Expansão urbana de Boa Vista, Roraima, e os reflexos sobre a desigualdade socioespacial
URBAN EXPANSION OF BOA VISTA – RORAIMA AND THE REFLECTIONS ON SOCIOESPACIAL INEQUALITY
EXPANCIÓN URBANA DE BOA VISTA – RPRAIMA Y LOS REFLEXOS SOBRE LA DESIGUALDAD SOCIOESPACIAL
Expansão urbana de Boa Vista, Roraima, e os reflexos sobre a desigualdade socioespacial
GEOSABERES: Revista de Estudos Geoeducacionais, vol. 9, núm. 18, pp. 1-18, 2018
Universidade Federal do Ceará
Recepção: 07 Junho 2017
Aprovação: 13 Fevereiro 2018
Resumo: O artigo discute a expansão urbana de Boa Vista e seus reflexos sobre a desigualdade socioespacial. Única capital brasileira acima da linha do equador, no estado mais setentrional do país, Boa Vista mais que quadruplicou sua população nas últimas décadas, especialmente a partir do reconhecimento de Roraima como estado pela Constituição Federal de 1988 e hoje concentra mais de 63% de toda a população desta unidade da federação. De abordagem mista, natureza descritiva e elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e documental, o estudo revela que a rápida expansão urbana de Boa Vista alterou significativamente, além do modelo espacial da cidade, o meio ambiente e as relações sociais que nele se estabelecem e que, embora o município tenha apresentado melhoras nos índices de vulnerabilidade social, aprofundam-se as desigualdades socioespaciais.
Palavras-chave: Boa Vista, Espaço urbano, Expansão urbana, Desigualdade socioespacial.
Abstract: The article discusses the urban expansion of Boa Vista and its reflections on social and spatial inequality. The only Brazilian capital above the equator, in the northernmost state of the country, Boa Vista has more than quadrupled its population in the last decades, especially since the recognition of Roraima as a state by the Federal Constitution of 1988 and today it concentrates more than 63% of all the population of this unit of the federation. With a mixed approach, a descriptive nature and a bibliographical and documentary research, the study reveals that the rapid urban expansion of Boa Vista significantly altered, besides the city's spatial model, the environment and the social relations established in it, although the municipality has shown improvements in social vulnerability indexes, socio-spatial inequality deepen.
Keywords: Boa Vista, Urban space, Urban expansion, Socio-spatial inequality.
Resumen: El artículo discute la expansión urbana de Boa Vista y sus reflejos sobre la desigualdad socioespacial. La única capital brasileña por encima de la línea del ecuador, en el estado más septentrional del país, Boa Vista más que cuadruplicó su población en las últimas décadas, especialmente a partir del reconocimiento de Roraima como estado por la Constitución Federal de 1988 y hoy concentra más del 63% la población de esta unidad de la federación. El estudio revela que la rápida expansión urbana de Boa Vista alteró significativamente, además del modelo espacial de la ciudad, el medio ambiente y las relaciones sociales que en él se establecen y que, aunque el municipio ha presentado mejoras en los índices de vulnerabilidad social, se profundizan las desigualdades socioespaciales.
Palabras clave: Boa Vista, Espacio urbano, Expansión urbana, Desigualdad socioespacial.
INTRODUÇÃO
Discutir a produção do espaço e a expansão urbana de Boa Vista é, sem dúvida, evidenciar a história de uma região em formação, um lugar que “manteve-se isolado do resto do Brasil por séculos, até que, recentemente, ligações mais perenes foram constituídas, desencadeando um verdadeiro boom populacional” (DINIZ, 2008, p. 269). É enunciar uma área que em menos de 150 anos deixou de pertencer ao Território do Amazonas para se tornar capital a partir da criação do estado de Roraima pela Constituição Federal de 1988.
Para falar de Boa Vista é preciso lembrar de sua localização no estado com a menor população do país, que, “no contexto amazônico [...] notabiliza-se por seu caráter remoto e por ser ainda desconhecido de boa parte dos brasileiros” (DINIZ, 2008, p. 269). É a única capital totalmente acima da linha do Equador, o que confere um "clima equatorial com média de temperatura de 27,4ºC" (STAEVIE, 2011, p. 70). Capital do estado e que concentra grande parte da população indígena brasileira (IBGE, 2010).
De relevo 90% plano e 10% de terras com pequena inclinação, o município está situado na porção centro-oriental do estado de Roraima, numa área de 5.117,9 km²; limita-se com Pacaraima a Norte, Normandia a Nordeste, Bonfim a Leste, Cantá a Sudeste, Mucajaí a Sudoeste, Alto Alegre a Oeste e Amajari a Noroeste. A hidrografia do município é composta pelos principais rios: Branco, Tacutu, Uraricoera, Amajari e Cauamé (PREFEITURA..., 2015).
Em 2016, Boa Vista se tornou apto a realizar segundo turno nas eleições municipais, pois atingiu um número de eleitores superior a 200 mil (passou de 183.173 em 2012 para 203.575 em 2016 segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral - TSE), totalizando 62,67% do eleitorado roraimense (TRIBUNAL..., 2016).
Com a imigração de venezuelanos para Roraima iniciada em 2015, contabiliza-se que, em 2018, estes representem mais de 10% da população da capital, já que o número de estrangeiros residindo em Boa Vista é superior a 40 mil (COSTA; BRANDÃO; OLIVEIRA; 2018) e a estimativa populacional é de 332.020 habitantes.
São tantas as peculiaridades deste extremo norte do Brasil, onde o sol é mais presente, onde as estações do ano se confundem entre inverno (6 meses de chuva) e verão (6 meses de seca), que há que se concordar com Souza (2012, p. 9) quando afirma que “cortado por uma linha imaginária que há séculos divide o planeta em duas partes, a linha do Equador marca a trajetória e a história deste lugar”.
Numa abordagem sobre a população residente nas áreas urbanas da Amazônia Legal, especialmente nas metrópoles e capitais dos estados periféricos, Staevie (2011, p. 69) aponta para os problemas sociais causados pela “rápida expansão demográfica” ocorrida nas últimas décadas (a exemplo dos estados do Amapá e Roraima e suas capitais que tem apresentado desde 1980 as maiores taxas de crescimento populacional do país), pois a oferta de serviços públicos era até então insuficiente ou, “alguns deles, até inexistente na região” (STAEVIE, 2011, p. 69).
Para o autor, este movimento obriga pensar novos arranjos institucionais e formas de organização da sociedade civil, além da reconfiguração do espaço urbano, de forma a caracterizar “uma nova morfologia urbana, formada por um vasto mosaico cultural, onde convivem inúmeras representações identitárias coletivas, cristalizando-se em distintas manifestações territoriais” (STAEVIE, 2011, p. 69).
Deste modo, o artigo em tela intitulado “Expansão urbana de Boa Visa – Roraima e os reflexos sobre a desigualdade socioespacial”, discute a expansão do espaço urbano de Boa Vista numa relação espaço-temporal, que remete a uma gama de processos de larga complexidade, que, embora tenham suas características locais e regionais específicas, não se distinguem na essência, da produção e expansão de qualquer outra capital brasileira da região Norte, com suas desigualdades, segregações, fragmentações e seletividades.
BOA VISTA NO SÉCULO XXI
O processo de produção do espaço urbano de Boa Vista e, em consequência, de Roraima, se deve pelo menos a três fatores importantes: a corrida do ouro (garimpos de ouro e diamante na década de 1970), os programas de colonização agrícola (STAEVIE, 2011, p. 70) e o incentivo às migrações. Somado a isso, nas últimas décadas, o poder público promoveu e implementou, especialmente nos limites da malha urbana ou em áreas de expansão, programas habitacionais, tais como Minha Casa, Minha Vida do Governo Federal, (MONTEIRO; VERAS, 2015).
Este intenso movimento de urbanização promoveu, entre outras coisas, a multiplicação dos bairros periféricos e a ocupação irregular de áreas de proteção ou de risco ambiental. Naturalmente que o crescimento populacional ampliou a demanda por serviços públicos diversos, como nas áreas de educação, saúde e transporte, tendo ainda afetado diretamente os índices de emprego, desemprego e trabalho informal.
Para Souza (2009, p. 42), “[...] em decorrência desse processo de urbanização rápida e intensa, multiplicaram-se os bairros periféricos sem as mínimas condições de habitação e ocorreu uma ocupação desenfreada de áreas de proteção e risco ambientais”.
A Figura 1 expõe o crescimento da cidade orientado para a zona Oeste (2000), com maior área e densidade demográfica da capital. Sua ocupação, que Veras (2009) chega a chamar de “favelização”, marca “um processo seletivo de acessibilidade à cidade, acentuando a diferenciação do espaço urbano e contribuindo para a precarização de vida de parcelas significativas da população urbana” (VERAS, 2009, p. 174). Segundo o autor, isto ocorre porque “as ações urbanísticas foram direcionadas para a área central ou seu entorno, que abrangia ou abrange, até hoje, a área de maior valor imobiliário” (VERAS, 2009, p. 173).
Esse fato alterou em parte a configuração socioespacial de Boa Vista. Pois aumentou o número de habitantes – que não tendo onde morar, deslocavam-se para a periferia e ocupavam irregularmente os terrenos em áreas de risco (áreas inundáveis e próximas aos lagos e igarapés). Tendo início o surgimento de bairros suburbanos e as patologias sociais (miséria, crime, doenças entre outros) em decorrência da ausência de um planejamento urbano que viabilizasse melhores condições de vida para a população que se alojavam nessas áreas (VERAS, 2009, p. 163).
Elaboração: Janaine Voltolini de Oliveira/Roberto Helber Correia Alves.
Fonte: IBGE (2010), PMBV (2016), VERAS (2009).Outro cenário que merece destaque é a opção pelo traçado radial concêntrico, que parece não considerar a possibilidade de expansão da cidade conforme ocorreu nas últimas décadas. Tal situação se deve, entre outros fatores, às barreiras naturais (como rios) e institucionais (forças armadas) que impedem a expansão da cidade para outras áreas. Para além destes aspectos, Veras (2009) ita a estratégia traçada pela Secretaria Estadual de Planejamento e Desenvolvimento de Roraima (SEPLAN) para o reordenamento do espaço urbano de Boa Vista.
[...] O plano rádio-concêntrico de 1945 é a configuração de uma situação na qual o poder está centralizado, geometricamente na trama urbana, de onde partem todas as forças indutoras do crescimento da cidade. Próximo a essa área central administrativa, se desenvolve o comércio local. Essas funções polarizam todas as atividades urbanas, gerando assim fluxos que tendem a congestionar áreas centrais. Esse sistema tem como vias principais as radiais que partem do centro e se prolongam para acompanhar o crescimento da cidade. Esta estrutura, embora seja admissível para a cidade de pequeno porte e tenha uma conformação imponente, apresenta alguns problemas, como: a) ao se afastarem do centro as radiais se distanciam entre si, criando a necessidade cada vez maior de vias locais de curto percurso e aumentando a circulação em ziguezague b) possibilidade de certa estratificação dentro da trama urbana, uma vez que privilegia um único centro para o qual tudo converge c) à medida que se aproxima das áreas centrais, eleva-se rapidamente a proporção das áreas consumidas pelo sistema viário e por consequência tem-se um baixo índice de aproveitamento dos terrenos. Considerando-se a impossibilidade de determinar o limite de crescimento de uma cidade e a tendência de permanência e ampliação do centro de interesse – Centro Cívico, administrativo e Comercial, acredita-se que esta estrutura viria causar problemas de solução onerosa no futuro, com relação ao congestionamento da área central. Assim é que se respeitou a hipótese de, respeitando a área urbanizada atual, buscar dotar a cidade de uma estrutura em aberto, que, impedindo a continuidade do traçado atual, venha abrir novas perspectivas para o desenvolvimento de Boa Vista (VERAS, 2009, p. 158-159).
Chama atenção também a questão relacionada aos custos e dificuldades de deslocamento na cidade que, de acordo com Spósito (2013), oferece condições desiguais de acessibilidade (relação entre tempo e espaço para apropriação do espaço urbano), com maior fluidez espacial de alguns segmentos sociais do que de outros.
Santos (2008) corrobora com esta ideia ao afirmar que a distribuição dos indivíduos na cidade se dá segundo suas classes sociais e seu poder aquisitivo e, portanto, para a maioria das pessoas sem acesso efetivo aos bens e serviços distribuídos na hierarquia urbana, o sistema de cidades não tem validade, já que a mobilidade ou o imobilismo dependem do seu lugar socioeconômico e também geográfico.
No caso de Boa Vista, a população da periferia da zona Oeste precisa cruzar a cidade para ter acesso a serviços públicos, concentrados na área central (três hospitais, sede dos poderes executivo, legislativo e judiciário, por exemplo). Nesta zona, estão os grupos sociais de menor renda, além dos empreendimentos da faixa 1 do Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV, que necessitam de transporte público ou de vias de locomoção.
Boa Vista, apesar de alguns esforços como implantação de ciclovias e reordenamento e revitalização da sinalização vertical e horizontal, ainda não conseguiu elaborar um plano de mobilidade urbana (PARENTE, GONÇALVES; SILVA, 2015), ficando a população a mercê de transportes alternativos a custos mais elevados, como os taxi-lotação.
O plano de mobilidade urbana, além de propor alternativas para as deficiências na malha viária e problemas de congestionamentos, estabelece locais de estacionamento, carga e descarga de mercadorias e níveis de poluição sonora, seguindo as determinações do Art. 7º da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012):
I – reduzir as desigualdades e promover a inclusão social;
II – promover o acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais;
III – proporcionar melhoria nas condições urbanas da população no que se refere à acessibilidade e à mobilidade;
IV – promover o desenvolvimento sustentável com a mitigação dos custos ambientais e socioeconômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas nas cidades; e
V – consolidar a gestão democrática como instrumento e garantia da construção contínua do aprimoramento da mobilidade urbana.
Neste sentido, é de fundamental importância que se compreenda que na produção do espaço urbano se considere as conexões que nele se produzem e reproduzem a todo o momento a partir do estabelecimento de relações, de trabalho, de consumo, de produção, como também as afetivas, entre outras. O espaço geográfico da cidade não somente existe em si e para si. Nas palavras de Santos (1988, p. 10) “o espaço não é nem uma coisa, nem um sistema de coisas, senão uma realidade relacional: coisas e relações juntas”, forma e conteúdo.
Boa Vista é, por assim dizer, palco do intenso êxodo rural, processo este que demanda do setor público investimentos e oferta de serviços em diversas áreas como saúde, educação, segurança pública, transporte e mobilidade urbana, habitação, assistência social, saneamento básico, trabalho e emprego, entre outros, gerando a necessidade de rearranjos institucionais e reordenamento socioespacial.
A formação socioespacial de Boa Vista e os problemas de morfologia urbana que deles decorrem envolvem uma conjuntura de questões econômicas, sociais, políticas e institucionais, sendo estas, ademais, enfocadas sob os mais diversos ângulos e vertentes ideológicas. A noção dominante é a de que a estrutura do espaço intraurbano resulta da ocupação desordenada do seu solo, resultando em desequilíbrios ou disfunções urbanas (VERAS, 2009, p. 17).
A partir da Tabela 1 é possível destacar alguns fatos: a) o município mais que quadruplicou sua população nas últimas quatro décadas; b) a população urbana ultrapassou a rural em 1980, resultado do êxodo rural; c) a taxa de crescimento urbano foi intensa desde anos 1940, atingindo 267% na década de 1940-1950 e 215% na década de 1970-1980; d) a taxa de crescimento da população urbana é muito superior a do município.
Década | População urbana | Taxa de crescimento (%) | População rural | Taxa de crescimento (%) | População total | Taxa de crescimento (%) |
1940* | 1.398 | 267 | 9.111 | 33 | 10.509 | 64 |
1950** | 5.132 | 12.115 | 17.247 | |||
1960** | 11.581 | 126 | 14.124 | 16 | 25.705 | 49 |
1970** | 16.727 | 44 | 19.737 | 40 | 36.464 | 42 |
1980** | 52.614 | 215 | 14.433 | -27 | 67.047 | 84 |
1990*** | 120.157 | 128 | 24.092 | 67 | 144.249 | 115 |
2000*** | 197.098 | 64 | 3.470 | -85 | 200.568 | 39 |
2010*** | 277.799 | 41 | 6.514 | 88 | 284.313 | 42 |
O histórico de crescimento populacional de Boa Vista se confunde com o de Roraima nas últimas décadas. Considerando que o estado foi constituído há 28 anos e aparece nas pesquisas de contagem populacional e censos a partir de 1991, é possível observar um crescimento intercensitário médio de 32% para ambos, sendo que os dois últimos censos demonstraram uma taxa de aumento demográfico de Boa Vista superior ao do estado.
Considerando-se a estimativa populacional do IBGE para 2016 em relação ao Censo Demográfico de 1991, se extrai um crescimento populacional em torno de 136% para o estado e 126% para o município, números muito superiores à média de crescimento nacional e regional para o mesmo período (ver Tabela 2).
O último Plano Diretor Estratégico e Participativo de Boa Vista - Lei Complementar nº 924, de 28 de novembro de 2006, publicado no Diário Oficial do Município em 30/11/2016, aprovado pelo então prefeito Iradilson Sampaio, encontra-se, segundo informações da prefeitura, em fase de reformulação, pois, em cumprimento ao Art. 77 do documento, “O Plano Diretor Estratégico e Participativo do Município de Boa Vista será revisto em até dez anos”.
Ano | População de Roraima | Crescimento Intercensitário (%) | População de Boa Vista | Crescimento Intercensitário (%) |
1991 | 217.583 | 49 | 144.249 | 39 |
2000 | 324.397 | 200.568 | ||
2010 | 450.479 | 39 | 284.313 | 42 |
Estimativa 2016 | 514.229 | 14 | 326.419 | 15 |
Staevie (2011, p. 71) afirma que o documento intitulado Diagnóstico do Plano Diretor de Boa Vista – RR, elaborado em 2007 pela Rede de Avaliação e Capacitação para Implementação dos Planos Diretores Participativos o considerou “ineficiente e incompleto em vários aspectos”. Segundo a avaliação, o documento
[...] não representa um planejamento de longo prazo para a cidade. O volume migratório e o intenso processo de urbanização não foram contemplados de forma satisfatória no Plano, tornando a política habitacional o ponto fraco do documento. Esses processos têm contribuído para o aumento na demanda por habitação e terra urbanizada e, consequentemente, para uma crescente disputa pelo espaço urbano na cidade de Boa Vista. Segundo o diagnóstico, apesar da grande segregação socioespacial e dos elevados índices de pobreza observados no município, o Plano não se apresenta como uma estratégia econômica e socioterritorial para o desenvolvimento municipal (STAEVIE, 2011, p.70-71).
Outro fato apontado pelo autor como negativo é a efetivação do controle social. Pontua que, embora o Plano faça referência à participação da sociedade civil na formulação e fiscalização das ações municipais, este, por sua vez, não deixa claro quais seriam os canais e mecanismos pelos quais se efetivaria esta participação, ficando aquém do que se pretende ao menos no papel. Destaca ainda que a participação política dos movimentos sociais e da sociedade roraimense (não apenas da população boa-vistense) nas instâncias de discussão e deliberação comunitárias ainda se dá de forma muito tímida, assim como em fóruns e conferências que discutem a cidade (STAEVIE, 2011). Tal situação, lamentavelmente, acaba gerando inércia na população e deixa exclusivamente a cargo do poder público estabelecer as prioridades locais, a destinação dos recursos, o monitoramento e a avaliação das políticas sociais, o que, como se sabe, é um risco em qualquer esfera de governo.
Considerando a estimativa do IBGE (2016), tem-se que Boa Vista é 11,8 vezes mais populosa que Rorainópolis, município localizado ao sul e que detém a segunda maior população do estado. Em termos econômicos, a capital detém 74,2% da participação no Produto Interno Bruto - PIB estadual (Tabela 3), concentrando 86% da indústria, 74,9% dos serviços e 8% da agropecuária (Tabela 4). Segundo a Secretaria do Estado de Planejamento e Desenvolvimento – SEPLAN,
O Produto Interno Bruto do Estado de Roraima abrange dezessete atividades: Agricultura, Pecuária, Extrativa Mineral, Indústria de Transformação, Construção, Produção e distribuição de Eletricidade e gás, água, esgoto e limpeza urbana, Comércio e Serviços de Manutenção e Reparação, Serviços de Alojamento e Alimentação, Transportes, Serviço de Informação, Intermediação Financeira, Serviços Prestados às Famílias, Serviços Prestados às Empresas, Atividades Imobiliárias, Administração Pública, Saúde, Educação Mercantis e Serviços Domésticos (SEPLAN, 2016, p. 6).
Embora Boa Vista concentre a maior parte do PIB do estado, percebe-se uma pequena queda desta concentração nos últimos quatro anos. “Em 2010, o PIB de Boa Vista representava 77,1% do total da riqueza gerada em Roraima, em 2011 esse percentual caiu para 75,8%, em 2012 para 75,7% e em 2013 para 74,2% (SEPLAN, 2016, p.18).
Em 2013 Roraima obteve um crescimento real anual de 5,9%, o terceiro do país; o estado participa em 0,17% na economia nacional, que obteve um crescimento de 3% no mesmo período.
No setor agropecuário tem destaque a produção da soja, o cultivo da banana, o crescimento do rebanho bovino e a pesca e aquicultura. No setor industrial, o destaque é para a construção civil; no setor de serviços, a administração pública, os serviços domésticos, os de transporte e armazenagem e de atividades imobiliárias (SEPLAN, 2016).
O PIB per capita “ficou em R$18.496,00, ocupando o 13º posto no ranking nacional e o 2º no ranking regional, atrás apenas do estado do Amazonas com um PIB per capita de R$21.874” (SEPLAN, 2016, p. 7).
As figuras 2, 3, 4 e 5 apresentam o valor adicionado dos municípios de Roraima na agropecuária, indústria e serviços – com e sem a administração pública. Com exceção de Boa Vista e dos serviços considerando a Administração pública, observa-se certa superioridade econômica na região sul do estado, o que reflete o mesmo desempenho em outras áreas, como no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDMH, que será discutido a seguir.
Em relação a Boa Vista, não se nota uma enorme disparidade em comparação aos outros municípios somente nos quesitos população, densidade demográfica, presença de estabelecimentos comerciais e atividades do setor privado. Olhando atentamente na tabela 5 o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM, que considera três quesitos como medida do grau de desenvolvimento humano, quais sejam: saúde (oportunidade de se levar uma vida longa e saudável), educação (ter acesso ao conhecimento) e renda (poder desfrutar de um padrão de vida digno), se extrai que Boa Vista, apesar de todas as mazelas geradas pelo crescimento da cidade de forma desigual e desordenado, que não oportuniza a todos os seus moradores as mesmas chances de acesso a produtos e serviços, programas e benefícios, está em melhores condições que os demais municípios roraimenses.
Município | Instalação ** | População 2010* | Estimativa 2016* | % da População RR**** | Área km2** | Densidade demográfica hab/km2 ** | IDHM 2013*** |
Alto Alegre | 1985 | 16.448 | 16.053 | 3,1 | 25.567,01 | 0,64 | 0,542 |
Amajari | 1997 | 9.327 | 11.285 | 2,2 | 28.472,33 | 0,37 | 0,484 |
Boa Vista | 1943 | 284.313 | 326.419 | 63,5 | 5.687,04 | 54,33 | 0,752 |
Bonfim | 1985 | 10.943 | 11.843 | 2,3 | 8.095,42 | 1,42 | 0,626 |
Cantá | 1997 | 13.902 | 16.516 | 3,1 | 7.664,83 | 2,01 | 0,619 |
Caracaraí | 1955 | 18.398 | 20.537 | 4,0 | 47.408,90 | 0,42 | 0,624 |
Caroebe | 1997 | 8.114 | 9.331 | 1,9 | 12.066,05 | 0,73 | 0,639 |
Iracema | 1997 | 8.696 | 10.592 | 2,0 | 14.412,69 | 0,68 | 0,582 |
Mucajaí | 1985 | 14.792 | 16.618 | 3,2 | 12.461,21 | 1,28 | 0,665 |
Normandia | 1985 | 8.940 | 10.339 | 2,0 | 6.966,81 | 1,40 | 0,594 |
Pacaraima | 1997 | 10.433 | 12.144 | 2,4 | 8.028,48 | 1,42 | 0,650 |
Rorainópolis | 1997 | 24.279 | 27.756 | 5,4 | 33.595,46 | 0,78 | 0,619 |
São João da Baliza | 1985 | 6.769 | 7.629 | 1,5 | 4.284,51 | 1,70 | 0,655 |
São Luiz | 1985 | 6.750 | 7.503 | 1,5 | 1.526,89 | 4,72 | 0,649 |
Uiramutã | 1997 | 8.375 | 9.664 | 1,9 | 8.065,56 | 1,13 | 0,453 |
Roraima | 1988 | 450.479 | 514.229 | 100 | 224.300,51 | 2,01 | 0,690 |
Para exemplificar a magnitude da situação, alguns dados sobre os três quesitos avaliados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD para o cálculo do IDHM serão explorados: saúde, educação e renda.
Em relação à saúde da população, a partir das informações disponíveis no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES/Ministério da Saúde e na Secretaria de Estado da Saúde de Roraima - SESAU, é possível verificar que somente na capital há Pronto Socorro, Hospital Geral que realiza cirurgias grande porte, que todos os leitos de Unidade de Tratamento Intensivo - UTI e Unidade de Cuidados Intensivos - UCI neonatal, pediátrico ou adulto estão na cidade de Boa Vista, assim como unidades oncológicas, hemocentro, centro de dispensação de medicações de alta complexidade (alto custo) e a grande maioria dos laboratórios de análises clínicas e clínicas especializadas em exames de imagem. Em número de leitos, em 2013 eram 615 na capital contra 200 nos demais municípios (SEPLAN, 2014).
Somente em Boa Vista existe oferta de pré-natal de alto risco para gestantes, hospital maternidade - Hospital Materno Infantil “Nossa Senhora de Nazareth” - HMI, e hospital infantil - Hospital da Criança Santo Antônio - HCSA. A cidade concentra ainda hospital e clínica especializada - Policlínica Cosme e Silva e Coronel Mota e, sozinha, comporta mais unidades básicas de saúde que o restante dos 14 municípios. Para além dos serviços públicos, os hospitais da rede privada também estão instalados na capital.
O Sistema Único de Saúde (Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990), que organiza a política de saúde, recomenda considerar as territorialidades e níveis de complexidade (atenção básica, média e alta complexidade) na distribuição dos serviços. Estes devem estar organizados de acordo com a capacidade de cada território, o que não impede que se observe o que está descrito acima em Roraima.
Na educação não é muito diferente. Evidenciando os cursos técnicos profissionalizantes e de nível superior (graduação e pós-graduação), chegamos ao seguinte achado: embora a Universidade Federal de Roraima - UFRR, Universidade Estadual de Roraima - UERR, o Instituto Federal de Roraima - IFRR, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial - SENAC, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI e o Serviço Nacional do Transporte/Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte - SEST/SENAT e algumas outras instituições privadas de ensino superior ofertem pontualmente ou mantenham estrutura em algumas localidades do interior, com oferta regular de vestibular para cursos superiores de graduação, tecnólogos ou para cursos técnicos (nível médio), sejam eles presenciais ou a distância, não há como negar o abismo que separa o acesso à educação entre os moradores da capital e do interior.
Em Boa Vista existe maior oferta, tanto pela quantidade de instituições de ensino e diversidade de cursos, quanto em relação ao número de vagas, facilidade de acesso (ruas, transporte), possibilidade de consultas a bibliotecas públicas e privadas, internet (precária nos interiores, assim como a energia elétrica), entre tantas outras disparidades. Cursos de pós-graduação strictu sensu somente na capital, assim como a maioria dos congressos, seminários, fóruns entre outras atividades acadêmico-científicas. Atividades culturais como peças de teatro ou cinema também só acontecem em Boa Vista.
E no que diz respeito à renda, tem-se a pontuar que no estado permanece o destaque para a “economia do contracheque” (administração pública), ainda que se tenha ampliado o volume de renda nos demais setores – serviços, indústria e agropecuária, conforme discutido acima. A cidade de Boa Vista concentra a maioria dos órgãos públicos e 80% dos estabelecimentos privados, ou seja, grande parte dos postos de trabalho está na capital e não no interior, que sobrevive em grande parcela, com renda proveniente da agricultura, pequenos comércios, oferta de serviços e dos programas de transferência de renda – Bolsa Família (Governo Federal) e Crédito do Povo (Governo Estadual). O agronegócio cresce ano a ano no estado, mas é de conhecimento que não gera oportunidades de emprego na mesma proporção.
Frise-se que os mais baixos IDHM (figuras 6, 7, 8 e 9) são de municípios localizados ao norte do estado, com população predominantemente rural e/ou com maior concentração de povos indígenas, a exemplo do Uiramutã, Normandia e Amajari, cuja população indígena perfaz um total de 88,1%, 56,9% e 53,8% respectivamente (IBGE, 2010).
A este respeito, faz-se necessário destacar que 82,3% dos indígenas brasileiros vivem em Roraima, compondo 11 etnias diferentes (IBGE, 2016) e o estado possui 32 Terras Indígenas (FUNAI, 2016). Estas áreas correspondem a 46,20% de todo o território do estado, ou seja, 10.370.676 km2.
De acordo com o IBGE (2010), 49.637 pessoas se declararam indígenas no estado. A Terra Indígena Yanomami abriga 25,7 mil índios – 5% dos indígenas do país. Em seguida, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol abriga 17 mil índios num território que se estende por toda a faixa de fronteira com a República Cooperativa da Guyana e Venezuela.
Boa Vista e Alto Alegre são os municípios com maior número de indígenas nas áreas urbana e rural do estado. Considerando a realidade nacional, Boa Vista ocupa o 8º lugar, com 8.550 indígenas – 71% em área urbana – 5% lugar com 6.072 indivíduos e Alto Alegre ocupa o 8º lugar em relação à população indígena em área rural do país – 7.457 (tabela 6). Isto significa que, em 2010, 3% da população boa-vistense se declarou indígena e destes, 2,13% estariam na área urbana da capital (IBGE, 2010). Por todo o exposto, “Boa Vista explicita uma espécie de síntese da sociedade e da realidade regional, propiciada pela pluralidade e diversidade de contatos, encontros e situações” (SOUZA, 2009, p. 41).
Ainda para ilustrar as últimas assertivas, recorre-se às informações de setembro de 2016 do Programa Bolsa Família. Em Roraima, o programa beneficia 45.885 famílias, ou seja, aproximadamente 183.540 pessoas, o equivalente 35,7% da população do estado[1]. Destas, 21.277 famílias, aproximadamente 85.108 pessoas, o que equivale a 46,4% dos beneficiários, são do município de Boa Vista.
Assim, é possível auferir que 53,6%, dos beneficiários, ou seja, aproximadamente 98.432 pessoas, são do interior do estado. Desta forma, considerando que a estimativa populacional do IBGE para o ano de 2016 sugere uma população de 187.804 pessoas residentes nos 14 municípios do interior de Roraima, verifica-se que 52,41% daquela população vive em condição de pobreza ou extrema pobreza, condição socioeconômica definida pelo Governo Federal para fazer parte do programa[2].
Total | Urbano | Rural | ||||
Município | POP | Município | POP | Município | POP | |
1 | São Gabriel da Cachoeira - AM | 29.017 | São Paulo - SP | 11.918 | São Gabriel da Cachoeira - AM | 18.001 |
2 | São Paulo de Olivença - AM | 14.974 | São Gabriel da Cachoeira - AM | 11.016 | Tabatinga - AM | 14.036 |
3 | Tabatinga - AM | 14.8558 | Salvador - BA | 7.560 | São Paulo de Olivença - AM | 12.752 |
4 | São Paulo - SP | 12.977 | Rio de Janeiro - RJ | 6.764 | Benjamim Constant - AM | 8.704 |
5 | Santa Isabel do Rio Negro - AM | 10.749 | Boa Vista – RR | 6.072 | Santa Isabel do Rio Negro - AM | 8.584 |
6 | Benjamim Constant - AM | 9.833 | Brasília – DF | 5.941 | Campinápolis - MT | 7.589 |
7 | Pesqueira - PE | 9.335 | Campo Grande – MS | 5.657 | São João das Missões - MG | 7.528 |
8 | Boa Vista - RR | 8.550 | Pesqueira - PE | 4.048 | Alto Alegre – RR | 7.457 |
9 | Barcelos - AM | 8.367 | Manaus – AM | 3.837 | Amambai - MS | 7.158 |
10 | São João das Missões - MG | 7.936 | Recife – PE | 3.665 | Barcelos - AM | 6.997 |
Outro indicativo de grande diferenciação entre a capital e os demais municípios de Roraima é o Atlas da Vulnerabilidade Social do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada – Ipea, que a partir de metodologia própria calcula e fornece uma visão ampliada da exclusão e vulnerabilidade social dos municípios, estados e regiões metropolitanas brasileiras a partir de indicadores em três dimensões – infraestrutura urbana, capital humano e renda e trabalho.
No primeiro cálculo, referente ao ano 2000, a capital tinha um índice de 0,371 e já no segundo, em 2010, apresentou uma considerável melhora, tendo alcançado o índice de 0,261, conforme se observa na figura 10, que aponta para uma melhor condição, ou seja, menor vulnerabilidade social de Boa Vista em relação aos demais municípios de Roraima.
De acordo com o Ipea (2015), o estado de Roraima saiu, em 2000, de um índice de vulnerabilidade social 0,461 para 0,366 em 2010, o que demonstra, guardadas as devidas proporções, que não foi apenas Boa Vista que apresentou melhoras nos indicadores, ainda que seja a capital a localidade de maior impacto (ver Tabela 7).
Embora o mapa apresente áreas menos vulneráveis em relação aos dois períodos (2000 e 2010), o estado tem muito que avançar para alcançar melhores níveis de prosperidade social, ou seja, “a ocorrência simultânea do alto Desenvolvimento Humano com a baixa Vulnerabilidade Social, sugerindo que nas porções do território onde ela se verifica, ocorre uma trajetória de desenvolvimento humano menos vulnerável e socialmente mais próspera” (IPEA, 2015).
A Prosperidade Social, nesse sentido, reflete uma situação em que o desenvolvimento humano se assenta em bases sociais mais robustas, onde o capital familiar e escolar, as condições de inserção no mundo do trabalho e as condições de moradia e de acesso à infraestrutura urbana da população são tais que há uma perspectiva de prosperidade não apenas econômica, mas das condições de vida no meio social (IPEA, 2015, p. 74).
Retomando a expansão urbana de Boa Vista, Veras (2009, p. 200) afirma: “são as relações entre a dinâmica do espaço e o crescimento da população que vão delinear as formas e os conteúdos da desigualdade socioespacial”.
Os dados do Censo IBGE (2010) apontam que na zona oeste concentram-se 72,7% dos bairros e residem mais de 80,7% da população de Boa Vista (229.454 habitantes). Esta disparidade revela algumas questões que atentam para uma abordagem que considera a segregação socioespacial e que agrava sobremaneira o modo de vida das pessoas.
Espacialidades | IVS | IVS Infraestrutura urbana | IVS Capital Humano | IVS Renda e Trabalho | Prosperidade Social |
Brasil | 0,326 | 0,295 | 0,362 | 0,320 | - |
Roraima | 0,366 | 0,245 | 0,483 | 0,370 | - |
Alto Alegre | 0,587 | 0,308 | 0,784 | 0,669 | Muito baixa |
Amajari | 0,628 | 0,366 | 0,815 | 0,702 | Muito baixa |
Boa Vista | 0,261 | 0,157 | 0,362 | 0,265 | Muito alta |
Bonfim | 0,674 | 0,814 | 0,615 | 0,593 | Baixa |
Cantá | 0,521 | 0,522 | 0,561 | 0,481 | Baixa |
Caracaraí | 0,457 | 0,308 | 0,609 | 0,455 | Baixa |
Caroebe | 0,502 | 0,547 | 0,512 | 0,447 | Baixa |
Iracema | 0,535 | 0,273 | 0,736 | 0,595 | Muito Baixa |
Mucajaí | 0,450 | 0,292 | 0,620 | 0,437 | Baixa |
Normandia | 0,685 | 0,668 | 0,668 | 0,718 | Muito baixa |
Pacaraima | 0,487 | 0,433 | 0,481 | 0,547 | Baixa |
Rorainópolis | 0,437 | 0,325 | 0,488 | 0,498 | Baixa |
São João da Baliza | 0,357 | 0,188 | 0,452 | 0,430 | Média |
São Luiz | 0,390 | 0,235 | 0,524 | 0,412 | Baixa |
Uiramutã | 0,694 | 0,677 | 0,744 | 0661 | Muito baixa |
Veras (2009, p.18), atenta para o fato de que desde a década de 1940 até a atualidade, a cidade apresenta sérias distorções na forma de uso do espaço urbano geradas pelas mudanças na distribuição populacional e para a necessidade de um planejamento urbano sustentável diante dos “reflexos socioambientais evidentes: deficiências de moradias, degradação ambiental e ausência de serviços básicos como um todo”; destaca ainda que uma parcela da população, a da zona oeste da capital, é quem mais sente este processo de forma negativa, já que a cidade definiu o setor Leste “como área nobre; enquanto que o setor Oeste, o periférico, é marcado pela privatização dos benefícios da urbanização e pela marginalização das populações mais pobres, historicamente excluídas dos bens e serviços produzidos pela sociedade” (VERAS, 2009, p. 18).
Em termos gerais, é possível afirmar que grande parte dos bairros desta área surgiu a partir de ocupações irregulares de terra (ou invasões como a mídia, os grandes proprietários de terras e agentes de promoção e especulação imobiliária preferem chamar). Estas ocupações se deram exatamente em locais de risco socioambiental por pessoas das classes sociais mais baixas que atualmente residem em locais cuja infraestrutura é bastante inferior daquela observada nas zonas leste, norte e sul, demonstrando que o processo de urbanização de Boa Vista se revela numa prática socioespacial revestida de uma estratégia de interesses que, “não só redefiniu o seu traçado urbano, como também, a hierarquia dos lugares em função das exigências da vida cotidiana” (VERAS, 2009, p. 200).
O espaço urbano de Boa Vista tem sido, no decorrer dos tempos, destinado a cumprir funções específicas que mudam de acordo com as necessidades e interesses das organizações sociais e políticas das classes dominantes que se revezam no poder. Diante desta perspectiva, a cidade, inacabada e em transformação, é resultante de intervenções reguladas por diferentes agentes promotores do espaço urbano. O resultado é a valorização do solo urbano, que atinge o máximo no centro principal e nas áreas mais nobres da cidade (setor Leste), e vai diminuindo até atingir o mínimo nos limites da cidade (setor Oeste). (VERAS, 2012, p. 129-130).
Para Corrêa (1995, p. 30), em se tratando das diferenças no acesso a bens e serviços na sociedade de classes do sistema capitalista, aos grupos sociais excluídos resta “resistência e sobrevivência, que se traduzem na apropriação de terrenos usualmente inadequados para os outros agentes da produção do espaço, encostas íngremes e áreas alagadiças”.
Veras (2012, p. 130) afirma ainda que a disparidade entre as zonas urbanas a partir da escassez da distribuição de água e da mobilidade urbana nas áreas mais periféricas e que “o processo de produção do espaço urbano de Boa Vista é coerente com o modo de produção dominante”. Assim, endossando as palavras deste autor é possível dizer que na cidade, como produto voltado ao consumo, consomem as maiores e melhores partes aqueles cujo poder aquisitivo é maior; estes, por sua vez, tratam de fazê-lo com bastante cuidado, distanciando as áreas umas das outras, evidenciando o bom e o ruim de cada lugar quando lhe convém e a pretexto dos seus próprios interesses. Neste contexto, a mídia, a serviço do grande capital, quando elege, por exemplo, uma localidade para ser a mais violenta ou a mais segura da cidade, contribui para agregar ou não valor a este ou àquele espaço.
Outro fator importante de expansão da zona oeste da cidade é o Programa Minha Casa, Minha Vida do Governo Federal (PMCMV) a partir de 2010. Estes empreendimentos estão localizados em áreas ambientalmente frágeis nas franjas urbanas da cidade. Isto ocorre porque estas áreas têm valores mais baixos e existe a possibilidade de doação de terrenos pelo poder público. Sua localização se dá devido à escala dos conjuntos, “principalmente os horizontais, que demandam grandes extensões de terras, que dificilmente poderiam ser encontradas em áreas centrais” (MONTEIRO; VERAS, 2015, p. 1190-1191).
O PMCMV ao mesmo tempo em que representa uma importante conquista para a política habitacional, tanto no que diz respeito ao número considerável de UHS, quanto ao fornecimento de largos subsídios, está atrelado à iniciativa privada, seguindo uma lógica mercantil de terras, própria do modo de produção capitalista, que favorece a implantação dos empreendimentos da população de menor renda predominantemente nas franjas do tecido urbano da cidade (MONTEIRO; VERAS, 2015, p. 1192).
Cabe portando ressaltar que o processo de expansão da cidade tem se dado fortemente e quase que exclusivamente para esta área. Este processo, que está associado ao crescimento demográfico e espacial da cidade e tem objetivos bem específicos, pontuados por Corrêa (1995), impulsionado pela lógica do capitalismo monopolista, reflete um significado próprio para o poder público, o transporte, o comércio, a indústria, para as classes dominantes e para os promotores do espaço urbano, produzindo uma nova coesão e também segregação socioespacial, num movimento dinâmico e cotidiano.
Esta nova dinâmica de produção do espaço exige que a cidade se reorganize para atender às necessidades da população. Neste sentido, Veras (2009, p. 202) aponta para a “fragmentação e dispersão comercial”. Para o autor, o Centro, que até então detinha a centralidade comercial, tanto pelo significado histórico, quanto pela proximidade aos bens e serviços, tem perdido a força diante do surgimento dos novos bairros.
Estes bairros recém-criados, afastados do centro, com imóveis mais baratos e mão de obra sobrante, se apresentam como oportunos para a criação de um setor comercial próximo, tanto em função da precariedade do transporte coletivo, que dificulta o acesso da população ao setor comercial central, quanto pela disposição para atender o crescente número de novos consumidores. Neste sentido, surgem os subcentros comerciais, como o da Avenida General Ataíde Teive e da Rua Estrela D’Alva no bairro Raiar do Sol, ambos na zona oeste, que se somam à Avenida Jaime Brasil e à Avenida Ville Roy, as mais antigas áreas comerciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O município de Boa Vista, estado de Roraima, é considerado o mais isolado do país, sendo a única capital localizada totalmente acima da linha do equador, na Amazônia setentrional. Concentra mais de 63% da população roraimense, assim como é responsável por mais de 73% do Produto Interno Bruto estadual. Por sua realidade econômica e geográfica, é tido como um município periférico, de um estado periférico, localizados numa região periférica política e administrativamente, a região Norte.
Assim como os demais 14 municípios de Roraima, Boa Vista tem uma realidade multiterritorial, onde convivem área urbana, rural – com assentamentos, comunidades indígenas e propriedades privadas, área de Parque e de Floresta Nacional e áreas institucionais das forças armadas.
Em pouco mais de 127 anos, Boa Vista experimentou o que tem sido um fenômeno mundial: a urbanização. Em pouco mais de três décadas de expansão, a população urbana superou a população rural e, impulsionado principalmente pelas migrações, o município mais que quadruplicou sua população nos últimos anos, modificando o traçado da cidade, o modo de vida das pessoas e demandando o investimento em políticas públicas – saúde, educação, moradia, emprego, transporte, planejamento territorial etc.
A expansão urbana, apesar de trazer “desenvolvimento” em termos de infraestrutura, oferta de serviços e progressos nas áreas de saúde e educação por exemplo, modifica, sobretudo, o modo de vida das pessoas, acompanhado de problemas que antes passavam despercebidos ou que eram de fácil resolução, como a mobilidade urbana, o aumento dos conflitos sociais, aumento da violência e da criminalidade e a degradação ambiental.
No novo Plano Diretor Estratégico e Participativo, que deverá vigorar a partir de 2017, muitos dos problemas até então discutidos deverão ser reorientados, cabendo à população e à gestão municipal (re) pensar a cidade no sentido de melhorar a infraestrutura e oferta de serviços e equipamentos públicos, minimizar os danos ambientais, democratizar cada vez mais espaços, reduzir as desigualdades e, assim, promover qualidade de vida aos boa-vistenses.
REFERÊNCIAS
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Notas