Dossiê Temático
Laicidade e religiões de matrizes africanas na escola: percepções docentes
Secularity and religions of african arrays at school: teacher perceptions
Laicidad y religiones de origen africano en las escuelas: percepción de la enseñanza
Laicidade e religiões de matrizes africanas na escola: percepções docentes
Laplage em Revista, vol. 2, núm. 3, pp. 23-37, 2016
Universidade Federal de São Carlos

Recepção: 10 Setembro 2016
Aprovação: 03 Outubro 2016
Resumo: Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada com professoras/es de história, cujo objetivo era desvelar suas concepções sobre laicidade e religiosidade na escola e compreender se suas posições interferem nas relações sociais, no combate à discriminação religiosa e na promoção do respeito às diferenças e a diversidade cultural. Foram empregados procedimentos metodológicos etnográficos, observação do cotidiano e aplicação de questionário a professoras/es de História de uma escola municipal do Estado do Rio de Janeiro que cursavam uma especialização em ensino de História numa Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Constatamos que existem lacunas na compreensão do conceito de laicidade e religiosidade na escola e defendemos que os mesmos devem estar presentes nos currículos dos cursos de formação de professoras/es, principalmente nos cursos voltados para a escola pública. A educação intercultural seria um caminho, uma vez que evidencia uma nova consciência dos direitos as diferenças.
Palavras-chave: Religiosidade Diversidade. Diferença e interculturalidade..
Abstract: This article presents the results of a research made with history teachers, which objective was to discuss their conceptions about secularity e religiousness in school, to comprehend if their positions interfere in social relations, as a weapon of combat to religious discrimination and in promotion of respect to the differences and cultural diversity. To do so, methodologic and ethnographic procedures were made, day-to-day observations and applied quiz to history teachers of a municipal school of State of Rio de Janeiro and that studied one specialization in history teaching in a Federal University of Rio de Janeiro. By the end, we realized that there are many blank spaces in secularity and religiousness comprehension in school. That is why we defend the presence of those concepts in the courses of teacher’s formation curriculum, especially in courses aimed to public school. The multicultural education would be a path, once that highlights a new conscience of the rights and differences.
Keywords: Religiosity Diversity. Difference and interculturalism. .
Resumen: Este artículo presenta los resultados de una investigación hecha con maestros de Historia cuyo objetivo era revelar sus concepciones acerca de laicidad y religiosidad en las escuelas, para comprender si sus opiniones intervienen en las relaciones sociales en el combate a discriminación religiosa y en la promoción del respeto a las diferencias y a la diversidad cultural. Para hacerlo, fueron empleados los procedimientos metodológicos etnográficos, la observación de lo cotidiano y aplicación de cuestionarios a maestros de historia de una escuela municipal del Estado do Rio de Janeiro y que cursaban una especialización en enseñanza de Historia en la Universidad Federal do Estado do Rio de Janeiro - UFRJ. Se encontró que hay muchos vacíos en la comprensión del concepto de laicidad y religiosidad en la escuela. Por eso, los autores de este artículo creemos que estos conceptos deberían estar presentes en los planes de estudio de los cursos de formación de profesores, principalmente en los cursos direccionados a la escuela pública. La educación intercultural sería un camino, una vez que pone como evidencia una nueva consciencia de los derechos a las diferencias.
Palabras clave: Religiosidad Diversidad. Diferencia e interculturalidad. .
Introdução
“- Macumbeiro!”. Diz um aluno.
“- Macumbeiro
é você!”. Responde o outro.
“- Eu
não! Você que anda com essas tralhas no
pescoço!”.
"E a
professora apenas observa”.
Esta cena captada durante um momento de atividade em uma escola motivou-nos a realizar este estudo. Vejamos alguns outros episódios recentemente noticiados e de grande repercussão sobre intolerância religiosa na escola no Estado do Rio de Janeiro: em setembro de 2014, um menino de 12 anos foi proibido de entrar na escola pela direção por usar bermudas brancas e guias por baixo do uniforme; no dia 11 de fevereiro de 2015, uma aluna de 11 anos do 6º ano do Ensino Fundamental acusou uma professora de constrangimento por tê-la proibido de assistir à aula com o adereço feito de palha e amarrado aos antebraços característicos de iniciação no candomblé; e no dia 30 de setembro de 2015 uma adolescente de 14 anos foi agredida por uma colega de turma, dentro da escola, por ter postado uma foto, do dia anterior em uma rede social, na qual a menina aparece ao lado da mãe e de uma amiga, num culto do Candomblé.
Tais episódios, o silêncio da professora e as falas inicialmente apresentadas em forma de xingamento entre crianças nos provocaram, não somente indignação, mas também questionamentos. Cabe ressaltar que de início colocamos em questão o conceito de tolerância, pois entendemos que este pode ser traduzida como uma falsa aceitação do outro. Aceitar a diferença não significa que se concorde com ela, ou até mesmo pode-se aceitá-la, mas se mantém a ideia de hierarquia entre saberes, culturas e modos de ser. Compreendemos a intolerância como inaceitação do outro, da cultura, da diferença. Também assumimos aqui, que historicamente a intolerância religiosa se abate particularmente sobre as religiões de matrizes africanas que se traduz como uma das faces do racismo. (SILVA, 2015).
Motivadas pelos episódios acima citados, entre outros constatados, em dados legais, e em pesquisas recentes organizamos nosso estudo. Parece-nos um assunto premente para se propor, neste tempo em que os debates e propostas religiosas tomam conta dos discursos, agendas dos governantes e projetos políticos que orientam as pautas das políticas públicas. Assim, definimos essa temática como objeto de investigação fazendo um recorte analítico, uma vez que o entendemos como um aspecto nodal e necessário para pensar e escrever.
Neste artigo descreveremos o resultado de uma pesquisa cujos objetivos foram compreender qual a visão dos professores de história que atuam na escola básica sobre os conceitos de laicidade e religiosidade na escola; se a compreensão desses conceitos interfere no ensino e nas relações sociais na escola; no combate à discriminação religiosa; e na promoção do respeito à diversidade cultural. Como procedimentos metodológicos optamos pela pesquisa etnográfica, com aplicação de questionários às/aos professoras/es, bem como a observação do cotidiano escolar.
Legislação, laicidade e tolerância religiosa
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 definiu no seu artigo 18 que: “Todo Homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. A liberdade religiosa é um direito previsto na Constituição Federal de 1988, garantida pelo art. 5º, inciso VI, que estabelece como “inviolável a liberdade de consciência e de crença” e pelo inciso VIII, segundo o qual “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa”.
A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997 (Lei Caó), em seu artigo 6º define como crime, passível de prisão, “recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau”; como explicita o artigo 20: “praticar, induzir ou incitar, por qualquer meio, a discriminação ou preconceito, piorando a situação de quem o fizer pelos meios de comunicação e impedir ou dificultar o acesso de alguém a cargo público, emprego ou estabelecimento de ensino”. E o artigo 28 complementa: “humilhar alguém publicamente, por motivo de crença religiosa”. Isso se traduz, de acordo com a Lei, que “o crime por intolerância religiosa é inafiançável e o autor pode pegar de três a cinco anos de detenção”. (BRASIL, 1989).
A Declaração de Princípios sobre a Tolerância aprovada pela Conferência Geral da UNESCO em sua 28ª reunião, em Paris, no dia 16 de novembro de 1995, tomou como referência diversos documentos legais, entre eles: a Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino (1960); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1968); a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais (1978); e a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação fundadas na religião ou na convicção (1981).
A Declaração de Princípios sobre a Tolerância, em seu artigo 1º, define que a “tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro”. E determina a garantia da liberdade de pensamento, de consciência e de crença. Em seu artigo 4º declara que a “educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância”. (UNESCO, 1995).
Além disso, a Constituição Federal também prevê em seu artigo 19 que: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou suas representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Isto quer dizer que o Estado deve garantir o direito individual de livre opção e prática religiosa, porém, não pode apoiar ou eleger nenhuma religião como base do Estado, ressaltando, contudo, que todas as religiões e crenças são iguais perante a lei e todas devem ser tratadas com igual respeito, mas privilegiando a independência do Estado em relação às instituições religiosas. (CUNHA, 2009). Deste modo, advoga-se o princípio de um Estado Laico, que se traduz num “país ou nação com uma posição neutra no campo religioso”. Um Estado laico tem como princípio a imparcialidade em assuntos religiosos, não podendo apoiar ou discriminar nenhuma religião, mas embora defenda a liberdade religiosa a todos os seus cidadãos, não pode permitir a interferência de correntes religiosas em matérias sociopolíticas ou educacionais.
O Estado laico é aquele que tem sua legitimidade radicada na soberania popular. Ele não só dispensa a legitimidade conferida pelas instituições religiosas como é imparcial em matéria de religião. O Estado laico respeita todas as crenças, religiosas e antirreligiosas, desde que não atentem contra a ordem pública. Ele não apoia nem dificulta a difusão das ideias religiosas nem das ideias que consideram a religião fruto da alienação individual e/ou social. Respeita, igualmente, os direitos individuais de liberdade de consciência e de crença, de expressão e de culto. (CUNHA, 2013, p. 927).
Um Estado laico significa ter como princípio a defesa da não influência religiosa nos assuntos do Estado, baseando-se na premissa de que o laicismo garante a separação entre a Igreja e o Estado. Mas vale lembrar o destaque realizado pelo coordenador do Observatório da Laicidade na Educação Luiz Antônio Cunha (2009, p. 409):
Como se já não bastasse a oferta obrigatória da disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, frequentemente obrigatório para os alunos, na prática, a despeito da cláusula facultativa, enxertos adicionais têm sido introduzidos na legislação de estados e municípios, inclusive ao arrepio da Constituição Federal.
Portanto, se a laicidade do Estado pressupõe a não intervenção da Igreja em suas políticas e gestão, podemos questionar a determinação legal do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras e suas consequências, como ressalta Cunha.
A escola e a discriminação religiosa
A Constituição do Império, de 1824, conferiu ao Estado um caráter confessional, ao estabelecer em seu Título 1º, Art. 5º que “a Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império”. A Assembleia Constituinte responsável pela elaboração da Constituição de 1891 estipulou a separação entre Estado e religião ao assegurar em artigo 72, § 3º, que “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto”. A Constituição de 1934, capítulo II, artigo 113, inciso 1º, instituiu que “todos são iguais perante a lei”. E deste modo “não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas”. Em seu inciso 5º concebeu que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos”. No entanto, incluiu o artigo 153 ordenando o ensino religioso de frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa da/o aluna/o manifestada pelos pais ou responsáveis, mas que se constituiria matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais.
Tal determinação foi mantida na Constituição Federal de 1988, quando define que “O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. No entanto, as leis específicas à educação no Brasil não dão destaque à questão da discriminação religiosa. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), por exemplo, a discriminação religiosa não é tratada como tema privilegiado de atuação docente. Esta questão é destacada dentro do conceito mais amplo de “discriminação”, para enfatizar o papel das/os educadoras/es no combate a todo tipo de preconceito na escola. O trecho abaixo é um exemplo desta escolha:
[...] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais (BRASIL, 1997, s/n).
Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394/1996 - LDB) esta questão também aparece apenas de maneira sutil e indireta. O artigo IV da LDB que garante o “respeito à liberdade e apreço à tolerância” possibilita ao professor tanto silenciar sobre a discriminação religiosa quanto utilizá-lo para apontar a legitimidade deste debate. O mesmo ocorre com a Lei nº 10.639/2003, que altera o artigo 26 da LDB, tornando obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira, e a Lei nº 11.645/2008, que determina a inclusão do ensino da história e da cultura indígena. Entendemos com isso que elas podem servir para justificar e legitimar as diversas práticas docentes. Contudo, retomando a Declaração de Princípios sobre a Tolerância de 1995, verifica-se em seu artigo 4º, da Educação, as seguintes diretrizes:
4.1 A educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeira etapa da educação para a tolerância consiste em ensinar aos indivíduos quais são seus direitos e suas liberdades a fim de assegurar seu respeito e de incentivar a vontade de proteger os direitos e liberdades dos outros.
4.2 A educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo prioritário; por isso é necessário promover métodos sistemáticos e racionais de ensino da tolerância centrados nas fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância, que expressam as causas profundas da violência e da exclusão. As políticas e programas de educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos, linguísticos e as nações.
4.3 A educação para a tolerância deve visar a contrariar as influências que levam ao medo e à exclusão do outro e deve ajudar os jovens a desenvolver sua capacidade de exercer um juízo autônomo, de realizar uma reflexão crítica e de raciocinar em termos éticos.
4.4 Comprometemo-nos a apoiar e a executar programas de pesquisa em ciências sociais e de educação para a tolerância, para os direitos humanos e para a não-violência. Por conseguinte, torna-se necessário dar atenção especial à melhoria da formação dos docentes, dos programas de ensino, do conteúdo dos manuais e cursos e de outros tipos de material pedagógico, inclusive as novas tecnologias educacionais, a fim de formar cidadãos solidários e responsáveis, abertos a outras culturas, capazes de apreciar o valor da liberdade, respeitadores da dignidade dos seres humanos e de suas diferenças e capazes de prevenir os conflitos ou de resolvê-los por meios não violentos. (UNESCO, 1995, s/n. grifo nosso).
E em seguida instituiu em seu artigo 5º os compromissos de todos os signatários de “[...] fomentar a tolerância e a não violência por meio de programas e de instituições no campo da educação, da ciência, da cultura e da comunicação”. Entretanto, ao conversarmos com algumas/ns professoras/es de História observamos que a opção pelo silêncio – por ignorar a discriminação religiosa e qualquer debate envolvendo aspectos religiosos – é a mais disseminada. Muitas/os professoras/es sequer abordam esta questão na sua prática docente, não a inserindo em nenhum conteúdo curricular previsto. As tensões religiosas e as discriminações presentes na escola não são reconhecidas por estes professores e, quando o são, não são vistas como questões que merecem ser enfrentadas em sala de aula. Ou pior: é um assunto considerado polêmico e controverso demais e, portanto, é “mais confortável não discutir”. O que confirma a posição de Moreira e Candau (2003, p. 161), quando afirmam que “a escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização”.
Em se tratando da temática que determina o artigo 26A da LDB, professoras/es revelam que uma das principais dificuldades para trabalharem esse conteúdo está na abordagem sobre as religiões de matrizes africanas. Podemos exemplificar com a citação de dois comentários narrados por professoras/es:
O grande entrave que nós temos de trazer essas culturas para o ambiente escolar, para o ensino-aprendizagem, tem sido as questões religiosas. Porque essas tradições culturais africanas e indígenas, elas foram demonizadas, ao longo dos séculos, na história. (CARLOS, apud LIMA, 2016, p. 131).
Eu fui interditada de falar dos Orixás, de religiões afro-brasileiras. [...] Como eu vou falar do povo brasileiro e não vou falar disso? Vou falar de África e não vou falar de candomblé e de umbanda, e aí a gente até nem falava mesmo, a gente ficava mais nos arquétipos dos orixás. (MARTA, apud, CANDAU, 2012, p.153).
Se a sala de aula pode ser vista como um espaço de disputa, entre falas, barulhos e conversas paralelas, e de poder, o silêncio poderia ser compreendido como algo positivo ou negativo. De acordo com Marcelo Andrade (2015) o silenciamento faz com que as diferenças sejam negligenciadas. O autor define uma diferenciação entre silêncio e silenciamento. O silêncio poderia ser algo positivo, quando o pensamento é um diálogo consigo próprio. O silêncio poderia ser ainda uma tentativa de expressar uma denúncia às condições inadequadas de comunicação. Porém, ressalta que o silêncio também pode significar algo negativo quando aponta para a falta de diálogo e intervenção sobre aquilo que discordamos. Nesse sentido, estaria mais próximo do conceito de silenciamento, que segundo o autor expressaria a manipulação do discurso, de não querer escutar o que o outro, o diferente, ou seja:
[...] Aqui percebemos que o silêncio pode ser silenciamento, o propósito de manipular o discurso, de não deixar falar ou de não ouvir o outro, o diferente, o discordante, o dissonante, o destoante. Assim, devemos reconhecer que enfrentar o conceito do silêncio nos coloca diante de compreensões e/ou situações, muitas vezes, paradoxais. De fato, precisamos diferenciar o silêncio do silenciamento1. (ANDRADE, 2015, p. 63).
Este silenciamento é uma via de mão dupla na escola: se por um lado os alunos muitas vezes escondem suas ideias e suas religiosidades, o fazem por entenderem que há uma falta de abertura à comunicação na escola, de outro, a escola finge que estas diferenças não existem para, entre outros motivos, não ter que lidar com os conflitos religiosos. Assim, como constataram Moreira e Candau: “questionar o ‘silêncio’ que aprisiona é fundamental. Falar abertamente sobre a discriminação com os(as) alunos(as), para alguns dos(as) professores(as) entrevistados(as), assumia quase um caráter antipedagógico”. (2003, p. 164). O silêncio da escola e o silenciamento de alunas/os na sala de aula sobre as questões religiosas são fatores que não poderiam ser ignorados. Defendemos que uma prática pedagógica antirracista deve ser contrária ao que geralmente ocorre no cotidiano escolar quando se trata das diferenças. As/os professoras/es precisam ter como objetivo o debate e a reflexão sobre os vários assuntos que permeiam a vida dos alunos, entre eles os assuntos de cunho religioso, por entendermos como parte da cultura, necessários às contendas e cogitações sobre as diferenças e diversidades culturais e étnico-raciais. No entanto, percebemos que os conflitos que ocorrem no cotidiano escolar não estão relacionados, em sua grande maioria, as questões de conteúdos tradicionais das disciplinas.
A laicidade é um conceito que podemos discutir quando debatemos as temáticas religiosas presentes no cotidiano escolar. Compreendemos que essa discussão é necessária quando refletimos sobre em que momento ou como a escola pública laica deve tratar a religião. Também entendemos que a análise do conceito de laicidade busca remontar as origens, isto é, o momento em que se constitui a instituição escolar republicana laica, obrigatória e gratuita, para melhor compreender o mundo e a educação contemporânea. Ou seja, analisar a maneira que a laicidade na escola foi pensada e incorporada nos debates do Estado. O Estado, tal como conhecemos hoje, nasceu de um longo processo de laicização. Remonta à separação entre Estado e Igreja, quando se previu que esta deveria estar distante das decisões políticas e também das decisões educacionais de uma nação. A etimologia da palavra laico remete ao leigo da Antiguidade. O leigo era aquele que não pertencia ao corpo clerical e a hierarquia da Igreja Católica. Em outras palavras, leigo seria aquele vinculado ao mundo secular. (CUNHA, 2009). O termo laicidade aparecerá relacionado ao ambiente escolar em 1871, quando foi associado ao ensino público da França, de acordo com o apurado por Bastos no Novo Dicionário de Pedagogia e de Instrução Primária de Ferdinand Buisson, publicado em 1887. O verbete sobre laicidade expressa que:
A laicidade ou a neutralidade da escola em todos os graus não é nada senão a aplicação à escola do regime que prevaleceu em todas as nossas instituições sociais. Partimos, como a maioria dos povos, de um estado de coisas que consistia essencialmente na confusão de todos os poderes e de todos os domínios, na subordinação de todas as autoridades a uma autoridade única, aquela da religião. É somente através do lento trabalho dos séculos que, pouco a pouco, as diversas funções da vida pública distinguiram-se, separadas uma das outras e livres da tutela estreita da Igreja. (BASTOS, 2010, p. 268).
Maria Helena Câmara Bastos (2010) ao traduzir o verbete do dicionário citado, considerado a “bíblia da educação”, explicita seu entendimento do conceito de laicidade como o oposto ao que ocorria à época, uma “confusão de todos os poderes e todos os domínios” dentro do ambiente escolar. A autora explicita a origem do verbete revelando que:
A Revolução Francesa fez aparecer pela primeira vez com clareza a ideia de Estado laico, de Estado neutro entre todos os cultos, independente de todos os clérigos, liberado de toda concepção teológica. [...] Apesar das reações, apesar de tantos retornos diretos ao antigo regime, apesar de quase um século de oscilações e de hesitações políticas, o princípio sobreviveu: a grande ideia, a noção fundamental do Estado Laico, quer dizer, a delimitação profunda entre o temporal e o espiritual entrou nos costumes de maneira a não mais sair. (BASTOS, 2010, p. 269).
A inclusão desse verbete no dicionário de Buisson tinha como objetivo a distinção dos termos “laicidade” e “laicismo”, o qual tem relação com o anticlericalismo. A ideia laicista sugere a dissociação total entre o público e o religioso, é antirreligiosa. Já a laicidade é a tentativa de buscar um respeito ao princípio de separação do poder público e do poder religioso, sem abolir o último. Maria Helena Câmara Bastos destaca que:
A laicidade articula o ideal de um espaço cívico comum e o princípio de neutralidade confessional do Estado, que subentende liberdade de consciência e igualdade. Laicidade se refere a toda política de ensino público sem nenhuma influência religiosa e com o objetivo de uma neutralidade escolar. Laicismo, ao contrário, representa um combate contra todos os valores religiosos e mais particularmente aqueles defendidos pela Igreja Católica. (2010, p. 270).
Luiz Antônio Cunha defende o que denomina princípios de uma educação pública laica, isto é, uma educação para todos, em cujo espaço escolar não pode haver qualquer tipo de doutrinação. Para o autor, o ensino religioso e catequizante é um risco à escola pública. O risco está no desrespeito ao que pensam e querem as/os estudantes e o que podem querer a vir a pensar no futuro. Cunha aponta também que é um erro atrelar valores morais e éticos, como respeito aos outros e a solidariedade, a uma determinada religião. Quando se vincula esses conceitos a uma religião passa-se a ideia equivocada de que só o indivíduo que segue aquela crença específica é que seria detentor desses valores. O autor diz ainda que “Só uma concepção totalitária da vida imagina que é a religião que vai embasar a Pedagogia e dar sentido ao ensino público e aos valores humanos.” (2010, p. 170). Sobre o papel do/a professor/a no que tange a religião dentro do ambiente escolar, Cunha afirma que:
Os professores têm uma autonomia inerente à própria função. Isso lhes dá a garantia moral para se contrapor às imposições de determinados diretores e coordenadores pedagógicos. Essa base moral, no entanto, precisa vir acompanhada de uma base política. Caso contrário, os docentes podem ser perseguidos. Os sindicatos de professores deveriam ajudar a defender os docentes desse tipo de coação e desrespeito à escola pública. O professor está ali para ensinar História, Geografia etc. não para ser agente religioso. A base moral é individual, mas a base política tem de ser garantida por instâncias coletivas. (2014, p. 53).
O grupo de estudo liderado pelo professor Cunha defende a seguinte proposta sobre a escola pública laica:
A escola pública laica é própria do Estado laico. Só mesmo em situação de extrema incongruência, e por pouco tempo, é possível existir escola laica nas redes oficiais de ensino se o Estado estiver submetido à hegemonia de uma ou mais instituições religiosas. Da mesma forma, a laicidade do Estado não é compatível com a escola pública submetida pela religião. O Estado brasileiro é laico? As escolas das redes federal, estaduais e municipais são laicas? (2014, p. 53).
Da mesma forma entendemos que se o Estado brasileiro quer ser laico e quer também ter uma escola pública que contemple as diversidades e diferenças, esta escola deve ser igualmente laica. Mas a questão que se coloca é até que ponto se separa o público do privado, o subjetivo do coletivo e a religiosidade da laicidade?
Percepções docentes
Entendemos, a partir de nossos referenciais teóricos, que tudo na cultura é constituído por discursos. (BAKTHIN, 1997). Partindo dessa premissa, iniciamos nosso estudo com a observação das práticas docentes, bem como procuramos elaborar um questionário que explicitasse as percepções das/os docentes sobre laicidade e religiosidade e como estas imprimem marcas e determinam seus fazeres e propostas de trabalho. Nas ciências sociais, de acordo com Hartmut Günther (1999), são três os caminhos possíveis para a apreensão do fazer dos sujeitos: primeiro é a observação do comportamento que ocorre naturalmente no campo real; segundo é a criação de situações artificiais e a observação das ações diante dessas situações; e o terceiro é perguntar as pessoas sobre o que fazem (fizeram) e pensam (pensaram). Cada um desses caminhos apresenta vantagens e desvantagens as quais devem ser consideradas na escolha dos procedimentos metodológicos da pesquisa. Para o autor o levantamento de dados por amostragem assegura uma melhor representatividade e permite a generalização para uma população mais ampla.
Deste modo, optamos pela elaboração de um questionário, concebido como um instrumento para o levantamento de dados por amostragem. Arlene Fink e Jacqueline Kosecoff (1985, p. 13) definem o termo survey como “método inicial para coletar informação de pessoas acerca de suas ideias, sentimentos, planos, crenças, bem como origem social, educacional e financeira”. Partimos da perspectiva da produção de um estudo exploratório, de alcance restrito, que pudesse apontar alguns dados provocadores de reflexões e debates. O questionário, para Günther, é “um conjunto de perguntas sobre um determinado tópico que não testa a habilidade do respondente, mas mede sua opinião, seus interesses, aspectos de personalidade e informação biográfica”. (1999, p. 233). A apresentação do conjunto de perguntas ou premissas não altera os resultados. Isso significa que o questionário pode ser administrado em interação pessoal, por meio de telefone ou entrevista individual, como também pode ser autoaplicável, por envio pelos correios ou internet ou em grupos. A aplicabilidade de questionários está implícita às mais diversas áreas do conhecimento das ciências sociais.
Partindo desses pressupostos, elaboramos vinte frases sobre o tema. Nossa tentativa era estabelecer uma aproximação com o cotidiano social e escolar, procurando questões que se inserissem na realidade vivida pelas/os professoras/es. As frases seguiram um padrão de múltipla escolha, no qual existiam quatro opções para marcação. Cada opção revelava o grau de aceitação da ideia apresentada cujo número um representava a aceitação total da premissa e o número quatro a discordância completa.
As frases apresentadas foram as seguintes: 1) Dentro de repartições públicas é aceitável a exposição de símbolos religiosos afixados em murais e paredes, a exemplo de crucifixos; 2) O Estado deve ser laico, mas os representantes públicos podem relacionar suas religiosidades com suas práticas públicas; 3) Professores devem respeitar a religiosidade dos alunos, mas também tem o direito de professar sua fé em sala de aula; 4) Docentes e discentes podem, respeitando o outro, se negarem a fazer atividades pedagógicas que julguem contrariar suas crenças religiosas; 5) A laicidade dentro da escola não é alterada com a entrada do Ensino Religioso; 6) Alunos e professores podem usar adereços religiosos no ambiente escolar a exemplo do crucifixo ou turbante; 7) O espaço escolar deve ser aberto à comunidade e, sendo assim, pode abrigar cultos e outras manifestações religiosas; 8) Não se deve separar o domínio público, a cidadania, do domínio privado, onde se exercem as liberdades individuais; 9) O Estado e a escola laicos são ateus; 10) Ensino Religioso nas escolas públicas é inconstitucional; 11) A laicidade no ambiente escolar não é contrária à liberdade de expressão; 12) Dentro da escola pública não deve existir conhecimento sagrado ou inquestionável; 13) Professores não devem abandonar suas práticas pedagógicas e/ou conteúdos didáticos porque alguns adeptos podem achar que vão contra suas crenças religiosas; 14) A escola deve ser imparcial diante das crenças religiosas daqueles que frequentam seu ambiente; 15) Docentes de todas as matérias precisam abrir espaços, em sala de aula, para debates sobre o cotidiano, inclusive sobre as questões religiosas; 16) A disciplina de História deve trabalhar as questões sociais e culturais, incluindo as diferentes práticas religiosas das sociedades; 17) A História e Cultura Afro-Brasileira devem ser abordadas pela disciplina de história independente da crença religiosa do professor ou dos alunos; 18) O respeito à liberdade e a tolerância diante das diferenças devem ser princípios ensinados a partir da religiosidade de sociedades estudadas na disciplina de História, desde que não ofenda a crença religiosa de alunos e professores; 19) A história das diferentes religiões não deve ser tratada nas aulas de história, pois a liberdade de fé religiosa de estudantes e professores deve ser respeitada; e, 20) Como você se denomina: Ateu, Agnóstico, Espírita, Católico, Protestante/Evangélico, Candomblecista, Umbandista ou Outro.
As vinte frases preparadas para o questionário foram divididas em categorias. As nove primeiras afirmações corroboram com o pensamento de que o público e o privado podem se misturar e a laicidade não necessariamente é fundamental no espaço público. Já as nove questões em sequência seguem a linha de pensamento oposta, no qual o ensino público deve ter como uma característica a laicidade e o respeito às diferenças religiosas. Na penúltima afirmativa é novamente colocada a ideia de que para se respeitar a todos, a escola não deve abordar os assuntos religiosos. Por fim, a última questão proposta é sobre a religiosidade do próprio docente.
Para o acesso das/os professoras/es ao questionário utilizamos o recurso digital. Por entendermos que muitos das/os docentes contatados não possuem muito tempo disponível para encontros, assim optamos por um modelo que pudesse ser enviado e respondido pela internet. Tanto a elaboração quanto a distribuição do questionário foram realizadas no aplicativo “Google Formulários”. Com este aplicativo é possível o envio do questionário tanto por correio eletrônico como pelas plataformas do Facebook ou WhatsApp. Vale dizer que o número de docentes que utilizaram o e-mail para responder as questões foi muito mais baixo do que o número daqueles que optaram pelas demais ferramentas. Isso evidencia a forte inclusão de novas tecnologias no nosso cotidiano e também revela a premente instantaneidade na vida dos docentes. O questionário foi enviado a todo corpo docente de história da Escola Municipal José Alexandre, escola da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro, assim como a todas/os as/os professoras/es de história que estavam concluindo a Especialização em Ensino de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ. Foram enviados, no total, vinte e um questionários. Dos dois grupos reunidos, obtivemos um total de doze questionários devolvidos preenchidos.
As respostas, em sua maioria, seguiram um padrão. Majoritariamente as/os professoras/es foram a favor da laicidade e da tolerância religiosa dentro na escola. Porém, algumas/ns professoras/es responderam num viés mais religioso, demostrando uma heterogeneidade na formação e nas suas percepções. Seguindo a ideia de Bakhtin (1997), o diálogo se constitui em todos os discursos e enunciados. Sendo assim, as afirmações encaminhadas às/aos professoras/es de História já estavam sendo perpassadas por vários discursos e sua elaboração levava em conta o discurso do “outro”, que estava ali presente. O dialogismo, entendido por Bakhtin (1997), são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados. Nesse sentido, podemos entender que as respostas das/os professoras/es às afirmativas do questionário também dialogaram com o mesmo. Isso significa que enquanto as respostas eram assinaladas havia uma preocupação da/o professor/a com o que se pensaria dela/e e qual a melhor resposta que ela/e poderia dar para representar sua imagem naquele momento.
José Luiz Fiorin (2006) e Adriana Laplane (2000) apontam que para Bakhtin o sujeito age em função dos outros, ou seja, seu discurso está pautado no que está a sua volta, no seu contexto. Pensando dessa maneira, podemos entender que não necessariamente a prática pedagógica dessas/es professoras/es estará de acordo com as respostas dadas ao questionário. O exterior, no caso as perguntas propostas pelo questionário, interferem e perpassam na produção de sentidos e de subjetividade, ou seja, a eterna construção do “eu”, da identidade, foi de alguma forma influenciada pela leitura e reflexão gerada pela pesquisa.
É importante também destacar algumas características das/os participantes da pesquisa. Com relação às/aos professoras/es que estavam se especializando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, a maioria era de docentes formadas/os em instituições públicas. Além disso, por estarem cursando uma especialização focada no ensino de História, consideramos como um fator importante na construção da análise do perfil das/os docentes. Já as/os entrevistadas/os que fazem parte do grupo de professoras/es da escola da Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro não são muito diferentes. Em sua totalidade as/os participantes da pesquisa são professoras/es recentemente ingressadas/os no concurso para o magistério no município em questão. A grande maioria das/os concursadas/os tem o perfil de jovens formadas/os em universidades públicas, além disso, a quantidade de professoras/es que participaram da investigação e que são moradoras/es do município em que a escola está situada é nula, todas/os são moradoras/es da cidade do Rio de Janeiro, diferindo apenas nos bairros em que residem.
O questionário começa com afirmações sobre posições docentes e discentes em relação à laicidade e religiosidade na escola pública. Dessas nove afirmativas, a resposta das/os professoras/es a oito delas foi de defesa da escola laica. Isso aponta para a compreensão de que a escola pública deve ser laica e, portanto, deve excluir de seu ambiente e de suas práticas conceitos e símbolos que remetam a ideias de alguma religião específica. Apenas uma afirmativa, dessa primeira parte, teve a concordância da maioria das/os professoras/es. A frase de número seis dizia que “alunos e professores podem usar adereços religiosos no ambiente escolar a exemplo do crucifixo ou de turbante”. A questão do limite entre o público e o privado é ressaltada. Exemplos de países como a França, questionáveis, que foi o berço das ideias laicas, defendem que no ambiente público não pode existir nenhuma manifestação individual de religiosidade. Em 2004, por exemplo, os deputados franceses aprovaram a lei que proíbe o uso de "símbolos religiosos ostensivos", tais como o véu islâmico, a quipá judaica ou cruzes cristãs, nas escolas públicas.
Entendemos que cada cultura e cada país deve se organizar respeitando suas particularidades. Porém, no caso brasileiro, o uso pessoal de adereços que contenham simbologia religiosa em ambientes públicos como a escola, não contradiz a ideia da laicidade. Conforme a legislação brasileira, o Estado e suas instituições é que devem ser laicos e não devem ostentar objetos religiosos, mas as pessoas que frequentam os espaços públicos tem o direito de exercer sua liberdade e expressar suas ideias religiosas em seus corpos ou vestimentas.
Quanto à análise das afirmativas que colocavam a laicidade como um princípio a ser seguido dentro do espaço público, das oito frases, apenas uma teve a maioria das/os professoras/es se posicionando contra a ideia proposta. As sete afirmativas aceitas pela maioria das/os pesquisadas/os incluem as noções de tolerância, respeito e liberdade religiosa no ambiente escolar. Entre as questões constava a inclusão da História e Cultura Negra no currículo escolar. A grande maioria das/os entrevistadas/os partilha da ideia de que se trata de uma questão importante de ser abordada. A afirmativa de número dez do questionário recebeu respostas que se distanciaram das outras respostas desse conjunto. Ela faz menção à inconstitucionalidade do ensino religioso nas escolas públicas. Metade das/os professoras/es mostraram-se contrários a essa afirmativa. Aqui podemos ponderar sobre qual a religião as/os educadoras/es tinham em suas mentes quando questionados.
Sabemos de diversas escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, que oferecem o ensino religioso em suas escolas, mas que o mesmo é separado por crenças. Existe um amplo debate sobre essa questão, uma vez que em cada escola existe apenas uma professor/a de ensino religioso de uma determinada confissão religiosa, o que caracterizaria a valorização de certa religião em detrimento de outra.
Considerações finais
Diante do exposto neste trabalho, percebemos que ainda existem algumas lacunas na compreensão de sentido do conceito de laicidade na escola. Entendemos que uma clara compreensão do conceito e das temáticas relacionadas é de fundamental importância. Afinal, a construção de uma prática pedagógica que tenha como referência a interculturalidade na escola deveria eleger como pauta prioritária valores como tolerância, respeito ao diferente e a diversidade, e o entendimento de que podemos e somos sempre influenciados por aquelas/es que divergem de nossas identidades.
Como nos lembra Molar (2012, p.215) “a escola é o lugar para o qual convergem as tensões expostas pela sociedade, apresentando em sua estrutura uma pluralidade que é sentida de modo amplificado, no contato permanente e diário entre alunos e professores”. Nesse sentido, na escola as diferenças apresentam maior visibilidade, e principalmente que o contato com o diferente se dá de modo permanente, diário e inevitável. É nela que os conhecimentos produzidos pela humanidade são transmitidos e também onde os conflitos que possam surgir no seu cotidiano são mediados. Algumas ideias defendidas na educação como a interculturalidade (CANDAU, 2008), que seria a busca pela construção da diversidade, a qual tenta provocar uma leitura positiva do outro e o respeito à diferença, amplia o olhar para uma educação que visa trabalhar com as questões de identidade e alteridade.
É necessário estarmos atentos à criação de novos valores éticos que tenham como base a noção de alteridade, como a relação entre os desiguais. A educação intercultural seria um caminho para isso, uma vez que coloca como evidencia uma nova consciência dos direitos as diferenças. Mas ressaltamos aqui a importância de não enxergamos o/a professora como o/a grande redentor/a ou articulador/a de todas as demandas da sociedade. Reafirmamos que existe ainda uma larga distância entre o que é aprendido nos cursos de formação de professores/as com o cotidiano escolar ao qual a/o recém-formada/o é lançada/o. Porém, dentro da perspectiva deste estudo, podemos afirmar que o conceito de laicidade deve estar presente no ensino de História, principalmente nos cursos voltados para a formação docente para a educação pública. Isso significa que concordamos que deve existir uma separação entre o religioso e o público. Inserida no contexto da sala de aula, a laicidade pode favorecer ao maior debate e quebra de preconceitos perante concepções discriminatórias, racistas e intolerantes. O ensino de História pode ter grande relevância no papel de problematizador de conceitos e ideias do chamado senso comum.
A/o professor/a de História pode, em sua atividade pedagógica, incluir debates sobre os discursos de intolerância religiosa e racismo, levando às/aos alunas/os a possiblidade de reflexões, almejando mudanças de pensamentos e atitudes. A escola deve ser o lugar mediador dos conflitos entre as identidades e o significado das mesmas, assumindo o compromisso com a noção de identidades plurais e fluidas. A escola deve ser um espaço de construção de identidades, sabendo que essas não são fixas, são antes afeiçoáveis e sempre mutáveis e que a interação com o outro é o que permite a constituição da nossa própria identidade. A escola então deve pretender alcançar o aprofundamento da alteridade. Enfatizamos aqui que a pluralização de identidades que perpassam o ambiente escolar não pode ser negligenciada, sendo necessária para atender a demanda por uma sociedade mais justa e igualitária em direitos e deveres. Sendo assim, o debate sobre o ensino religioso na escola pública só pode ocorrer quando for coerente com um ensino laico e se colocar como agregador da religiosidade como dimensão humana, e não em seu caráter confessional ou doutrinário.
Referências
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Notas
Ligação alternative
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/197/428 (pdf)
Artigo relacionado
[Artigo corrigido , vol. 2, 23-37] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/197/428