultura popular e à educação tornaram-se “estabelecidas” no período que se seguiu à Revolução Francesa. Durante um século ou mais, a maior parte dos educadores da classe média não conseguiu distinguir o trabalho educacional do controle social, e isso impunha com demasiada frequência uma repressão à validade da experiência da vida dos alunos ou sua própria negação, tal como a que se expressava em dialetos incultos ou nas formas culturais tradicionais. O resultado foi que a educação e a experiência herdada se opunham uma à outra. E os trabalhadores que, por seus próprios esforços, conseguiam penetrar na cultura letrada viam-se imediatamente no mesmo lugar de tensão, onde a educação trazia consigo o perigo da rejeição por parte de seus camaradas e a autodesconfiança. Essa tensão ainda permanece. (THOMPSON, 2002, p. 36)

Creio que deva ser uma preocupação permanente do educador que pretende trazer para a sala de aula a cultura afrodescendente, o cuidado em não hierarquizar. Ter a sabedoria de trabalhar com a tensão da cultura letrada e a cultura popular tão rica em nosso país. Acredito ser um grande desafio conseguir estabelecer esta ponte. Conseguir resgatar, para a escola, a experiência vivida pela população negra. Porém, Thompson nos alerta sobre os cuidados que devemos tomar ao trabalhar com o conceito de cultura.

Essa é uma razão pela qual precisamos ter cuidado quanto a generalizações como "cultura popular". Esta pode sugerir, numa inflexão antropológica influente no âmbito dos historiadores sociais, uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura, entendida como "sistemas de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos e artefatos) em que se acham incorporados". Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa - por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante - assume a forma de um "sistema". E na verdade o próprio termo "cultura", com sua invocação confortável de um consenso. Pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto. (THOMPSON, 1998, p.17)

Nos alerta, portanto, a prestar atenção em que tipo de noção de cultura estão assentadas as diretrizes e os materiais didáticos referentes à cultura afrodescendente. Eles dão espaço a diversidades de atitudes, valores, significados compartilhados e formas simbólicas? Dão espaço aos conflitos ou estão sob o jugo de uma pressão imperiosa?

Em relação à temática da cultura afrodescendente estamos como Thompson em suas aulas para adultos. Estamos, como professores, em posição mais de aprender do que de ensinar. Mais de ouvir, conhecer o outro, perguntar o que faz sentido ou não para os alunos, trocar, respeitar aquilo que nos é distante sem tentar enquadrar.

Os alunos, naquela situação de sala de aula, agiram de forma a resistir à intenção da professora em minimizar a questão da intolerância existente em seu cotidiano. A professora achou a saída a partir de conhecimentos preestabelecidos e aconselhamentos. A aluna mais bem informada sobre questões de resistência negra foi ignorada, a aluna negra que rejeita sua origem foi esquecida e passamos para outro assunto “mais agradável”.

Fico pensando em uma saída para o ensino de História da África. Um trabalho com a memória destas pessoas, tanto negros quanto brancos, seria muito bem-vindas. A construção de um memorial buscando raízes, reconstruindo caminhos percorridos, tradições abandonadas. Gostos e desgostos.

Considerações finais

O grande desafio que esta pesquisa tem trazido é o de aproximar a partir das ações da pesquisadora, o cotidiano da escola e os estudos da universidade. Aprimorando a sensibilidade do olhar da pesquisadora sobre os detalhes da vida cotidiana da pequena escola e provocando a curiosidade entre alunos e professores acerca de sua relevância de sua vida cotidiana.

Atrair para a reflexão acerca de um ensino de história capaz de atingir os sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem em suas sensibilidades, diminuir a distância entre o que é aprendido e o que é vivido, repensar concepções de tempo e espaço, tentando evitar a reprodução de uma percepção de história provocadora de distanciamentos e imobilizações.

Deixar um registro deste pequeno vilarejo, que, entre continuidades e resistências, têm tido que conviver com esses tempos corridos, apagadores de relações mais próximas. Registro este que possa servir de suporte para políticas públicas mais adequadas para estas populações.

Referências

GALZERANI, M. C. B. Políticas públicas e ensino de história. In: ARIAS NETO, J. M. (Org.). Dez anos de pesquisa em ensino de história. v. 1. Londrina: AtritoArt, 2005.

LARROSA, J. Tremores: escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

MITROVITCH, C. Experiência e formação em Walter Benjamin. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. p. 57, RJ, Zahar, 1981.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

THOMPSON, E. P. Educação e Experiência. In THOMPSON, E. P. Os Românticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

Notas

1 Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada integra o Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP e tem como perspectiva de formação docente e a busca da compreensão dos saberes e práticas cotidianas dentro da complexidade da organização do trabalho pedagógico escolar, usando referencias do campo da Pedagogia, da Psicologia e da História. Nesse sentido, a pesquisa é tomada como eixo da formação continuada do/a professor/a e na (re) constituição do seu fazer docente.
2 Articula-se em torno da temática da educação das sensibilidades, a partir da perspectiva da história cultural (Walter Benjamin, Edward Palmer Thompson e de Peter Gay, dentre outros), que aponta para uma compreensão ampliada da noção de educação, tanto no que respeita aos sujeitos envolvidos como no que se refere às relações entre os sujeitos, as quais abrem perspectivas dinâmicas, contraditórias, com imbricações entre diferentes dimensões socioculturais. Busca colaborar com a constituição de referenciais teóricos e metodológicos sobre tal temática, para a atuação no ensino de História, em suas relações com lugares e práticas de memória e da produção de conhecimentos históricos educacionais. Visa produzir subsídios reflexivos que fortaleçam a dimensão pessoal e coletiva dos sujeitos históricos, afirmando-se uma perspectiva racional sensível tanto no ato da produção da pesquisa, como nas suas potencialidades de ação educativa e de formação de professores.
3 In memorian.
4 Nome fictício
5 Texto produzido a partir de observação realizada no dia 30 de março de 2015
6 Nome fictício
7 Texto produzido após observação realizada no dia 5 de maio de 2015

Ligação alternative

Artigo relacionado

[Artigo corrigido , vol. 1, 34-46] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/99/384

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por