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Potencialidades e desafios de uma estratégia para aulas práticas onde a teoria pode vir depois

Potentialities and challenges of a practical class strategy where theory can come after

Potencial y desafíos de una estrategia para clases prácticas en que la teoría puede venir después

Ana Lúcia Marran
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS, Brasil
Mariana Moreira da Silva
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, Brasil
Cibele de Moura Sales
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, Brasil

Potencialidades e desafios de uma estratégia para aulas práticas onde a teoria pode vir depois

Laplage em Revista, vol. 3, núm. 2, pp. 195-205, 2017

Universidade Federal de São Carlos

Atribuição não comercial internacional. Direitos de compartilhar igual e dar crédito aos autores e periódico.

Recepción: 10 Mayo 2017

Aprobación: 10 Junio 2017

Resumo: Após a realização de capacitações sobre Metodologias ativas e leituras fundamentadas em Paulo Freire, um grupo de docentes de enfermagem, decidiu reorganizar suas aulas práticas. Assim, o objetivo desse trabalho foi apreender as potencialidades e os desafios da nova estratégia organizacional adotada para o desenvolvimento das aulas práticas a partir da vivência dos acadêmicos e dos docentes. Realizou-se uma pesquisa qualitativa descritiva, utilizando grupo focal com estudantes e entrevista com docentes. Quanto aos resultados, estão entre as potencialidades o maior tempo para estudar, refletir e se organizar; maior correlação teoria e prática, consequentemente maior aprendizado; entre os desafios, a dificuldade na interdisciplinaridade, a relação ensino-serviço e a sugestão de ampliar a carga horária das aulas práticas. A nova experiência tem sido um momento de notável aprendizado pelos discentes e docentes, mesmo existindo desafios a serem enfrentados. Acredita-se que essa pesquisa promova novas reflexões sobre a formação do profissional.

Palavras-chave: Aulas prática, Ensino, Enfermagem.

Abstract: After conducting training on active methodologies and readings based on Paulo Freire, a group of nursing teachers decided to reorganize their practical classes. Thus, the objective of this work was to capture the potentialities and challenges of the new organizational strategy adopted for the development of practical classes based on the experience of academics and teachers. A descriptive qualitative research was carried out, using a focus group with students and an interview with teachers. As for the results, among the potentialities are the greater time to study, reflect and organize; Higher correlation theory and practice, consequently greater learning; Among the challenges, the difficulty in interdisciplinarity, the teaching- service relationship and the suggestion to extend the workload of practical classes. The new experience has been a moment of remarkable learning for the students and teachers, even though there are challenges to be faced. It is believed that this research promotes new reflections on the formation of the professional.

Keywords: Practical classes, Teaching, Nursing.

Resumen: Después de realizar la formación en metodologías activas y lecturas fundamentadas en Paulo Freire, un grupo de profesores de enfermería, decidió reorganizar sus clases prácticas. El objetivo de este estudio fue comprender el potencial y los desafíos de la nueva estrategia de la organización adoptada para el desarrollo de las clases prácticas a partir de la experiencia de los académicos y profesores. Se realizó un estudio descriptivo cualitativo utilizando grupos de foco con estudiantes y entrevistas con profesores. Los resultados muestran que los beneficio fueron más tiempo para estudiar, reflexionar y organizar; mayor correlación de teoría y la práctica, consecuentemente mayor aprendizaje. Entre los desafíos están la dificultad en la interdisciplinariedad, la relación enseñanza-servicio y la sugerencia de ampliar las horas de clases prácticas. La nueva experiencia ha sido un periodo de notable aprendizaje para los estudiantes y profesores, a pesar de que hay retos por afrontar. Se cree que esta investigación promueve una nueva reflexión sobre la formación profesional.

Palabras clave: Clases prácticas, Educación, Enfermería.

Introdução

Nos processos de ensino e aprendizagem múltiplas são as formas de um professor se posicionar frente ao processo de ensino. Uma abordagem comumente encontrada foi denominada por Mizukami (1986, p.7) de “abordagem tradicional”. O que torna essa forma de abordar o conteúdo mais comum é o fato de não requerer uma análise teórica dado que ela se manifesta por mimetismo, isto é, por imitação de uma prática que se consolidou ao longo do tempo. Segundo a autora citada a abordagem tradicional não possui validação empírica e não se fundamenta em nenhuma teoria. Ela se constitui a partir de práticas que se tornaram referências.

Alguns pressupostos que subjazemos no ideário de quem pauta a sua prática por ela são também elencados por Mizukami (1986, p.8) ao afirmar que para os que pressupõem que o principal papel do professor é ensinar essa abordagem se justifica porque se constitui no “ensino verdadeiro”. Essa expressão não significa que esteja sendo validada ou que seja a forma de abordagem que produza os melhores resultados, mas que, pela concepção de homem, de sociedade e de cultura que assume, o professor procura transmitir o conhecimento produzido sem levar em conta fatores que outras abordagens consideram relevantes como, por exemplo: os interesses do estudante e a contribuição do conhecimento para o sujeito e para sociedade.Algumas características dessa forma de se posicionar frente ao estudante, ao conhecimento e ao processo de ensinar merecem ser destacadas. Uma delas consiste no fato de colocar o professor no centro do ‘sistema’, como peça chave do processo. Isso aparentemente valoriza o professor ao mesmo tempo em que subtrai do aluno a responsabilidade pelo seu aprendizado. Dessa forma, a abordagem tradicional contempla ‘favoravelmente’ a ambos e se desenvolve em um contexto do ‘politicamente correto’.

Nessa perspectiva, o homem é concebido como um elemento que está inserido no mundo, é um receptor passivo que apreende a realidade vivida através das informações que recebe do professor, admitindo que tais informações lhe foram apresentadas por serem as melhores e mais fidedignas, devendo, portanto, serem guardadas tais como as receberam para uso posterior. Educar, nessa perspectiva, é instruir. Sendo que o conhecimento que lhe é dado cumpre ao estudante apreender esse conhecimento para manter o modelo social que recebe, imitando e transmitindo o que foi produzido pela sociedade. O processo pauta-se por “decisões verticais” (MIZUKAMI, 1986, p.11).

Tem-se discutido no curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) se esse modelo contempla as necessidades desse profissional de saúde considerando que a vivência posterior à formatura tem se revelado hostil aos enquadramentos que a abordagem tradicional proporciona. A experiência no ambiente de trabalho tem revelado que os princípios aprendidos em sala de aula muitas vezes ‘fogem’ do sujeito quando este se depara com o paciente em sua realidade não idealizada.

Diante disso, o Projeto Pedagógico com curso de enfermagem da UEMS, em sua versão de 2012, ensejou uma discussão sobre o tema das ‘aulas práticas’ estabelecendo como um dos seus objetivos: “Articular as atividades teóricas e práticas presentes desde o início do curso, permeando toda a formação do Enfermeiro, de forma integrada e interdisciplinar” (UEMS, 2012, p.15). Dessa forma, o Projeto Pedagógico preconiza que:

Os componentes teóricos ministrados principalmente nas salas de aulas, podem se estender a outros ambientes, como os virtuais se integram às aulas práticas em laboratórios, em cenários de atenção à saúde (unidades básicas de saúde e os ambientes hospitalares), como também através dos estágios curriculares supervisionados. (UEMS, 2012, p.31).

O processo de aulas práticas difere sensivelmente do estágio curricular supervisionado. Neste, o estudante vai a campo como um pré-profissional, como alguém que supostamente domina toda a teoria e prática e precisa estabelecer a relação entre elas no ambiente profissional com supervisão direta do enfermeiro do serviço e indireta do professor. Por outro lado, as aulas práticas, no entendimento desses professores, o estudante deva ir a campo em busca de vivencias que provoquem a curiosidade epistemológica para ampliação do conhecimento.

Enquanto, na abordagem tradicional, primeiro se aprende a teoria, nessa nova abordagem, prática e teoria ocorrem em tempo concomitante, e, quando se alternam, a prática é o fator desencadeante. As práticas na graduação em enfermagem constituem-se em um dos momentos importantes na formação do acadêmico. Momento em que ele tem contato com a realidade dos serviços de saúde, onde se depara com as necessidades da sociedade e com as atividades inerentes à sua futura profissão. Ressalvando que as práticas a que se referem este trabalho não podem ser confundidas com o Estágio Supervisionado, por razões já expostas anteriormente.

Desde o surgimento da primeira escola de enfermagem no país houve preocupação em proporcionar as alunas contato com a prática, a forma de proporcionar esse contato, foi se modificando ao longo da história (COSTA e GERMANO, 2007).

Escopo da pesquisa: o curso de enfermagem em recorrência

Como qualquer outro, o ensino de enfermagem vem acompanhando as mudanças sócio-políticas e econômicas no Brasil. Dessa forma, de um ensino fortemente voltado para a cura e ao ambiente hospitalar, isto é, ao cuidado do doente, sem levar em conta os fatores de adoecimento, surgem preocupações em atender as necessidades da sociedade dando enfoque às questões sociais para formar profissionais com compromisso social de mudança, através de uma formação participativa, em que aluno e professor se articulem na construção do saber (ITO et al. 2006). Uma enfermagem que procura levar em conta o ser humano em todas suas dimensões, incluindo a sua capacidade de gerenciar os fatores que provocam o adoecimento.

Nesse sentido a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, trouxe mudanças na educação nacional visando formar profissionais críticos, reflexivos e aptos a aprender a aprender. Para atender às exigências da LDB foram criadas as Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação. Entre elas estão as Diretrizes do curso de enfermagem que prevê a realização de aulas teóricas e práticas. Entende-se, portanto, que a aula prática é uma oportunidade de estabelecer a interação ativa entre aluno e população, proporcionando ao estudante agir sobre problemas reais (BRASIL, 2007). Freire (1996) traz reflexões sobre a importância de aproximar teoria e prática na formação do estudante e a relevância da reflexão crítica sobre ela, em um movimento dinâmico entre o fazer e o pensar sobre o fazer. A intenção é formar profissionais capazes de pensar sobre algo mais do que tentar aplicar a teoria aprendida, repetir práticas e manter intacto um modelo social que necessita ser repensado constantemente.

Nesse sentido o Projeto Pedagógico do curso de Enfermagem (UEMS, 2012) busca promover articulações entre a teoria e a prática, não considerando como lados distintos do saber, mas como espaços que se interligam e se completam na formação do profissional enfermeiro em suas múltiplas dimensões, rompendo a fragmentação do conhecimento. Essa discussão sobre a necessidade de associar teria e prática não é nova e permeia múltiplos ambientes educacionais. Dentre os objetivos específicos do curso de enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), presentes em seu Projeto pedagógico, destacam-se os seguintes:

· Articular as atividades teóricas e práticas presentes desde o início do curso, permeando toda a formação do Enfermeiro, de forma integrada e interdisciplinar;

· Primar por visão de educar para a cidadania e a participação plena na sociedade;

· Definir estratégias pedagógicas que articulem o saber; o saber fazer e o saber conviver, visando desenvolver o aprender a aprender, o aprender a ser, o aprender a fazer, o aprender a viver juntos e o aprender a conhecer que constituem atributos indispensáveis a formação do Enfermeiro.

Assim, dentro do curso de enfermagem da UEMS os docentes do segundo ano que ministram disciplinas das ciências da enfermagem, adotaram no ano de 2014 um novo formato organizacional das aulas práticas, pois buscaram diferentes estratégias de acordo com suas percepções de ensino, buscando seguir tendências atuais para o ensino; uma educação centrada no aluno, como afirmaram Martins e Bicudo (2006, p. 57-58):

A educação centrada no aluno é aquela que se preocupa, primeiramente, com a realização do ser do estudante. Propõe-se a auxiliar o indivíduo a se tornar pessoa, ou seja, a se tornar eminentemente humano ao atualizar suas possibilidades. Nesse sentido, trata-se de uma educação essencialmente humanística ou humanizante [...]. Focaliza a atualização da pessoa vista como um todo, abrangendo, para tanto, suas formas humanas de conhecer, como, por exemplo, a cognitiva, a sensorial, a emotiva, a social. O ponto importante da focalização do conteúdo de um programa, na visão da educação humanística, encontra-se naquilo que ela revela sobre o homem e sua realidade e no modo de ver as realizações humanas, pois procura, por meio de suas expressões, propiciar ao aluno maior compreensão da natureza, da natureza humana e do mundo dos objetos. O centro de sua preocupação é o entendimento da realidade das coisas, das pessoas e das divergências de visão de mundo que as diferentes pessoas apresentam.

Dessa forma, os professores de ciências de enfermagem da segunda série adotaram uma organização diferente das vividas em anos anteriores, pois, durante todo o ano letivo os alunos realizaram aulas práticas. A experiência foi desenvolvida uma vez por semana durante um dia inteiro (manhã e tarde), nos outros dias foram desenvolvidas as aulas teóricas. Nos anos anteriores, na segunda série, primeiramente eram desenvolvidas uma parte dos conteúdos teóricos, cerca de 1/3 do total. Somente depois dessa instrumentação teórica os alunos iam para o campo participar de aulas práticas que aconteciam de forma concentrada durante toda a semana no período matutino até que a carga horária prevista nos planos de ensino fosse concluída e, no período vespertino, eram desenvolvidas as aulas teóricas.

Por meio desse estudo buscou-se levantar as potencialidades e os desafio da nova estratégia organizacional das aulas práticas das Ciências de Enfermagem desenvolvidas na segunda série do curso de enfermagem de uma universidade pública do estado de Mato Grosso do Sul. Para alcançar os objetivos propostos optou-se pela pesquisa qualitativa descritiva. Deslauriers e Kérisit (2008) compreendem a pesquisa qualitativa como um conjunto de práticas materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo através do estudo, tendo grande relevância para a análise das políticas sociais.

O estudo foi organizado da seguinte forma: levantamento bibliográfico, coleta e análise dos dados e elaboração do texto final. Para coleta de dados foi utilizado grupo focal e entrevista. Os grupos focais foram realizados com a participação de oito estudantes, após concluídas as aulas práticas previstas no ano letivo de 2014, formando-se três grupos focais. Uma informação relevante é que em 2014 havia 27 alunos matriculados em disciplinas com aulas práticas, mas apenas 24 estudantes compareceram aos encontros de grupo focal. Segundo Gatti (2005) o grupo focal promove uma multiplicidade de pontos de vistas e de emoções, a partir do contexto de interação criado, o que permite a obtenção de significados (dados) difíceis de ser obtidos por outros meios.

Na segunda série existem cinco disciplinas vinculadas às ciências da enfermagem que desenvolvem aulas práticas, portanto, pretendia-se entrevistar cinco docentes lotados nessas disciplinas, um docente por disciplina. Entrementes, quatro docentes aceitaram participar da entrevista, estas foram realizadas em 2015. A entrevista face a face proporciona uma interação entre entrevistador e entrevistado onde o primeiro busca informações que o segundo possui e, dependendo da confiabilidade entre ambos os resultados, podem ser extremamente significativas, obtendo dados que outros instrumentos de pesquisa não poderiam contemplar (SZYMANSKI, 2002).

Os resultados foram organizados seguindo os objetivos propostos, com a apresentação da discussão na sequência. Vale evidenciar, que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul sob o parecer n. 1.045.281.

Resultados e discussões

Os resultados estão apresentados com base nos objetivos da pesquisa a partir das percepções dos alunos e professores que vivenciaram as aulas práticas nesse novo modelo organizacional, iniciando pelas potencialidades e, em seguida, os desafios.

Potencialidades

Aula prática é abordada por Backes (2000) que, citando Andrade (1989), a destaca como um recurso pedagógico, objetivando a aplicação do conteúdo teórico, que visa, principalmente, o desenvolvimento de destrezas manuais e a implementação dos conhecimentos obtidos ao longo da formação profissional.

Nesse mesmo sentido Marran, Lima e Bagnato (2015) definem aula prática como o momento em que o estudante pode realizar a parte prática de um determinado conteúdo específico, que foi trabalhado em sala de aula por meio de estudos teóricos. Consiste em levar o acadêmico de enfermagem a outros ambientes em que, junto com professor o aluno realizar os procedimentos, as técnicas, e possa ver casos reais de estudos anteriormente vistos na teoria. Nesses locais aluno e professor buscam transformar o que antes era teórico, fundamentado em literaturas, em algo executável, prático, demonstrável e de fácil assimilação, levando em consideração o contexto em que a prática está inserida (ALMEIDA; LUDKE, 2012).

Esse foi e ainda é o pensamento adotado por muitos professores que ministravam aulas práticas nas ciências da enfermagem na universidade pesquisada. No entanto, após a realização de capacitações e estudos sobre esse assunto, os professores da segunda série avançaram nesse aspecto e acreditaram que para realizar a aula prática o aluno não dependia totalmente da teoria ministrada em sala de aula. Estar acompanhado pelo professor permitia a inversão dessa ordem e contribui para que a aprendizagem a se torne mais significativa. O fato de não estar todos os dias em campo de prática permitiria dedicar mais tempo para refletir, repensar as vivências da prática e buscar os conhecimentos teóricos suprindo as necessidades identificadas pelo grupo.

Dessa forma, dentre as potencialidades deste modelo de aula prática, tanto alunos como professores destacaram o maior tempo para estudar, pesquisar e se organizar. Isso porque, como apresentado na introdução, nos anos anteriores as aulas práticas eram realizadas de forma concentrada, aproximadamente um terço do ano letivo (todos os dias da semana, no período matutino e no vespertino, realizavam as atividades teóricas), o tempo para as pesquisas, para reflexão ficava limitado ao período noturno.

Nessa nova forma onde as aulas práticas aconteceram durante todo o ano letivo, uma vez por semana nos períodos matutino e vespertino tanto alunos quanto docentes têm mais tempo para pesquisar, refletir e ‘digerir’ as experiências vividas. A seguir apresenta-se algumas falas dos sujeitos entrevistados:

Grupo 1: ‘Esse modelo é muito bom [...] a gente consegue fazer pesquisas melhores e talvez mais consistentes sobre os assuntos que são pedidos em aula.’

Professor 1: ‘Então essa semana [intervalo entre uma aula prática e outra] dá tempo tanto do docente revisitar, repensar, olhar para esse campo do que ele pensou de aula prática, quanto para esse aluno, para ele estudar, tirar as dúvidas, pra ele voltar pra conversar sobre isso’.

Esse intervalo entre uma aula prática e outra é visto como fundamental, pois os estudantes relataram que aprenderam mais, com processo de aprendizagem mais significativo, sentiram-se mais estimulados ao estudo. Pois, segundo Pelizzari et al. (2002) para que ocorra a aprendizagem significativa é preciso compreender o processo de modificação do conhecimento, que não se dá simplesmente por repetir o que se lê e observa, mas pela conexão, vinculação e correlação com algo que já tenha tido contato e, para que isso ocorra é preciso de tempo.

Um dos acadêmicos havia vivenciado o modelo de aula prática anterior, pois ficou retido na segunda série do curso, e afirmou que no novo modelo o compromisso com o aprender é maior, torna-se o objetivo do processo de aprendizagem, enquanto no modo anterior o foco estava na nota, como pode ser observado na transcrição da fala:

Grupo 2: ‘o meu desenvolvimento melhorou muito do ano passado, nossa! Por mais assim, a gente sabia que tinha que fazer, mas tava aquele excesso [...]. Então você não tem aquele compromisso de... a eu vou fazer para aprender, você faz por obrigação, por nota’.

Sua fala vem ao encontro do discurso de um dos professores, quando este afirma que nesse modelo a aprendizagem torna-se menos desgastante e não se resume a uma obrigação:

Professor 4: ‘Então, eu acho que é menos desgastante, tem menos chance de trabalhar com reprodução, porque você tem tempo para pensar, tem tempo para analisar e pra modificar aquele contexto caso ele seja diverso e o aluno pode estudar, então na minha análise ficou um desenho bem confortável e bem favorável ao aprendizado’.

O desenvolvimento de reflexão pós ação é destacado, pois ao término das aulas práticas cada docente reunia-se com seu grupo de alunos para discutir sobre o que haviam aprendido e quais foram as dificuldades apresentadas pelos estudantes. Para adquirir o aprendizado prático reflexivo é preciso refletir antes, durante ação e após a ação, consolidando dessa forma a conexão entre teoria e prática. Isso possibilita ao docente e discente a avaliação de si próprios e contribuir para avanços na construção do saber, segundo Marran e Lima (2011).

Aceita-se que esse modelo de aula prática desperta curiosidade no estudante, como destaca o Professor 3: ‘ele nunca viu uma triagem, e aí aquilo pra ele é muita novidade, aí pra ele viver aquilo, ele precisa chegar em casa e ler, porque ele não sabia o que fazer com o termômetro, então [...] mobiliza este estudante a querer saber [...] a curiosidade mobiliza’.

Todos os acadêmicos afirmaram que a aula prática é a melhor forma de aprender. O que é referendado por Colliselli et al (2009 p. 935-6) ao afirmar que aprender fazendo “pressupõe a inversão da sequência clássica teoria/prática no fazer-se do conhecimento e assume que ele ocorre de forma dinâmica por intermédio da ação-reflexão-ação”.

Os acadêmicos afirmaram desenvolver maior correlação entre teoria e prática. O Grupo 3 destaca: ‘Percebi que quando a gente estava tendo aula prática e teórica conjuntamente nosso aprendizado naquele conteúdo era bem maior, pois quando a professora estava explicando, a gente pensava... nossa é verdade, eu vivenciei isso na prática’.

Pelizzari et al (2002 p.38) em suas pesquisas chegaram a resultados semelhantes e afirma que “[...] a aprendizagem é muito mais significativa à medida que o novo conteúdo é incorporado às estruturas de conhecimento de um aluno e adquire significado para ele a partir da relação com seu conhecimento prévio”. Cumpre destacar ainda que alguns professores procuraram trabalhar juntos, tanto no processo de ensino e aprendizagem, quanto na avaliação dos estudantes e afirmaram que a experiência foi ótima, o que foi evidenciado na fala do Professor 2: ‘o retorno que a gente recebeu dos alunos foi muito legal, porque eles conseguiram fazer o link das duas disciplinas, porque elas estão muito interligadas né. Foi mais produtivo’.

Observa-se aqui uma iniciativa de interdisciplinaridade que consiste na interação existente entre duas ou mais disciplinas, num contexto de estudo de âmbito mais coletivo, onde cada uma das disciplinas em contato com a outra se modifica e se complementam, resultando em um enriquecimento recíproco, tornando-se mais próximas das situações reais (VILELA; MENDES, 2003). Outra potencialidade identificada é que nesse modelo as aulas práticas ficam menos vulneráveis a eventos adversos, por exemplo, quando chove a semana inteira porque apenas um dia de aula prática é afetado e, além disso, diminui a falta dos alunos que foram impedidos de comparecer devido a enfermidades ou outro obstáculo. Já no modelo anterior, caso ocorressem eventos como esses o prejuízo é maior.

Também foi considerado como uma questão importante pelos docentes o fato de ir aos serviços de saúde nos períodos matutino e vespertino, pois os alunos conhecem o serviço de forma mais completa, além de diversificar mais as atividades. A fala do docente 4 nos remete a isso: ‘Porque na atenção básica, algumas atividades são feitas mais a tarde do que de manhã’.

Nas unidades de atenção básica (Postos de saúde) algumas das atividades são previamente organizadas em um calendário semanal e/ou mensal. Por exemplo, na segunda-feira pela manhã atende-se coleta de exames e consultas voltadas para o aspecto curativo. No período da tarde, acontece o atendimento a grupos específicos, como os idosos, por exemplo, com atividades educativas buscando a promoção de saúde e prevenção de doenças.

Nota-se que foram identificadas potencialidades fundamentais no processo de ensino-aprendizagem, entretanto, também há desafios para serem enfrentados que são apresentados a seguir.

Desafios

Alguns desafios do novo modelo de aulas práticas são apontados. Esses que devem provocar reflexões para o avanço desse processo de ensino-aprendizagem.

A interdisciplinaridade apesar de ter sido mencionada nas potencialidades continua sendo um desafio, pois os discentes afirmam que nem todos os professores conseguiram o diálogo com as demais disciplinas e a articular teoria e prática. Como já mencionado a interdisciplinaridade é “articular pessoas e conhecimentos, com vistas à percepção do ser humano na sua integralidade”, de forma que as diferentes disciplinas se comunicam, não havendo fragmentação do conhecimento. Dessa forma, a interdisciplinaridade proporciona maior comunicação entre teoria e prática e o processo de aprendizado torna-se mais significativo (GATTÁS; FUREGATO, 2007, p. 90).

Um instrumento utilizado por vários docentes, o portfólio, pode promover a interdisciplinaridade, mas, desde que seja único para todas as disciplinas que tenham aula prática na mesma série. Essa foi uma sugestão dos acadêmicos e, é um desafio para o docente.

A organização de reuniões pedagógicas visando promover interdisciplinaridade, é um meio de avançar sobre esse desafio, conforme afirmaram os professores. Vale destacar, que o Projeto Pedagógico vigente no curso de enfermagem da UEMS garante essas reuniões semanalmente e essas fazem parte do cronograma do curso e acontecem com a participação docentes e discentes.

Sobre isso, a Resolução do CNE/CES nº 3/2001 a qual institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem, no artigo 14, afirma que a estrutura do Curso de Graduação em Enfermagem deverá assegurar durante toda formação do enfermeiro, atividades teóricas e práticas, de maneira integrada e interdisciplinar.

Ainda, sobre o campo de aula prática foi constatado que algumas instituições de saúde não apresentam demanda satisfatória de atendimento à saúde para algumas especialidades, como por exemplo, desenvolver aulas de saúde da criança em um local que tem pouca demanda de crianças para atendimento ou, o dia de atendimento para a especialidade não ser o mesmo da aula prática. Nota-se que a questão está centrada na relação ensino-serviço, estudos mostram que um dos grandes desafios no campo da formação do enfermeiro está no conflito academia e serviço (COLENCI; BERTI, 2012).

A organização prévia das atividades e a boa relação entre os docentes que irão para determinado local e os profissionais que lá atuam podem fazer a diferença nessas situações. Por exemplo, é sabido que o foco de determinada disciplina é a saúde da mulher e as aulas práticas acontecerão as quartas-feiras, as atividades com as mulheres podem ser agendadas para esse dia. Assim, a instituição de ensino organiza atividades para esse grupo contribuindo com a unidade de saúde e essa unidade programa a agenda para que a instituição de ensino tenha público para realização da atividade de ensino. Dessa forma, tanto os objetivos do ensino, quanto do serviço são atingidos, somando-se forças potencializam-se suas ações.

Outra possibilidade sugerida pelos sujeitos da pesquisa é que as aulas práticas ocorressem dois dias da semana, pois, os mesmos consideram que um dia na semana fica difícil acompanhar outras atividades que acontecem nos campos de aula prática em dias específicos, conforme explicitado por um aluno: ‘Dois dias na semana de aula prática, porque as vezes a gente perde determinado atividade no posto, porque naquele dia a gente não vai lá [...], por exemplo terça e quinta’. Além disso, os acadêmicos consideram que dois dias na semana teriam a oportunidade de aprender mais, já que afirmaram que o aprendizado é maior nas aulas práticas, como se pode observar na fala:

Grupo 1: ‘Eu achei que esse ano foi proveitoso, as aulas uma vez na semana[...] dá tempo de estudar, uma coisa assim que se não deparasse na prática e não sabia [...]. A desvantagem é que era uma vez só na semana. [...] essa última rodada teve uma semana que a gente foi duas vezes e eu senti que foi mais proveitoso’.

Outro desafio é ampliação da carga horária de aula prática, pois afirmam esse modelo precisa de mais espaço, precisa ser ampliado. Os alunos afirmaram aprender mais em campo prático do que em sala de aula, pois aquele conhecimento torna-se mais significativo. E, um docente ainda relata: ‘um dos acadêmicos falou assim: professora, nós aprendemos muito mais aqui, estudando e fazendo a prática, do que só lá na sala de aula com a teoria’.

Corrobora com isso Freire (1996) ao afirmar que a visão crítica do mundo se constrói a partir do conhecimento da realidade, cabe retomar o histórico de formação que sempre permeou atividades práticas, e em alguns momentos, com grande número de horas.

Embora, os acadêmicos percebam que aprendem mais fazendo, tem maior tempo para estudar/refletir e sentirem-se mais estimulados devido a curiosidade que permeia o saber e desejem mais aulas práticas, relataram sentir insegurança devido à pouca carga teórica ao ir para o campo prático. Isso talvez se deva a questões culturais, de acreditar que primeiramente se deve estudar toda a teoria, para só então ir para a prática, o que pode ter sido influenciado pelo sistema cartesiano de organizar o ensino por partes.

No ensino da enfermagem é comum acreditar que se o professor ministrou aulas teóricas sobre determinado assunto o aluno domina a teoria, ou deveria dominar, e a chance de cometer alguma falha na execução da prática será minimizada. No entanto, não é assim que a aprendizagem significativa acontece e após as capacitações os docentes começam a mudar seus olhares sobre o processo de ensino-aprendizagem.

Nesse sentido, um dos docentes faz um contraponto e destaca que essa nova forma organizacional representa uma evolução na concepção de aula prática, onde teoria e prática podem andar juntas, independente de quem vem primeiro. Observe a fala: ‘a gente mudou o desenho das aulas práticas. O jeito de pensar sempre foi aprende teoria e vai lá para ter habilidade’. Essa mudança na forma de pensar trouxe significativos avanços no processo de ensino-aprendizagem como já visto nas potencias apresentadas, logo, o desafio é que os alunos consigam se desvencilhar desse medo e insegurança que os incomodam.

Considerações Finais

As aulas práticas nas disciplinas de ciência da enfermagem no segundo ano do curso da UEMS tem sido um momento de notável aprendizado pelos discentes e docentes. Trata-se da tentativa de unir teoria e prática, promovendo reflexão constante nesse momento, de forma que estudante e professor sejam os principais atores nesse cenário. Existem ainda fragilidades nesse processo, como a correlação teoria e prática, a interdisciplinaridade e relação ensino-serviço. No entanto, refletir sobre essas pontuações considerando as sugestões apresentadas pelos sujeitos da pesquisa devem promover superação dessas dificuldades.

Acredita-se que os resultados dessa pesquisa possam auxiliar na avaliação dessa nova forma de organizar as aulas práticas e promover novas reflexões para a expansão de sua utilização, buscando avanços na formação do profissional enfermeiro para que a população receba um profissional cada vez mais qualificado.

Referências

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[Artículo corregido , vol. 3, 195-205] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/328/495

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