Resenhas
Do projeto à construção político-pedagógica da escola: democracia em disputa
Do projeto à construção político-pedagógica da escola: democracia em disputa
Laplage em Revista, vol. 3, núm. 2, pp. 224-229, 2017
Universidade Federal de São Carlos

| LIMA A. B. de.. Assis Editora. 2013. Uberlândia. Assis Editora |
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Recepção: 30 Abril 2017
Aprovação: 30 Maio 2017
O Projeto Político Pedagógico (PPP) é base para a construção de um projeto democrático de educação voltado para a transformação social. Mas, instrumentalizado pela lógica autocrática e burocratizante do projeto hegemônico de educação, torna-se, na maioria das vezes, apenas um procedimento técnico formal. Contém, portanto, em si, contradições e potencialidades vitais do pensar e agir da escola e da educação. Nada, portanto, mais atual e necessário de se debater.
É justamente esse debate que promove o livro organizado por Antonio Bosco de Lima, em que se problematiza, por diferentes olhares dentro de uma mesma visão emancipatória da educação, esse instrumento de gestão participativa. O livro está organizado em 6 capítulos ilustrados que, escritos por 9 autores através de uma linguagem não-academicista, os quais dirigem-se à toda comunidade construtora do PPP, buscando articular questões, mais do que ser um manual ou guia com respostas fáceis.
No capítulo 1, Antonio Bosco de Lima, em seu texto “PPP: relacionamento entre poderes”, aborda a categorização de poder e a complexidade na construção do PPP, entremeados por debates ideológicos. Ressalta o PPP, em si, não é o fundamental, mas, sim, o fazer educativo do PPP, apontando, portanto, que sua necessidade não deve ser meramente burocrática, técnica, que retira o “politico” de seu escopo, tornando-o apenas “projeto pedagógico”. O PPP deve partir de uma intenção coletiva dos agentes da comunidade escolar em nortear sua prática para os interesses democráticos. Não é possível apagar o aspecto “político”, pois todo projeto é político, envolve discussão, decisões, posicionamentos. É, por sua vez, pedagógico, pois se desenrola no âmbito escolar, da educação formal.
Para Antonio, o PPP nasce a partir do diálogo entre poderes diferentes, do encontro das visões dos professores, diretores, pais, funcionários, alunos que, em geral, partem de pressupostos diferentes e, muitas vezes, não consensuais, tanto na teoria, como na prática. O autor apresenta como, por exemplo, o discurso neoliberal, que se apresenta na suposta defesa de direitos democratizantes, choca-se com sua prática autoritária, negando práticas participativas. É preciso desvelar todas essas diferenças, tanto teóricas como práticas. Se fazemos o PPP de forma burocrática, não há conflito e as contradições se escondem. É preciso, para esse desvelamento, estar instrumentalizado para a discussão que o PPP exige. Portanto, antes de entrar na construção do PPP, é preciso debater seus pressupostos, como, por exemplo, a função da escola e as condições materiais básicas disponíveis para levar o projeto adiante. Antonio reforça que o PPP não deve ser repassado pela hierarquia escolar aos professores para mera formalização, reproduzindo a divisão social alienante em que alguns concebem projetos e outros executam. Deve-se buscar uma organização cidadã, rompendo com o modelo hierárquico existente, abrindo espaço para que todos os sujeitos presentes na escola possam problematizar seu funcionamento e ação, isso é educação. Finaliza reforçando a importância de compartilhar poderes, rompendo com a lógica de administrador-administrado, própria das organizações tradicionais, abrindo-se para a participação substantiva.
No Capitulo 2, Jeovandir Campos do Prado e Ana Paulo de Castro Sousa são responsáveis pelo texto “PPP: Racionalidades e práticas pedagógicas no trabalho escolar”. Afirmam que o PPP não é espaço de neutralidade, posto que sua construção é necessariamente conflitual, sendo sua dinâmica coletiva e plural, o que lhe garante força. Mas, a atual política educacional centralizadora e autocrática, que reduz a qualidade do trabalho dos profissionais da educação, dificulta a tarefa de construção do PPP. Tal política promove a substituição da reflexão sobre o que ensinar e como ensinar pela vigilância e controle, representadas, exemplarmente, pelas avaliações. Dentro desse contexto, como fazer com que esse trabalhador percebe as oportunidades presentes no PPP, perguntam os autores.
Ressaltam, como possível resposta, a necessidade de, logo de início, desrromantizar o PPP, já que esse, sim, sofre ingerências de políticas educacionais mais amplas, produtivistas, próprias da burocracia do Estado a serviço do mercado. Na mesma medida em que os professores se profissionalizaram, no decorrer do século XX, estes se proletarizaram, perdendo o controle sobre seu processo de trabalho. A hierarquia burocrática assume o poder de decidir a política educacional e os professores apenas a executam. Por isso mesmo, a lógica do disciplinamento está presente em toda sua estrutura. O PPP encontra-se refém dessa construção histórica, reduzindo seu potencial transformador, fazendo dele, muitas vezes, mero rito procedimental. O trabalhador da educação está em constante confronto com a racionalidade imposta pelos métodos de trabalho, racionalidade produtivista que afeta também os alunos, em que gestores da educação se parecem com gerentes de empresas, o que torna ainda mais difícil discutir o PPP.
O trabalho, segundo a concepção marxiana, é a transformação da natureza e de si, num contínuo processo de aprendizagem/educação. Mas no capitalismo, segundo os autores, o homem perdeu o controle sobre seu próprio trabalho, compelido apenas à execução, sem possibilidade de planejar, gerenciar, avaliar o que faz, com metas externas a si: é a alienação do trabalho. O trabalhador não realiza seu ser através do trabalho, este se torna apenas meio para sobrevivência. O professor, dessa forma, enfrenta as dificuldades inerentes à lógica alienante do sistema na construção do PPP, que se manifestam nas exigências com metas, resultados, avaliações, deixando de lado as reais necessidades da comunidade. O PPP, realizado assim, torna-se mero formalismo burocrático. Apesar dessas enormes dificuldades, qualquer possibilidade emancipatória na escola passa, necessariamente, pelo PPP, pela disputa de sua concepção.
No capítulo 3, “PPP: Gestão e qualidade da educação”, Ari Raimann defende que os valores individualistas presentes na sociedade, assim como o avanço da esfera privada sobre a pública, que reduz a educação à formação instrumentalizada para o trabalho, dificultam a execução do PPP. Seria preciso repensar a gestão educacional partindo de outro conjunto de valores contra-hegemônicos ao mercado capitalista. É preciso resgatar a importância da qualidade dos processos em detrimento da quantidade, chocar-se com o produtivismo, visando a autonomia dos sujeitos envolvidos, já que gestão democrática e educação emancipadora não se separam. A gestão escolar não deve apenas organizar a produção do PPP e voltar-se para “levar” a escola adiante (organizando espaços, tempos e recursos), mas deve, essencialmente, comprometer-se com a educação de qualidade dos alunos, finalidade última da escola pública. Não mais deve agradar ao Estado e esquecer-se dos alunos. Logo, essa gestão precisa romper com o modelo tradicional de disciplinamento de aluno e professor, desfazendo-se dos militarismos. A democracia envolve participação, ou seja, poder compartilhado, construção coletiva. Por isso, conclui Raimann, é preciso ouvir a comunidade, os pais dos alunos – tendo o PPP como instrumento potencializador - para que os professores não fiquem mais isolados nas salas e, assim, a escola ganhe vida e qualidade.
Em seu texto “PPP: é possível como instrumento de transformação na escola?”, Maria Alice de Miranda Aranda e Claudiane Mara Braga, defendem que ainda é possível entender o PPP como instrumento de mudança da escola, ferramenta de gestão escolar democrática. Para isso, é preciso que todo educador – e ressaltam que todos são educadores na escola – saibam qual educação querem, que tipo de ser buscam formar e que sociedade almejam. Segundo Maria e Claudiane, devemos lutar para que o PPP seja um instrumento de gestão escolar democrático que efetivamente promova transformações, e não apenas uma estratégia de gestão administrativa, de implementação de meras reformas. O próprio surgimento do PPP é resultado da luta dos educadores dos anos 80 pela democratização da educação no país, buscando a descentralização e participação de todos. É uma ferramenta poderosa que permite definir todo o processo educativo (conteúdos, forma e caráter). Possui, por base, valores, não só os da LDB e da Constituição, mas também os colocados em debate por seus construtores e pode ajudar a romper vícios e burocratismos da instituição escolar, exigindo autoavaliação permanente. As autoras concluem que o PPP, desde uma perspectiva histórico-critica, carrega esse potencial de contribuir para a transformação da sociedade, de modo indireto e mediado, promovendo o domínio do conhecimento critico e a vivência democrática.
Wander Luís Matias e Elizabeth Gottschalg Raimann, no capítulo 5 intitulado “Participar: fazer saber ou fazer parte?”, afirmam que, muitas vezes, no cotidiano escolar, mais do que participar, somos participados ou reduzidos a uma participação instrumental. O que seria fazer parte, perguntam a seus leitores. Buscam responder isso sem receitas, mas através de uma construção dialógica nascida da experiência. Fundamental é partir da compreensão de que a escola não é neutra, é palco de tensões entre o conservadorismo liberal e as transformações progressistas. Apresentam, então, 5 situações fictícias para debater a gestão escolar, a organização do trabalho pedagógico e as relações de poder. Os dois primeiros casos relatados ressaltam a tendência autoritária da gestão, em que o convite para “participar” de reuniões é mais um informe, não há participação real, mas uma participação passiva dos professores. Os terceiro e quarto relatos evidenciam a forma burocrática (e, consequentemente, autoritária) de ver a realização do PPP, apresentado não para discussão, mas para formalização. O quinto relado mostra tensões em torno da participação, num choque de visões entre o PPP como burocracia e potencial dialógico.
Wander e Elizabeth dizem que a escola ainda é uma organização burocrática conservadora, com poder concentrado em poucas mãos que administram e regulam seu funcionamento. O PPP, por seu caráter politico, pressupõe romper com esse consenso autoritário, promovendo o diálogo, o conflito de concepções. Participação só é real se envolve poder compartilhado. Não pode ser confundido com participacionismo, ou seja, execução de tarefas apenas, que é a reprodução do modelo de funcionamento da sociedade, em que poucos planejam e o restante executa o planejado. A maioria dos trabalhadores da educação, segundo a reflexão dos autores, não compreende que a participação não será concedida pelos gestores, mas é uma luta cotidiana pra modificar as relações de poder.
Há, basicamente, dois grandes projetos de educação disputando as escolas, o conservador e o progressista. Os autores defendem que não podemos nos conformar com a hegemonia conservadora, e que devemos agir aproveitando-se das contradições presentes no âmbito escolar, fortalecendo um projeto mais progressista, com real participação democrática. Encerram o texto nos relembrando que a história está em movimento e que é possível lutar para fortalecer o ideal de autogestão, próprio do PPP, dentro de uma visão progressista.
Em seu último capítulo (sexto), Paulo Gomes Lima defende, assim como outros nesta obra, que o PPP pode funcionar como instrumento para construção da gestão democrática da escola, construindo uma consciência coletiva do contexto sociopolítico em que se insere. O PPP pressupõe a participação de todos os sujeitos envolvidos na escola, trabalhadores da educação, alunos e pais, portanto, está aberto às transformações sociais que afetam esses sujeitos e às suas posições diante do mundo. O PPP pode, portanto, através de seus mecanismos democráticos, reivindicar direitos e contestar o que impeça o acesso a eles. Ao se educarem através do processo democrático, dialógico e conflituoso, os agentes tornam-se responsáveis pelos saberes e afazeres da escola, não são mais mero receptores de informes e ordens. O PPP contribui não só para a planificação do fazer escolar, como para a problematização do próprio projeto histórico de escola que temos construído, o que pode gerar tensões. Todo espaço que se propõe a ser realmente dialógico enfrenta tensões e conflitos. Haverá resistências, embates, negociações. Trata-se de um processo trabalhoso, demorado, mas necessário, que é o de assumir em suas próprias mãos a gestão coletiva, o que exige permanente relação dialógica entre escola-comunidade-sociedade. Essa dialogicidade manifesta-se claramente na relação entre os contextos macro e micro nos debates do PPP: não se pode afastar as questões imediatas e pontuais do universo escolar das macro questões sociais, tampouco pode-se ignorar a cultura local e sua história, trazendo, de cima pra baixo, diretrizes gerais. A partir das questões sociais mais gerais, a comunidade escolar pode discutir sua própria realidade e como esta se insere e se conecta com aquela outra.
O autor esclarece que a situação da escola brasileira, especialmente com relação ao PPP, ainda é muito frágil. A democracia ainda não é substantiva. Há condicionantes internos que dificultam o estabelecimento do diálogo: condicionantes materiais, institucionais, políticos e ideológicos. Os condicionantes materiais são aqueles de ordem das condições materiais do trabalho, que envolvem desde a estrutura física da escola até os salários. São condicionantes fundamentais que precisam ser discutidos no PPP para que este não se torne idealizado e impraticável. Os condicionantes institucionais se referem à criação de canais apropriados de participação democrática que consigam realmente envolver todos os agentes da comunidade escolar, fugindo do burocratismo. Os condicionantes político-sociais estão conectados aos posicionamentos dentro da escola e devem ser trabalhados pelo debate democrático, pela participação direita e debate aprofundado. Os condicionantes ideológicos, referentes à visão de mundo que impulsiona cada participante, devem ser trazidos à tona, tornados transparentes. Assim, as diferentes visões que fundamentam os projetos educacionais e de sociedade podem entrar em debate de forma aberta, expondo seus interesses específicos e, muitas vezes, de classe.
É preciso ter clareza, segundo Paulo Gomes Lima, que o PPP é um veículo e não um fim. Por meio dele pode-se efetivar a participação democrática no ambiente escolar, propiciando a tomada de consciência dos principais problemas da educação, e como estes se manifestam especificamente na unidade escolar em questão. Sempre buscando construí-lo com nortes emancipatórios e numa perspectiva democratizante.
Com o fim dos capítulos, Antonio Bosco de Lima, organizador do livro, nos apresenta sua síntese, defendendo que a escola nem é só um aparelho reprodutor da sociedade injusta atual, como dizem os critico-reprodutivistas, tampouco é, como romântica e ingenuamente outros tantos pensam, a solução dos problemas sociais. Participação, autonomia e descentralização são termos em disputa, assim como estão em disputa os rumos da sociedade. Dentro de um país marcado pela exclusão e exploração, pela imensa desigualdade, a escola pode promover democracia tanto quanto todas as outras organizações formativas (sindicato, partido, grêmios). Mas só pode na medida em que se encontre organizada de maneira crítica. A escola, assim como outras organizações e instituições sociais, encontra-se em disputa, assim como as mentes e corações de todos aqueles que atuam na comunidade escolar. Dentro da sociedade de classes que vivemos, dentro da hegemonia conservadora atual, o PPP se torna refém de indicadores de empenhos e resultados, torna-se um rito procedimental. Delicado, pois, é falar sobre o PPP. Apesar de ser disputável, as condições macropoliticas não são favoráveis e o processo de alienação do trabalho e da comunidade isola a todos, individualiza os interesses. Caminhamos lutando dentro dessas contradições.
Avaliamos que a obra se justifica tanto pela importância do tema quanto pelo olhar progressista que apresenta sobre o assunto, visão que é pouco difundida e debatida pelos trabalhadores da educação. Acreditamos que as diferentes abordagens e questionamentos sobre o PPP podem instigar a reflexão dos leitores. Por isso, entendemos que foi acertado pensar o livro não como um manual, mas sim como um catalisador, produzindo o incômodo produtivo a quem busca, sinceramente, construir as respostas coletivamente e de forma dialógica. Porém, acreditamos que o livro não seja tão acessível à comunidade escolar como se espera por seus autores e organizador. Apesar da linguagem ser bem menos acadêmica, o vocabulário utilizado certamente dificultaria, se não impediria, a compreensão por boa parte da comunidade escolar. Além disso, os textos partem de alguns pressupostos ideológicos e políticos dos quais muitos leitores podem não compartilhar ou, simplesmente, desconhecer, o que truncaria a possibilidade de diálogo. Mais que ilustrações, que são sempre bem-vindas, seria necessário repensar a lógica da escrita num nível mais profundo para que realmente se pudesse estabelecer um diálogo mais amplo. Observamos uma busca disso no capítulo 5, em que os autores buscam trazer casos cotidianos para expor as dificuldades de implementação do PPP. Recursos como esses, e outros, facilitariam a difusão das idéias contidas nesse livro.
Referências
LIMA, A. B. de. (Org.). PPP: participação, gestão e qualidade da educação. 1.ed. Uberlândia, MG: Assis Editora, 2013.
Ligação alternative
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/331/497 (pdf)
Artigo relacionado
[Artigo corrigido , vol. 3, 224-229] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/331/497