Dossiê Temático
Adoecimento e sofrimento docente na perspectiva da precarização do trabalho
Sickening and suffering teaching from the perspective of labor precariousness
La enfermedad y el sufrimiento de los docentes en vista del trabajo precario
Adoecimento e sofrimento docente na perspectiva da precarização do trabalho
Laplage em Revista, vol. 1, núm. 2, pp. 32-47, 2015
Universidade Federal de São Carlos

Recepção: 10 Julho 2015
Aprovação: 25 Agosto 2015
Resumo: Em todo o mundo do trabalho o adoecimento sempre foi um fator inerente à situação de exploração, condições superdimensionadas para a suportação física e psíquica do trabalhador. A objetivação do trabalhador torna-o um ser amorfo, desefetivado, desprovido da capacidade de racionalizar sua condição de objeto no mundo e do mundo. Nessa perspectiva, o artigo apresentado se propõe a discutir o adoecimento e sofrimento dos docentes em Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil, a partir de dados empíricos colhidos por pesquisadores brasileiros, trazendo à luz a precarização do trabalho docente, os fatores alienantes, de intensificação do trabalho imaterial improdutivo e a própria mercantilização da ciência.
Palavras-chave: Adoecimento Docente. IFES. Precarização do trabalho. .
Abstract: The worlds’ labor force is subjected to sickening due to exploitation, demands not proportional to physical and/or psychic preparation. The workers seen as objects turn them invisible and not able to evaluate their condition as objects on his environment and world. Under this perspective we studied the sickening and suffering of the teachers of Brazil’s Federal Government supported Universities using empiric data recollected from Brazilian researchers. Important alienating factors, overworking, low productivity and mercantilism of the science were found.
Keywords: Sickening. Teachers. IFES. Precarious work. .
Resumen: En todo el mundo del trabajo la enfermedad siempre ha sido un factor inherente a la situación de explotación; condiciones superdimensionadas para el apoyo físico y psicológico del trabajador. La objetivación del trabajador lo torna un ser amorfo, desafectado, desprovisto de la capacidad de racionalizar su condición objeto en el mundo y del mundo. Desde esta perspectiva, el artículo se presenta para discutir la enfermedad y el sufrimiento de los docentes en las Instituciones Federales de Enseñanza Superior en Brasil, a partir de datos empíricos recogidos por investigadores brasileños, trayendo a la luz la precariedad de la enseñanza, los factores alienantes, la intensificación del trabajo inmaterial improductivo y la comercialización de la ciencia misma. Laplage em Revista (Sorocaba), vol.1, n.2, mai.- ago. 2015, p.32- 47 ISSN:2446-6220 . 33 Adoecimento e sofrimento docente na perspectiva da precarização do trabalho
Palabras clave: Enfermedad Enseñanza. IFES. El trabajo precario. .
Introdução
Um dos assuntos recorrentes na esfera de atuação docente nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) é a incidência de mal estares e adoecimentos sofridos pelos professores. Seja em período de qualificação, seja em pleno exercício da carreira de magistério; seja no início ou no final desse percurso profissional, o discurso que se ouve nas rodas informais acadêmicas é o quanto de sofrimento emocional, físico e psíquico estão enfrentando no dia a dia do trabalho. O cotidiano adoecido tem sido objeto de estudos detalhados por parte de pesquisadores do trabalho e suas relações sociais.
Como centralidade da vida humana, o trabalho, compreendido em atividades produtivas e improdutivas, permeia as relações carregadas de atribuições e responsabilidades objetivas, tanto quanto de cargas subjetivas, traz consequências diretas sobre a significação da vida em sociedade. Os parâmetros que a sociedade capitalista estabeleceu para os formadores de ciências e educadores são os mesmos para os processos produtivos, ou seja, metas quantitativas, produtivismo atrelado à ascensão na carreira, avaliação de resultados como método de reconhecimento e remuneração além de estrutura precária e massificada de políticas e práticas de ensino. A discussão é ampla principalmente sobre os aspectos vivenciais do trabalho improdutivo, intelectual e cognitivo levado a uma esfera de produtivismo e “coisificação” do saber a serviço do capital.
Algumas questões iniciais são necessárias para se discutir esses pressupostos: Qual a perspectiva objetiva de prática satisfatória ou insatisfatória do docente na atual estrutura acadêmica? Quais os fatores de mal-estar e adoecimento estabelecidos no âmbito da prática docente? O trabalho intelectual se transformou em mercadoria barata? A quem importa o adoecimento do docente? Para entendimento e aprofundamento dessas questões será utilizada a abordagem de categorias na perspectiva histórica estrutural do trabalho improdutivo, precarização do trabalho docente, faces do fetichismo e adoecimento no trabalho docente. Devido à amplitude e importância do tema, será delineado o problema do adoecimento no trabalho docente sob o corte da contemporaneidade.
Pesquisas empíricas realizadas com docentes de IFES no Brasil servirão de base de dados primários para a discussão, como as realizadas por ARAÚJO e CARVALHO (2009); BOSI (2007); ARAÚJO et al (2005); SANTOS, NOVO e TAVARES (2010); WEBBER e VERGANI (2010); BAIÃO e CUNHA (2013); PICADO (2009); MENDES et al (2006) entre outros. Para análise da visão utilitarista da carreira docente serão resgatadas as bases teóricas articuladas por intelectuais como MARX (1971, 2006, 2008, 2011), ENGELS (2010), LUKÁCS (1981), MÉZÁROS (2004), ANTUNES (2002, 2010),ANTUNES e ALVES, (2004) e TARDIF e LESSARD (2008); DEJOUR (2004) entre outros.
Ser docente: o papel do professor em uma IFES
A base de toda sociedade e dos princípios políticos, éticos, tecnológicos e organizacionais nela existente são sustentados por uma dimensão de conhecimentos e saberes. Tardif e Lessard (2008) afirmam que a instrução é indissociável do mundo social uma vez que a grande maioria de seus atores, em diferentes graus e formas, são escolarizados. Salientam ainda que é no ambiente escolar que ocorre a formação do homem que irá assumir os papéis, promover as mudanças e as transformações da sociedade.
O trabalho docente, visto como um trabalho interativo, adquire características profissionais na sociedade industrial moderna. No contexto atual que Tardif e Lessard (2008) chamam de sociedade moderna avançada, o crescimento do setor de serviços e a retração do setor industrial como movimento econômico mundial fez com que uma sociedade da informação e do conhecimento surgisse, valorizando os processos de produção, gestão, manipulação e armazenamento desse conhecimento. Assim, conforme análise dos autores, observa-se um crescimento significativo de profissões e profissionais nos diversos setores econômicos e sociais, do conhecimento formal e das tecnologias, exigindo maior compreensão das ciências como, por exemplo, nas áreas da estatística, dos comportamentos organizacionais, pesquisas e análises da gestão e do comportamento humano nas variadas áreas de trabalho. Esse cenário exige profissionais com alta qualificação e que possuam “conhecimentos abstratos” profundos e específicos adquiridos e escolas de nível superior. Dessa forma o trabalho docente, como trabalho interativo, tem o ser humano como “matéria-prima” sendo, as pessoas, não um meio ou uma finalidade de trabalho, mas o objeto de relação, onde ocorre o verdadeiro trabalho de “manter, mudar ou melhorar a situação humana” (TARDIF e LESSARD, 2008).
Tardif e Lessard (2008) destacam ainda a construção da identidade do docente, seja individualmente, seja coletivamente, como algo surgido do processo de relação com o fazer, isto é, elaborada a partir dele mesmo, no exercício do seu trabalho, do modo como o vivencia e dá significado a ele. O professor competente, sob esse foco, seria aquele que possui experiência e consegue lidar com situações que se repetem e para as quais criou estratégias e rotinas de solução. A subjetividade, portanto, prevalece sobre a formação acadêmica e os conhecimentos teóricos.
Para maior compreensão da profissionalização do ensino e do trabalho docente, Tardif e Lessard (2008) relacionam alguns elementos inerentes a esse labor que são: 1) a docência como trabalho interativo e seu objeto humano; 2) o trabalho material versus o trabalho cognitivo e 3) o trabalho sobre o outro (indivíduo). Sobre esses elementos cabe um estudo aprofundado e sistemático, porque são aspectos que exigem do docente qualificações com alto grau de amplitude pois precisam lidar com situações complexas que implicam em muitos desafios.
À docência de nível superior em uma IFES são atribuídas as atividades de ensino, pesquisa e extensão, além de funções adiministrativas. Cada um desses segmentos é composto de um conjunto de atividades altamente complexas que exigem atualizações constante do docente, tanto genéricas quanto específicas. Da pressão constante sobre o docente, advinda dos processos de qualificação, carreira, geração de resultados, do convívio com discentes que apresentam os mais variados níveis de cognição, da obediência às políticas públicas de ensino que privilegiam a burocracia e, principalmente, da carga de trabalho excessiva e sem reconhecimento ou recompensas, advém um significativo impacto em sua estrutura psíquica.
Adoecimento docente – a realidade oculta
Em todo o mundo do trabalho o adoecimento sempre foi um fator inerente à situação de exploração, condições superdimensionadas para a suportação física e psíquica do trabalhador. Muitos estudos comprovam que o adoecimento do ser humano devido ao trabalho tem sido objeto de revisão dos fatores produtivos, embora as soluções sejam voltadas para a readaptação e redimensionamento da melhor forma possível de manter o crescimento e o status quo do sistema capitalista. Assim, se sofisticam e se aparelham os postos de trabalho, os métodos de gestão de pessoas, os benefícios imediatos e os recursos médicos para que as limitações humanas não impeçam os objetivos de produção.
O que se tem observado, portanto, é o adoecimento generalizado do ser humano em âmbito também dos processos improdutivos da sociedade, como professores, profissionais autônomos, enfermeiros, médicos, advogados etc, por colherem, cada qual, a sua parcela de participação em uma sociedade voltada ao lucro e à valorização dos objetos e não dos seres humanos.
A dinâmica do trabalho e a dinâmica emocional do indivíduo é tratada por Dejours (2004) como sendo dois aspectos distintos. O primeiro deles é o trabalho como algo objetivo que implica “gestos, saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar, etc”. O segundo, a dimensão subjetiva da percepção humana, uma face obscura que não é revelada, onde ocorre a forma como o indivíduo lida com que trabalho prescrito e o real do trabalho e que se manifesta afetivamente. É o que o homem experimenta em suas emoções a respeito do que realiza. Daí o sujeito vivenciar uma relação primordial de sofrimento uma vez que, para Dejours (2004), essa discrepância é vivenciada sempre sob forma de fracasso. A base desses estudos está fundamentadano que se chamou psicodinâmica do trabalho, disciplina que se apóia na descrição e no conhecimento das relações entre trabalho e saúde mental utilizando a abordagem da psicanálise e a teoria social (DEJOURS, 2004).
Na própria alienação que o sistema produtivo impõe aos indivíduos está o cerne do estranhamento de si. O adoecimento do ser humano se relaciona de modo direto ao processo de exploração imanente à acumulação do capital, à propriedade privada, ao crescimento do sistema econômico mundial, que se coloca discrepante na proporcionalidade da miséria, na perda de sentido da liberdade e da vida. A objetivação do trabalhador torna-o um ser amorfo, desefetivado, desprovido da capacidade de racionalizar sua condição de objeto no mundo e do mundo. Marx esclarece, na dinâmica social, que “o auge dessa servidão é que somente como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador” (MARX, 1863, pg 82). Lógica que se aplica aos docentes uma vez que passam a ser tratados como seres trabalhadores do processo improdutivo/produtivo do saber.
A profissão docente é uma das mais desgastantes, conforme a Organização Internacional do Trabalho – OIT que a considera de alto risco físico e mental.
Santos, Novo e Tavares (2013) mostram como resultado de pesquisa empírica os fatores de sofrimento e de prazer na profissão docente em uma IFES no sul do país. Utilizando do modelo de Walton (1974) entrevistaram três docentes efetivos, sob regime de dedicação exclusiva, do curso de administração, nas dimensões relacionadas ao trabalho em suas relações docente-aluno, docente-chefia e docente-pares. Os aspectos relacionados aos sofrimentos psíquicos e físicos apontados nas falas dos professores foram: tempo excessivo dedicado ao trabalho; dificuldade de separar sentimento de frustração do trabalho na vida pessoal; falta de energia para o lazer e para o convívio com familiares e amigos; reclusão e isolamento depressivo; falta de colaboração entre colegas de trabalho; competitividade e conflitos entre grupos de linhas de estudo diferentes; privilégios de uns e preconceitos a outros; desigualdades verbalizadas como “castas com paredes invisíveis” com oportunidades políticas diferentes entre elas; relação chefia-docente com tratamentos desiguais; supervalorização das relações políticas e concentração de poder. Com referência à relação docente-aluno, os fatores relevantes foram os de reconhecimento, respeito e afetividade, única instância em que surgem elementos considerados de prazer.
Já nos estudos publicados por Araújo et al (2005) as condições de saúde e de trabalho docente abordou 314 docentes de variados cursos, cujo resultado apontou deficiência nas condições de infraestrutura do ambiente laboral, ausência de espaço para descanso/repouso; salas de aulas inadequadas e cargas de trabalho excessivas afetando a saúde e o desempenho no trabalho; salas com ventilação inadequada, exposição ao pó de giz e poeiras causando doenças respiratórias; carga física de material didático e de audiovisual, permanecer em pé e manter posição inadequada ao corpo; doenças crônicas pelo uso da voz; problemas digestivos; fadiga mental; esquecimento e insônia. Curiosamente, as queixas mais frequentes foram apresentadas por docentes mais novos, até 39 anos (79,9%) e pelo gênero feminino (77,9%).
Araújo e Carvalho (2009) ao pesquisarem a Universidade Federal da Bahia encontraram o adoecimento docente relacionado à estrutura física dos locais de trabalho (mesas, cadeiras, ventilação, acústica das salas de aula, ruído); ambiente violento no patrimonial (destruição do patrimônio público) e pessoal (furtos, roubos, estupro com 57,3% de ocorrência). A insatisfação com o salário foi referida por 83,5% dos sujeitos pesquisados.
Com trabalho publicado sobre o tema, Mendes et al (2006) mostra a dialética prazer/desprazer no trabalho do professor universitário abordando a área de Ciências Exatas da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Na possibilidade de uma universidade estadual apresentar aspectos diferentes dos apresentados pelos professores das universidades federais, pode-se constatar que são coincidentes sob o ponto de vista de “prazer”, posto o que chamaram de “satisfação sublimatória” pela oportunidade de utilização das capacidades intelectuais e, do ponto de vista do “desprazer”, o sofrimento relacionado à instituição e à impossibilidade de mudanças. Sentimentos como angústia, stress, depressão, foram significados como desprazer e, alegria, felicidade e satisfação, como prazer considerando as maneiras individuais de apropriação desses termos. Na pesquisa, verbalizações apontam o ser professor como a mais importante das profissões no país, responsável pelo “desenvolvimento da sociedade”. Em contrapartida, verbalizam o desencanto em relação à profissão quando dizem que há enorme desrespeito por parte dos alunos e da própria sociedade. Há cobrança de tarefas sem condições mínimas para realizá-las. As pesquisas não são incentivadas. Livros, condições estruturais, financiamentos exíguos para pesquisas e ensino, como também muita burocracia, excesso de reuniões, atividades administrativas envolvendo as tarefas universitárias, o que é entendido como desperdício de tempo. A maioria identificou como “amargura” e “frustração” os sentimentos que caracterizam a carreira docente.
Na referida pesquisa realizada na UEM, manifestou-se uma docente: “... é isto que eu gosto de fazer, eu sou professora por escolha, não por imposição, não para ganhar dinheiro, mas formar cidadãos... isso pra mim é um orgulho, eu me sinto, lá no cantinho, como alguém que fez alguma coisa [...]”.
Partindo do conceito de atividade penosa, a pesquisa realizada por Webber e Vergani (2010) mostrou a profissão docente como necessitada de descanso, dinheiro e respeito.
A Universidade Federal do Pará publicou dados preocupantes em relação ao adoecimento mental entre seus docentes. A pesquisa liderada pelo Professor Dr. Jadir Campos, ex-coordenador de Saúde do Trabalhador da UFPA, publicada pela ADUFPA – Associação dos Docentes da Universidade Federal do Pará, mostrou um quadro que, segundo o professor, se repete em quase todas as Universidades Federais brasileiras por ser consequência da política do Ministério da Educação (MEC). De acordo com ele, no período entre 2006 a 2010, 14,13% dos pedidos de afastamento docente foram motivados por problemas de saúde mental. Como causas primárias estão as políticas do MEC que intensificaram e precarizaram o trabalho docente, gerando sofrimento sem condições de superação: sensação de estar sendo “usado” para fazer pesquisas sem recursos num contexto político de triagem produtivista; órgãos de fomento tornando a seleção de projetos com base em interesses alheios aos acadêmicos, direcionados ao mercado empresarial, docentes bodes expiatórios de um esquema perverso ao professor; competição e exigência de um grande número de publicações em revistas com qualis elevados; incentivo ao número de artigos em detrimento da qualidade das pesquisas; horas de lazer tomadas pela necessidade de estudos e leituras; pressão sistêmica dos controles da carreira nos modelos quantitativos implantados pelo MEC com pontuações, requisitos de desempenho; penalizações para projetos “não rentáveis”; fim da autonomia intelectual, da liberdade de pesquisar o que julga ser importante para a sociedade e para a universidade.
A depressão e a Síndrome de Burnout são hoje consideradas as doenças mentais que mais afetam os docentes das IFES no Brasil. O Burnout, muito confundido com stress, acomete gravemente o indivíduo em três dimensões: exaustão emocional (incapacidade em dar de si em valores afetivos), despersonalização (sentimentos negativos, cinismo, agressividade e coisificação das relações) e distanciamento da rotina, das pessoas e da organização (anestesia das habilidades para a realização do trabalho).
Baião e Cunha (2013) elaboraram uma revisão da literatura sobre doenças e/ou disfunções ocupacionais no meio docente, concluindo que no total de 30 artigos selecionados em bases de dados científicas sobre o tema, no período de 2000 a 2012, foram apontadas como doenças as seguintes ocorrências: exaustão emocional, stress, síndrome de burnout, depressão, disfunções musculoesqueléticas, distúrbio de voz, pressão alta e lesões miocárdicas. Os fatores de adoecimento são: estado constante de alerta, exaustão física e mental, atividades excessivas, cobranças implícitas e explícitas, equilíbrio emocional, competitividade, responsabilidade, final de semestres com atividades acumuladas, baixos salários e perda de autonomia.
Para entender a mercantilização do trabalho docente
Sobre o atual cenário do trabalho Antunes e Alves (2004) chamam a atenção para o que denominam de processo multiforme da sociedade produtiva, cujo novo paradigma é o trabalho menos fabril, tradicional, manual, estável e especializado e mais horizontalizado, flexível, a distância e instável do ponto de vista da previsibilidade. A precarização do trabalho em geral ocorre, dentre outros motivos, pela tendência de se terceirizar serviços subcontratados, parciais e temporários; do desemprego estrutural advindo do desenvolvimento tecnológico, das gestões, das mutações organizacionais e da desindustrialização, fornecendo mão-de-obra ociosa para o subemprego e a informalidade; das mudanças demográficas como o aumento do trabalho feminino, dos idosos e dos jovens excluídos do mundo do trabalho e do trabalho doméstico, fatores que reforçam o emprego barato, semiqualificado e até mesmo voluntário. (ANTUNES e ALVES, 2004).
Como não poderia deixar de ser, o sistema educacional estruturado sofre diretamente os efeitos dessas mudanças, causando em seus sujeitos toda espécie de dificuldades. Considerado uma ocupação secundária ou periférica em relação ao trabalho material e produtivo, o trabalho docente é pouco valorizado na sociedade capitalista por ser apenas uma “preparação” para a “verdadeira vida”, ou seja, para o trabalho “real” produtivo (TARDIF e LESSARD, 2008). Historicamente tem sido analisado sob o prisma da reprodução repressiva que reforça as desigualdades na base do sistema socioeconômico, uma vez que reproduz os saberes direcionados e subordinados à produção e ao mercado de trabalho.
Quando Tardif e Lessard (2008) colocam as atividades do docente centradas no ser humano, levando-se em conta a subjetividade, a interatividade, a cognição e o resultado sobre outro indivíduo, revela-se aí uma fonte de incertezas, ansiedades, medos, conflitos, tensão etc, que caracterizam a carga psíquica do trabalho. A pressão pelos resultados, muitas vezes camuflada sob o véu da flexibilização e autonomia do trabalho; a titulação como fator obrigatório e a produção científica excessiva e quantificada como meio para alcançá-la; as competências didática, administrativa, comunicacional e intelectual além da geração de ciências, formam um conjunto de exigências desgastantes, levando o docente a um estado de esgotamento das forças mentais e físicas.
A dicotomia entre o discurso e a prática no ensino superior é outro aspecto digno de investigação e análise uma vez que, aparentemente, criou-se uma cultura de desvalorização da ciência em detrimento ao que é exigido nos postos do mercado de trabalho pelo processo de produção capitalista.
Bosi (2007) faz um amplo resgate a respeito da precarização do trabalho docente nas Instituições de Ensino Superior Federais, Estaduais, Municipais e Particulares, nos últimos 25 anos, denunciando a mercantilização do ensino superior brasileiro. Historicamente situada na década de 1970 a crise econômica que transformou o mundo do trabalho e, em consequência o mundo acadêmico, fez concentrar recursos em geração de conhecimento para novos processos produtivos do capital em transformação.
Tirando proveito da situação precária de subemprego, desemprego, arrocho salarial, desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho que caracterizaram a época, a economia capitalista incentivou a mercantilização do trabalho docente com apoio aos cursos de pós-graduação lato sensu pagos e abertura de Universidades Privadas.
Como aponta Bosi (2007) a iniciativa privada em educação tornou-se uma política de governo evidenciada pelos registros do período de 1980 a 2004 que mostram 53% de crescimento da força de trabalho nas IEES públicas contra 270% nas privadas. Se o processo fosse direcionado para a verdadeira expansão das práticas de pesquisa, ensino e extensão acadêmicos, esse fato seria positivo, porém, não foi o caso. Houve flexibilização na contratação de docentes “horistas”, utilização de alunos de pós-graduação como professores substitutos e muitas instituições oferecendo apenas ensino. O autor destaca a migração de recursos públicos federais para programas privados como o PROUNI – Programa Universidade para Todos, entre outras iniciativas direcionadas para atender ao mercado produtivo. A precarização do ensino superior público foi visivelmente precarizado e sucateado.
Outro fato histórico da intensificação do trabalho docente foi gerado pelo sistema de ampliação do ensino superior a partir de políticas como o REUNI – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais e a UAB – Universidade Aberta do Brasil. Criado pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007o Governo Federal instituiu o projeto REUNI associado ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) do Ministério da Educação e Cultura tendo como objetivo duplicar a oferta de vagas no ensino superior público, isto é, em cinco anos as metas eram de elevação da taxa de conclusão dos cursos para 90%, elevação da relação docente-aluno para 18, contando alunos de pós-graduação e aumento do número de vagas em 20%. A expansão do ensino superior público no Brasil, já havia iniciado no governo Lula, passando de 114 Instituições de Federais de Ensino Superior (IFES) em 2003 para 237 em 2011 com a criação de 14 novas universidades e mais de 100 novos campi.
Críticas feitas a esses programas foram amplamente discutidas, entre elas a massificação do processo educacional no país. Como salienta Mattos (2007) em relação ao REUNI:
[...] Não é simples avaliar o que está em jogo. De um lado, uma proposta de mudança radical dos cursos superiores nas Federais é definida por decreto, sem qualquer debate prévio com a comunidade universitária ou a sociedade. De outro, uma simulação de debate democrático nas universidades, com a idéia de que a “adesão” ao programa é voluntária. Por que simulação? Porque a chave da proposta é uma chantagem: o governo oferece recursos adicionais para as instituições aderentes, em troca do cumprimento de determinadas “metas”, numa reedição da velha fórmula do contrato de gestão, lançado por Bresser Pereira quando ministro do primeiro mandato de Fernando Henrique. A Autonomia Universitária, princípio garantido pela Constituição de 1988, perdeu-se no caminho (MATTOS, 2007).
Sobre a carga de trabalho e a precarização proveniente desse sistema de expansão, Mattos (2007) ainda diz:
Entre elas (metas), as principais são: dobrar as matrículas nos cursos de graduação; elevar a taxa de conclusão para 90% e estabelecer uma relação professor-aluno de 1:18, tudo em cinco anos. [...] A verdade, porém, é que tais indicadores são absurdos. Uma taxa de conclusão de 90% não existe sequer nos países de desenvolvimento industrial avançado (a média da OCDE é de 70%). Já a relação professor aluno de 1:18 (a média atual é de cerca de 1:14,5), considerando-se a existência de professores em atividades administrativas e de disciplinas práticas com limitações técnicas que exigem número reduzido de alunos (pensemos numa turma de prática de neurocirurgia, por exemplo, e avaliemos se ela pode ter mais de três alunos), significa na prática que as turmas da maioria dos cursos, especialmente as dos primeiros períodos, terão média superior a 70 estudantes, e não há sequer salas de aula suficientemente grandes para isso. Como o Decreto supõe que as Universidades possam chegar a cumprir tais metas? (MATTOS, 2007)
O REUNI está atrelado ao Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) o qual preconiza para a próxima década a limitação da folha de pagamento ao estabelecer que o gasto com pessoal nas universidades públicas não poderá crescer além de 1,5%/ano. Sob o lema de “Educação de Qualidade”, o Governo Federal abriu, nas IFES vinculadas ao programa de expansão, 65.306 novas vagas até o ano de 2008 (49% a mais) e criaram 810 novos cursos (34% a mais), conforme dados da Andifes. Somada ao crescimento de 2006, quando a política de expansão das IFES estava mais pautada pela interiorização de campi e criação de instituições, o aumento na oferta de vagas chega a 63% ou 77.279 novas vagas nas universidades federais. Em 2010, foram oferecidas 199 mil vagas. No período do Reuni, foram ainda contratados 15 mil docentes, a maioria com título de doutor.
Tendo como slogan “Brasil, pátria educadora”, Governo Federal assumido pela Presidente Dilma Rousseff em 1º de janeiro de 2015, colocou a Educação como prioridade, acima de quaisquer outras metas de governo. Em seu primeiro governo foi deflagrada, em 2012, uma das maiores greves das IFES realizadas no Brasil devido, entre outras causas, ao descumprimento com o plano de carreira, prometido e não efetivado, reajuste da defasagem salarial entre outras.
A desvalorização dos professores em relação aos outros segmentos do governo chegou a tal ponto que, na fala do professor Pierre Lucena, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pode-se ter a dimensão do descaso: "Só para terem uma ideia da distorção, em 2003 um pesquisador com doutorado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) ganhava R$ 300,00 a menos que um professor com doutorado na Universidade. Hoje ele ganha R$ 5 mil a mais que a gente. O mesmo acontece com o MCT [Ministério da Ciência e Tecnologia]".
Nessa ocasião o Sindicato Nacional das Instituições de Ensino Superior (ANDES) em nota oficial divulgou à sociedade a realidade de grande parte das IFES, “instituições sem professores, sem laboratórios, sem salas de aulas, sem refeitórios ou restaurantes universitários, até sem bebedouros e papel higiênico, afetando diretamente a qualidade de ensino”.
Observa-se a problemática docente quando se delineiam as críticas aos programas e a preocupação quanto à quantificação do subjetivo e a mercantilização da produção acadêmica, sobre a prática do ensino, pesquisa e extensão científicos.
Atendendo à demanda cada vez mais exigente do mercado produtivo de maior contingente de mão-de-obra especializada e inserida nos processos de avanços tecnológicos e científicos, fizeram das Universidades Federais um arranjo expansionista de primeira grandeza, onde o docente, indivíduo esquecido e superdimensionado em suas atribuições não se reconhece, se angustia e adoece.
A falta de reconhecimento, a desvalorização e a perda do significado social leva o trabalhador a um estado de angústia e frustração e, consequentemente, ao adoecimento. A carga de trabalho em uma profissão, segundo Dejours (1980 in: BETIOL, 2011) deve ser compreendida sob dois aspectos: a carga física suportada pelo corpo e a carga mental que o autor propõe separar em um referencial específico os elementos afetivos e relacionais ao qual chamou de “carga psíquica do trabalho”.
A “carga psíquica do trabalho” docente, ocasionada pelas várias demandas que se vê obrigado a atender, provoca consequências diretas em sua saúde.
A saúde e\ou doença mental nos atinge no que temos de mais subjetivo, no sentido de pertencente estritamente ao sujeito, territórios inexpugnáveis ao outro, e via de regra a nós mesmos, não há, não pode haver dois delírios iguais: as dores que o histérico/hipocondríaco inventa, doem na exata medida de sua radical idiossincrasia, da sua impossibilidade também radical de compartilhamento, da ausência de uma racional exteriorizada, de seu desrespeito à anatomia, quem sofre é o sujeito, não mais os músculos do seu pescoço. A saúde/doença mental obriga o pesquisador a enfrentar o dilema do indivíduo, sempre outro no momento em que a lógica ousa desvendá-lo (CODO e SAMPAIO, 1995, p. 10).
A quem importa o adoecimento docente? - Do trabalho intelectual à mercadoria científica
O trabalho e o ser humano como ser que trabalha são categorias profundamente discutidas em suas relações, por serem fundamentais para a compreensão da humanidade em sua totalidade. Como afirma Marx em suas fundamentações teóricas de base empírica, como ele próprio anuncia em seus Manuscritos, entre os processos sociais e os processos mercantis existe uma interdependência fundante, cuja história demonstra a impossibilidade de se compreender um sem se compreender o outro. A construção da vida humana é uma questão complexa que se explica pelas bases estruturais das relações produtivas que estratifica a sociedade entre classe trabalhadora e capitalista, que se contrapõem entre si.
O trabalho como atividade humana transformado em mercadoria, uma vez que possui preço, diversidade e mercado, gera toda a riqueza do capital, impondo, por sua vez, ao trabalhador, a luta pela sobrevivência, o estranhamento de si, a objetivação de sua personalidade, de seus sentidos e da sua humanidade.
Fugindo da armadilha metafísica, o caráter teleológico do trabalho será limitado, nesse estudo, à compreensão da finalidade objetiva de todo agir humano. A intensão de transformar algo em objeto com valor de uso não nasce apenas dos membros orgânicos que trabalham, mas também da vontade adequada que se manifesta durante a execução do trabalho. A ação cognitiva humana, mesmo que, no início da história, tenha sido em nível de consciência menos complexa, ainda assim foi a criadora dos meios de transformação da Natureza e dos processos naturais de elaboração da vida humana. Nas ações cognitivas mais simples pode-se perceber o início de descobertas que, posteriormente fomentaram iniciações científicas ao longo da jornada terrena.
Em Lukács (1981) encontra-se um aprofundamento dos enunciados, demonstrando os atos de consciência e a separação consciente entre sujeito e objeto. O autor mostra que essa relação é um produto necessário do processo de trabalho e, com isso “a base para o modo de existência especificamente humano”. O filósofo reitera as categorias centrais de Marx, aprofundando a essência histórica da sociabilidade burguesa “cujo trabalho alienado vai subtrair do ser justamente sua vida genérica, reduzindo-o a mero jogo de egoísmos” (LUKÁCS, 1981).
Na interação com o que faz, o ser humano coloca-se de forma integral, controlando ou sendo controlado pelo mecanismo econômico de gerar riqueza. Essas afirmativas são anunciadas quando Marx mostra que o ser humano possui a força de trabalho que, utilizada, passa a ser consumida num determinado processo de produção, tornando-se, o homem, um trabalhador. Sua relação com o trabalho e o valor que dele advém é determinado pelo capitalista que afere um valor de uso ao que foi produzido. Esse valor “não muda sua natureza geral por ser levada a cabo em benefício do capitalista ou estar sob seu controle” (MARX, 2011, pg. 211).
O trabalho humano como resultado da ação consciente e proposital (BRAVERMAN, 1981, p.50) não se compara às atividades instintivas inatas dos demais animais. No trabalho humano “o mecanismo regulador é o poder do pensamento conceptual, que tem origem em todo um excepcional sistema nervoso central”. Ter consciência cognitiva, capaz de organizar o meio, transformá-lo, intencionalmente utilizá-lo com fins e objetivos predeterminados é um atributo humano não apenas mecânico e biológico, mas uma realização da atividade humana sensível, elaborada e executada na construção de uma práxis objetiva.
Na análise da estruturação material feita pelo capital no mundo dito civilizado, a ciência emerge como força produtiva na medida em que se relaciona diretamente com os processos de valorização do capital sem, porém, sobrepujar a força principal que continua sendo o trabalho. Como segmento da sociedade, a geração de ciência é considerada uma atividade improdutiva como tal. A partir do momento em que se torna materializada em tecnologias, em inovações, em máquinas e ferramentas, passa a integrar o modo de trabalho.Assim descreve Antunes (2002):
Essa interpenetração entre atividades laborativas e ciência é mais complexa: o saber científico e o saber laborativo mesclam-se mais diretamente no mundo contemporâneo, sem que o primeiro se sobreponha ao segundo. As máquinas inteligentes não podem substituir os trabalhadores. Ao contrário, a sua introdução utiliza-se do trabalho intelectual do operário que, ao interagir com a máquina informatizada, acaba também por transferir parte dos seus novos atributos intelectuais à nova máquina que resulta deste processo. Estabelece-se, então, um complexo processo interativo entre trabalho e ciência produtiva, que não pode levar à extinção do trabalho vivo. Este processo de retroalimentação impõe ao capital a necessidade de encontrar uma força de trabalho ainda mais complexa, multifuncional, que deve ser explorada de maneira mais intensa e sofisticada, ao menos nos ramos produtivos dotados de maior incremento tecnológico. (ANTUNES, 2002, p. 12).
O trabalho improdutivo ao ser incorporado no processo de trabalho produtivo, seja na maquinaria, seja nos elementos materiais visíveis, se sobrepõem ao trabalhador, dominando-o, subjugando-o e alienando-o. Cada vez mais o trabalho improdutivo capitalizado se torna independente do conhecimento que o gerou para ser apropriação do lucro.
Utilizando como base teórica O capital e o Capítulo IV inédito de O capital, Santos (2013) resgata as categorias centrais de Marx (valor, mais-valia, trabalho produtivo e improdutivo e produção capitalista) para concluir que, apesar da tendência atual de criação de postos de trabalho imaterial (intelectual), que se alimentam de informação, aquisições intelectuais e cognição, a teoria elaborada por Marx dá ampla sustentação teórica e metodológica para explicar tal fenômeno. Assim, o trabalho social no capitalismo contemporâneo surge complexo e heterogêneo, intensificado na relação do trabalho vivo com o trabalho morto, com articulações cada vez mais amplas entre materialidade e imaterialidade, produtividade e improdutividade, atividades fabris e de serviços, execução e concepção, onde a finalidade imperante ainda é a produção de mais-valia.
Para concluir a discussão sobre o trabalho imaterial adoecido e precário, resgata-se a obra de Antunes “Os sentidos do trabalho” (2007) onde o autor trata da interação crescente do conhecimento científico e trabalho produtivo. Segundo Antunes, as novas exigências do capitalismo contemporâneo perpassam a complexidade com que o trabalho social está caracterizado. Com processos cada vez mais intensificados, descartáveis, com trabalhos cada vez menos estáveis, part time, flexível, o capitalismo se impõe na evidente criação de valores e “aumento da extração do sobre-trabalho em tempos cada vez mais reduzidos” (ANTUNES, 2005 p. 119). A qualificação excessiva, a multifuncionalidade e a intelectualidade aplicada à produção de valor, são mecanismos utilizados pelo capital, que se expande estrategicamente na redução do trabalho vivo, seu capital variável e na incrementação do trabalho morto, seu capital constante. Porém isso não significa que o trabalho social não esteja “subordinado à lógica da produção de mercadorias e de capital” (ANTUNES, 2005 p.128).
Quanto ao sofrimento humano e o adoecimento no trabalho são, aparentemente, temas da modernidade, porém a sociedade convive com essas misérias morais desde os tempos em que a prática humana de trabalhar se configurou na única forma de produzir a si mesmo.
Tomando o trabalho ontológico como forma de enriquecimento da essência humana e a propriedade privada, em clara oposição, como forma de produção da miséria humana Marx (2008), sob esse prisma, elabora um minucioso estudo sobre as carências impostas ao ser humano pelo processo de produção.
Cada homem especula sobre como criar no outro uma nova carência, a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em nova sujeição e induzi-lo a um novo modo de fruição e, por isso, de ruína econômica. [...] O homem se torna cada vez mais pobre enquanto homem, carece cada vez mais de dinheiro para se apoderar do ser hostil, e o poder de seu dinheiro cai precisamente na relação inversa da massa de produção, ou seja, cresce sua penúria à medida que aumenta o poder do dinheiro. A carência de dinheiro é, por isso, a verdadeira carência produzida pela economia nacional e a única carência que ela produz. [...] a expansão dos produtos e das carências o torna escravo inventivo e continuamente calculista de desejos não humanos, requintados, não naturais e pretenciosos... (MARX, 2008 p.139)
Carências como necessidades não satisfeitas, segundo o entendimento posto, provêm não só dos desejos fetichizados relativos aos objetos e à sociedade em tudo que ela representa, mas também das situações de desumanização do homem, cuja natureza não se reconhece mais. Sofrimentos, frustrações, desalentos, abandonos, suicídios, prostituição, miséria material são carências impostas por outros seres humanos, a quem Marx compara à relação perversa de adulação entre eunucos e seus senhores industriais.
Marx apontou na obra, hoje intitulada “Sobre o suicídio” (2006), tradução de seu título original “Peuchet: vom Selbstmord”, fatos de distúrbios emocionais, sociais, ocorridos em Paris e registrados pelo Sr. Jacques Peuchet, arquivista policial, funcionário público e membro do partido monarquista, atuante na França. Retratando a sociedade de 1846, Marx denuncia o comportamento de cidadãos e, principalmente cidadãs, em suas vidas privadas onde se encontravam destituídas de futuro, oprimidas, hostis e despersonalizadas. O objetivo, ao se debruçar sobre esse tema, era destacar e criticar, por meio de fatos reais, as premissas hegelianas de vida natural e idealizada, no vazio de objetivos concretos que se impunham aos seres humanos possuidores ou não de riquezas, uma vez que a própria classe burguesa sofria a subjetivação adoecida e desprovida de significados.
Diante da perspectiva de adoecimento do ser humano no trabalho, Seligmann-Silva (2003) faz um breve histórico sobre as pesquisas e ações de saúde no trabalho chamando atenção para autores como Giovanni Jervis, que estudou trabalhadores fabris na Itália na década de 60, e constatou que:
Se os transtornos psíquicos, tal e como concretamente se manifestam na vida do indivíduo, são sobretudo o reflexo pessoal parcial de algumas contradições sociais, se também é certo que até agora a psiquiatria tentou ocultar este fato (esforçando-se por apresentar o sofrimento individual como um fato privado, contingente e vergonhoso) então é hoje necessário que da contradição individual e particular passemos à tomada de consciência do dano coletivo, e a partir deste, a das condições sociais que o geraram (JERVIS, 1981 p. 68 apud SELIGMANN-SILVA, 2003 p. 64).
O que nos mostra Seligmann-Silva (2003) é que na literatura psiquiátrica desenvolveu-se uma linha específica de pesquisas sobre o sofrimento gerado por vivências humanas, incluindo o trabalho. Sobre isso a autora esclarece que há a necessidade de diferenciar o que é transtorno mental caracterizado pela nosologia oficial e o que são os mecanismos psicológicos de defesa utilizados para evitar a ansiedade, o medo, a depressão, as vivências de desproteção ou de sentir-se ameaçado. Nas situações de trabalho, segundo a autora, o mecanismo de defesa assume proporção e caráter coletivo.
Le Guillant (1984 apud Merlo, 2002) estabeleceu a relação entre trabalho e psicopatia quando realizou estudos a respeito do comportamento das telefonistas de Paris, que apresentavam alterações de humor, no sono, angústia, palpitações, sensações de aperto toráxico, “bola” no estômago e até mesmo mudança de caráter. A tudo isso Le Guillant denominou de Síndrome Geral de Fadiga Nervosa. Para a interferência do trabalho na vida pessoal, ou seja, nos horários e espaços externos ao ambiente do trabalho, ele chamou de Síndrome Subjetiva Comum da Fadiga Nervosa.
Christophe Dejours (1992) em sua obra denominada “A loucura do trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho” discorre sobre o adoecimento do homem no trabalho dizendo que:
As repercussões do processo de trabalho sobre a saúde do trabalhador são advindas tanto das condições de trabalho como das organizações do trabalho. Enquanto as primeiras, que dizem respeito às condições físicas, químicas e biológicas do ambiente de trabalho se refletem sobre o físico do trabalhador, aquelas que dizem respeito à divisão técnica e social do trabalho (hierarquia, controle, ritmo, estilo gerencial) repercutem sobre sua saúde psíquica, causando-lhe sofrimento, doenças físicas e mentais. (DEJOURS, 1992).
Dessa forma pode-se observar que o trabalho interfere significativamente na saúde humana. Vasta literatura sustenta essas afirmativas e devem ser a base de todo processo analítico que pretende discutir a saúde do trabalhador. A chamada “sociedade moderna” nascida dos processos industriais, da propriedade privada e das transformações sociais onde imperava a objetivação desumana e antinatural, patriarcal, autoritária, necessitava de uma reforma radical em seus princípios. Em quê a sociedade atual se diferencia? A quem importou os inúmeros suicídios de cidadãos e cidadãs, burgueses ou operários, levados ao máximo de sofrimento moral? A quem importa o sofrimento e o adoecimento docente?
Análise final para iniciar novos debates
Não é difícil compreender as contradições e o processo dialético que envolvem a prática docente e seu adoecimento no âmbito do trabalho.
A configuração complexa do trabalho imprime, subliminarmente, uma marca de glamour nos processos cada vez mais intelectualizados, fetichizados, cercados de tecnologias e postos de trabalho virtuais. A flexibilização de rotinas, de turnos, as equipes multidisciplinares, as competências humanizadas e a supervalorização das ações socialmente responsáveis tanto organizacionais como individuais, induz a um entendimento de modernidade saudável. Os recorrentes discursos pelo bem da saúde física e mental do trabalhador, os incentivos para atividades físicas, os benefícios sociais sofisticados concedidos pelas grandes indústrias contribuem para a construção de uma falsa consciência de sociedade participativa. A maquinaria, apropriada da inteligência artificial, faz do desenvolvimento tecnológico o meio de intensificação do trabalho em escala social.
Diante da sociedade constituída pode-se dizer que o estado contemporâneo do ser docente está posto a partir de sua condição intelectual desenvolvida para e no trabalho. Mecanismos sofisticados de formulação do comportamento e desenvolvimento estão cada vez mais apoiados nas ciências, embora não considerem a parcela vulnerável do ser humano em seus sentimentos e abstrações. Pesquisas científicas para desenvolvimento de técnicas e métodos psicológicos, sociológicos, filosóficos, antropológicos, educacionais, ergonômicos, entre outros, são direcionadas exclusivamente para desenvolverem adaptações do homem para o trabalho, sendo ainda largamente subsidiadas pelo capital mundial.
O mercado mundializado e globalizado sugere um homem genérico, com domínio de línguas estrangeiras, de comportamento flexível e direcionado para o aprendizado rápido. O mundo acadêmico, refém do mercado, é estimulado a ser autogerido no desenvolvimento de sua carreira e nas atividades cognitivas, sendo levado ao desempenho focado em resultados, à mercantilização de suas pesquisas e à intensificação das atividades administrativas, de ensino, de pesquisa e de extensão para além de sua carga horária formal.
As transformações produtivas em curso no modo de produção capitalista apontam para a elaboração contínua de formas explorativas do trabalho humano voltadas para a obtenção da mais-valia tanto absoluta como relativa. Esse desdobramento, cuja origem está nas formas produtivas do trabalho, acabam por afetar todos os ramos do próprio trabalho.
Essa afirmação é fundamental para o entendimento da precarização das condições de trabalho dos professores. As mudanças no cenário produtivo impactam em pressões no âmbito empresarial visando submeter a própria lógica da pesquisa científica aos seus próprios interesses. Tomando como referência o investimento necessário para o desenvolvimento de pesquisas, as próprias agências de fomento nacionais e internacionais passam a adotar critérios de financiamento voltados à resposta aos interesses dos homens de negócios e às formas reprodutivas do capital. O que se percebe é a transferência de princípios da produtividade empresarial para a área acadêmica, estabelecendo dimensões produtivistas acompanhadas da adoção de concepções epistêmicas para esse fim.
O sentido do trabalho acadêmico passa a ter seu lócus a partir das afirmações citadas no parágrafo anterior. Os critérios produtivistas impostos à conceituação de cursos Stricto Sensu, exigência de publicação em periódicos científicos nacionais e internacionais definidos por critérios do "Qualis", pressões em termos da produção científica de alunos, entre outros, acabam por intensificar o trabalho dos professores, consumindo-os em todo o seu período vital. A inspiração toyotista imposta pelos critérios de obtenção da mais valia absoluta e relativa expressas pela ocupação das vinte e quatro horas do tempo do trabalhador são retomados no ambiente acadêmico. Em outras palavras, as formas de envolvimento toyotista expressas pela negação da jornada de trabalho em prol de formas de envolver as mentes dos trabalhadores, conquistando suas subjetividades e, consequentemente, suas próprias mentes, são retomadas e reafirmadas no mundo acadêmico, potencializando processos de alienação e estranhamento do trabalho dos professores.
Um cenário precário de condições de trabalho se consolida com essa ação. Os professores estranhados em sua própria condição de trabalho acabam por atuar em ambientes acadêmicos movidos por relações precárias entre seus pares assentadas em uma espécie de desertificação das próprias relações sociais.Essas formas de estranhamento acabam por envolvê-los nas teias da individualização máxima, entendo a sua própria condição de sofrimento como natural e não social.
A luta pela construção de uma sociedade centrada pelo trabalho concreto e em negação radical ao trabalho abstrato se apresenta como um grande desafio para a humanidade. A humanização das condições de trabalho dos professores pesquisadores passa pela própria humanização da sociedade como um todo. A negação de uma sociedade cuja produção científica se movimenta pelos interesses reprodutivos do capital se apresenta como grande desafio para o futuro. Como galgar a produção científica exaltando sua dimensão utilitária e não a predominância do império do valor de troca? Quais consequências essas ações poderem trazer para o futuro? Quais interesses de classe imperam sobre a produção científica?
As afirmações a seguir de Enstein referentes à ciência e a tecnologia ilustram as preocupações que aqui elencamos. Os desafios estão postos...
Minha ação quanto à bomba atômica e Roosevelt consistiu meramente no fato de que, em razão do risco de Hitler ser o primeiro a possuir a bomba, assinei uma carta ao presidente que foi redigida por Szilárd. Se eu soubesse que aquele medo era injustificado, eu, assim como Szilárd, jamais teria participado da abertura desta caixa de Pandora. Pois minha desconfiança em relação aos governos não se limitava ao da Alemanha. (EINSTEIN apud MÉSZÁROS, 2004, pp. 276-283)
Referências
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Ligação alternative
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/19/369 (pdf)
Artigo relacionado
[Artigo corrigido , vol. 1, 32-47] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/19/369