EDUCAÇÃO PARA TRANSFORMAR AS PESSOAS DO MUNDO, GEOGRAFIA PARA MUDAR O MUNDO DAS PESSOAS: APROXIMAÇÕES TEORICAS ENTRE PAULO FREIRE E MILTON SANTOS

EDUCATION TO TRANSFORM PEOPLE IN THE WORLD, GEOGRAPHY TO CHANGE THE WORLD OF PEOPLE: THEORETICAL APPROACHES BETWEEN PAULO FREIRE AND MILTON SANTOS

EDUCACIÓN TRANSFORMAR A LA GENTE MUNDIAL, GEOGRAFÍA PARA CAMBIAR EL MUNDO DE PERSONAS: ENFOQUES ENTRE TEÓRICO PAULO FREIRE Y SANTOS MILTON

Júlio César Dias do NASCIMENTO *
Enderson Alceu Alves ALBUQUERQUE
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil

EDUCAÇÃO PARA TRANSFORMAR AS PESSOAS DO MUNDO, GEOGRAFIA PARA MUDAR O MUNDO DAS PESSOAS: APROXIMAÇÕES TEORICAS ENTRE PAULO FREIRE E MILTON SANTOS

GEOSABERES: Revista de Estudos Geoeducacionais, vol. 8, núm. 15, pp. 67-80, 2017

Universidade Federal do Ceará

Recepção: 13 Dezembro 2016

Aprovação: 20 Junho 2017

Resumo: O presente artigo objetiva expor as simetrias de pensamentos nos trabalhos de dois dos maiores intelectuais brasileiros: Paulo Freire e Milton Santos. Ambos os autores têm papel de notável destaque em sua área intelectual, tanto nacionalmente quanto internacionalmente. Paulo Freire é o segundo brasileiro com mais títulos de doutor honoris causa. Milton Santos é o único latino-americano ganhador do prêmio Vautrin Lud, o equivalente ao Nobel da Geografia. A demanda dos mais pobres sempre esteve no cerne da produção desses autores, sejam os oprimidos na leitura freireana, sejam os não-cidadãos pela ótica miltoniana. Nesta perspectiva, este artigo se insere no intuito de aproximar a geografia de Milton Santos à pedagogia de Paulo Freire em seus esforços para a construção de um mundo diferente, sem oprimidos e de cidadãos, de fato.

Palavras-chave: Paulo Freire, Milton Santos, Transformação.

Abstract: This article aims to expose the symmetries of thoughts in the works of two of the greatest Brazilian intellectuals: Paulo Freire and Milton Santos. Both authors play a notable role in their intellectual area, both nationally and internationally. Paulo Freire is the second Brazilian with more doctoral titles honoris causa. Milton Santos is the only Latin American winner of the Vautrin Lud Award, the equivalent of the Nobel Prize in Geography. The demand of the poorest has always been at the heart of the production of these authors, whether they are oppressed in Freirean reading, or non-citizens by the Miltonian perspective. In this perspective, this article is inserted in order to bring the geography of Milton Santos to the pedagogy of Paulo Freire in his efforts to build a different world, without oppressed and citizens, in fact.

Keywords: Paulo Freire, Milton Santos, Transformation.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo exponer las simetrías de pensamientos en las obras de dos de los más grandes intelectuales de Brasil: Paulo Freire y Milton Santos. Ambos autores tiene un papel destacado en su área intelectual, tanto a nivel nacional como internacional. Paulo Freire es el segundo brasileño con más grados de doctorado honoris causa. Milton Santos es el único ganador latinoamericano del premio Vautrin Lud, equivalente al Nobel de la Geografía. La demanda de los pobres siempre ha estado en el corazón de la producción de estos autores, son los oprimidos en la lectura de Freire, son los no ciudadanos desde la perspectiva de Milton. En esta perspectiva, este artículo se incluye con el fin de llevar la geografía de Milton Santos pedagogía de Paulo Freire en sus esfuerzos para construir un mundo diferente sin ciudadanos oprimidos y, de hecho.

Palabras clave: Paulo Freire, Milton Santos, Transformación.

INTRODUÇÃO

“Os homens nunca foram iguais, mas não eram tão desiguais. Aí veio a civilização e alguns viraram reis”

(Millôr Fernandes)

O processo de transformar o mundo esteve sempre condicionado, antes de tudo, ao conhecimento prévio do espaço que nos cerca. Karl Marx já delimitava que não bastava interpretar o mundo, era necessário transformá-lo. O filósofo Luiz Felipe Pondé (2012), por sua vez, afirma ter medo daqueles que querem mudar o mundo. Nesse sentido, mais do que simplesmente embarcar no panfletarismo vazio de transformação do mundo, precisamos ponderar sobre qual mundo novo nos interessa. O mundo atual tal como está posto não nos interessa. Se por um lado “a modernidade nos deixou como herança um enorme desenvolvimento tecnológico, [...] nos deixou também uma absurda crise social, ambiental, econômica, por isso desmorona em consequência de sua própria exaustão” (MOSÉ, 2012, p. 12).

Posto isto, entendemos que só é possível mudar aquilo que intimamente conhecemos, como já defendido por Marx. Ademais, a mudança global inicia-se na escala humana, pois como alerta Pondé (2012, p. 39), o mundo “sempre foi mau e continuará a ser, porque ele é fruto do comportamento humano, que parece ter certos pressupostos naturais”. Neste cenário, a educação serve como importante ferramenta de mudança, contudo, a “educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”, como assevera uma famosa frase atribuída a Paulo Freire. Essa máxima freireana servirá de mote para discussão colocada por este artigo, pois entendemos que a mudança global pretendida nasce a partir da soma das ações individuais. Se mudar o mundo requer mudar o homem, as escalas “homem” e mundo necessitam ser consideradas. O homem se transforma a partir da educação, o mundo e seus atores, se conhecem de maneira mais ampla por meio da geografia. Assim, a educação se presta a mudar as pessoas do mundo e a geografia, por sua vez, a mudar o mundo dessas pessoas. Com efeito, a questão central proposta visa estabelecer as conexões analíticas das proposições freireana e miltoniana.

O pedagogo Paulo Freire e o geógrafo Milton Santos se notabilizaram em suas áreas de atuação acadêmica pela preocupação em transformar o homem e o mundo. Dessa feita, este artigo objetiva expor de que maneira, dentro dos marcos da pedagogia e da geografia, estes dois intelectuais pensaram essa questão. Para tanto, estruturamos o presente trabalho em três partes. Nas duas primeiras apresentamos uma biografia-síntese dos dois autores contemplando sua produção acadêmica. Na terceira parte apontaremos as simetrias de pensamento nas obras de cada um.

MILTON SANTOS: O ESPAÇO DO NÃO-CIDADÃO COMO EFEITO DO ESPAÇO GLOBAL

O Geógrafo Milton Santos é considerado um dos mais eminentes estudiosos da geografia brasileira. Introduziu o pensamento geográfico no centro do pensamento social do país, deu visibilidade à geografia brasileira e aos geógrafos latinos. Teve que se exilar em 1964, em função da situação do país e sua ligação com as atividades políticas junto à esquerda, iniciando uma carreira internacional, que culminou com trabalhos na França, Canadá, Estados Unidos, Venezuela e Tanzânia, retornando ao Brasil somente em 1977. É autor de inúmeros livros e artigos, publicados no Brasil e no exterior. Em suas pesquisas está efetivamente preocupado em compreender e analisar as transformações socioespaciais com rigor investigativo. Escreveu obras dotadas de complexidades, uma verdadeira teoria geográfica do espaço, que apresenta diferentes fases e faces e requer ainda muita reflexão.

De acordo com Machado (2014), a obra de Milton Santos pode ser divida em três fases balizadas no ambiente que ele ocupava. A primeira fase (1948-1960) se refere ao período em que o autor residia na Bahia. Nesse momento sua produção apresenta forte característica regionalista se destacando desse período seu livro, “A zona do Cacau: introdução ao estudo geográfico”, enfocando as transformações socioespaciais em Ilhéus e, também, outros trabalhos de análise mais regionalista tais como: “O povoamento da Bahia: suas causas econômicas”, “Ubaitaba: estudo de Geografia urbana”, “Rede Urbana do Recôncavo” entre outros. Na segunda fase (1965-1987), a obra de Milton Santos, no exílio, passa a apresentar características mais cosmopolitas. Nesse período aparecem obras nas quais o autor se debruça em assuntos de escala mais ampla, tais como: “O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo”, “Por uma Geografia Nova”, “O Espaço do Cidadão” entre outras. Em 1988, reconhecido internacionalmente, e após trabalhar como professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o geógrafo passou a lecionar na USP com uma noção de “cidadão do mundo”, dando início a terceira fase de sua produção preocupando-se em elaborar uma síntese do mundo conforme apontam trabalhos como “A Natureza do Espaço” e “Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI” (MACHADO, 2014, p. 139-141).

Para Milton Santos (1986) achar uma definição de espaço é uma tarefa árdua, sendo esta uma definição mutável e com diversas acepções. Para ele dentro da Geografia o espaço é um conceito central, sendo definido como o conjunto de formas representativas de relações sociais de diferentes temporalidades. A constituição de um espaço fundamenta-se no processo de produção, reprodução, reflexo e condição de um grupo social. Dessa maneira, o espaço é

(...) algo dinâmico e unitário, onde se reúnem materialidade e ação humana. O espaço seria o conjunto indissociável de sistemas de objetos, naturais ou fabricados, e de sistemas de ações, deliberadas ou não. A cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modificando o todo, tanto formal quanto substancialmente (SANTOS, 2008, p.46).

Atualmente o conceito de espaço, passa, indiscutivelmente, pelo debate referente ao processo de globalização, e Milton Santos expõe as contradições e os desdobramentos deste processo e como este reflete na configuração do espaço. A globalização “constitui o estádio supremo da internacionalização, a amplificação em ‘sistema-mundo’ de todos os lugares e de todos os indivíduos, embora em graus diversos” (SANTOS, 2008, p. 45). Assim o autor enfatiza que os espaços comandados pelo capital são os espaços do “mandar”, os outros são os espaços do “obedecer”. É o acúmulo de riqueza pela riqueza, pois é essa que gera poder dentro da lógica capitalista, o que faz com que o espaço esteja submetido ao capital enquanto a sociedade é governada pela lógica da mercadoria, a lógica de um capitalismo global.

Com relação a esse capital que a tudo atravessa, sua faceta atual corresponde ao processo de globalização. Sobre esse fenômeno, para Santos (2004, p.18), “devemos considerar a existência de pelo menos três mundos em um só”, a globalização como fábula, a globalização como perversidade e o mundo como possibilidade, uma outra globalização. A globalização como fábula advém da disseminação de termos como aldeia global, o mundo ao alcance das mãos de todos, o encurtamento das distâncias para todos e a morte do Estado, ou seja, é o mundo tal como nos fazem acreditar.

Essas informações são pregadas pelos atores hegemônicos que a utilizam de maneira tendenciosa com o objetivo de pôr em prática os seus planos nos locais que mais interessam e, com isso, elevar os lucros. A globalização como perversidade se trata do mundo como ele realmente é. Um mundo no qual para a “maior parte da humanidade a globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades” (SANTOS, 2004, p. 19), um mundo de desigualdade. Já a globalização como possibilidade deveria servir sistematicamente a todas as pessoas, ou seja, um processo globalizado mais humano, que em vez de apoiar sempre o grande capital internacional, possam servir a outros interesses sociais e políticos e não apenas econômicos.

Para Santos (2004) essa fase atual do capitalismo acarreta na formação de uma sociedade mergulhada dentro da ideologia consumista, fazendo com que o cidadão enfraqueça sua convivência social e institua uma sociedade composta de consumidores individualistas e egoístas que visam de qualquer forma prosperar e “vencer na vida”. Para ele, “em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário” (SANTOS, 2007, p. 13). É o que o autor define como não-cidadão, o cidadão mutilado de seus direitos tomados pela engrenagem capitalista.

A distinção entre cidadão e consumidor preconizada por Santos, aparece só agora de forma mais nítida no Brasil no período pós-governo do Partido dos Trabalhadores (PT). A elevação da renda das camadas mais pobres da população por meio de programas de distribuição de renda aliada ao aumento acima da inflação do salário mínimo, aumentou, consubstancialmente, o mercado consumidor brasileiro. Os 14 anos de governo petista na esfera federal criou uma nova classe C, conforme análise de alguns economistas, porém foi incapaz de gerar a consciência de cidadão entre esses novos emergentes, conforme análise de parte da esquerda brasileira.

Esse descompasso entre a criação de consumidor e de cidadão fez com que o PT perdesse apoio entre essa camada que ascendeu socialmente. Esse segmento não associou sua ascensão social às políticas públicas implementadas pelo governo federal nesse período porque as linhas gerais do partido se pautaram pela premissa do consumo e não da cidadania. Por conta disso, quando a economia desaqueceu e o consumo diminuiu, caiu, em consequência, a aprovação petista entre a sociedade.

Em certa medida o governo de esquerda petista no Brasil se prestou a intensificar as práticas do mercado e, ao criar consumidores cada vez mais ávidos em comprar e cada vez menos praticantes da Política, fortaleceu consequentemente o sentido de meritocracia em alguns dessa “nova classe média”. Como resultado, sem a resistência da camada mais popular nas ruas, tivemos a abreviação do mandato da presidenta Dilma Roussef, em 2016, com seu impedimento e o aumento de simpatizantes da direita no país.

A globalização é o apogeu do mundo capitalista, de um processo que conhecemos como internacionalização do capitalismo no qual a busca pelo lucro passa a ser incessante, levando cada vez ao acumulo de renda por uma classe dominante, os donos dos meios de produção, que vivem da exploração do trabalhador assalariado. Em razão da divisão social do trabalho e dos meios, a sociedade se fragmenta entre possuidores e os não detentores dos meios de produção.

Na esteira desse pensamento, considerando as classes dominantes e dominadas, Milton Santos afirma que o espaço é indubitavelmente reflexo das condições sociais geradas por esse capitalismo. Para o autor, o espaço é dotado de classes sociais que leva a uma divisão espacial de acordo com esta, passando a ser estampada tal distinção na paisagem geográfica. Assim, os indivíduos dotados de mesmas virtualidades e das mesmas capacidades têm valor diferente, ocupando em função dessa divisão social de classes, diferentes espaços. Neste sentido, Santos (2014, p. 107) lembra que

cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no território. Seu valor vai mudando incessantemente, para melhor ou para pior, em função das diferenças de acessibilidade (tempo, frequência, preço), independentes de sua própria condição. Pessoas com as mesmas virtualidades, a mesma formação, até mesmo o mesmo salário têm valor segundo o lugar em que vivem: as oportunidades não são as mesmas. Por isso, a possibilidade de ser mais, ou menos, cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está. Enquanto um lugar vem a ser condição de sua pobreza, um outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhe são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhes falta.

Essa divisão espacial e de classes constitui nos países subdesenvolvidos as diferentes classes de cidadão, oriundas de brutais processos de urbanização, que são ao mesmo tempo concentrados e excludentes. Essa divisão social de classes perpetua no espaço desigualdades, sendo habitado por não-cidadãos que muitas das vezes não tem direito a serviços, que por direito, deveriam ser básicos. São sujeitos oprimidos pela lógica excludente do mercado. Nesse tipo de espaço existem consumidores, onde grande parte dos investimentos feitos pelo Estado ou pelas empresas visa atender o mercado, plasmando as cidades corporativas aludidas por Santos (2009, p. 122), na qual “o essencial do esforço do equipamento é primordialmente feito para serviço das empresas hegemônicas; o que porventura interessa às demais empresas e ao grosso da população é praticamente o residual na elaboração dos orçamentos públicos”. Para que exista um cidadão de verdade é preciso que o indivíduo seja um consumidor imperfeito, não se submetendo ao mercado. É preciso que ocorra a quebra da repetição de comportamentos perante a sociedade do consumo. Essa é, na verdade, uma desorientação gerada pelo consumismo diante da irracionalidade do capitalismo.

Para a introdução de práticas de cidadania nessa atual sociedade, fragmentada em dominantes e dominados, e nos espaços atuais atingidos pela perversidade da globalização, é necessário a introdução de práticas libertadoras capazes de libertar o homem de toda situação de opressão a qual se encontra sujeitado, através da libertação de sua consciência, tornando-o um sujeito critico e reflexivo capaz de transformar sua realidade e inserir-se na sociedade de forma efetiva. A elevação desse indivíduo a condição plena de cidadão, defendida por Milton Santos, é atingida pela ótica do pedagogo Paulo Freire através da possibilidade de se construir a “liberdade ao oprimido”. Utilizando-se de nomenclaturas, ferramentas e métodos diferentes, Paulo Freire intentou as mesmas transformações sociais que Milton Santos almejava. Sobre a visão freireana a respeito das fragmentações de classe e sua superação se debruça a parte seguinte deste artigo.

PAULO FREIRE: DA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO A LIBERDADE DO INDIVIDUO

A análise do processo de globalização exposta em Santos (2004), com o perverso alastramento dos males do mercado e o espaço como instância da sociedade, coaduna, em certa medida, com os pressupostos de Paulo Freire nos livros “Pedagogia do Oprimido” e “Política e Educação”. Há uma preocupação desses autores em combater as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, geradas por essa perversa globalização, que segrega os cidadãos.

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921 em Recife, Pernambuco. Por seu empenho em ensinar os mais pobres, tornou-se uma inspiração no campo da educação, no Brasil e em outros países do mundo. Foi o mais notável e importante pedagogo e educador brasileiro, ganhando destaque mundo afora sendo reconhecido por suas diversas obras no campo da educação. Seu legado em idéias e obras está sempre nas discussões mais atuais no campo da educação tanto no Brasil com no exterior. Suas primeiras experiências aconteceram no Rio Grande do Norte, em 1963, quando ensinou 300 adultos a ler e a escrever em 45 dias. Seu projeto educacional estava vinculado ao nacionalismo desenvolvimentista do governo João Goulart, mas sua carreira no Brasil foi interrompida pelo golpe militar de 31 de março de 1964.

Em 1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil, onde escreveu dois livros tidos como fundamentais em sua vida acadêmica: “Pedagogia da Esperança” (1992) e “À Sombra desta Mangueira” (1995). Lecionou na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989 foi secretário de Educação no Município de São Paulo no governo Luíza Erundina. Após sua passagem pelo poder executivo, continuou a se dedicar, discutir e escrever sobre Educação Formal, o que o levou, em 1996, a publicar seu último livro, “Pedagogia da Autonomia”.

Opondo-se a realidade socioeconômica brasileira, Freire condicionou suas ideias à corrente de pensamento pedagógico denominada Educação Libertadora, combatendo, em suas obras, a chamada educação bancária, a qual transformava os homens em meros “recipientes” de conhecimentos desprovido de seus próprios pensamentos. Paulo Freire acreditava que essa educação defendia os interesses do opressor, que trata os homens como seres vazios, desfigurados, dependentes. Sobre o assunto o pedagogo afirmou que “a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los”. (FREIRE, 1981, p.66). Ao invés disso, Freire buscou defender uma Educação dos homens por meio da conscientização, da desalienação e da problematização. Ele defendia uma educação assumidamente ideológica, propunha uma prática de sala de aula que pudesse desenvolver a criticidade dos alunos e condenasse o tradicionalismo das escolas, uma Educação Libertadora que minimamente fosse capaz de embasar o oprimido em relação a sua condição.

Na concepção de freireana, uma Educação Libertadora teria que fazer da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, resultando em um engajamento necessário na luta por sua libertação, pela qual a Educação se fará e refará (FREIRE, 2011). O eixo central da Educação Libertadora freireana é a luta contra a dominação e opressão dos desprivilegiados, a luta contra a desigualdade social gerada pelo sistema capitalista, que se sustenta a partir dessa condição

No livro “Política e Educação”, há uma luta em estabelecer o direito de um cidadão independe de sua condição financeira. Os textos contidos nesta obra revelam o pensamento de Freire no sentido de abordar aspectos relativos à construção crítica e politizada do conhecimento. Trata a educação para além da sala de aula, relacionando-a a um contexto de opressão social e ausência de democracia. O educador que rejeita o modelo autoritário de política deve ser democrático em sala de aula, para que esta se constitua num espaço de vivência das idéias nas quais acredita. Deve-se respeitar a vivência fora da escola do aluno e entender que é através dela que se iniciam as transformações do mundo (FREIRE, 2001).

No quadro de divisão social capitalista entre classes, muitos geógrafos utilizam termos dicotômicos como dominador e dominado, burguesia e proletariado para discutir as relações sociais na sociedade. O primeiro par de termos sugere uma relação calcada através do poder, já burguesia e proletariado, por sua vez, expõe as relações de trabalho como cerne da divisão social. Paulo Freire, de acordo com seu conhecimento entre sociedade e educação, trabalha com as categorias de análise oprimido e opressor. Essas categorias partem de uma premissa mais humanizada do individuo. A sociedade é entendida como um tecido fragmentado em dois grupos: opressores, pessoas de alto poder aquisitivo, e oprimidos, pessoas de pouco nível educacional, de baixa renda e acesso a precários serviços públicos. No livro Pedagogia do Oprimido ele traz à tona essa relação de contradição entre opressores e oprimidos e de como é necessária uma conduta que possa orientar uma ação visando superar essas contradições. A ação política junto aos oprimidos tem de ser uma “ação cultural” para a liberdade.

A frase insistentemente repetida do filósofo francês René Descartes, “penso, logo existo”, nos lembra que nossa existência está amplamente condicionada a capacidade racional de pensar. Arendt (2004), por sua vez, expõe a distinção entre saber e pensar, no qual o primeiro possui um caráter mecanicista e o segundo reflexivo. Mais do que simplesmente executar ações, é preciso pensar sobre o sentido desses atos, pois essa capacidade nos diferencia dos outros animais e igualmente dos objetos, das “coisas” uma vez que a intencionalidade da ação humana nos transforma em sujeitos, nos transforma em homens.

O processo de desumanização coisifica os homens e, portanto, lutar pela sua humanização é fazer com que estes deixem de ser “coisas”. É precisamente porque reduzidos a quase “coisas”, na relação de opressão em que estão, que se encontram destruídos. Para reconstruir-se é importante que ultrapassem esse estado. Somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores (FREIRE, 2011). Ou seja, no momento em que os oprimidos se libertarem, os opressores deixarão de existir, e assim ambos encontrariam a liberdade. Opressores geram opressores, e muitos que são oprimidos almejam serem opressores por causa do “poder” de opressão, que se torna objetivo de muitos oprimidos. Apesar de o opressor parecer estar acima de tudo, ele também não é um ser livre porque depende do oprimido para estar acima dos outros (FREIRE, 2011).

Dentro desta perspectiva freireana de Educação Libertadora entendemos que é preciso compreender a Educação como um processo de formação humana, em que ensinar não é somente transmitir conhecimento, mas sim proporcionar aprendizagem de dentro para fora, considerar as experiências que cada pessoa já traz de seu ambiente extra-escolar, utilizando-as para estimular uma nova práxis educacional (FREIRE, 1996). Paulo Freire defende uma educação voltada para prática educativo-crítica, que deve proporcionar aos educandos condições de se assumirem como seres sociais, históricos, pensantes, comunicantes, criadores, transformadores e realizadores de sonhos. Opondo-se às práticas curriculares tradicionais, ele afirma que a educação não é um ato de transferir conhecimento, mas de criar possibilidades para sua própria construção

Freire propõe uma humanização do professor enquanto mentor e guia no processo educativo-social, conscientizando os educandos de todas as camadas sociais, sobretudo as de baixa renda, das manipulações políticas que as mantêm sob seu jugo (FREIRE, 1996). Educar é construir, é libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um tempo de possibilidades. É um ato comunicante, co-participado, de modo algum produto de uma mente burocratizada. No entanto, toda a curiosidade de saber exige uma reflexão crítica e prática, de modo que o próprio discurso teórico terá de ser aliado à sua aplicação prática. Portanto, torna-se imprescindível solidariedade social e política para se evitar um ensino elitista e autoritário como quem tem o exclusivo do saber articulado (FREIRE, ibidem).

Parte de todo ideário construído por Freire a respeito de uma Educação autônoma e libertadora espelha-se na alfabetização de adultos, a qual o autor enxergava como um caminho para resgatar a dignidade daqueles que durante toda a vida construíram a riqueza de uma nação e que pelo preconceito, pela fadiga e pelo cansaço não conseguiam mais gerar o lucro dos patrões e, por isso, são considerados descartáveis. Freire percebeu que a alfabetização traria novas oportunidades a essas pessoas além de uma motivação extra para “seguir a vida” e serem peças para essa luta de classes. Para Freire a alfabetização, mais que o simples domínio mecânico de técnicas para escrever e ler, era a transformação radical da realidade, para torná-la mais humana, permitindo assim que homens e mulheres sejam vistos e reconhecidos como sujeitos de sua história, capazes de realizarem uma leitura crítica do mundo, pela qual pudessem aprender os temas e tarefas de sua época, dinamizando o seu mundo (FREIRE, 2002).

Pela ótica freireana a Educação aparece como condicionamento ético, uma “ética universal do ser humano”, que se materializa na efetivação de uma Educação Libertadora no sentido de oportunizar condições, tanto para educandos, quanto para educadores no sentido de se assumirem como sujeitos de sua própria história e fundadores de uma sociedade justa, harmoniosa e igualitária, libertando-se assim, das amarras do determinismo histórico e das formas de opressão e exclusão sociais. Nesse sentido, os educadores necessitam estar ciente de seu objetivo na formação de um educando com uma visão crítica, o qual a sociedade pluralista e heterogênea necessita. Esse educador deve ter como missão formar um profissional qualificado para as atividades que se propunha assumir neste espaço, social, cultural e econômico. A educação Libertadora freireana exige inevitavelmente a superação do contraste educador-educandos, pois somente assim, haverá possibilidade de se criar uma relação dialógica, essencial para a “cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível” (FREIRE, 1996, p. 13). Desse modo, os fundamentos da Educação Libertadora pensada por Paulo Freire, têm por objetivo esclarecer o discente de seu papel no mundo e levá-lo a perceber a presença da opressão para que possa lutar contra ela. É uma Educação que visa emancipar o indivíduo, que traz como base o engajamento político de luta contra opressão e dominação.

Essa visão libertária de Paulo Freire gera, no período atual, vorazes críticas por parte dos setores mais conservadores. O Movimento Escola Sem Partido, com ampla aceitação de segmentos da direita brasileira, defende a isenção político-ideológica dos professores em sala de aula - como se fosse possível ter opinião política e ser neutro ao mesmo tempo. Esse Movimento condena a pedagogia freireana por considerá-la extremamente marxista. A luta encampada pela perseguição personificada em Paulo Freire não estar relacionada à sua militância política partidária apenas. A perseguição se deve ao fato de a pedagogia freireana está impregnada de insatisfação contra o sistema econômico vigente, o qual beneficia uma pequena parcela da sociedade em detrimento de sua maior parte.

A Educação nunca é neutra (FREIRE, 1996). E não sendo neutra, a prática educativa implica opções, interrupções, decisões, lutas, a busca por um lado, estar com e pôr-se contra, a favor de alguém e contra alguém (FREIRE, 2001). Nesse sentido, a Educação para Freire, sempre esteve carregada de uma politicidade. Existe uma inseparabilidade do político com o educativo e a preocupação com a definição das respectivas especificidades. A pseudoneutralidade dessa escola sem partido atende aos interesses daqueles que se beneficiam da sociedade tal qual ela está. Essa escola, nos moldes defendidos por tal Movimento, precisa ser neutra não no intuito de afastar eventuais predileções políticas, pois, conforme afirmou Desmond Tutu, Arcebispo Anglicano da África do Sul, “se você é neutro em situação de injustiça, você já escolheu o lado do opressor”. Dessa forma, a neutralidade dessa escola camufla o interesse em beneficiar o opressor e não o oprimido. Talvez venha daí a insatisfação desse grupo em relação a Paulo Freire.

Compreendemos a ideia fundamental de Paulo Freire no livro “Pedagogia do Oprimido” como a elaboração de conceitos pedagógicos pelos quais o educador deve lançar mão para atingir uma transformação no contexto social de dominação. Por meio do processo educacional devemos compreender uma escola autônoma, crítica e libertadora, pressupostos ainda não alcançados satisfatoriamente. Esses professores e professoras, responsáveis pela mudança convivem com o problema entre ensinar para transformar ou cumprir com o currículo que lhe é imposto pelo sistema. Continua pesquisando para preparar uma aula que muitas vezes são incapazes de despertar interesse por serem sem relação com a realidade que os alunos vivem.

Nesse sentido, o sistema educacional brasileiro continua propagando a opressão e compactuando com o sistema capitalista atual, mantendo intacta a desigualdade social e a pobreza. Para os intelectuais em tela, superar a condição de mero consumidor para produzir cidadão e possibilitar a libertação do oprimido, requer um sistema educacional compromissado, em alguma medida, com uma discussão ideológica mínima sobre a sociedade de classes. Essa discussão sempre esteve em voga na produção de ambos. A respeito da proximidade ideológica entre Milton Santos e Paulo Freire se desenvolve a parte seguinte deste artigo.

O ENCONTRO DAS IDEIAS DE MILTON SANTOS E PAULO FREIRE

De início, ao propormos a aproximação entre essas duas figuras elogiáveis do campo da Educação e da Geografia, é importante salientar a aproximação histórica que suas biografias trazem. Nordestinos, Milton Santos nascido na Bahia e Paulo Freire em Pernambuco, esses dois expoentes foram presos em 1964 pelo regime militar, o primeiro por ter uma vida política ativa e estar ligado a movimentos de esquerda e o segundo porque enxergava na educação um percurso rumo à conscientização crítica das classes mais desfavorecidas - visão que soava como germe de comunismo por parte do regime autoritário. Após períodos diferentes de prisão, Santos meio ano de prisão domiciliar e Freire 70 dias de prisão em regime fechado, ambos foram exilados e passaram longo período fora do país, onde foram consagrados nos diversos países em que passaram. Ambos tiveram passagens consagradoras pelos Estados Unidos, onde lecionaram em Universidades históricas, Milton Santos na Universidade de Columbia, em Nova York e Paulo Freire na Universidade de Harvard (Estados Unidos).

Os dois professores coincidiram também em passagens pelo continente africano. No final de 1971, Freire fez sua primeira visita a Zâmbia e Tanzânia. Em seguida, passou a contribuir mais significativamente em projetos educacionais em países como Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e também influenciou as experiências de Angola e Moçambique. Já Milton Santos teve atuação na Tanzânia, onde organizou o programa de pós-graduação em Geografia da Universidade de Dar es Salaam - a Figura 1 sintetiza espacialmente a atuação intelectual dos autores em tela pelo mundo.

Figura
1- As
geografias de Milton Santos e Paulo Freire
Figura 1- As geografias de Milton Santos e Paulo Freire
Fonte: Organizado pelos autores, 2017.

Duas obras de Milton Santos, o “Espaço do Cidadão” (2007) e “Por uma outra globalização” (2004), são impregnados da discussão referente a questão socioeconômica brasileira, ao analisar os desafios da cidadania diante da organização e produção do espaço brasileiro nos moldes do mundo globalizado, constituindo-se em uma importante contribuição nos estudos da realidade. Para Santos (2004) este fenômeno está na raiz das transformações atuais. Em função disso o espaço das cidades passou a ser dotado de distorções sociais, levando o autor a afirmar que hoje no seio do espaço urbano existe uma divisão socioespacial em classes. Tal fato acarreta em crônicos problemas de deterioração do cidadão, que passa a ter acesso a serviços e bens conforme sua renda permite.

O respeito ao indivíduo passa a estar atrelado aos seus ganhos materiais e ao seu nível de consumo, é a cidadania fragmentada. Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, um usuário, um não-cidadão. Isso nos relembra a divisão social do trabalho e dos meios de produção, a sociedade dividida entre possuidores e os não detentores dos meios de produção, a formação dos grupos de classe dominante e a classe dominada. Neste momento podemos buscar a associação de ideias entre os dois autores. Da mesma forma que Milton Santos trata do não-cidadão e uma sociedade dividida entre dominantes e dominados, Paulo Freire trata a sociedade como um tecido fragmentado em dois grupos: opressores, pessoas de alto poder aquisitivo, e oprimidos, pessoas de pouco nível educacional, de baixa renda e acesso a precários serviços públicos. Em ambos os pensamentos, há, em graus distintos, influência marxista, concretizados dentro de um caráter social de análise e a divisão da sociedade em classes. Freire afirmava que conheceu a realidade da divisão de classes através da fome e da pobreza nas favelas, vendo no marxismo uma forma de entendimento dessa realidade (OLIVEIRA, 2003). Enquanto para Santos o marxismo emergiu em seus estudos fora do Brasil: “o marxismo veio lentamente, principalmente depois que fui fazer meu doutorado na França, nos anos 50, com o professor Tricart”. (SANTOS, 2001, p. 4). Foi o marxismo como método de análise histórica que possivelmente consagrou e impôs restrições políticas e acadêmicas a Milton Santos.

Tendo em vista que os dois sofreram influência da teoria marxista da luta de classes, percebemos muitos pontos comuns em seus pensamentos. Ambos acreditam que somente com a construção de uma sociedade formada por cidadãos poderemos iniciar um processo de transformação que possa corrigir essas disparidades sociais. Para Paulo Freire, cidadão significa “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado” e cidadania “tem que ver com a condição de cidadão, quer dizer, com o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão" (FREIRE, 1992, s/p.). Para ele,

(...) as chamadas minorias, por exemplo, precisam reconhecer que, no fundo, elas são a maioria. O caminho para assumir-se como maioria está em trabalhar as semelhanças entre si e não só as diferenças e assim criar a unidade na diversidade, fora da qual não vejo como aperfeiçoar-se e até como construir-se uma democracia substantiva, radical (FREIRE, 1992, s/p.).

Em consonância as idéias freireanas, Milton Santos (2007), afirma que a cidadania pressupõe o respeito ao indivíduo, mas isto somente acontecerá de fato quando as pessoas tiverem consciência deste direito. Ela é resultado de um processo de aprendizagens, que quando começa, vai delineando a subjetividade dos sujeitos e cria laços culturais. Santos (2013, p. 82) explica essa questão afirmando que

(...) a cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância. A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna um estado de espírito, enraizado na cultura. É, talvez, nesse sentido, que se costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista, uma conquista a manter.

A estrutura socioeconômica vigente propiciada pelo acumulo de renda gerada pela atual fase capitalista, cria dentro da sociedade estruturas de dominação. Para Freire (1980, p.71), no Brasil desde o período colonial, as raízes culturais construídas foram de negação do povo, pela inexistência de “participação popular na coisa pública. Não havia povo”, O que existia era a “criação de uma consciência hospedeira da opressão e não de uma consciência livre e criadora, indispensável aos regimes autenticamente democráticos”, predominando um etnocentrismo europeu pautado na superioridade ocidental e branca. Tais fatos acarretaram na construção de uma sociedade segregada com a presença de sujeitos historicamente oprimidos e excluídos socialmente, com baixa estima ou pouco poder para exercer seus direitos como cidadão.

No documentário lançado em 2006 do diretor Sílvio Tendler, “Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”, o geógrafo compactua com Freire e afirma que “não há cidadania no Brasil. A classe média não requer direitos, e sim privilégios”. O estado de cidadania nos é roubado pelo jogo de interesse promovido pela classe privilegiada. Todavia, Milton Santos é perspicaz ao frisar que estas ações não são promovidas de modo estanque pelo Estado, e afirma que “as fontes criadoras de diferenças e desigualdades são mais fortes que as ações do Estado. Para isto, é necessário um Estado socializante”.

Nesse exclusivo jogo do mercado colocado por Milton Santos (2013, p.119), “o espaço vivido consagra desigualdades e injustiças e termina por ser, em sua maior parte, um espaço sem cidadãos”. Observando o mapa do país, é fácil constatar amplas áreas vazias de hospitais, postos de saúde, escolas, universidades e de outros serviços essenciais à vida social e à vida individual. Quando observamos as periferias das cidades, mesmo as dotadas de uma considerável densidade demográfica, tais serviços são ainda mais ausentes. Para lutar contra essa lógica concentradora, citamos uma perspectiva de práxis transformadora elaborada por Paulo Freire, que dentro do seio da Educação Formal elabora um modelo de Educação que visa através da ação da maioria oprimida, dominada e carente de direitos, uma ação visando à busca por mudanças nesse modelo segregador de sociedade do consumo, com o objetivo de conduzir a uma redução da diferenciação qualitativa do espaço.

Esse modelo de educação freireana denominado de Educação libertadora, fundamentada numa visão humanista crítica, enxerga o discente em sua totalidade, como portadores de sentimentos, pensamentos e ações, não se restringindo à dimensão cognitiva apenas. A aprendizagem não se limita a um aumento de conhecimentos, ela influi nas escolhas e atitudes do indivíduo. A prática escolar rejeita a neutralidade do processo educativo, concebe a educação como dialógica e conduz o estudante a um pensar crítico da sua realidade. Para ele a educação é um ato político (FREIRE, 1996). Os fundamentos teóricos da proposta educacional de Paulo Freire têm a intenção de assegurar aprendizagens que propiciem aos estudantes a construção de novos conhecimentos, permitindo sua adesão à luta pela melhoria das condições de existência. Esse pensar seria a chave para as transformações do espaço sem cidadãos citado por Milton Santos, ainda que essa questão esteja entrelaçada a um horizonte utópico.

Para Santos (2013) a condição de cidadão exige uma prática social e política que nunca está completa. Sucessivas gerações necessitam atuar para intervir no sistema jurídico a fim de construir aparatos legais para garantir dispositivos institucionais que permitam exigir direitos. Contudo, Santos (ibdem) adverte que as leis por si só não garantem cidadania, é necessário reivindicar. Para isso é fundamental a capacidade de leitura do mundo e participação política. Nesse campo, Freire destaca o papel fundamental da educação na formação do cidadão, pois ela é o caminho para reivindicação de seus direitos civis e políticos, não sendo omissa quanto ao cumprimento destes, e desse modo não permitindo que o cidadão seja um mero consumidor Fonte: BSH Internacional, 2014.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O escritor Nelson Rodrigues cunhou o termo “complexo de vira lata” para designar a baixa autoestima dos brasileiros. Poucas pessoas, fora do ambiente esportivo ou artístico, conseguiram aceitação internacional a ponto de minimizar os efeitos danosos desse complexo, de restabelecer o orgulho em ser brasileiro. Entre essas pessoas, indiscutivelmente, Paulo Freire e Milton Santos têm notável destaque. A produção desses autores foi amplamente divulgada e aceita em diversas partes do mundo.

Apesar do internacionalismo das suas acepções, Milton Santos (2012, p. 114), expunha que “cabe, sem dúvida ao geógrafo propor uma visão totalizante do mundo, mas é indispensável que o faça a partir de sua província do saber, isto é, de um aspecto da realidade global”. Dessa feita, em que pese às contribuições mundiais desses autores, ambos não se esqueceram da discussão referente ao Brasil. Santos analisou as contradições sociais no Brasil a partir da noção do não-cidadão enquanto Freire voltou sua atenção para os oprimidos.

O ano de 2017 marca os 20 anos da morte de Paulo Freire e 16 anos da de Milton Santos, contudo, os temas propostos por ambos voltaram recentemente ao cerne da discussão sociopolítica do Brasil. A chamada nova classe C, criada no período do governo do PT (2003-2016), é emblemática sobre a distinção feita por Milton Santos entre consumidor e cidadão e o movimento Escola Sem Partido, ao questionar a “doutrinação” freireana na sala de aula, colocou em questão, novamente, sua pedagogia. A empirização da ideia miltoniana e o questionamento, totalmente descabido em nossa visão, das ideias freireanas, expõe, no fundo, a relevância das contribuições de ambos. Não se discute ideologias mortas. Se hoje há essa discussão é porque o pensamento de ambos ainda tem muito a dizer sobre a sociedade nacional. As discussões preconizadas por esses autores apontam que suas análises se tornaram clássicas em virtude de sua natureza de ser sempre atual.

Não há uma lógica excludente em transformar o mundo, objeto de análise do geógrafo Milton Santos, e transformar o indivíduo, objetivo do pedagogo Paulo Freire. Uma é pré-condição para a outra. A mudança global, seja em qual instância for, é na verdade, fruto de uma alteração significativa no comportamento individual do ser humano. Por outro lado, a mudança na escala do ser humano só pode ser assim encarada se for capaz de produzir mudanças significativas, mudanças materializáveis. Contudo, toda e qualquer mudança social esbarra na discussão Política. Daí a importância de se criar cidadão e não consumidor, como advoga Milton Santos, a importância de dar liberdade ao oprimido, como defende Paulo Freire. Nesse sentido, a educação cumpre um papel consubstancial para esse movimento.

Todavia, não devemos enveredar no romantismo da possibilidade real de criação de uma sociedade justa para todos. Esse modelo de sociedade simplesmente não existe. Entretanto, essa constatação não pode servir de argumento para a aceitação da fragmentação social como as produzidas pelo sistema vigente. Em frase atribuída ao escritor uruguaio Eduardo Galeano, esse pensador latino-americano nos ensina que: “a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Dessa forma, que a busca por uma sociedade menos desigual, como apregoada por Milton Santos e Paulo Freire, nos inquiete a ponto de nos permitir continuamente caminhar, na academia e na vida, pois “num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário”, como já nos disse Paulo Freire.

REFERÊNCIAS

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ENCONTRO com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá. Direção: SilvioTendler. Produção: Ana Rosa Tendler. Brasil, 2006.

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________. Política e Educação: ensaios. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 2001.

________. Pedagogia do Oprimido. 50ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

MACHADO, Mônica Machado. A Força do Lugar na Obra de Milton Santos. In: MARTIN, André Roberto; MACHADO, Mônica Sampaio (orgs). Dicionário dos Geógrafos Brasileiros. 1 ed. Rio de Janeiro: 7 letras, 2014. p 133-166.

MOSÉ, Viviane. O Homem que Sabe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Leituras Freireanas sobre educação. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

PONDÉ, Luiz Felipe. Guia Politicamente Incorreto da Filosofia. São Paulo: Editora Leya, 2012.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. 3ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1986.

________. Um café com Milton Santos. São Paulo: Folha de São Paulo. 08 de jul. de 2001. Entrevista concedida a Fernando Conceição. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0807200107.htm . Acesso em 12 de jul. 2016.

________. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2004.

________. O espaço do Cidadão. 7ª ed. São Paulo: Edusp, 2007

________. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

______ . A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 2009.

________. O espaço da cidadania e outras reflexões. Organizado por Elisiane da Silva; Gervásio Rodrigo Neves; Liana Bach Martins. Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães, 2013.

______. O Espaço do Cidadão. 7° ed. São Paulo: Edusp, 2014.

Autor notes

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). BR 465, Km 7, CEP: 23897-000, Seropédica (RJ), Brasil – Tel.: (+55 21) 2681-4980 - jdiasnascimento@uol.com.br, http://lattes.cnpq.br/0910085332750838
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