Dossiê Temático

Estado brasileiro e políticas públicas voltadas para educação especial e educação inclusiva

Brazilian state and public policies aimed to special education and inclusive education

Estado brasileño y sus políticas públicas enfocadas para la educación especial y la educación inclusiva

Silmara Aparecida Lopes
Universidade de Sorocaba – SP, Brasil
Jane Soares de Almeida
Universidade de Sorocaba – SP, Brasil

Estado brasileiro e políticas públicas voltadas para educação especial e educação inclusiva

Laplage em Revista, vol. 1, núm. 1, pp. 46-56, 2015

Universidade Federal de São Carlos

Copyright © 2015 Laplage em Revista. Todos os direitos reservados.

Recepção: 10 Abril 2015

Aprovação: 30 Abril 2015

Resumo: Este trabalho tem como propósito uma breve análise do desenvolvimento das políticas públicas voltadas para a educação especial e educação inclusiva e do papel do Estado nesse processo, no recorte temporal de 1988 até 2013. Para facilitar esta reflexão optou-se por dividir o texto em três partes: na primeira serão apresentadas algumas considerações sobre a concepção de Estado no capitalismo; na segunda analisa-se o Estado brasileiro a partir da década de 1990 e na terceira busca-se captar o desenvolvimento da educação especial e inclusiva através da análise de documentos e legislações. Observa-se que as contrapartidas solicitadas pelos organismos multilaterais ao Estado Brasileiro têm sido contempladas quanto à inclusão de alunos com “necessidades educacionais especiais” nas salas regulares com a consequente relação custo-benefício; entretanto, é necessária a discussão em aprofundamento sobre a efetiva qualidade e devolutivas que tais arranjos provocam, objetos que estudaremos nesse artigo.

Palavras-chave: Inclusão Necessidades Educacionais Especiais. Políticas da Educação..

Abstract: This work aims a brief analysis of the development of public policies for special education and inclusive education and the state's role in this process period from 1988 to 2013. To facilitate this reflection it was decided to divide the text into three parts: the first will present some considerations on the design of State in capitalism; the second analyzes the Brazilian state from the 1990s and the third seeks to capture the development of special and inclusive education through the analysis of documents and legislation. It is observed that the counterparts requested by multilateral organizations to the State have been included on the inclusion of students with "special educational needs" in regular rooms with the consequent cost-effective relation; however, it is necessary to deepen the discussion about the real quality and feedbacks that these arrangements promote, objects that we are going to study in this article.

Keywords: Inclusion Special Educational Needs. Education policies..

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo un breve análisis de la evolución de las políticas públicas enfocadas para la educación especial y la educación inclusiva y el papel del Estado en este proceso enmarcado desde 1988 hasta 2013. Para facilitar esta reflexión se decidió dividir el texto en tres partes: la primera presentará algunas consideraciones sobre la concepción de Estado en el capitalismo; la segunda analiza el estado brasilero a partir de la década de 1990 y la tercera busca captar el desarrollo de la educación especial e inclusiva a través del análisis de los documentos y las legislaciónes. Se observa que las contrapartes solicitadas por los organismos multilaterales al Estado Brasilero han sido consideradas en cuanto a la inclusión de los alumnos con "necesidades educativas especiales" en las aulas regulares con la consecuente relacion de costo-beneficio; sin embargo, es necesario profundizar en la discusión sobre la calidad real y la retroalimentacion que esos acuerdos provocan, asuntos que se estudiarán en este artículo.

Palabras clave: Inclusión Necesidades Educativas Especiales. Las políticas educativas.

Introdução

Este trabalho tem como propósito realizar uma breve análise do desenvolvimento das políticas públicas voltadas para a educação especial e educação inclusiva e do papel do Estado nesse processo, portanto, foi realizado um recorte temporal para o estudo das legislações a partir de 1988 (C.F). Para facilitar esta reflexão optou-se por dividir o texto em três partes: na primeira serão apresentadas algumas considerações sobre a concepção de Estado no capitalismo; na segunda analisa-se o Estado brasileiro a partir da década de 1990 e na terceira busca-se captar o desenvolvimento da educação especial e inclusiva através da análise de documentos e legislações concernentes a esses domínios.

Por meio do materialismo histórico e dialético, procura-se tecer algumas relações entre as três partes do texto. No entanto, não se tem a pretensão de fazer um inventário ou exposição sistemática dos assuntos tampouco de analisar todos os documentos legais que abrangem esse período. Destarte, foram escolhidas fontes históricas que melhor pudessem contribuir com esta pesquisa, visto que as observações e considerações apresentadas não têm caráter definitivo e comportam outras reflexões e críticas.

É relevante esclarecer que para os fins desta pesquisa a terminologia educação especial observa o conceito adotado na LDB/96 que a trata como uma modalidade de ensino, tendo um capítulo específico sobre esse assunto, dando margem para que seja considerada e vivenciada como “apartada” da educação, de modo geral, e a terminologia educação inclusiva observa o conceito ampliado adotado na Declaração de Salamanca que não deve ser interpretada somente à luz da educação especial (que historicamente é relacionada às pessoas com deficiência), já que visa a inclusão nas escolas regulares de uma diversidade de alunos e não somente das pessoas com deficiência, daí o argumento para que os sistemas transformem as escolas regulares em escolas inclusivas.

Esse deslindamento faz-se necessário porque a educação inclusiva no Brasil, em alguns documentos legais, aparece especificamente relacionada à educação especial, confundindo e causando dificuldades para aqueles que deverão colocar em prática as políticas públicas. A terminologia alunos com necessidades educacionais especiais (ANEE) que, de certo modo, foi adotada no Brasil a partir da LDB/96, tornou o público-alvo da educação especial bastante ampliado, ensejando que quase todos os alunos em algum momento poderiam ter necessidades educativas especiais. Porém, a terminologia ANEE no Brasil tem sido mais relacionada com a educação especial, não viabilizando, portanto, a interpretação correta da Declaração de Salamanca que concebe essa terminologia para a educação de modo geral.

A realidade da expansão crescente do Estado e seu papel cada vez mais ampliado, complexo e dinâmico no processo de acumulação do capital têm suscitado debates importantes nos últimos anos, sobretudo em alguns países da América Latina, como é o caso do Brasil. Como se optou nesta pesquisa por considerar que o Estado nas sociedades avançadas pode ter um papel mais ampliado, estabeleceu-se um diálogo com os pensamentos de Gramsci e Poulantzas tentando apreender suas concepções de Estado. No entanto, buscando ir além do que os autores disseram ou pensaram, com o intuito de compreender a realidade, tem-se o cuidado de não creditar a eles significados que não produziram e que podem estar presentes neste texto.

Gramsci e o Estado

Para desenvolver sua teoria ampliada de Estado, Gramsci terá como base o pensamento de Marx e Lênin. Neste sentido, Gramsci considera a afirmação de Marx de que a superestrutura é definida a partir da economia, mas identifica que apesar de acertada, a colocação não é suficiente. Em Gramsci a hegemonia burguesa na sociedade civil ocorre pelo “predomínio ideológico dos valores e normas burguesas sobre as classes subalternas”.

Para ele o Estado incluía a hegemonia da burguesia na superestrutura, já para Marx o Estado capitalista é resultante da divisão da sociedade em classes e não é um poder neutro acima dos interesses das classes, enfatizando o caráter de dominação de classe do Estado, considerando-o, exclusivamente, um mecanismo de opressão e de repressão para as classes dominadas, buscando garantir a reprodução do capitalismo.

Foi Gramsci quem “atribuiu ao Estado parte dessa função de promover um conceito (burguês) único da realidade e, consequentemente, emprestou ao Estado um papel mais extenso (ampliado) na perpetuação das classes". Colocando o Estado como parte da superestrutura, Gramsci o torna “uma variável essencial em vez de secundária, na compreensão da sociedade capitalista” (CARNOY, 1994, p. 90-91; 98).

Para Gramsci (1978a) a hegemonia consiste no fato de que, na sociedade capitalista, a classe dominante consegue convencer e persuadir a classe dominada a aceitar e compartilhar seu sistema de crenças bem como seus valores sociais, culturais e morais. . Pode-se dizer que a hegemonia é um tipo particular de dominação, uma dominação consentida, especialmente de uma classe ou grupo social sobre outro. Esse pensador esclarece que a hegemonia pressupõe “que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa”. Porém, tais sacrifícios não se relacionam com aquilo que é essencial para os grupos dominados, “pois se a hegemonia é ético-política também é econômica”, ou seja, a dominação ocorre por meio da superestrutura e estrutura. (GRAMCI, 1978b, p. 33). Carnoy (1994, p. 102) afirma que não “é a separação da superestrutura em relação à estrutura o que Gramsci enfatiza, mas a relação dialética” entre ambas.

O papel dos intelectuais

Gramsci ao acreditar nas capacidades intelectuais dos trabalhadores, concebia o intelectual orgânico como aquele que atua para construir a hegemonia da classe social a que pertence dando homogeneidade e consciência a essa classe no campo econômico, político e social; sendo, portanto, um componente axial para o partido revolucionário (que representa as classes subalternas) que deveria estimular e mobilizar esses intelectuais e capacitá-los, “através das funções educacionais do partido” para a função de comandar os anseios e as ideias de sua classe, já que as classes dominantes buscam, nas classes dominadas, intelectuais suplementares para dar uniformidade e autoconsciência para seu grupo, fortalecendo seu domínio.

Estes intelectuais cooptados para atender os interesses de outra classe, deixam de ser orgânicos e são considerados intelectuais tradicionais (CARNOY, 1994, p.114-115). Nesta perspectiva, as classes sociais exploradas, subalternas, excluídas (que são a maioria da população), podem estabelecer a contra-hegemonia, através de seus intelectuais orgânicos, organizando e construindo uma alternativa ao que está posto, criando uma nova ordem social.

Poulantzas e o Estado

Para Poulantzas o Estado é moldado pela luta de classes e tem uma “autonomia relativa” em relação às classes dominantes. Para ele os aparelhos ideológicos do Estado (como a escola), os aparelhos ideológicos que apresentam características de “privados” (como a igreja) e os aparelhos que podem ser considerados tanto públicos quanto privados (meios de comunicação, instituições culturais, etc.) apesar de suas funções específicas, estão todos intimamente ligados ao Estado, podendo deslocar-se de aparelhos ideológicos para repressivos e vice-versa, o que traz dificuldades para separar as funções de um e de outro. Em Poulantzas, os definidores das relações numa sociedade são a estrutura e a luta de classes, sendo o Estado parte e consequência dessa luta (CARNOY,1994). É neste sentido que Poulantzas observa a autonomia relativa do Estado em relação às frações do bloco no poder, pois aquele age para equilibrar as demandas impostas pelas classes dominadas às classes dominantes fazendo concessões, em certos momentos, às classes subalternas devido às lutas de classes que travam na arena do Estado que atua como organizador e unificador político em nome das classes dominantes.

Uma contribuição importante trazida por esse pensador trata-se do papel do direito (sua função reprodutiva) no Estado capitalista. O direito capitalista faz com que todos pareçam iguais perante a lei, apesar de continuarem diferentes e separados nas classes sociais, através de um sistema de homogeneidade política. Dentro desse sistema, ter-se-ia a “igualdade” no campo político, permanecendo as desigualdades sociais e econômicas. Desta forma, o direito serve para deslocar a luta de classes da esfera econômica para a arena política, tornando o próprio Estado o objeto da luta (CARNOY, 1994).

Gramsci (1978b) já havia alertado que o direito não representa toda a sociedade, “mas a classe dirigente, que “impõe” a toda a sociedade aquelas normas de conduta que estão mais ligadas à sua razão de ser e ao seu desenvolvimento” e afirmou que foi “com o nascimento e o desenvolvimento das desigualdades que o caráter obrigatório do direito aumentou” (p. 152-153). Assim, quanto mais desigual for uma sociedade maior deverá ser seu aparato jurídico-estatal e maiores serão as necessidades de leis; não é à toa que em nosso país a quantidade de leis é enorme, haja vista que de acordo com o Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD-2010), o Brasil tinha o terceiro pior índice de desigualdade do mundo, evidenciando que a diferença entre ricos e pobres continua abismal.

Pode-se dizer que o pensamento clássico marxista que entende o Estado como um mecanismo exclusivo da burguesia para opressão e repressão das classes dominadas, vem sendo enriquecido com a contribuição de pensadores como Gramsci e Poulantzas que o concebem de maneira mais ampliada, fornecendo material teórico do marxismo para reflexão e pesquisa quanto ao papel do Estado nas sociedades atuais, apontando alternativas em oposição ao universalismo presente no discurso (neo) liberal de liberdade política, social e econômica que não passam de pensamentos abstratos, já que as classes dominadas, exploradas, estão distantes de sair do reino da necessidade para alcançar o reino da liberdade1.

O pensamento neoliberal

Para se vislumbrar o contexto do período delimitado nesta pesquisa, é preciso compreender como foi se configurando o pensamento neoliberal.

As ideias neoliberais foram ganhando força, principalmente, no final da década de 1970 como resposta a mais uma das crises do capitalismo (a crise do capitalismo dos anos 70 era evidenciada pela aceleração da inflação, o desemprego e o baixo crescimento econômico). Neste sentido, o discurso neoliberal ataca o Estado de Bem-Estar Social (Estado organizador da política e da economia e que procura estabelecer relações profundas entre o desenvolvimento social e o desenvolvimento econômico) de inflacionar as economias através de suas políticas sociais.

Diante da referida crise, o neoliberalismo começou a ser implantado na Inglaterra em 1979, nos EUA em 1980, espalhando-se, posteriormente, para outros países. Porém, as primeiras experiências de ajuste neoliberal foram ensaiadas na América Latina: Chile, em 1973 e Argentina, em 1976. Para o pensamento neoliberal o melhor Estado é o Estado “mínimo”. O receituário neoliberal prevê a diminuição da participação financeira estatal no fornecimento de serviços no âmbito social como saúde, educação, moradia popular, etc.; a desregulamentação em relação às atividades econômicas e sociais pelo Estado, com a alegação de que o mercado seria mais eficiente do que o Estado nessas áreas.

Com isso, os governos neoliberais incentivam privatizações e maior participação não governamental em serviços públicos, bem com sua descentralização. No entanto, diferentes arranjos e articulações desses elementos podem ser observados na operacionalização do neoliberalismo que procura levar em conta as “especificidades” dos países em que será implantado, mas sem perder seu foco de “ajustes estruturais”.

O neoliberalismo enquanto uma resposta encontrada pelo capital à sua própria crise, reconfigura as políticas sociais do Estado, exigindo “ajustes” em vários âmbitos, inclusive no educacional. No caso brasileiro, o processo de “reforma” da educação para atender ao receituário neoliberal, deu-se com o governo de Fernando Henrique Cardoso em sintonia com as exigências básicas do capital em crise e com as recomendações dos organismos internacionais (FMI, Banco Mundial, etc.) Nesta linha de reflexão, contamos com o apontamento de Fonseca (1995) acerca do papel do BM (aliado da ideologia neoliberal) em relação às políticas educacionais:

Uma outra diretriz enfatizada nos documentos de política educacional do Banco dizia respeito à necessidade de criar padrões de eficiência nos sistemas de ensino e na gestão dos recursos financeiros, de forma a torná-los mais econômicos para os países. Neste sentido, propunha-se a utilização de métodos inovadores e pouco custosos com vistas a atender em maior escala a população à margem do sistema educacional (FONSECA, 1995, p. 170).

As reformas educacionais “recomendadas” pelo Banco Mundial ao Brasil, procuravam sobretudo reduzir os gastos públicos com educação, através de estratégias de aprimoramento das tarefas educativas que conduzissem a uma utilização mais eficiente dos recursos já disponíveis. Nesta perspectiva, parte-se da hipótese de que os movimentos pela inclusão social e, consequentemente, pela inclusão escolar trazem uma relação bastante íntima com o pensamento neoliberal. Seria a inclusão uma (re) invenção neoliberal?

Pode-se conjeturar que o discurso pela inclusão vem dando conta, trabalhando com uma mesma ideia (a da inclusão nas classes comuns), de dois objetivos do neoliberalismo em relação às reformas educacionais: expansão do acesso à escola para todos (para o pensamento neoliberal é relevante que os indivíduos possuam escolarização mínima para que possam acompanhar as relações que se dão na sociedade atual, tudo em benefício do capitalismo em sua nova roupagem) e economia para o Estado, através do reaproveitamento dos espaços e dos profissionais já existentes.

As classes dominantes tendo consciência de sua dominação e de que não basta ter o controle da estrutura (econômico), trabalham na complexidade da superestrutura reconstruindo todo o sistema de crenças, ideologias e discursos para conseguir manter-se no controle. Assim, vem apresentando sua proposta (neste caso o neoliberalismo) como a única possibilidade para a crise.

A sociedade dualizada, dividida em integrados e excluídos, ganhadores e perdedores, na per-spectiva do pensamento conservador neoliberal, não deve ser encarada como algo ruim, sendo até desejável que assim seja, já que um dos seus princípios, o princípio do mérito e do individualismo competitivo, sugere que os indivíduos podem mobilizar-se socialmente em função de certos atributos que poderiam conquistar livremente no mercado, dependo apenas de seu esforço e eficiência pessoal, como se o ponto de partida de cada indivíduo, suas dificuldades para garantir a continuidade de sua existência não fossem obstáculos reais para a conquista de seu “mérito e eficiência pessoal” no competitivo “mercado neoliberal” (GENTILI, 1995).

O discurso neoliberal de Estado “mínimo” deve ser entendido como “mínimo” para os gastos sociais (como educação saúde, habitação popular, etc.), mas “máximo e forte” para atender aos desígnios do capitalismo. Essa ofensiva neoliberal que tenta apagar da memória os direitos sociais conquistados através de muitas lutas, deve ser refutada pela presença da consciência de que outras realidades, menos desiguais e excludentes podem ser pensadas e construídas, daí o papel fundamental da contra-hegemonia e da pressão dos movimentos sociais.

Legislações e documentos que buscam sustentar a educação especial e educação inclusiva

A educação tem assumido papel de destaque no panorama das políticas governamentais brasileiras, principalmente, a partir da década de 1990 em que se pode verificar o fortalecimento do discurso e de propostas que revelam a intenção de garantir educação para todos. Considera-se necessária uma breve explanação das determinações políticas, econômicas e sociais ocorridas no país, nesse período, que acabaram por conduzir as políticas educacionais.

Nessa época, o governo brasileiro não contava com um projeto conciso para abranger a educação nacional, portanto, apresentava-se o momento oportuno para a intervenção dos organismos internacionais (Banco Mundial, FMI, etc.) que visavam o crescimento econômico, já que a economia se encontrava em crise, devido ao novo padrão de acumulação, exigindo da educação outras características, comportamentos e atitudes. Nesta direção, considerando o compromisso assinado frente à proposta de “Educação para Todos” (1990), as políticas educacionais brasileiras vão sendo organizadas para incorporar a política do capital financeiro.

Após a reforma do Estado (empreendida no governo de FHC) que encaminhou a privatização de empresas públicas, mudanças estruturais na economia, inicia-se a reforma no campo da educação. A educação, nesse contexto, serve ao Estado capitalista para a formação do consenso e passa a ter importância fundamental na difusão dos conteúdos, habilidades, competências e valores ligados a essa “nova sociabilidade neoliberal”. As exigências dos organismos internacionais apresentadas como propostas para que aconteçam as reformas no âmbito educacional, nada mais eram do que a busca em adequar a escola e os sujeitos às novas necessidades do mercado mundial, i.é., atender as exigências do sistema capitalista para alcançar o desenvolvimento desejado e inserir-se no mundo globalizado.

A Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990) irá marcar o início de uma “mudança” de postura em relação à educação, especialmente, das classes populares. A Declaração relembra que “toda pessoa tem direito à educação” e assevera que apesar dos esforços realizados por países do mundo inteiro para garantir o direito à educação para todos, persistem tristes realidades educacionais: “mais de 100 milhões de crianças, das quais pelo menos 60 milhões são meninas, não têm acesso ao ensino primário”.

Em relação às pessoas com deficiência, registra que é necessário “tomar medidas que garantam a igualdade de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência” (Idem, 1990). No Brasil, a partir dessa Declaração, podemos observar várias legislações e documentos construídos no sentido de se atingir o princípio da Educação para Todos. Outro marco relevante ocorreu em 1994 com a Declaração de Salamanca. Na introdução da Declaração, encontramos que o princípio que orienta sua estrutura é o de que as escolas deveriam incluir crianças deficientes e superdotadas, “crianças de rua e que trabalham, crianças de origem remota ou de população nômade, crianças pertencentes a minorias linguísticas, étnicas ou culturais, e crianças de outros grupos desvantajoso ou marginalizados”.

A UNESCO, UNICEF, UNPD e o Banco Mundial tiveram forte participação tanto na Conferência Mundial de Educação para Todos (UNESCO, 1990) quanto na assembleia de Salamanca (1994). A Declaração de Salamanca defende o “direito à educação de todos os indivíduos”, apela aos governos para que atuem no sentido de “incluir todas as crianças” e afirma que seguindo a orientação inclusiva, propiciam às crianças educação de qualidade, promovendo eficiência numa ótima “relação custo-qualidade” (UNESCO 1994). É possível perceber pelos apontamentos da Declaração que as escolas regulares foram “escolhidas” como “meios capazes” para a construção de “uma sociedade inclusiva”, visando atingir “a educação para todos”.

O Brasil sendo signatário da Declaração Mundial de Educação para Todos e da Declaração de Salamanca, vem demonstrando “simpatia” pela construção do sistema educacional inclusivo e, desde então, instaurou-se um processo de mudanças nas legislações federais, sendo construído um arsenal imenso de leis no intuito de materializar a “pedagogia da inclusão”.

Desde a década de 1990, o neoliberalismo ronda as terras brasileiras e tem como mote a diminuição da participação do Estado nas políticas sociais, apesar de ter um discurso favorável à inclusão social das pessoas com deficiência e de outros estratos da população que se encontram em situação de exclusão, dentro de seu projeto hegemônico. Há um escamoteamento da realidade, característica do poderoso discurso (neo) liberal que utiliza do embuste ao garantir direitos nas leis, porém, devido às contradições que são inerentes à sociedade dividida em classes, muitos daqueles não podem ser colocados em prática para a maioria da população.

A Constituição Federal de 1988 prevê a garantia do atendimento educacional especializado, preferencialmente, na rede regular de ensino. A LDB 9.394/96 contempla um capítulo específico para a Educação Especial que é concebida como uma modalidade de educação escolar (trazendo para muitos profissionais da educação a ideia de que a educação especial é uma educação à parte da educação geral).

Pela LDB, a educação especial deverá ser oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino. Portanto, os dois diplomas legais trazem o advérbio “preferencialmente” que tem causado controvérsias quanto à sua interpretação, ensejando que não sendo obrigatório o acesso à escola regular, este possa ser protelado para aqueles que são alvo dessas políticas públicas. Enquanto no Brasil a integração das pessoas com deficiência, ainda, está muito presente no final da década de 1990, nos países europeus e na América do Norte o movimento pela inclusão das pessoas com deficiência vem ocorrendo desde a década de 1970 ou 80. Acreditamos ser relevante, fazer uma rápida e simples explicação sobre o paradigma da integração e o da inclusão escolar das pessoas com deficiência. Na integração é o aluno quem deve se adaptar às exigências da escola; na inclusão é a escola que deve ser transformada para acolher todos os alunos.

O paradigma da integração supõe que o aluno seja preparado para depois ser incluído nas classes comuns, porém, tal “preparação” para muitos nunca se efetivou, sendo mantidos nos sistemas “apartados”. Nas últimas décadas brasileiras, o paradigma da integração dos indivíduos que apresentam deficiência, distúrbios, tem sido bastante discutido por pensadores da área sendo considerado por muitos um conceito ultrapassado, abrindo espaço para o paradigma da inclusão escolar.

O Censo Escolar (2001) registrou que em 28/3/2001 as matrículas de “alunos portadores de necessidades educativas especiais” em escolas especializadas e nas classes especiais representaram 323.399, enquanto que nas classes comuns (alunos incluídos) as matrículas representaram 37.679, demonstrando que o paradigma da inclusão, ainda, tinha avançado pouco.

No ano de 2001, foi publicada a Resolução CNE/CEB Nº 2/2001, que institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Em seu artigo 7°, afirma que o “atendimento aos alunos com necessidades educacionais especiais deve ser realizado em classes comuns do ensino regular, em qualquer etapa ou modalidade da Educação Básica”, não utilizando o “preferencialmente” registrado na Constituição Federal e na LDB.

Nesse documento legal a terminologia já aparece modificada, substituindo os termos “portadores de deficiência” e “portadores de necessidades especiais”, pela terminologia ANEE. De todo o arcabouço legal analisado para esta pesquisa, observa-se que a educação inclusiva, na grande maioria, aparece relacionada com a educação especial e nem sempre relacionada com a educação comum, embora nos documentos específicos de educação especial apareçam registros de que as escolas devem se tornar inclusivas.

Pode-se observar que o leque de alunos a ser atendido pela educação especial, com a normatização trazida pela Res. CEB/CNE 2/2001, torna-se oficialmente bastante ampliado, semelhante ao previsto na LDB (que já dava margem ao conceito ampliado de alunos que seriam público-alvo da educação especial), trazendo consequências para essa modalidade de ensino que não recebeu condições estruturais, financeiras, dentre outras, para dar conta de tamanha demanda de alunos. Lopes (2014) em sua pesquisa sobre a terminologia ANEE, afirma que:

[...] a terminologia ANEE por abranger uma multiplicidade de alunos e ser forjada como neutra e abstrata, contribuiu para escamotear os determinantes econômicos, políticos, sociais e culturais que agem na caracterização da anormalidade [...]. Durante os dezesseis em que vigorou, na LDB 9.394/96, o termo portadores de necessidades especiais, não fica difícil presumir, levando-se em conta constatações empíricas, que boa parte dos discentes nele enquadrado nem sempre foi beneficiada. Pois, ao serem, em sua maioria, conhecidos na escola como “alunos especiais”, diante de um sistema seletivo e excludente de ensino, ficavam à espera dos serviços especializados muitas vezes por anos consecutivos, recebendo migalhas educacionais ou nenhum ensino comum que já naturalizara seu fracasso escolar [...] (p.747).

Em 2013, com a redação dada pela Lei nº 12.796 que alterou os artigos 58-60 da LDB (que tratam sobre a educação especial), a terminologia ANEE foi substituída pela terminologia educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, provavelmente por influência da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2007) promulgados no Brasil pelo Decreto n° 6.949/09. Pela Convenção os alunos com deficiência não poderão ser rejeitados pelas escolas sob a alegação de deficiência.

Desse modo, a partir de 2013 a educação especial brasileira, em tese, teve o seu público-alvo diminuído. Entretanto, permanece a contradição terminológica, já que ora deve atender a uma diversidade de alunos (ANEE) mesmo sendo concebida por muitos profissionais da educação como um sistema à parte da educação comum, ora deve atender a um público-alvo mais específico ensejando sua “diferenciação” da educação comum que deve ser inclusiva. Afinal, todo tipo de educação não deveria ser necessariamente especial e intrinsecamente inclusiva?

Em janeiro de 2008, foi publicado o documento “Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva” que inicia reconhecendo que a Educação Especial “se organizou tradicionalmente como atendimento educacional especializado substitutivo ao ensino comum”, desencadeando a criação de escolas especiais e de classes especiais. Registra que a inclusão em escolas regulares vem crescendo “com o desenvolvimento de políticas de educação inclusiva”, pois o número de matrículas nas salas comuns já é maior do que o número de matrículas em escolas e classes especiais.

Não há, entretanto, menção quanto à qualidade da educação que vem sendo oferecida nas classes comuns (para os incluídos), embora haja o reconhecimento de que as políticas anteriores não viabilizaram as mudanças necessárias nas práticas escolares, ou seja, a escola passou a receber nas últimas décadas um público cada vez mais diversificado, porém, suas práticas continuaram com “padrões homogêneos”. Nesta direção, a pesquisa feita por Lopes (2014) traz que:

À medida que o sistema educacional continuar contribuindo para a perpetuação das relações estabelecidas na sociedade dividida em classes e para a conservação social em prol daqueles que exercem a hegemonia, a educação das camadas menos favorecidas permanecerá com qualidade medíocre. Até porque esse divórcio ou casamento mal arranjado entre professor da sala regular e professor especializado é malsão para a construção de escolas inclusivas e para a efetivação de ensino de qualidade. [...] Junte-se a isto que muitos dos alunos rotulados (diagnosticados, pelos profissionais do ensino, na maioria das vezes, sem qualquer base científica) como deficientes intelectuais leves, com distúrbios, desajustados, etc., não o são de fato, haja vista que em ambientes não escolares, ajudam seus pais, brincam, trabalham, namoram, enfim voltam a parecer “normais” (p. 747-748)

O Censo da Educação Básica de 2012 demonstra que a inclusão em salas comuns vem ganhando muita força, registrando que em 2007, o número de matrículas nas salas comuns da rede pública de ensino (alunos incluídos) foi de 285.923 e em 2012, foi de 583.619. Pelos dados estatísticos apresentados percebe-se que a os alunos com deficiência, com distúrbios, os alunos “diferentes”, os que no passado foram excluídos, estão tendo maiores oportunidades de “estar” na sala de aula regular (o que representa um avanço no quesito acesso) e que o Estado brasileiro pelo reaproveitamento dos espaços escolares e dos profissionais da educação já existentes nas escolas comuns, vem conseguindo atender ao receituário dos organismos internacionais quando afirmam que o acesso à escola precisa ser expandido, mas com ótima relação custo-benefício, conforme assinalado na Declaração de Salamanca. Enquanto a qualidade do ensino e da aprendizagem que vem sendo oferecida (aos incluídos) na esteira da educação especial e da educação inclusiva continuar não sendo oficialmente avaliada com vistas à implementação de políticas públicas educacionais adequadas para melhorar o aspecto especificamente qualitativo do processo de ensino e aprendizagem, aquelas ficam sob suspeita.

Considerações finais

Apesar da apologia neoliberal pelo Estado “mínimo”, este, ainda comporta as lutas de classes, possibilitando que as classes dominadas, exploradas, excluídas, possam elaborar a contra-hegemonia, mormente, contando com o papel fundamental dos intelectuais orgânicos que podem ajudar a estabelecer a consciência das classes para que possam pressionar o Estado e seus aparelhos no sentido de conseguir melhores condições de vida.

Pensadores como Gentili (1995) e Frigotto (1995) apontam que as ações neoliberais produzem mais desigualdades, mais exclusões, donde se pode conjeturar que os poderosos discursos elaborados pelos “neoliberais” conseguem escamotear a realidade das classes dominadas, exploradas que vivenciam (muitas vezes sem ter consciência plena) o movimento constante da exclusão-inclusão-exclusão (boa parte dos alunos incluídos, também, vivencia esse movimento, quando depois de serem “incluídos”, paradoxalmente, tornam-se excluídos sob a condição de fracassados escolares), cada vez mais disfarçado pelo sutil e refinado sistema de ideologias neoliberais.

Frigotto (1995)assevera que a alternativa para a crise não é a regressão neoliberal como vem ocorrendo, mas que se deve pensar em novas formas sociais, colocando como alternativas às relações sociais de exclusão, o socialismo com democracia e a “escola pública unitária, numa perspectiva de formação omnilateral e politécnica, levando em conta as múltiplas necessidades do ser humano”, pensamentos que continuam relevantes, nos dias atuais, na perspectiva de uma sociedade melhor (p.104-105). Trazendo à lembrança a “escola unitária” pensada por Gramsci, a qual seria mantida pelo Estado, tornando “a inteira função de educação e formação das novas gerações, ao invés de privada, pública, pois somente assim pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas” (GRAMSCI, 1978, p.121).

Diante da “escola unitária” em Gramsci como uma alternativa que já carrega em seu bojo o combate às desigualdades, que buscaria a eliminação das exclusões, das clivagens do sistema de ensino (escola para os ricos, para os menos ricos, para os pobres, para os menos pobres...), parece que o discurso pela inclusão tornar-se-ia desnecessário.

Pois, ao contrário do que ocorre no neoliberalismo que produz muito mais exclusões e desigualdades para continuar garantindo a hegemonia do capitalismo e a exploração do “outro”, excluindo os indivíduos para depois fazer de conta que os incluí (muitas vezes de forma abstrata ou passageira) e excluí-los novamente num movimento sutil e contínuo, as alternativas do socialismo com democracia e da “escola unitária” produziriam, em tese, uma escola fundamentada no combate à exclusão e, não havendo exclusão, não seria mais necessário “construir” a inclusão, sinalizando que a escola pública de qualidade que todos sonhamos não precisa ser “batizada de escola inclusiva”, basta que as relações externas e internas à escola não sejam excludentes e desiguais.

Referências

BRASIL. Lei nº 12.796, de 04 de abril de 2013. Brasília, 2013.

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Notas

1 Para Marx “o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta [...]”. Sobre esse assunto ver mais em MARX, K. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Livro III, vol. VI, 1971, p. 942.

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