A (IN)VISIBILIDADE DO CINEMA BRASILEIRO SOB A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL

THE (IN)VISIBILITY OF THE BRAZILIAN MOVIES UNDER THE NEOLIBERAL GLOBALIZATION

LA (IN)VISIBILIDAD DEL CINE BRASILEÑO BAJO LA GLOBALIZACIÓN NEOLIBERAL

HENRIQUE RUDOLFO HETTWER
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

A (IN)VISIBILIDADE DO CINEMA BRASILEIRO SOB A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL

GEOSABERES: Revista de Estudos Geoeducacionais, vol. 10, núm. 21, pp. 1-17, 2019

Universidade Federal do Ceará

Recepção: 08 Fevereiro 2019

Aprovação: 02 Abril 2019

Resumo: Este estudo deriva de discussões acerca da estrutura social e produtiva do cinema brasileiro, com especialistas e cineastas. Das preocupações suscitadas sobre a reduzida visibilidade do audiovisual nacional pela população, houve a fundamentação teórica no contexto histórico e geográfico do capital neoliberal. As multinacionais controlam a distribuição cinematográfica brasileira e avançam consideravelmente sobre a produção e a exibição, com omissão do Estado nacional, que ainda facilitava sua penetração. Assim, o imaginário brasileiro não se reproduzia nas telas e o esforço de inúmeros talentos nacionais era vilipendiado. Resultado: baixa visibilidade do filme brasileiro, encarecimento dos ingressos, baixo acesso popular, crescente domínio estrangeiro na distribuição e exibição, distintamente da década de 1970, quando o Estado incentivava o cinema nacional através da Embrafilme.

Palavras-chave: Cinema Nacional, Neoliberalismo, Multinacionais, Mercado, Público.

Abstract: This study stems from discussions about the social and productive structure of Brazilian cinema, with specialists and filmmakers. Of the concerns raised about the reduced visibility of the national audiovisual by the population, there was the theoretical basis in the historical and geographic context of neoliberal capital. The multinationals control the Brazilian cinematographic distribution and advance considerably on the production and the exhibition, with omission of the national State, that still facilitated its penetration. Thus, the Brazilian imaginary was not reproduced on canvas and the efforts of countless national talents were vilified. The result: low visibility of the Brazilian film, increased ticket prices, low popular access, growing foreign domination in distribution and exhibition, distinctly from the 1970s, when the state encouraged national cinema through of Embrafilme.

Keywords: National Cinema, Neoliberalism, Multinationals, Film market, Public.

Resumen: Este estudio deriva de discusiones acerca de la estructura social y productiva del cine brasileño, con especialistas y cineastas. De las preocupaciones suscitadas sobre la reducida visibilidad del audiovisual nacional por la población, hubo la fundamentación teórica en el contexto histórico y geográfico del capital neoliberal. Las multinacionales controlan la distribución cinematográfica brasileña y avanzan considerablemente sobre la producción y la exhibición, con omisión del Estado nacional, que aún facilitaba su penetración. Así, el imaginario brasileño no se reproducía en las pantallas y el esfuerzo de innumerables talentos nacionales era vilipendiado. El resultado: la visibilidad baja de la película brasileña, aumento de las entradas, acceso popular bajo, dominio extranjero en crecimiento en la distribución y la exposición, diferente de la década de 1970, cuando el estado federal motivó las películas nacionales a través de Embrafilme.

Palabras clave: Cine Nacional, Neoliberalismo, Multinacionales, Mercado, Público.

INTRODUÇÃO

Este trabalho deriva de discussões acerca do panorama cinematográfico no espaço social brasileiro e as preocupações de cineastas, produtores, intelectuais, artistas, organizações culturais e o público da filmografia nacional, com estudos realizados a partir do projeto “Cinema Brasileiro de A a Z”, que contou com a participação de expoentes do cinema nacional, com a seguinte grade de exibições de filmes e respectivos debates no período de 24/01/2009 e 27/06/2009, sendo uma realização do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes de São Paulo (CPC-Umes), em conjunto com o Ministério da Cultura, disposta na Tabela 1.

Tabela 1 - Programação do Projeto Cinema Brasileiro de A a Z
Amante Muito Louca (1973) A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965) Querô (2006)
Direção: Denoy de Oliveira. Debate com Sérgio Rubens Direção: Roberto Santos. Debate com Luiz Carlos Barreto Direção: Carlos Cortez. Debate com Carlos Cortez
Boleiros - Era uma vez o futebol (1998) A Idade da Terra (1980) Dia de Festa (2006)
Direção:Ugo Giorgetti. Debate com Ugo Giorgetti Direção: Glauber Rocha. Debate com Joel Pizzini Direção: Toni Venturi. Debate com Toni Venturi
Chico Rei (1985) Jeca Tatu (1959) São Paulo S/A (1965)
Direção: Walter Lima Jr. Debate com Carlos Lopes. Direção: Milton Amaral. Debate com Celso Gonçalves. Direção: Luís Sérgio Person. Debate com Leopoldo Nunes
Dois Córregos (1999) Cidade ameaçada (1960) A Hora da Estrela (1985)
Direção: Carlos Reichenbach. Debate com Carlos Reichenbach. Direção: Roberto Farias. Debate com Roberto Farias Direção: Suzana Amaral. Debate com Marcus Vinícius de Andrade
Eles não usam Black-Tie (1981) Natal da Portela (1988) Tenda dos milagres (1977)
Direção: Leon Hirzman. Debate com dramaturgo José Renato Direção: Paulo César Saraceni. Debate com Paulo César Saraceni Direção: Nelson Pereira dos Santos. Debate com Maria do Rosário Caetano
O Cangaceiro (1953) Olho de Boi (2007) Xica da Silva (1976)
Direção: Lima Barreto. Debate com Caio Plessmann. Direção: Hermano Penna. Debate com Hermano Penna Direção: Cacá Diegues. Debate com Aldo Bueno
O Grande Momento (1958) O Pagador de Promessas (1962) Zuzu Angel ( 2006)
Direção: Roberto Santos. Debate com Paulo Rufino. Direção: Anselmo Duarte. Debate com Fernando Peixoto. Direção: Sérgio Rezende. Debate com Anita Simis
Fonte: elaborado pelo autor

A partir das reflexões trazidas nesses debates, este trabalho objetiva estender a análise teórica e da situação contemporânea, da ocupação e do desenvolvimento do cinema brasileiro nas décadas de 1970 a 2018, especialmente com o advento do neoliberalismo, através de levantamentos de dados e discussões acerca da realidade sociocultural e econômica do cinema nacional no espaço-tempo. Com as discussões e informações suscitadas pelos debates mencionados, foi organizada uma revisão bibliográfica, inclusive com sugestões destes especialistas, para refletir o contexto histórico-geográfico e fundamentar teoricamente as revelações práticas da situação do cinema nacional, trazendo algumas discussões conceituais acerca do Consenso de Washington e suas diretrizes com seus impactos sobre a cinematografia nacional; a ideologia que vigorava a partir das décadas de 1980 e 1990 em escala global: o neoliberalismo; a significância da cultura e suas manifestações artísticas para um povo; a dinâmica econômica e cultural do cinema nacional no contexto neoliberal. Com esses pressupostos teóricos, analisou-se o mercado cinematográfico brasileiro e o acesso das produções brasileiras na ocupação deste espaço diante da força estrangeira, especialmente estadunidense, sobre o cinema no Brasil, na produção, distribuição e exibição de filmes nas últimas décadas. Houve a análise de dados a partir de órgãos oficiais de regulação do cinema no Brasil, combinados com outros dados de revistas especializadas e reflexões de especialistas para estabelecer, por fim, as conclusões acerca da problemática apresentada.

A monopolização do capital, a perversidade da globalização e o advento do neoliberalismo

“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contentes querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à Humanidade pertence.” (BRECHT, 2011)

A monopolização econômica é a etapa atual do capitalismo no espaço geográfico mundial, exaurindo o que lhe resta de concorrencial. Em determinado grau de seu desenvolvimento, a concentração da produção conduz em cheio ao monopólio. A grande envergadura da empresa dificulta a concorrência, torna-a particularmente destruidora por suas consequências e gera a tendência ao monopólio. A livre concorrência é algo rarefeito no espaço geográfico, dando lugar aos monopólios que são, isto sim, enormes empresas capitalistas ou uniões de empresas capitalistas, que concentram em suas mãos a parte mais importante da produção ou da venda de determinado produto, o que lhes dá a possibilidade de limitação da concorrência e do estabelecimento de altos preços monopolistas para as mercadorias. Com a venda das mercadorias por altos preços, ou por vezes temporárias de menores preços com o uso do dumping, os monopólios garantem a obtenção de altos lucros, engolindo a concorrência, assimilando-a. Chesnais (1996) interpreta esta nova etapa imperialista no cenário da mundialização das economias, com o agravamento das desigualdades e aumento da concentração, contrariando a ideia de “fim da história”.

O que é significativo é a quantidade de variações sobre o tema do “fim da história” e do “fim das utopias”, incluindo-se nestas as promessas de uma vida decente para todos, no quadro do capitalismo. Pelo contrário, especialmente nos Estados Unidos, a hora é do “darwinismo social” sob diversas formas teóricas, algumas de forte conotação racista. O estilo de acumulação é dado pelas novas formas de centralização de gigantescos capitais financeiros (os fundos mútuos e fundos de pensão), cuja função é frutificar principalmente no interior da esfera financeira. (CHESNAIS, 1996, p.14)

Santos (2009) também contestava o suposto fim da história. Para o autor, ela apenas começava, pois antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países, em função dos impérios que se estabeleceram a uma escala mais ampla. “O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes.” (SANTOS, 2009, p. 170) O fim da história seria a interpretação de um suposto alcance máximo da capacidade de desenvolvimento humano e da plenitude das suas condições de vida, em suas realizações econômicas, culturais e sociais: o neoliberalismo. Para Harvey (2006), é um mero desenvolvimento estético sobre a ética.

O chamado neoliberalismo não é uma teoria científica. Nem muito menos uma corrente de pensamento científico. Não chega também a ser uma doutrina. É uma ideologia – mais propriamente, é o elemento central da ideologia da oligarquia financeira que domina o mundo, na atual etapa do capitalismo. (SOUZA, 1995, p. 9)

Segundo Galbraith (1994), George Gilder, um dos ideólogos neoliberais do governo Reagan, defendia que o progresso material é inelutavelmente elitista, faz os ricos ficarem mais ricos e aumenta o seu número, exaltando os poucos homens extraordinários que podem produzir riqueza acima das massas democráticas que a consomem. Para serem bem sucedidos, os pobres necessitam, antes de tudo, da espora da sua pobreza. A concepção neoliberal é constituída em torno do filósofo político austríaco Friedrich von Hayek para criar a Mont Pelerin Society, em 1947 – onde figuravam os notáveis Ludwig von Mises e Milton Friedman.

A escalada da globalização, o advento do neoliberalismo estava integrado aos ditames dos países ricos, especialmente os EUA, que exercia grande influência sobre a América Latina e inspirara o Consenso de Washington voltado para a região. O Consenso de Washington reunia um conjunto de medidas econômicas que foram apresentadas em 1989 no International Institute for Economy, na capital dos Estados Unidos, elaboradas pelo economista inglês John Williamson com as seguintes recomendações (pressões) aos países latinos: a) Reforma fiscal: promover profundas alterações no sistema tributário (arrecadação de impostos), no sentido de diminuir os tributos para as grandes empresas para que elas aumentassem seus lucros e o seu grau de competitividade; b) Abertura comercial: proporcionar o aumento das importações e das exportações através da redução das tarifas alfandegárias; c) Política de Privatizações: reduzir ao máximo a participação do Estado na economia, no sentido de transferir a todo custo as empresas estatais para a iniciativa privada; d) Redução fiscal do Estado: reduzir os gastos do Estado através do corte em massa de funcionários, terceirizando o maior número possível de serviços, e diminuição das leis trabalhistas e do valor real dos salários, a fim de cortar gastos por parte do governo e garantir arrecadação suficiente para o pagamento da dívida pública.

O mundo capitalista mergulhou na neoliberalização como a resposta por meio de uma série de idas e vindas e de experimentos caóticos que na verdade só convergiram como uma nova ortodoxia com a articulação, nos anos 1990, do que veio a ser conhecido como o "Consenso de Washington". A essa altura, tanto Clinton como Blair poderiam facilmente ter invertido a afirmação anterior de Nixon e dito simplesmente: 'Agora somos todos neoliberais" . O desenvolvimento geográfico desigual do neoliberalismo, sua aplicação freqüentemente parcial e assimétrica de Estado para Estado e de formação social para formação social atestam o caráter não-elaborado das soluções neoliberais e as complexas maneiras pelas quais forças políticas, tradições históricas e arranjos institucionais existentes moldaram em conjunto por que e como o processo de neoliberalização de fato ocorreu. (HARVEY, 2005, p.23)

Para Santos (2009), a globalização contemporânea, inspirada nos preceitos neoliberais, é possuidora de três faces, uma perversa, outra ilusória e a queremos. Segundo o geógrafo, o Consenso de Washington retrocede o pensamento humano em preocupações fundamentais, sendo que, para a maioria da humanidade, a globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades.

O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se instalam e velhas doenças, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção. A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas. (SANTOS, 2009, p. 19)

Sevcenko (2009) afirma que com a globalização neoliberal ocorre por vez o fim do Estado de bem estar social, agravando assim qualquer possibilidade de convivência harmônica entre sociedade, Estado e corporações. Para o autor as grandes empresas adquiriram um tal poder de mobilidade, redução de mão-de-obra e capacidade de negociação – podendo deslocar suas plantas para qualquer lugar onde paguem os menores salários, os menores impostos e recebam os maiores incentivos – que tanto a sociedade e o Estado se tornaram seus reféns. O tripé que sustentava a sociedade democrática moderna foi quebrado. É um jogo desigual, cuja dinâmica só tende a multiplicar desemprego, destituição, desigualdade e injustiça. A tradução prática dessa receita é o aumento da marginalidade, da violência, o declínio do espaço público e da convivência democrática.

A ideologia neoliberal no espaço geográfico brasileiro

Em meio à década perdida (década de 1980), gerada pelo endividamento externo de grande proporção realizado no período ditatorial, a sociedade brasileira procurava por mudanças e viu na queda do regime autoritário e na Constituinte de 1988 uma chance de superação. Com isso, pela pressão popular, a Constituição de 1988 tornava-se a mais democrática e progressista de nossa história, com garantias importantes. Dentre elas, seguramente a principal, era a que previa a diferença estabelecida claramente no capítulo da Ordem Econômica entre empresa nacional e empresa estrangeira instalada no país – e o tratamento preferencial que o Estado se obrigava a dar à primeira, tanto nos financiamentos quanto nas encomendas. A Constituição estabeleceu com precisão o papel primordial das empresas estatais no nosso desenvolvimento ao garantir inclusive às mais estratégicas a condição de monopólio público, justamente para impedir que os setores operados por elas pudessem ser invadidos pelos monopólios privados – leia-se externos. No entanto, esta conquista, e outras, foram revogadas da Constituição nos anos que se seguiram e cobram da nação o alto custo por isso.

Após a adesão governamental brasileira ao Consenso de Washington com Fernando Collor de Melo, apeado do poder pela vontade popular em 1992, o Brasil iniciou a era FHC (1995-2002). No período, o capital externo, ao invés de criar novas empresas, “comprava” as existentes. Sem acrescentar praticamente nada à capacidade produtiva instalada no país, podia ampliar suas remessas. Isso ocorreu com 1.100 empresas privadas brasileiras, que entre 1995 e 2000 foram compradas por multinacionais. Ícones da nossa capacidade empresarial, como Metal Leve, Cofap, Arisco, Lacta, Arno, Bom Preço, Freios Varga, Café do Ponto, Banco Real, mudaram de bandeira nacional.

Na década de 1990, foi retomada a desestatização de empresas, tais como Acesita, Açominas, Cosipa, CSN, Goiasfértil, Petroquímica União e Ultrafértil; Banco Meridional, Caraíba, empresas do Sistema Telebrás, Banespa, Escelsa, Gerasul, Light, Vale, dentre outras. Como consequência da abertura econômica, entre 1995 e 2002, o crescimento médio do PIB foi de 2,3%, ficando abaixo dos 2,9% obtidos na “década perdida” (década de 1980). O governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), objetivou mudanças no país como o fim das privatizações, o fortalecimento do mercado interno e incentivos à infraestrutura nacional com o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. No entanto, se por um lado, cresceu a capacidade nacional de desenvolver-se, por outro, restava a herança de domínio da política econômica baseada em juros altos para atrair capital externo e a preocupante invasão da economia nacional por corporações estrangeiras que compravam tudo o que viam. Conforme notamos na Tabela 2, cresceu significativamente o montante de IDP (Investimento Direto no País) e sua participação no PIB brasileiro. Em 2010 havia 13.858 empresas de IDP, crescendo para 16.982 em 2015. A participação no PIB brasileiro saltou de 6,1% para 25,0% em 2016, representando US$ 703,328 bilhões. Em escala cresceu também a remessa de lucros destas aos países de origem.

Tabela 2 -Investimento direto no país (IDP)- Estoque
Discriminação 1995 2000 2005 2010 2012 2013 2015 2016
Investimento direto no País (IDP) em milhões US$ ... ... ... 682.346 731.175 724.781 568.226 703.328
Quantidade de declarantes 6.322 11.404 17.605 16.844 2.398 2 099 19.537 1.863
Número de empresas de IDP ... ... ... 13.858 ... ... 16.982 ...
Participação no capital / PIB 6,1% 17,1% 17,7% 25,2% 26,2% 25,0% 23,6% 25,0%
Fonte: Banco Central do Brasil (2017, adaptado).

De acordo com Severo (2017), relatório divulgado pela empresa de consultoria KPMG aponta que do ano de 2004 até o mês de março de 2017, 2.514 empresas nacionais passaram para o controle estrangeiro, por meio de transações denominadas “cross-border 1”, nas quais empresas de capital majoritariamente estrangeiro adquiriram, de brasileiros, capitais de empresas estabelecidas no Brasil. Os números atestam um processo de desnacionalização da economia, tendo os anos de 2012 e 2015 sido os de maior impacto, com 296 empresas transferidas para o controle de estrangeiros. Para Santos (2007) o avanço do capital monopolista sobre o espaço geográfico gera uma desorganização deste espaço e de segregação das populações.

Nesta fase da vida nacional, esse papel extraordinário da ditadura do dinheiro em estado puro acaba de mostrar-nos, definitivamente, a dificuldade de regulação interna e também de regulação externa, já que cada empresa tem interesses que somente se exercem a partir da desregulação dos outros; ajuda a organizar a empresa em questão e desorganiza tudo o mais. Em outras palavras, a presença das empresas globais no território é um fator de desorganização, de desagregação, já que elas impõem cegamente um multidão de nexos que são do interesse próprio, e quanto ao resto do ambiente nexos que refletem as suas necessidades individualistas, particularistas. Por isso, o território brasileiro se tornou ingovernável. E como o território é o lugar de todos os homens, de todas as empresas e de todas as instituições, o país também se tornou ingovernável como nação, como estado e como município. (SANTOS, 2007, p. 20)

Com a desregulamentação constitucional, que desprotegeu a empresa nacional, houve o agravamento deste cenário neoliberal. É ameaçador à soberania nacional entregar a forças externas tal importância. É ameaçador que a qualquer sinal de crise capitalista nos países de origem das transnacionais, isso cobre seu preço na economia nacional.

A vulnerabilidade cultural brasileira

Também a cultura é objeto de interesse das multinacionais. Para Guimarães (2005) o agente fundamental de equilíbrio da voracidade das corporações é o Estado e, ume vez que este deveria zelar pelo mercado interno de nossos produtos como sapatos, matérias-primas, manufaturas, no que se refere ao imaginário nacional, à promoção da cultura nacional, este cuidado deveria ser redobrado, pois o valor destas primeiras mercadorias se atém meramente ao valor físico destas, enquanto que a cultura e a arte perpetuam-se.

A vulnerabilidade cultural decorre do atraso cultural e da valorização excessiva da cultura dos centros europeus - e hoje americanos - em combinação com a desvalorização, o desprezo sistemático e irônico das manifestações culturais brasileiras pela mídia (e por muitos intelectuais de qualquer tendência política). A isto se soma a ausência histórica de política cultural firme que as promova, preserve e defenda, em especial naquelas áreas em que a atividade cultural passou a ser objeto de produção e consumo massificado de interesse das megaempresas internacionais de entretenimento. (GUIMARÃES, 2005, p.24)

Para Furtado (2009), a dependência ideológica precede às demais dependências financeira e tecnológica. Assim, para desenvolver o Brasil, seria preciso construir uma ideologia de desenvolvimento nacional, uma vez que o nacionalismo é a consciência autêntica e crítica da realidade nacional. De outra parte, o subdesenvolvimento, é, em si, um processo particular, resultante da penetração de empresas capitalistas modernas em estruturas arcaicas.

O cinema ilustra bem esta vulnerabilidade do imaginário. Como arte sintetizadora, é o desenho rebuscado desse movimento socioeconômico. Para tanto, há mercantilização da arte, cuja indústria do cinema é criticada por Sevcenko (2009), relatando que sua realidade atual, submetida às corporações, mais que mera diversão ou entretenimento, o que essa indústria fornece, ao custo de alguns trocados, são porções rigorosamente quantificadas de fantasia, desejo e euforia, para criaturas cujas condições de vida as tornam carentes e sequiosas delas.

Como disse outro teórico, Guy Debord, essa indústria se esforça por compensar o extremo empobrecimento da vida social, cultural e emocional, arrebatando as pessoas para uma celebração permanente das mercadorias, saudadas como imagens, como novidades, como objetos eróticos, como espetáculo, enfim. (SEVCENKO, 2009, p. 81)

As multinacionais consolidam-se em corporações controlando setores econômicos diversos, potencializados pela sua força através do dumping, do boicote da oferta, do controle da produção, da distribuição e da exibição. De acordo com Chesnais (1996), o uso intenso da força midiática é a grande arma usada pelos Estados Unidos para consolidar-se no imaginário internacional.

Ao se organizarem para produzir mercadorias cada vez mais padronizadas, sob forma de telenovelas, filmes da nova geração hollywoodiana, vídeos, discos e fitas musicais, e para distribuí-los em escala planetária, explorando as novas tecnologias de telecomunicações por satélite, por cabo, essas indústrias (de mídia) tiveram, ao mesmo tempo, um papel importante em reforçar o nivelamento da cultura e, com isso, a homogeneização da demanda a ser atendida a nível mundial. O condicionamento subjetivo dos habitantes do planeta pela “persuasão” da mídia, bem como o papel especial desempenhado pelos EUA na dominação do imaginário individual e coletivo, leva A. Valladão (1993) a dizer que “o século XXI será americano. (CHESNAIS, 1996, p.40)

Contudo, há a resistência. Segundo Santos (2009), a globalização pretendida por elites dominantes, que busca a apropriação do espaço e do imaginário, faz-se sentir na cultura, opondo cultura popular e cultura de massa, revelando um esquema grosseiro, a partir de uma classificação arbitrária, mostraria, em toda parte, a presença e a influência de uma cultura de massas buscando homogeneizar e impor-se sobre a cultura popular; mas também, e paralelamente, as reações desta cultura popular.

O cinema nacional como política de Estado

Criado em 1897, o cinema brasileiro nasceu sob o signo da dependência externa, especialmente dos EUA, com resistência de alguns políticos e intelectuais brasileiros. Uma produção estatal existia desde o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), mas foi com a criação do Instituto Nacional do Cinema, em 1966, e da Embrafilme, a 12 de setembro de 1969, quando surge a mais importante empresa pública de cinema da América Latina, que fulgurou iluminando as telas e as salas de cinema de todo o país com uma produção de centenas de filmes que mudaram estética, política e economicamente a história do audiovisual brasileiro até 1990, quando foi extinta. Para Rocha (1981) o cinema deve buscar resolver problemas de distribuição, ir além da informação. Conseguir a maior comunicação possível tirando proveito da tecnologia.

O cineasta Luiz Carlos Barreto (1990), em artigo publicado poucos meses após a extinção da Embrafilme, justificava o baixo desempenho em termos de público da produção nacional nos últimos anos buscando desmentir a ideia de que o público não gosta do filme brasileiro. Ele argumentava que quando este era exibido na televisão alcançava índices expressivos de audiência.

No que diz respeito à outra faixa do mercado, as salas de cinema, nos anos 70 e começo dos anos 80, quando a crise econômica geral ainda não havia atingido a fundo a classe média e o povão, o cinema brasileiro liderava as estatísticas.

[...]

Então, esse papo de que o povo brasileiro prefere o cinema estrangeiro é uma mentira, uma empulhação. Quem prefere o cinema estrangeiro é a pequena burguesia e a classe média ascendente que também prefere o sapato, a roupa, a gravata, o eletrodoméstico, o perfume, a meia, a batata frita, o videocassete, o vinho, o uísque, o disco, os valores e padrões de vida lá de fora, mesmo pagando “os olhos da cara”, desconhecendo as alíquotas e ad-valorium [sic] para saciar sua vontade voraz e se sentir igual aos brancos civilizados de além do mar. (BARRETO, 1990, p.9)

De 1970 a 2015, 486 filmes brasileiros superaram 500.000 espectadores, segundo levantamento da Ancine. Destes, 369 filmes foram produzidos e distribuídos entre 1970 e 1990, dentro do raio de ação e incentivo da Embrafilme, apesar da população brasileira ser a metade em 1970 do número de habitantes de 2015, o que certamente elevaria imensamente o número de obras brasileiras que superariam este número de espectadores, conforme verifica-se no Gráfico 1.

Gráfico 1 - Filmes brasileiros que superaram 500.00
espectadores no período 1970/1990 (Com Embrafilme) e 1991/2015 (Sem Embrafilme)
Gráfico 1 - Filmes brasileiros que superaram 500.00 espectadores no período 1970/1990 (Com Embrafilme) e 1991/2015 (Sem Embrafilme)
Fonte: Ancine (2015, adaptado).

A Tabela 2 demonstra que, em 1975, o país contava com cerca de 100 milhões de habitantes. Foram vendidos, naquele ano, 275 milhões de ingressos. Havia 3.276 salas de cinema e pagava-se, em média, U$ 0,39 para assistir a um filme. Com a Embrafilme e a cota de tela, examinados mais adiante, o Brasil chegou a ocupar 50% do seu mercado. Extinta a Embrafilme por Collor, volta o dilema da produção e distribuição. Para exemplificar bem o contraste entre a existência de uma distribuidora nacional e seu impacto com a dominação estrangeira, exibe-se a na Tabela 2 um comparativo do ano de 1975 com os últimos anos.

Tabela 2 - Comparativo de dados do mercado cinematográfico brasileiro 1975-2016
Ano População brasileira Número de ingressos vendidos Número de salas no Brasil Preço do ingresso
1975 100 milhões 275 milhões 3.276 US$ 0,39
2007 190 milhões 89,3 milhões 2.160 US$ 4,70
2015 200 milhões 170 milhões 3.005 US$ 4,44
2016 205 milhões 185 milhões 3.118 US$ 4,32
Fonte: Ancine (2017, adaptado).

No período 1975-2007, o número de ingressos per capita caiu 83%, as salas diminuíram 34%, mas a renda aumentou 290% em dólares e o valor médio do ingresso subiu astronomicamente 1.105%. Mesmo com o crescimento do número de salas e de espectadores na década que se seguiu, com importantes incrementos tecnológicos e facilitação de processos, a realidade demonstra-se bem inferior à experimentada na década de 1970, sob incentivo estatal.

A ocupação estrangeira do cinema brasileiro

Com a extinção da Embrafilme, que incentivava a produção e a distribuição cinematográfica, abriram-se as portas do mercado brasileiro à produção estrangeira, especialmente estadunidense. O Gráfico 2 apresenta o comparativo do número de ingressos comercializados, que revela grande diferença entre a comercialização de ingressos de filmes brasileiros diante de filmes estrangeiros. Entre os anos de 2013 e 2017 essa proporção brasileira sobre os ingressos comercializados decresceu no período: 18,59% (2013), 12,25% (2014), 13% (2015), 16,5% (2016) e 9,58% (2017).

Na primeira etapa de realização da obra cinematográfica, a produção, são captados os recursos para a realização do filme e então este é produzido. Na segunda etapa, os cineastas ou suas produtoras buscam meios de distribuir seus filmes pelo máximo de salas do máximo de lugares em seus países e pelo mundo, garantindo neste momento a publicidade do filme para que este seja bem aceito na terceira etapa que é a exibição. Estas três etapas são bem marcadas, mas, por vezes, são controladas economicamente e operacionalmente por companhias que realizam duas e até as três fases do processo de realização de uma obra cinematográfica. São três etapas constituintes e que devem processar-se em harmonia, em consonância, garantindo equilibradamente o sucesso de todo o processo.

Assim, se há milhares de produções para poucas salas, percebe-se aí um desequilíbrio a ser superado. Ou, se há poucas produções para milhares de salas, também há aí um desequilíbrio. Ou ainda, pode-se até ter um equilíbrio, uma harmonia entre a demanda de produções e as reais possibilidades de distribuição e exibição, mas existem mecanismos internos no processo que descontrolam esse equilíbrio, empurrando para fora uma parte considerável da produção e impondo um status de acordo com interesses outros, de monopolização.

Gráfico 2 – Número de ingressos de cinema vendidos no Brasil
– Ano 2017
Gráfico 2 – Número de ingressos de cinema vendidos no Brasil – Ano 2017
Fonte: Ancine (2017, adaptado)

O grande algoz do cinema brasileiro, e de outros países, é a dominação estadunidense sobre ao menos duas etapas do processo: a distribuição e a exibição. Também a produção já tem sido crescentemente alvo da cobiça de algumas transnacionais, uma vez que já controlam majoritariamente a distribuição e em escalada assustadora a exibição. As produções norte-americanas de cinema detêm 95% de seu mercado natural. Mais de 1,2 bilhões de espectadores assistiram filmes nas 40.759 salas de exibição existentes nos EUA, faturando cerca de 10 bilhões de dólares, em 2016, conforme levantamento da MPAA (2016), agência reguladora do cinema nos Estados Unidos e Canadá.

Segundo a Ancine (2017), em 2017 foram lançados 160 filmes brasileiros, exibidos nos cinemas, diante de 360 filmes estrangeiros. Os filmes brasileiros arrecadaram R$ 240.767.677,76 diante de 2.476.897.056,89 arrecadados por filmes estrangeiros, ou seja, cerca de 10% do faturamento. Os EUA exibem para 95% de seu público, e Hollywood fatura com 65% explorando seus filmes no mercado externo, contra 35% apenas de seu mercado interno. Sem o mercado externo a pujança da indústria do enternainment estadunidense e toda a sua parafernália simplesmente não existiriam. É essa a razão da voracidade e virulência com que se lançam sobre os mercados alheios, considerando-os extensão do seu próprio mercado, seu espaço vital.

A monopolização estrangeira da distribuição cinematográfica no espaço brasileiro

Desde meados do século XX, o cinema era estratégico aos interesses dos Estados Unidos, tanto do ponto de vista econômico como da ação ideológica. Segundo Sciulo (2017), a indústria cinematográfica de Hollywood permanece a mais lucrativa no setor de serviços nos Estados Unidos, mesmo que o faturamento das bilheterias vinha declinando nos últimos anos — foi de cerca de US$ 11 bilhões em 2016 para aproximadamente US$ 9,7 bilhões em 2017, 13% dos estadunidenses ainda iam ao cinema todo mês.

Hollywood queria “americanizar o mundo”: quando executivos da Costa Leste se mudaram para Los Angeles para criar os primeiros sete estúdios (Paramount, Universal, MGM, Twentieth Century-Fox, Warner Brothers, Columbia e RKO) no início do século 20, eles convenceram o presidente americano na época, Woodrow Wilson, de que se tratava de uma indústria essencial para solidificar a imagem dos Estados Unidos no exterior. Wilson criou um serviço dedicado à exportação de filmes, e declarou: “Filmes são um dos meios mais importantes para a disseminação de inteligência pública e, por falarem uma linguagem universal, são essenciais para a apresentação dos planos e propósitos americanos.” (SCIULO, 21/12/2017)

A monopolização internacional da distribuição e a escalada da dominação na produção e na exibição era uma das causas das dificuldades da cinematografia brasileira. Ao monopolizar a distribuição, determina-se a produção, o consumo e o preço. Neste cenário, só consegue produzir quem possui mecanismos de distribuição subserviente ao monopólio, que dita as regras por completo. Além disso, o consumidor, se quiser, paga o preço estipulado por esta lógica monopolista. Nos EUA, há conglomerados, como a General Electric, que reúne empresas produtoras de lâmpadas caseiras a armamento nuclear, passando pelo entretenimento, sendo dona da TV norte-americana NBC Universal. Os quatro maiores canais de televisão dos EUA – CBS, ABC, NBC e FOX – estão incorporados em conglomerados, assim como os principais canais de TV por assinatura, grandes estúdios cinematográficos e gravadoras. Segundo dados da Ancine (2017), percebe-se esta lógica dominadora estrangeira (estadunidense) no Brasil a partir da distribuição dos filmes através de algumas poucas empresas que determinam o que será exibido, bem como sua divulgação e ocupação de salas, atendendo fundamentalmente seus interesses corporativos, ilustrados no Gráfico 3. Brasileiras, destacam-se somente a Paris Filmes e a Downtown Filmes, ainda que com diversas associações com as demais distribuidoras dos EUA. Em 2017, das 20 maiores bilheterias do Brasil, apenas uma era de filme brasileiro.

Gráfico 3 – Participação de renda por
distribuidoras - títulos brasileiros e estrangeiros exibidos 2017 em %
Gráfico 3 – Participação de renda por distribuidoras - títulos brasileiros e estrangeiros exibidos 2017 em %
Fonte: Ancine, (2017, adaptado).

Em 2015, segundo a Ancine, estas empresas distribuíram no total 29 filmes brasileiros, sendo 22 deles apenas pela associação brasileira Downtown/Paris. Assim, apenas 7 filmes foram distribuídos pela parte majoritária do mercado. A Universal distribuiu dois fimes brasileiros, a Disney nenhum, a Fox três, a Paris nenhum, a Warner um, a Paramount nenhum e a Sony, apenas um. Estas mesmas empresas distribuíram nesse ano 209 filmes estrangeiros, inclusive a brasileira Paris.

No período 2009-2017, houve crescimento do número de filmes brasileiros exibidos nas salas de cinema. Em 2009 eram 175 e em 2017 foram 225. Contudo, como já demonstrado, o número de espectadores de filmes brasileiros tem decrescido no período. Assim, conclui-se que a obra cinematográfica não consegue realizar-se plenamente, devido a pouca divulgação e ao reduzido número de salas em que cada filme é exibido - cerca de 45% dos filmes é exibido em até 10 salas espalhadas pelo país. (ANCINE, 2017) No período de 2012 a 2017, 49% dos filmes produzidos no Brasil (438 de 881 produções) tiveram a média de 3.650 ingressos vendidos. Ainda, cerca de 20% dos filmes do período ficaram entre 3.650 e 14 mil espectadores (178 produções), enquanto 14% chegaram a 100 mil espectadores. Somente 8% atingiram meio milhão de espectadores (73 filmes) e 3% ficaram entre 500 mil e um milhão (23 filmes), e 48 ultrapassaram um milhão de espectadores.

Os incentivos estatais brasileiros às distribuidoras estrangeiras

Nos últimos anos, no intuito de fugir dos altos custos de produção nos EUA, muitos produtores estavam optando por rodar seus filmes em outros países – como por exemplo Canadá, Inglaterra e Itália – onde eles podiam reduzir os custos de realização de um longa-metragem entre 7% e 15%. Este fenômeno ficou conhecido como runaway film production (“fuga da produção”). Para tentar trazer as produções de volta para os Estados Unidos, no dia 22 de outubro de 2004, o presidente George W. Bush, assinou uma lei de isenção fiscal que permitiu que produções audiovisuais “de qualidade”, com custos entre US$ 1 milhão e US$ 15 milhões, e que tenham no mínimo 75% do orçamento gastos dentro dos Estados Unidos, deduzam os gastos de impostos. O limite de gastos poderia ir até US$ 20 milhões se a produção optasse trabalhar em uma área de baixa renda. Essa lei foi comemorada pelos produtores independentes que, na prática, foram os mais beneficiados.

Na contramão dos EUA, o Brasil, apesar de possuir grandes obras e capacidade cinematográfica, como vista em “Central do Brasil”, “O cangaceiro”, “O pagador de promessas”, “Eles não usam black-tie”, “Mauá”, “O Bem Amado”, entre muitos outros, padece pela asfixia do setor. O mecanismo de dominação estrangeira se dá pela via do estrangulamento produtivo e econômico do filme genuinamente brasileiro. A maioria dos países possui uma cota de tela obrigatória nas salas exibidoras e nas redes de televisão para exibição de filmes nacionais que, no Brasil chegou a ser de 50% para o produto nacional. Em 2017, com o parque exibidor brasileiro com 773 complexos e 3.118 salas (2017), o mecanismo de Cota de Tela possibilitava uma média de 53 dias/ano para cada sala de cinema. Isso equivale 14,5% de espaço para exibição de filmes nacionais para o ano de 2017. Em 2004 esta cota era de 63 dias. Ou seja, numa determinada sala, a ocupação estrangeira é em média de 312 dias ao ano.

Portanto, com uma cota de tela pífia – a da França é cinco vezes maior – sem apoio do Estado na distribuição desde a extinção da Embrafilme, o produtor nacional não encontra meios de que seus filmes sejam vistos pelo público, seu desejo maior, seguramente. Se considerarmos o ano de 2017, em que a participação do cinema brasileiro no mercado foi de 9,58%, apenas quatro dos 160 filmes lançados ficaram com 52,76% dos 17.358.513 espectadores que assistiram a filmes nacionais. Os 154 filmes restantes ficaram com 47,24% do público, ou seja, cerca de 53.244 espectadores em média, por filme, o que, em tratando-se de indústria cinematográfica significa um resultado próximo a zero. Por que existe este contraste?

A explicação está na “preferência” (imposta) na escolha dos filmes que ocuparão as salas exibidoras e o forte aparato de divulgação sobre alguns filmes nacionais. A Tabela 3 ilustra esse predomínio nas maiores bilheterias de obras com grande aparato midiático - Os dez mandamentos (Rede Record e Igreja Universal) e Tropa de Elite II (Rede Globo). Ainda demonstra algumas produções nacionais distribuídas por empresas estrangeiras, valendo-se do Artigo 3º da Lei do Audiovisual, grifadas.

Tabela 3 - Ranking de filmes nacionais 2000-2016 (público) Top 20
Filme Distribuidora Ano Público total Receita (R$)
1 Os Dez Mandamentos DTF/Paris 2016 11.261.270 116.418.000
2 Tropa de Elite 2 Zazen/RioF 2010 11.204.815 103.812.200
3 Minha Mãe é uma Peça 2 DTF/Paris 2016 8.845.283 117.295.416
4 Se Eu Fosse Você 2 Fox 2009 6.137.345 50.543.885
5 Dois Filhos de Francisco Sony 2005 5.319.677 36.728.278
6 De Pernas Pro Ar 2 DTF/Paris 2012 4.794.658 50.292.566
7 Carandiru Sony 2003 4.693.853 29.623.481
8 Minha Mãe é uma Peça DTF/Paris 2012 4.604.505 49.534.000
9 Nosso Lar Fox 2010 4.060.000 36.126.000
10 Até que a Sorte nos Separe 2 DTF/Paris 2013 3.988.386 45.355.454
11 Se Eu Fosse Você Fox 2006 3.780.941 28.916.137
12 Loucas Para Casar DTF/Paris 2014 3.779.702 45.905.145
13 De Pernas Pro Ar DTF/Paris 2010 3.563.723 31.521.072
14 Até que a Sorte nos Separe DTF/Paris 2012 3.435.824 34.802.906
15 Chico Xavier DTF/Sony 2010 3.414.900 30.300.000
16 Cidade de Deus Lumière 2002 3.370.871 19.066.087
17 Até que a Sorte nos Separe 3 DTF/Paris 2015 3.329.770 42.251.460
18 Vai que Cola H20 2013 3.317.275 41.910.200
19 Lisbela e o Prisioneiro Fox 2003 3.174.643 19.915.933
20 Meu Passado me Condena DTF/Paris 2013 3.171.446 34.977.047
Fonte Ancine (2017, adaptado).

A associação entre transnacionais e produtoras brasileiras, que incidia sobre a produção cinematográfica nacional, se dava devido ao artigo 3º da lei do Audiovisual, que possibilitou às distribuidoras estrangeiras abaterem 70% do imposto de renda sobre a remessa de lucros para “investir” na produção de filmes brasileiros, o que apenas aumentou o poder das majors de manipular o mercado a seu favor e lucrar ainda mais. Isso lhes possibilita ainda, sem custo algum, invadir e ocupar também a cota de tela com suas produções.

Cinemark e UCI: empresas estadunidenses são as maiores exibidoras no Brasil

Ao analisar a rede exibidora brasileira, composta por 3.118 salas de cinema (ANCINE, 2017), localizadas em apenas 6,86% dos municípios brasileiros (há mais de 93% deles sem cinema), esta ainda permanece majoritariamente sob controle de empresas nacionais. Mas, a exibição, também em crescente desnacionalização, tem como maior rede no Brasil, a estadunidense Cinemark, com 610 salas (01/06/2017), a mexicana Cinépolis, com 341 salas e a estadunidense UCI, detentora de 171 salas (62 destas em parceria com o Grupo Severiano Ribeiro). Assim, apenas estas três empresas controlam 36% do número de salas brasileiras, localizadas, em sua maioria em shoppings. Todavia, nas redes exibidoras brasileiras, a principalidade era também a exibição de blockbusters dos EUA, como decorrência do processo descrito.

A Cinemark é uma multinacional com sede nos EUA, é a segunda maior cadeia exibidora do mundo e está presente em outros 16 países, como México, Canadá, Chile e Argentina. Das 1.344 salas espalhadas pelo mundo, 610 estão localizadas no Brasil, consistindo em 45% do total. A corporação Madison Dearborn Partners, Inc., compradora da Cinemark, sediada em Chicago, é um dos maiores conglomerados do país, com aproximadamente US$ 8 bilhões em capital sob administração e foca investimentos em vários setores, incluindo comunicações de consumo, serviços financeiros, cuidados de saúde e recursos naturais. Parte significativa dessa riqueza foi contraída no Brasil, às custas de muitos financiamentos do BNDES, feitos à sombra de governos neoliberais.

Mais discreta, a UCI, pertencente ao National Amusements Inc, do grupo Viacom, conglomerado que reúne diversas empresas, cuja lógica é semelhante ao da Cinemark, possui no país 147 salas. Muitas delas associando-se com o grupo brasileiro Severiano Ribeiro em 50 salas. Desde 2005, a UCI faz parte da National Amusements Inc, (NAI). Tradicional rede americana de cinema, a NAI estava há 74 anos no mercado com uma operação de mais de 938 salas através das marcas Showcase Cinema de Lux, Showcase Cinemas, Multiplex Cinemas e UCI Cinemas em complexos nos Estados Unidos, Reino Unido e América Latina, sendo também controladora da Viacom e CBS.

Preços dos ingressos elevados são resultados da monopolização

Uma das mais graves conseqüências do processo de desnacionalização monopolizadora da exibição cinematográfica foi o aumento dos ingressos aos brasileiros. As empresas estrangeiras, em especial a Cinemark, que travava ano a ano batalhas contra o ingresso de meia-entrada com entidades estudantis, justificava o aumento à existência da lei da meia-entrada a estudantes. Ainda que este benefício, histórico, estivesse distorcido pela MP 2208/01, que proliferara possibilidades de fraude, esta não era a razão do aumento abusivo dos preços. Ainda que o maior faturamento das redes de cinema não seja oriundo dos ingressos vendidos, mas do consumo de doces e salgados nas salas, especialmente a pipoca.

Ao comparar-se as últimas décadas do cinema brasileiro pode-se vislumbrar melhor a política monopolista do setor. Durante os anos 1970 a meia-entrada para estudantes era respeitada. O preço médio cobrado pelo ingresso foi de U$ 0,44 e a média de ingressos vendidos por ano chegou a ser de 214,1 milhões. Na década de 1980 a 1989, o direito dos estudantes foi cassado, ainda no regime ditatorial. No período, o preço médio saltou para U$ 2,62 e o público caiu 45%, para 118,2 milhões. Nos anos 1990, quando ocorre a invasão das empresas estrangeiras no setor de exibição, a lei da meia-entrada para estudantes ressurge. Mas, apesar dela (e não por conta dela), os preços mantiveram-se subindo e o público continuou sumindo. O ingresso custou, em média, U$ 3,09 e o público ficou abaixo dos 75 milhões. A relação que podemos estabelecer é evidente: quanto mais caro o ingresso, menor o público. E este sentido, por mais esquisito que seja, era o pretendido pelas majors estrangeiras. Muitas salas existentes em muitas cidades é uma coisa trabalhosa para administrar. Com isso, o cinema, que sempre fora uma diversão popular, com forte presença das chamadas classes C e D, fora elitizado.

Como vemos no Gráfico 4, a lógica de arrecadar U$ 0,39 de quase 300 milhões, ocorrida com a existência da Embrafilme, não era interessante. É mais proveitoso lucrar mais com menor investimento e oferta de demanda. Além disso, atraindo apenas as classes A e B para o cinema, poderiam vender pipoca, refrigerantes, cachorros-quentes, balas, mais caros. Essa receita já representa 25% do faturamento das salas exibidoras. E, como a matriz quer “globalizar” seus rendimentos, o preço precisa ser equiparado ao de lá. Nos EUA um ingresso de cinema custa, em média, U$ 6,03. É a meta de empresas como Cinemark e UCI. No Brasil, no final de 2017, já alcançara cerca de US$ 4,5.

Gráfico 4 – Evolução do preço médio do ingresso de cinema no
Brasil em R$
Gráfico 4 – Evolução do preço médio do ingresso de cinema no Brasil em R$
Fonte: Ancine (2017, adaptado)

Portanto, os únicos responsáveis pelo elevado preço dos ingressos no Brasil era o mercado cinematográfico e sua monopolização, que optou claramente por expulsar o público de menor renda do cinema, boicotar a produção nacional, reduzir o número de títulos em cartaz, privilegiar a cinematografia de Hollywood. Assim, seu único compromisso é com o lucro fácil: não importando a cultura, a diversidade e o interesse do público. O preço praticado inviabiliza a presença justamente do público mais fiel do cinema brasileiro, as classes C e D.

Considerações finais

O cinema nacional é uma das representações da nacionalidade, da identidade do povo brasileiro. Conversa com sua realidade, com seu imaginário, emociona, choca, critica. Mecanizar com estrangeirismos e reduzir a produção criativa não é algo interessante ao Brasil. Ao mesmo tempo, impedir a plenitude da obra cinematográfica, a sua exibição aos brasileiros, é uma aberração não vista em outros países, que protegem sua produção cultural com diversas ações, incentivos e até mesmo restrições estrangeiras. As receitas defendidas pelas transnacionais ao mercado cinematográfico brasileiro, estranhamente implementadas por órgãos governamentais, não se realizam dessa maneira nos seus países de origem, em especial nos Estados Unidos. Conforme debatera Luiz Carlos Barreto no Teatro Denoy de Oliveira, o audiovisual é algo tão importante como o petróleo e a energia, havendo a necessidade de difundir a informação e o conhecimento, aliados ao espetáculo. Barreto entende que o cinema brasileiro vive um processo crônico de dificuldades, mas avalia que o país possui todas as armas necessárias para superar esta fase e tornar o setor evoluído, em direção à auto-sustentabilidade do audiovisual, com a retomada da Embrafilme, que já propiciara 44% de controle do controle do mercado do cinema para a produção nacional.

Em suma, o brasileiro é pouco incentivado a consumir cultura, relegando ao mercado suas imposições e seu domínio. Nesse embate, que o Estado se retira, ou até por vezes assume o lado estrangeiro, resta apenas a resiliência aos fazedores de cultura nacional. O cinema nacional é desvalorizado, como vimos, assim como a música popular brasileira nas rádios e emissoras de TV, com o mecanismo do jabá, o teatro, as artes visuais, a dança. O orçamento do federal executado em 2018, concedeu 0,04% para a cultura, ou seja, pouco mais de R$ 1 bilhão de reais, a serem destinados aos mais de 208 milhões de brasileiros. Enquanto isso, para juros e amortização da dívida foram deslocados R$ 1,065 trilhões de reais; ou seja, mil vezes mais a bancos do que à cultura nacional. Assim, os três maiores bancos privados em exercício no Brasil, em 2018, anunciaram lucros de mais de R$ 56 bilhões, somados. Somente o lucro líquido do Banco Itaú foi 25 vezes maior que o orçamento da cultura brasileira. A preocupação aumenta, em 2019, uma vez que foi extinto o Ministério da Cultura, rebaixado a uma secretaria dentro do Ministério da Cidadania.

Alguns dos dados apurados neste trabalho, demonstram que o país está ocupado por alguns monopólios estrangeiros que controlam segmentos estratégicos para nosso desenvolvimento. Dentre eles a cultura, e, em especial, o cinema brasileiro. A agonia do cinema nacional é uma expressão caricatural deste processo neoliberal de voracidade das corporações, mas que tem uma face ainda mais perversa pois possibilita aprofundar a dominação estrangeira, legitimando-a, tentando tornar normal o que é uma forma de subserviência, de um neocolonialismo rebuscado. O Brasil é um país rico na sua cultura. Nossa música é reconhecida no mundo todo. Nosso cinema foi capaz de produzir filmes exuberantes em todos os sentidos, quando oportunizados. Todavia, é preciso rever o papel do Estado nesse processo. Toda uma geração de cineastas dedicou-se a criar uma linguagem, uma estética, que fosse capaz de comunicar-se com a maioria do povo. E conseguiu. Foi assim que os filmes brasileiros chegaram a ocupar a metade do mercado. Mas para isso é fundamental que o acesso aos filmes fosse possível, que os ingressos fossem baratos. A decisão das multinacionais de multiplicar os seus lucros, após terem oligopolizado o setor, expulsou o povo do cinema e, com ele, o filme nacional. Assim, temos uma baixíssima média de frequência nas salas de exibição: em 2016, foram 0,89 ingressos per capita (nos EUA, a média é de 3,8 ingressos, e, na França, de 3,34). Ficamos atrás até dos nossos vizinhos argentinos, com 1,1 ingresso per capita, em 2016.

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