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Escrita emancipatória, a experiência sensível e a corporeidade em trabalhos acadêmicos

Emancipatory writing, sensitive experience and the corporeity in academic papers

Escrita emancipatoria, la experiencia sensible y la corporeidad en trabajos académicos

Viviane Melo de Mendonça
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/Sorocaba, Brasil
Geraldo Tadeu de Souza
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/Sorocaba, Brasil

Escrita emancipatória, a experiência sensível e a corporeidade em trabalhos acadêmicos

Laplage em Revista, vol. 3, núm. 2, pp. 170-178, 2017

Universidade Federal de São Carlos

Atribuição não comercial internacional. Direitos de compartilhar igual e dar crédito aos autores e periódico.

Recepción: 10 Mayo 2017

Aprobación: 10 Junio 2017

Resumo: O presente artigo discutiu as experiências de feitura e/ou orientação de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) com o objetivo de analisá-los não no sentido de formatação, normas e padrões acadêmicos, mas como uma potência criativa possível em cursos de graduação, em suas dimensões ética, estética e política. O TCC é considerado como uma etapa quando o/a estudante pensa, cria, produz o saber e o conhecimento e tem o/a orientador/a como um/a companheiro/a de caminhada. Foram descritas algumas abordagens de TCC em seu sentido tradicional no contexto atual das universidades brasileiras e, por fim, discutiu-se sobre o trabalho de escrita do TCC como um processo que envolve o corpo e suas marcas afetivas, tornando-o uma possibilidade de mobilização e potência criativa para uma escrita emancipatória.

Palavras-chave: Trabalhos acadêmicos, Escrita emancipatória, Trabalhos de conclusão de curso.

Abstract: This article discussed the experience of making and/or supervising the Final Works for the Undergraduation ( FWU) in order to analyze them not in the sense of formatting, standards and academic patterns, but as a possible creative power in undergraduate courses, in their ethical, aesthetic and political dimension. The FWU is considered as a step when the student thinks, creates, produces knowledge and he/she has his/her supervisor as the companion on the way. They were described some FWU approaches in its traditional sense in the current context of Brazilian universities and, finally, it was discussed on the written work of the FWU as a process that involves the body and its affective brands, making it an opportunity of mobilization and creative power to an emancipatory writing.

Keywords: Academic papers, Emancipatory writing, Final works for the undergraduation.

Resumen: El presente artículo discute las experiencias de elaboración y/o orientación de Trabajos de Conclusión de Curso (TCC) con el objetivo de analizarlos, no en el sentido de formato, normas y estándares académicos, sino como una potencia creativa posible en cursos de graduación, en sus dimensiones ética, estética y política. El TCC es considerado como una etapa cuando el/la estudiante piensa, crea, produce el saber y el conocimiento y tiene el/la orientador(a) como un(a) compañero(a) en la caminada. Se describieron algunos enfoques de TCC en su sentido tradicional en el contexto actual de las universidades brasileñas y, por fin, se discutió sobre el trabajo de escritura del TCC como un proceso que envuelve el cuerpo y sus marcas afectivas, tornándolo una posibilidad de movilización y potencia creativa para una escritura emancipadora.

Palabras clave: Trabajos académicos, Escritura emancipadora, Trabajos de fin de curso.

Introdução

O presente artigo é composto de notas e reflexões produzidas com base nas experiências de orientação de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) de graduação em uma universidade pública, e justifica-se pela escassez de trabalhos sobre as experiências de feitura e/ou orientação de TCCs que, cada vez mais, tornam-se obrigatórios nas matrizes curriculares que estão presentes em projetos político-pedagógicos de cursos de graduação. Pretendeu-se discutir um modo de pensar o TCC1 não no sentido de formatação, normas e padrões acadêmicos – pois já existem excelentes manuais e livros sobre este tema, mas no sentido de criação, de potência criativa possível em cursos de graduação, em suas dimensões ética, estética e política. Ou seja, trata-se de uma abordagem sobre TCCs que os entende como mais do que um mero documento, uma etapa regimental para o término de um curso (tal como frequentemente tem sido concebido tanto por estudantes como docentes), mas como a hipótese de ser, de fato, uma etapa para uma escrita emancipatória, quando o/a estudante pensa, cria, produz o saber e o conhecimento e tem o/a orientador/a como um/a companheiro/a de caminhada.

Emancipação é aqui entendida como o pressuposto da igualdade das inteligências2, tal como proposto por Rancière (2002). Com base neste pressuposto, é necessário inverter a lógica do sistema explicador para desenvolver um método de ensino e aprendizagem para a emancipação, tornada apenas efetiva pela própria vontade e pelo desejo de aprender. Segundo Rancière, a igualdade das inteligências é o que torna possível a sociedade humana, visto que a inteligência é a potência de se fazer compreender. Deste modo, ela passa pela verificação do outro, ou seja, presume que a compreensão só é possível entre iguais. Emancipar é fazer uso da sua própria inteligência, colocar-se na marcha do conhecimento e no prazer da descoberta e do aprendizado para o pensamento independente. Na escrita emancipatória, como proposta para a feitura de TCCs, o/a estudante se torna agente do seu conhecimento, participante do processo de saber. Para isto é imprescindível que o/a orientador/a seja um/a educador/a e, como educador/a seja emancipado/a, e assim se torne possível o início do círculo da emancipação. Tal conclusão também encontra ressonância na afirmação famosa de Paulo Freire:

O educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os 'argumentos de autoridade' já não valem. Em que, para ser-se funcionalmente, a autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. (FREIRE, 1987, p.39)

Além do círculo de emancipação, ainda na perspectiva de Rancière, tem-se o círculo do embrutecimento. O embrutecimento se estabelece pelo princípio da desigualdade e na hierarquização do saber e dos indivíduos, tornado o fundamento da ideia de que certos indivíduos são mais bem-sucedidos que outros por serem (naturalmente) mais inteligentes. Esta ideia provoca, muitas vezes, a renúncia daqueles colocados em “castas inferiores” em afirmar a sua própria potencialidade para aprender. O “paradoxo da ficção desigualitária” apenas pode ser superado a partir do axioma da igualdade das inteligências. Ainda na crítica a ideia da hierarquização do saber, Guimarães (2001) no artigo “Metodologia do Devir” afirma que a sala de aula e os laboratórios de pesquisa tem sido frequentemente apenas:

[...] um instrumento para se cumprir uma qualquer idéia de saber, nesse caso compreendido como um signo abstrato e autônomo que está para além da presença do corpo vivo e coletivo que respira e faz respirar a ecologia dos ambientes universitários. (GUIMARÃES, 2001, p. 170).

O autor se refere à tradição ocidental platônica-aristotélica, mas também cartesiana, judaico-cristã e do utilitarismo capitalista, para a qual a experiência sensível, o corpo, estão subordinados ao mundo das ideias, da razão, do espírito e do ideal de produção, respectivamente. Esta tradição dualista (mente/corpo), embora questionada, ainda persiste e domina as práticas de construção de conhecimento nas instituições contemporâneas, dentre elas, as universidades.

Diante do exposto, a escrita emancipatória, a experiência sensível e a corporeidade foram retomadas no presente artigo para uma reflexão sobre o trabalho intelectual de produção acadêmica a partir de TCCs de graduação. Para isto, descreveu-se sobre algumas abordagens de TCC em seu sentido tradicional no contexto atual das universidades brasileiras e, por fim, discutiu-se sobre o trabalho de escrita do TCC como um processo que envolve o corpo e suas marcas afetivas, tornando-o uma possibilidade de mobilização e potência criativa para uma escrita emancipatória.

Trabalho de conclusão de curso em cursos de graduação

O TCC, cuja elaboração se tornou uma etapa muito temida por estudantes universitários/as nos últimos anos de cursos de graduação, consta como um trabalho acadêmico individual ou em grupo, de caráter obrigatório. Acrescenta-se também que o TCC é um dos critérios de avaliação final do/a aluno/a e para a obtenção do diploma universitário. Na maior parte das vezes, o TCC é elaborado no formato de monografia, e tem como objetivo envolver estudantes de graduação no campo da pesquisa científica sob a orientação dos/as docentes do curso. Para isto, a estrutura do TCC é composta, grosso modo, de introdução, desenvolvimento, metodologia e conclusão; e segue rigorosas normas de citação das fontes de acordo com ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). A concepção de TCC nos cursos de graduação, muitas vezes, fundamenta-se no argumento de Severino (2002; 2008) de que:

O fundamental no conhecimento não é a sua condição de produto, mas o seu pro­cesso. Com efeito, o saber é resultante de uma construção histórica, realizada por um sujeito coletivo. Daí a importância da pesquisa, entendida como processo de construção dos objetos do conhecimento e a relevância que a ciência assume em nossa sociedade. (SEVERINO, 2008, p. 21)

Partindo ainda desta perspectiva, os TCCs podem ser considerados no ensino de cursos de graduação um dos meios para provocar práticas de construção do conhecimento, e, para além disso, de revelar a postura didático-pedagógica destes cursos. Neste sentido, Severino (2008) propõe que a concepção do processo do conhecimento - entendido como uma efetiva construção dos objetos- seja repensada nos cursos de graduação de modo que haja uma disposição para uma atitude investigativa, ou seja,

Impõe-se que o professor valorize a pesquisa em si como mediação não só do conhecimento, mas também, e, integralmente, do ensino. Em segundo lugar, é preciso que os docentes se disponham a uma atitude de um trabalho investigativo com os iniciantes, cônscios das dificuldades e limitações desse processo, assumindo a tarefa da orientação, da co-orientação, do acompanhamento, da avaliação, compartilhando inclusive suas experiências e seus trabalhos investigativos, abrindo espaços em seus projetos pessoais. (SEVERINO, 2008, p. 22)

Por parte dos/as estudantes universitários/as é requerida a aquisição de uma postura investigativa. Isto quer dizer que se torna necessário que ao longo do tempo histórico da formação geral do/a estudante, os componentes curriculares sejam mediadores deste processo e garantam: a) uma justificativa político-educacional para a produção do conhecimento; b) uma fundamentação epistemológica; c) uma estratégia didático-metodológica; e, finalmente, d) uma metodologia técnico-científica (SEVERINO, 2008). Em outra obra clássica e obrigatória, Umberto Eco descreveu em Como se faz uma tese(1986) a escrita de uma monografia nos seguintes termos :

[...] elaborar uma tese significa: (1) identificar um tema preciso; (2) recolher documentação sobre ele; (3) por em ordem estes documentos; (4) reexaminar em primeira mão o tema à luz da documentação recolhida; (5) dar forma orgânica a todas reflexões precedentes (6) empenhar-se para que o leitor compreenda o que se quis dizer e possa, se for o caso, recorrer à mesma documentação a fim de retomar o tema por conta própria. (ECO, 1986, p.6)

Do ponto de vista dos/as estudantes, um dos pontos importantes apontados por Eco (1986) para esta presente reflexão é que para começar o trabalho de elaboração do TCC, portanto, ele/ela deve ter uma pergunta, um tema de investigação que possua relevância acadêmica e social, e, em seguida, leituras da bibliografia sobre este tema. Para complementar esta discussão sobre os TCCS, é interessante retomar um dos autores que muito contribuiu para se pensar a produção de trabalhos acadêmicos: Charles Wright Mills. Em seu clássico A imaginação Sociológica, escrito no final da década de 1950, Mills (1975) apresentou no capítulo “Artesanato Intelectual” uma reflexão sobre o fazer acadêmico, e descreveu uma série de preceitos e avisos aos intelectuais, cientistas e pesquisadores.

A partir de seus preceitos e avisos, o trabalho acadêmico foi concebido como um artesanato e, portanto, como uma tessitura composta de ideias, fatos e números, que é concebida em torno de um pensamento fundado pela liberação da imaginação e de uma construção que resulta em uma nova ideia. A construção do trabalho acadêmico como artesanato intelectual significa que a as experiências vividas são constantes no seu trabalho intelectual, ambos – vida e trabalho intelectual- estão intrinsicamente articulados. É nesta perspectiva que os TCCs podem ser entendidos como um trabalho acadêmico de cunho artesanal.

Isto significa que [o/a estudante] deve aprender a usar a experiência de sua vida no seu trabalho continuamente. Neste sentido, o artesanato é o centro em si mesmo, e o estudante está pessoalmente envolvido em todo produto intelectual que se ocupe. Dizer que pode “ter experiência” significa que seu passado influi e afeta o presente, e que define sua capacidade de experiência futura. (MILLS, 1975, p.212)

Nestes termos, é certo que o início é um dos momentos mais difíceis da trajetória de escrita de um TCC. As perguntas que se colocam são: como iniciar um/a estudante de graduação no laborioso trabalho de pesquisa científica e intelectual? Como trabalhar com ele/a no momento contemporâneo de fast informations das avançadas tecnologias de comunicação; da internet e redes sociais que chamam para escritas breves e pouco reflexivas sobre os mais diversos assuntos? Como apresentar as monografias como artesanato em um contexto de urgência por resultados e de alta competitividade acadêmica e profissional da era curriculum lattes3? As respostas a estas questões constituem um dos desafios colocados para as universidades e para a formação nos cursos do ensino superior no Brasil.

Diante do que foi exposto, primeiramente, pode-se entender o TCC, em princípio, como uma reflexão sobre a trajetória acadêmica do/a estudante no decorrer dos anos que experienciou o curso de graduação. É um exercício criativo do pensamento que pretende fazer o seu primeiro lançamento para outra etapa: aquela na qual ele/ela se torna um pensador/a, ou seja, um/a criador/a de conhecimentos de sua área graduada. Neste sentido, TCC é também um ritual de passagem4 Um ritual de sacrifícios, trabalho, suor, angústias, ansiedades e medo; mas também um momento do salto, do alívio e da criação. Não é por acaso que muitos/as estudantes ao entregarem o TCC concluído dizem: “meu filho nasceu”. Ou seja, a conclusão de um TCC é um momento de parto, dor de parto, às vezes normal, cesariano ou fórceps!.

O TCC, mais que a formatura e seus cerimoniais e bailes, parece ser ou deveria ser o salto ou ritual de passagem da condição de estudante universitário/a para o/a de profissional/cientista. Às vezes o salto não é dado, às vezes o ritual não é realizado à contento, e, como um mecanismo, que pode ser psíquico, compensatório, toda a energia é colocada, muitas vezes, na organização e cerimônia de formatura. Estudantes podem falar: “eu não entrei para ser intelectual/cientista, entrei para ter um diploma”, ou “isto é demais para mim, não tenho condições nem tempo para isso, sou trabalhador/a, não dá para facilitar?” ou “O TCC não dá para ser algo mais simples?”. Em muitos espaços educativos, estes discursos estão presentes, podendo abrir para uma perspectiva de cursos sem leituras de artigos e livros, em que muitas vezes o que há são apenas apostilas – ou seja, quase que todo o curso apostilado. O TCC, quando existe nestes espaços, é meramente uma etapa regimental, com número elevado de estudantes por orientador/a, o que não permite, na maior parte das vezes, o tempo necessário para a emancipação intelectual. Estas práticas produzem o risco de se cair em mais uma armadilha de nosso sistema educativo mercadológico. Mas a armadilha está dada e está o tempo todo presente. A lógica do mercado não deveria pautar a educação, e muito menos as universidades.

Por esta razão, o TCC se torna este rito de passagem da condição de estudante universitário/a para intelectual e cientista. É necessário ressaltar que isto não quer dizer que o/a estudante estará pronto como intelectual e cientista, mas, pelo contrário, estará iniciando uma nova etapa para o aperfeiçoamento deste processo de pensar, investigar e produzir conhecimentos para a sociedade, seja em laboratórios como também em práticas profissionais nos mais diversos espaços. Neste sentido, para responder às questões colocadas, segue um modo de se pensar os TCCs como uma etapa de escrita emancipatória, um artesanato, quando a experiência sensível e o corpo estão implicados.

O artesanato, o devir e as marcas do TCC

O TCC é o lugar das “marcas”. As marcas são memórias do invisível, coisas que só nosso corpo viveu durante nossas vidas (ROLNIK, 1983). É o meio-grito. que quer ser gritado. O “meio-grito” é uma expressão de um estudo com o enfoque da pesquisa participante e da metodologia da educação popular, a respeito dos problemas de saúde da população rural de Goiás, ocorrida nos anos de 1978 e 1979. O resultado desta experiência de participação popular nas pesquisas em saúde foi o do rompimento com o silêncio de pessoas, provocando o que chamaram de “grito inteirado” e, por conseguinte, a reivindicação das mudanças sociais necessárias (BRANDÃO, 1984). Aqui o “meio-grito” é o que mobiliza a escrita emancipatória, a busca do grito inteirado, transformador de si e das mudanças sociais.

Durante a nossa vida acadêmica experienciamos diversos ambientes visíveis (uma aula, uma prática, o estágio, a iniciação científica, um filme assistido, o movimento estudantil, conversas, brigas, um artigo lido, um bate-papo com um professor etc.). Na experiência do visível, experienciamos o invisível. O invisível é o plano ontológico, são vivências (fluxos de vida) que se interconectam criando estados inéditos em nós, um novo corpo, uma nova forma de encararmos nós mesmos e o mundo. Rompem-se o equilíbrio, o já-conhecido, e algo novo nasce em nós, os estados inéditos. As marcas são para Rolnik (1993, p.2), estes estados inéditos:

E mais uma vez somos tomados por uma espécie de "desassossego", como diz muito apropriadamente Fernando Pessoa em seu livro que traz esse nome no título, ao referir-se à sensação que este estado nos produz. E mais uma vez nos vemos convocados a criar um corpo para a existencialização desta diferença.

Uma palavra, um pensamento, uma obra. O pensamento acadêmico, e no caso em questão aqui, o TCC pode ser visto como uma convocação para a criação de um corpo novo para a existencialização da diferença, dos estados inéditos, para as marcas que o curso deixa em nossos corpos. A experiência de orientar TCC e vivenciar bancas de TCCs tem também marcado o corpo de orientadores/as, e criado estados inéditos. Uma memória em grande parte das bancas de TCC é a das lágrimas – seja do/a orientando/a, seja do/a orientador/a, seja de colegas/familiares do/a orientado/a. O momento do grito dado. O momento do estado inédito transformado em obra, palavras e textos.

É que em minha experiência, o trabalho com o pensamento - aquilo que em princípio se desenvolve numa prática acadêmica, sob a forma de estudo, escrita, ensino - diz respeito fundamentalmente às marcas, sua violência, nosso desassossego. (ROLNIK,1993, p.4)

E mais adiante:

O pensamento exercido deste modo funciona por constrangimento e acaso; só que o que constrange aqui não são regras que se deve seguir para que se revele uma verdade já dada - ou seja, não se trata neste caso do constrangimento de um método -, o que constrange aqui é a pressão da violência das marcas que se fazem em nosso corpo ao acaso das composições que vão se tecendo. (ROLNIK, 1993, p. 5)

Portanto, estamos aqui falando em criação. Para criar um TCC, a liberdade é o fundamento, e também o é o deixar-se constranger pelas marcas. É o colocar-se na marcha do conhecimento e no prazer da descoberta em um processo de escrita emancipatória, fundamentada naquilo que Rancière (2002) define como emancipação.

Considerações finais

Assim como qualquer artista sabe que para criar sua obra a liberdade é imprescindível, ela também só se torna uma obra, ou mesmo uma grande obra, com ferramentas e técnicas. Mas, como diria Proust, citado por Rolnik (1993), a inteligência vem depois. É por esta razão que podemos pensar aqui nas normas de formatação, descrita em muitos manuais de metodologia de pesquisa, mas também sobre quais os elementos necessários para que este TCC seja um TCC e não qualquer coisa, uma reprodução, uma cópia, um esboço ou um bla-blá-blá. O TCC, nesta perspectiva, deve ser algo inédito, e envolver, portanto, as nossas marcas, os nossos estados inéditos. Ele é uma experiência de formas, uma experiência estética.

Apenas o formato, a estética, não faz de um TCC algo da ordem do inédito. São necessárias duas outras dimensões: a ética e a política. Não estamos falando de erudição, estamos falando de rigor. “O rigor aqui é mais da ordem de uma posição ontológica do que metodológica, intelectual ou erudita: é um rigor ético/estético/político.” (ROLNIK, 1993, p.6)

Ético, não no sentido moral, mas no sentido de compromisso com a verdade e afirmação de si, com suas marcas. É político porque envolve uma luta contra forças e poderes em nós que obstruem as nascentes no novo, do inédito, do movimento e da transformação do mundo. Quando rigor se perde, encontramos o vazio, o sem sentido, a falta de compromisso, a passividade, o mal humor, a resmungação e a alienação. Vendemos a força de nosso trabalho acadêmico por créditos e diplomas desvalorizados; criamos uma espécie de mais-valia intelectual, fazemos com que outros (uma elite) pensem por nós.

Barthes (2007) na aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária propõe um paradigma que não visa separar cientistas e pesquisadores dos escritores e ensaístas, sugerindo que a escritura está em toda parte onde as palavras tem sabor. Esclarece que saber e sabor tem a mesma origem etimológica. Deste modo, na ordem do saber é necessário o sal das palavras. Barthes (2007, p.27) ressalta, “a escritura faz do saber uma festa”; portanto, uma festa de sabores. É neste sentido que o TCC pode ser entendido como um saber produzido com o sal das palavras, e como festa, e nele estão as marcas das experiências vividas que dão a ele sabores.

Portanto, os TCCs são concebidos como uma iniciação ao artesanato intelectual, em uma articulação profunda entre experiência vivida e trabalho intelectual, onde são deixadas marcas e devires de quem as produz, num exercício de escrita emancipatória. O/a orientador/a torna-se, portanto, um/a acompanhante neste caminho nem sempre fácil e muitas vezes tortuoso do/a orientando/a, e sempre atento/a e sensível ao rigor ético, estético e político de sua produção. Enfim, nesta relação orientador/a – orientando/a, segue à guisa de conclusão, uma reflexão de Roland Barthes:

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, a de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível. (BARTHES, 2007, p.45)

Referências

BARTHES, R. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 2007.

BRANDÃO, C. R. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1984.

ECO, H. Como se faz uma tese. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.

MILLS, W. C. A imaginação sociológica. São Paulo: Zahar Editora, 1975.

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

ROLNIK, S. Pensamento, Corpo e Devir - uma perspectiva ético/estética/política no trabalho acadêmico In: Cadernos de Subjetividade – núcleo de estudos e pesquisas da subjetividade do programa de estudos pós-graduados em psicologia clínica. PUC/SP, set./fev. 1993.

SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2002.

SEVERINO, A. J. Ensino e pesquisa na docência universitária: caminhos para a integração. São Paulo: Pró-Reitoria de Graduação, 2008.

Notas

1 O TCC tratado neste artigo é pensado como uma monografia que, na maior parte das vezes, é escrita individualmente com orientação de um/a professor/a do curso. No entanto, não se exclui também a possibilidade de contribuir para se pensar outros formatos de TCCs que existem de acordo com a especificidade de um curso ou de um determinado projeto político-pedagógico, do ponto de vista da emancipação, experiência sensível e corporeidade.
2 A igualdade das inteligências não constitui um dado científico ou algo a se alcançar por uma sugestão ou imposição, mas é uma proposição que visa transformar o sentido de “normalidade” que está presente na sociedade, propondo um princípio que considera as possibilidades igualitárias de reconhecimento e de realização para todos/as.
3 É um currículo elaborado nos padrões da Plataforma Lattes, gerida pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Tornou-se um padrão nacional no registro do percurso acadêmico de estudantes e pesquisadores do Brasil. Currícula Lattes estão disponíveis ao público por meio da internet.
4 “Rito de passagem” é uma expressão oriunda das ciências antropológicas e que significa uma celebração encontrada em todas as culturas que marca o fim de um ciclo e início de outro, com novas características e desafios.

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[Artículo corregido , vol. 3, 170-178] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/338/606

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