BAIRRO COMO LUGAR DO VIVIDO

NEIGHBORHOOD AS PLACE LIVED

VOISINAGE AS PLACE VÉCU

Verônica Gonçalves Azeredo
Universidade Federal Fluminense, Brasil

BAIRRO COMO LUGAR DO VIVIDO

GEOSABERES: Revista de Estudos Geoeducacionais, vol. 7, núm. 13, pp. 40-50, 2016

Universidade Federal do Ceará

Recepção: 03 Fevereiro 2016

Aprovação: 08 Junho 2016

Resumo: O tema proposto é explorado sob o enfoque da Geografia Cultural Humanista e com recurso da revisão de literatura. O objetivo é abordar a categoria lugar, na ótica do bairro, como espaço do vivido. O destaque é para arranjos materiais e simbólicos que agem na formação destes lugares. Através da vivência dos moradores é possível compreender, como um bairro se desenha sob os traços de suas memórias e saberes, o que por sua vez, constitui a identidade local. Estes recursos fornecem referências históricas e geográficas que se manifestam através da vivência de seus moradores e da interpretação feita pelo conjunto da cidade.

Palavras-chave: Lugar, Bairro, Vivências dos Moradores.

Abstract: The proposed theme is explored from the standpoint of the Humanist Cultural Geography and literature review feature. The goal is to address the place category, in the view of the neighborhood, as space lived. The highlight is the material and symbolic arrangements acting in the formation of these places. Through the experience of the residents can understand, as a district is drawn under the traces of their memories and knowledge, which in turn is the local identity. These features provide historical and geographical references that are manifested through the experience of its residents and the interpretation made by the entire city.

Keywords: Place, Neighborhood, Experiences of Residents.

Résumé: Le thème proposé est exploré du point de vue de la géographie culturelle et humaniste fonction de revue de la littérature. L'objectif est de répondre à la catégorie de place, dans la vue du voisinage, comme l'espace vécu. Le point culminant est les arrangements matériels et symboliques qui agissent dans la formation de ces lieux. Grâce à l'expérience des résidents peut comprendre, comme un quartier est établi sous les traces de leurs souvenirs et de connaissances, qui à son tour est l'identité locale. Ces fonctionnalités fournissent des références historiques et géographiques qui se manifestent à travers l'expérience de ses résidents et de l'interprétation faite par la ville entière.

Mots clés: Place, Quartier, Expériences des Résidents.

INTRODUÇÃO

A abordagem contida no presente artigo é parte das reflexões realizadas em estudos de doutoramento e apresentada em tese na área de Política Social. Na ocasião, o pressuposto que conduziu a investigação apontava para estruturas de oportunidades limitadas na perspectiva sócio-espacial que incidia na reprodução da pobreza e vulnerabilidade de habitantes do bairro envolvidos na análise.

Nessa perspectiva, um determinado bairro foi eleito espaço de referência da investigação e a opção foi relacioná-lo a usos e práticas de proteção social. Dito isso, o objetivo deste artigo é ressaltar a importância do diálogo estabelecido com o aporte teórico-conceitual da Geografia Cultural Humanista, através das categorias espaço, bairro e lugares em uso. O pressuposto condutor da análise é o de que são as pessoas que dão vida aos lugares e qualquer mudança ocorrida nesses espaços deve partir de trabalho realizado a partir das referências e vivencias de seus habitantes.

Por essa razão, usos e práticas sócio-espaciais é o tema desta reflexão, onde o bairro é pensado como lugar do vivido e desenhado sob a tríade vivência-convivência-conveniência. Ao seguir esse trajeto, o que se pretendeu, foi capturar alguns elementos definidores da identidade habitante lugar. Buscou-se resposta para a seguinte a questão: Quais os lugares materiais e simbólicos que agem na formação dos lugares? Em resposta, historicidade, saberes e memória se cruzam na constituição das pessoas e dos lugares e desenham a identidade local.

Ao adentrar esse campo disciplinar da Geografia, a proposta consiste em dar destaque a dois elementos: a literatura disponível na forma de acervo de conhecimentos acumulados acerca das categorias em questão e o ganho obtido com a realização de estudos interdisciplinares.

Trata-se de um ensaio, numa tentativa de aproximação e discussão com tais categorias, tão caras aos trabalhadores e pesquisadores da área social.

BAIRRO LOCUS DA EXPERIÊNCIA URBANA

O bairro detém a potencialidade de ser território (enquanto porção do espaço dominado pelo homem através do conhecimento) e lugar (relação íntima e emocional com uma porção do espaço) (PAULA; MARANDOLA, 2007, p.2).

Apreender o bairro como espaço da cidade supõe entendê-lo a partir de sua posição social e espacial na malha urbana. Desse modo, a categoria lugar é uma importante referência analítica para a compreensão das dinâmicas construtoras das identidades sócio-locais, e é fundamental considerar que todo “local” se articula com o externo e o “global”. É a partir das relações intermediárias entre esses espaços que um bairro se desenha, manifestando sua racionalidade derivada da apropriação e arranjo do lugar e da expressão de seus usos e práticas. Por isso, compreender o bairro e a cidade, como mediadores das relações e representações dos habitantes, supõe considerar que todo local possui significado e, este, se manifesta através da vivência de seus moradores e da interpretação feita pelo conjunto da cidade.

Um bairro pode ser interpretado por diversas pessoas e perspectivas, mas a posição analítica, aqui adotada, segue a proposta da corrente Cultural Humanista da Geografia, que busca compreender os arranjos materiais e simbólicos que agem na formação dos lugares.

Ao fazer referência aos geógrafos humanistas, Werther Holzer (1999) afirma que estes contribuíram para que a categoria lugar, aprisionada a uma noção locacional, saísse do plano secundário nos estudos da geografia. Nesse sentido, destaca as obras de SAUER 1983; DARDEL, 1990; LUKERMANN 1964; LUIJPEN 1973; DARTIGUES 1973; BUTTIMER 1982; RELPH 1976, FRÉMONT 1980, POCOCK, 1981, TUAN, 1983.

Entre esses autores, Eric Dardel (1990) foi o precursor na adoção do pensamento fenomenológico, tornando-se referência para a geografia norte-americana e para grande parte dos geógrafos humanísticos. Ele adotou a noção de “geograficidade” como o modo de relacionamento do homem com a terra, o “ser no mundo”. A geografia como ciência das essências foi assim definida por inspiração filosófica de Dardel (1990 apud GONÇALVES, 2009, p.8).

Numa perspectiva semelhante à de Dardel (Ibid.,), o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan (1983) dedica-se à compreensão das formas como o homem entende sua experiência no mundo. Experiência[1] é uma das categorias chave na obra de Tuan (Ibid.,p.9), e diz respeito a “qualquer maneira pela qual uma pessoa conhece e constrói a realidade”.

Para aqueles que se propõe a pensar o bairro na dimensão experiencial, enquanto lugar do vivido, uma perspectiva que se mostra bastante afinada é a de Tuan (1983, passim). Por essa, Marandola (2008) a toma, na medida em que conhecimentos, atitudes e valores são contemplados na análise do “espaço” e do “lugar”.

O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. [...] A partir da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço e vice-versa. Além disso, se pensarmos no espaço como algo que permite o movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que a localização se transforme em lugar (MARANDOLA JR, 2008, p.207).

Ao tomar as categorias espaço e lugar como bases de suas análises, o referido autor afirma que estas são indissociáveis. O lugar é onde a realidade se constrói por meio de práticas cotidianas. É nesse sentido que o bairro, como porção do espaço, possui um dinamismo próprio que o geógrafo David Seamon (1980) batizou como “balé-do-lugar”. Trata-se de movimentos que se realizam em tempo e espaço definidos rotineiramente (SEAMON, 1980 apud PAULA, 2009, p.3).

Para Tuan (op.cit.,p.153), o lugar é um espaço estruturado, um mundo de significado organizado, onde espaço e tempo se misturam. A partir dessa fusão, o bairro torna-se um lugar, com seus processos de mobilidade que demarcam a identidade territorial de seus moradores. Em sua visão, no contexto da cidade, o bairro figura como ponto de pausa, o que permite que uma localidade se torne um centro de reconhecimento do valor.

Cada pausa constitui um lugar (a moradia, a escola, o trabalho, o shopping, a casa dos amigos, etc), enquanto os caminhos que ligam esses lugares são os itinerários. O lugar é a diferenciação do espaço indiferenciado, é o que marca o envolvimento com o espaço e permite a sua qualificação. O lugar é marcado por uma ambivalência do subjetivo e do objetivo, constituindo-se um elo na esfera do vivido e do material: lócus próprio do acontecer ontológico (MARANDOLA, Jr., 2008, p.207).

Tuan (1980, p.106) utiliza-se do neologismo ‘topofilia’ para enfocar as manifestações específicas do “amor humano pelo lugar”. Trata-se do contraponto com o espaço indiferente, ou “não-lugar” (AUGÉ, 1994), e nesse sentido a ‘topofilia’ revela a intensidade das experiências humanas nos diferentes lugares.

Sob essa noção, flui a compreensão de que espacialmente representados em escalas físicas e arranjos simbólicos os lugares, assim como as pessoas, provocam afetos. Isso, por quê?

Primeiro, os lugares são criados pelos homens[2]; segundo, porque os homens que habitam os lugares; e terceiro, porque os lugares também passam a habitar os homens. De maneira que o par homem/lugar se complementa, no mundo vivido, um não existe sem o outro (GONÇALVES, 2009, p.9).

Pode-se então observar que é desse casamento entre homem e lugar que o espaço torna-se familiar. Ao indagar sobre o modo como o espaço desconhecido transforma-se num bairro, Tuan (1983, p.151) estimula a reflexão em torno das dinâmicas sócio-espaciais que alimentam a construção da identidade local. É sob a constituição de sua estrutura interna e externa, que o bairro é identificado e reconhecido. Enquanto unidade espacial diferenciada no contexto da cidade, ele é locus de expressão da experiência urbana. Experiência que se manifesta sob a interseção de processos geradores de movimento e pausa, conforme Tuan (1983, passim) convencionou chamar. Tais processos podem também ser entendidos sob a perspectiva da mobilidade e permanência.

Ao se deslocar pelo espaço, a pessoa se orienta por determinadas razões e segue seus movimentos, tais como: Por que se deslocar? Para onde ir? Quantas vezes ir? Tal mobilidade denota a relação da pessoa com o espaço e é uma característica do próprio indivíduo. Assim como a permanência também o é. Como contraponto à mobilidade, a permanência é “pausa”, fixação. Seguem outras razões, como: Por que permanecer? Onde permanecer? Como é permanecer? (PAULA, 2007, p.8).

A permanência é estabelecida a partir da atribuição de valores e satisfação das necessidades biossociais. É, nesse sentido, que o bairro torna-se um lugar, ao assentar a materialidade da vida de seus moradores, sendo ela produto ou não de seus desejos e expectativas. Material e emocionalmente ele é o local do possível.

Enquanto local de morada, a vida urbana se centra, de vários modos, no bairro. Ir e vir, dentro do bairro, está ligado ao suprimento das necessidades e desejos mais prementes na manutenção diária da vida. Certa mobilidade satisfatória dentro do bairro, ligada ao conteúdo sócio-espacial, enquanto provedor destas necessidades ou desejos, qualifica a permanência no bairro (PAULA; MARANDOLA JR, 2009, p.5).

Para Tuan (1983), a experiência prolongada em determinado lugar possibilita melhores condições de nos proteger, de nos defender dos riscos (...). Nos espaços abertos, representados pela liberdade, fica-se exposto ao perigo, pois em trânsito não temos os recursos do lugar para nos proteger (TUAN apud MARANDOLA Jr, 2008, p.207).

Proteção e perigo, perto e longe, realidade e desejo, afeição e desprezo, são alguns aspectos e significados atribuídos aos deslocamentos das pessoas e aos lugares. Desse modo, as dinâmicas dos deslocamentos se entrecruzam com as do pertencimento, e promovem a convivência e a ‘conveniência’, produtos das experiências dos sujeitos nos lugares. Experiências fundadas no conviver. Para utilizar a expressão de Bonnemaison (2000, p.126, passim), a ‘convivialidade’ implica em processos de humanização decorrentes da mediação cultural. Supõe associação a lugares e, com eles, um grau de intimidade.

No entanto, essa intimidade não deve ser lida como sinônimo de uma ‘comum-unidade’ na dinâmica de um bairro, ou de uma homogeneidade com relação aos usos e práticas do lugar. Trata-se tão somente da interseção entre o privado e o público, enquanto terreno onde semelhanças se fundem, mas também onde diferenças e diversidades se conflitam. É, nesse sentido, que Pereira e Oliveira (2009, p.45) consideram “o bairro uma mediação, onde reconhecimento e estranhamento se relacionam, produzindo um espaço que não é nem um nem outro, mas a interseção”.

Portanto, por meio da convivência os moradores de um bairro compartilham o “lugar” e, nele, alguns “lugares”. Seguem por ruas, praças, usufruem de comércios e serviços, se encontram no trabalho, na escola, no entorno de suas residências, onde experimentam os espaços de contato. Em seus trajetos, cada morador, marcado pela sua história de vida e por suas referências culturais, se posiciona. E, seja qual for à posição assumida, sempre está relacionada à busca de pertencimento. Sentir-se incluído na dinâmica do lugar é a condição que sustenta a permanência no bairro.

Em seus estudos sobre determinado bairro em Paris, Pierre Mayol (1996) mostra que a vivência em uma coletividade implica, por parte de seus moradores, ‘na defesa’ de códigos sociais legitimados. Essa atitude permite que o morador tenha reconhecimento naquele lugar. Utiliza-se da noção de “conveniência” para explicar

Uma convenção tácita, não escrita, mas legível por todos os usuários através dos códigos de linguagem e de comportamento. Toda submissão a esses códigos, bem como toda transgressão, constitui imediatamente objeto de comentários: existe uma norma, e ela é mesmo bastante pesada para realizar o jogo de exclusão em face dos ‘excêntricos’, as pessoas que ‘não são/fazem como todos nós’. Inversamente, é ela a manifestação de um contrato que tem uma contrapartida positiva: possibilitar a coexistência de parceiros, a priori ‘não ligados’. Um contrato, portanto, uma ‘coerção’ que obriga cada um que a vida do ‘coletivo’ público seja possível para todos (Ibid., p.47)

Portanto, a convivência implica no cumprimento das regras de conveniência. É assim que, no bairro, os moradores, ao se aproximarem, criam condições de interação social e definem o espaço urbano como “público, acessível, lugar das diferenças, da heterogeneidade” (GRINOVER, 2006, p.38).

A diversidade de “usos” praticados em um bairro implica em nele ter acesso e dele usufruir. Ainda que produto de cada vivência, um bairro não se constitui por usos particulares, mas pela partilha coletiva, definidora de territórios. Portanto, é sob a tríade vivência-convivência-conveniência que os habitantes do lugar conhecem e re-conhecem o bairro onde vivem e nele constroem sua identidade.

Da identidade habitante/lugar, criada na relação entre os “usos” e os “outros”, constitui-se a alteridade, pautada numa rede de relações que sustentam a vida e lhe conferem sentido. Para Tuan (1983, p.224), é da afeição com o lugar que provém o equilíbrio entre sentir-se enraizado e sentir-se estranho. A afeição com o lugar é tanto possível para os nativos, quanto para os que chegaram depois, e implica numa relação de intimidade com aquele “pedaço” (MAGNANI, 2003).

De modo geral, isso ocorre com mais frequência entre aqueles nascidos e criados no lugar, ou aqueles que tiveram tempo para desenvolver suas formas de apego e enraizamento. Mas também é possível para aqueles que chegam, olham e sentem que “aqui é meu lugar”. Por isso, apesar de correlacionadas, as categorias tempo e espaço são relativas.

O debate atual sobre território privilegia a discussão sobre o local, logo, o lugar é resgatado enquanto categoria fundada sob a lógica do pertencimento. De um lugar para o outro, as pessoas estão sempre em busca dessa condição, pois ‘despertencidos’ e desapropriados de nossas raízes perambulamos por nossas cidades, sem mitos fortes que nos amarrem, nossas heranças se perdem e não temos o que colocar no lugar: somos seres desagregados e sem coesão (FARIA, 2000, p.5).

Sempre remetido a uma vivência, os lugares sugerem laços afetivos entre indivíduos e espaço, possuem historicidade e significados, que se diferenciam em modos de expressão (TUAN, 1983, passim). Apesar das diferenças no modo de viver e sentir o lugar, ele é “algo vivo, sempre em uso, necessário e amado, local de confluência das memórias passadas e, sobretudo, das memórias futuras” (CANEVACCI apud GRINOVER, 2006).

É, nesse sentido, que a memória, assim como a experiência, revela o lugar enquanto construção coletiva. Por isso, “o bairro onde moramos, a casa, o lugar de trabalho, de lazer, de pausa” (TUAN, 1980, p.26) nos remete a uma memória e a uma vivência. As lembranças do lugar estão sempre relacionadas aos valores e julgamentos sobre ele, se é “agradável, caótico, violento ou pacato”. Assim como suas paisagens, suas cores e cheiros, só têm sentido para quem os vivenciou. Trata-se de um ‘local circunscrito pela nossa experiência’, como centro de significados e intenções humanas (Ibid.,27).

Atrelada à idéia de lugar, a memória é locus de constituição e armazenamento de saberes geradores da identidade local. Para Delgado (1990, p.9), “a memória é uma construção sobre o passado, atualizada e renovada no tempo presente”. Na visão do sociólogo francês Maurice Halbwachs (2006, p.64), embora expressa individualmente, a memória é coletiva, ainda que seja “muito comum atribuirmos [a memória] a nós mesmos, como se apenas em nós se originassem, as ideias, reflexões, sentimentos e emoções que nos foram inspirados pelo nosso grupo”. Sua obra La Mémoire Collective (1968), traduzida (2006) por Beatriz Sidou, é marco nos estudos dos ‘contextos sociais da memória’. Trata-se de uma valiosa contribuição sociológica, que estimula o conhecimento sobre o modo como “a trama coletiva da existência, surge e se impõe a individualização” (Ibid.,p.16).Tal obra de Halbwachs se destaca por afirmar que a memória é social, por três aspectos fundamentais: A Recordação (presença dos outros é inevitável), por Quadros Sociais de Referência (rituais, cerimônias, celebrações...) e pela Linguagem ( base de comunicação entre os grupos).

Por essa razão, Halbwachs (Ibid.,) acredita que a memória se manifesta individual, coletiva e socialmente.

Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente (Ibid., p.72)

Por ser um fenômeno construído coletivamente, a memória é submetida a constantes mudanças, não é de modo algum inerte. Pressupõe um movimento próprio do ato de rememorar, que, por sua vez, reconstrói continuamente a memória. O referido autor acredita ser preciso considerar a mútua interação entre sociedade e memória. Esse é, segundo ele, o elo para se pensar a memória como construtora da identidade (Ibid,p.152). Sua visão é a de que, ao re-atualizar o passado, o indivíduo (a partir do contexto social e das relações de pertencimento), ocupa um lugar no presente.

Ao dar tratamento à ligação entre memória e identidade social, o australiano Michael Pollak (1992), comunga com Halbwachs (2006) do aspecto social e mutável da memória, mas o critica sob o argumento de enquadrar a memória pela adesão afetiva. Para Pollak (op.cit), a memória não se resume à reconstrução de acontecimentos, mas atua no intuito de reforçar uma consciência coletiva. Por ser construída com base nas inquietações do presente, a memória é “enquadramento, seleção e negociação” (Ibid., p.4).

[...] Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e inter-grupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos (Ibid.,p.5)

Da relação entre memória e identidade, Pollak (1992, passim) destaca três elementos constitutivos: Acontecimentos (vividos pessoalmente ou por tabela), Pessoas e Personagens (pertencentes ou não ao espaço-tempo da pessoa) e Lugares da Memória (ligados à lembrança).

Para Pollak (Ibid.,p.201), esse tipo de acontecimento vivido pela coletividade ganha uma dimensão no imaginário, diante da construção da memória coletiva. No “fim das contas, é quase impossível que a pessoa consiga saber se dele participou ou não”.

A memória é constituída pelos acontecimentos e por pessoas e personagens que cruzam nossas vidas ou que não pertencem necessariamente ao espaço-tempo da pessoa. [...] Além dos acontecimentos e dos personagens, os lugares estão “particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico” (Ibid.,p.201/202).

O referido autor acrescenta que a memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa, e também sofre flutuações em função do momento em que é articulada e expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória, afirma Pollak (1992, passim).

Aqui, o particular interesse pela obra de Halbwachs (2006, passim) se deve, primeiro: pelo caráter pioneiro de um pensamento, surgido nas primeiras décadas do século XX, como contraponto à noção de memória estritamente individual, e segundo: porque sua obra dá destaque à memória como um recurso que reconstrói o passado, sempre a partir do presente, cuja lembrança, está sempre vinculada a experiências externas — de modo que as memórias, individual e coletiva, não possam se dissociar. Outro aspecto que merece destaque em sua obra é a transmissão das lembranças como recurso intergeracional, para manutenção da memória coletiva do grupo social (VIDAL, 2007).

Eclea Bosi (1994, p.54), em “Memória e Sociedade”, se refere à lembrança como uma forma de reviver, reorganizar, refletir com as imagens que se têm do presente, as experiências vividas no passado. Segundo ela, “se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos faz lembrar”.

Desse modo, a utilização do recurso da memória torna-se fundamental, na medida em que fornece referências históricas e geográficas que afirmam e reafirmam a identidade local. Para Menezes (1999, p.20), a “memória é mais do que simples arquivo classificatório de informações a reinventar o passado, é um referencial norteador na construção das identidades”.

No momento em que uma pessoa transforma sua experiência em relato, já está filtrando e estabelecendo ligações com o universo que lhe está internalizado. Para Michael de Certeau (1996, p.208), “esses comportamentos de relato, oferecem um campo rico a análise da espacialidade”. “[...] O relato tem papel decisivo. Sem dúvida ‘descreve’. Mas toda descrição é mais que uma fixação, é um ato culturalmente criador”.

Historicidade, significado e memória se cruzam enquanto elementos simbólicos essenciais na constituição das experiências das pessoas e dos lugares. Por isso, o resgate da memória do bairro, por meio das vivências, lembranças e histórias de seus moradores, é fundamental para a apreensão dos saberes que conformam a identidade sócio-local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que de fato interessa aos gestores, planejadores e executores de políticas públicas, pensar o bairro como unidade diferenciada no contexto da cidade?

A consideração de que todo “local” se articula com o “global” sugere a compreensão de seus usos e práticas, de suas relações e representações mediadas por espaços e tempos que se misturam, cuja geografia e estrutura de oportunidades são diferenciadas pelo conjunto da cidade, do Estado, do país e fora dele. Trata-se de capturar o olhar de “dentro” e de “fora”, não apenas por parte dos habitantes de uma porção do espaço tida como bairro, mas também dos que vivem às cidades e dos que as pensam- os planejadores urbanos.

Embora não tenha sido este o objeto de discussão do presente texto, este é seu horizonte. Isso porque, há uma questão norteadora que sustentou as reflexões nele contidas, que se pauta na noção de que na relação entre condição social e o lugar que cada um ocupa na cidade, não existe acaso, na medida em que o poder público tende a relegar ou reduzir investimentos em certas áreas da cidade e deixar parcela significativa da população sem atendimento essencial ou oportunizar a obtenção de melhor padrão de vida, em função da localização geográfica.

Sendo essa uma realidade conhecida e presente no debate dos processos geradores de segregação sócio-espacial, o presente texto, pautou sua análise no âmbito local. Aproximar-se da ideia de localidade como centro de reconhecimento e valor para aqueles que nela habitam, foi à proposta.

Pensar os condicionantes e impactos da segregação residencial nessas localidades, cuja população, em geral, é de baixa renda, é fundamental para posteriormente poder-se operar racionalizando o acesso às oportunidades e sua equitativa redistribuição.

Mas nenhuma mudança ou intervenção no âmbito público pode ser bem sucedida se o lugar onde ela acontece não for visto como uma realidade constituída por meio de práticas cotidianas. Lugares são construídos por pessoas e pelas memórias que armazenam saberes, ao conectar passado e presente, o que por sua vez define a identidade do local.

Por essa razão, o bairro é locus da experiência urbana, onde se dá o acúmulo de conhecimentos, atitudes e valores que são produzidos e reproduzidos. É nele que se assenta a materialidade da vida de seus habitantes, através de processos de mobilidade e permanência. Através dele é possível compreender que as dinâmicas dos deslocamentos se cruzam com as de pertencimento.

É dessa relação constituída entre “usos” e os “outros” que um bairro se desenha. No entanto, há que se destacar que ainda que produto de cada vivência, um bairro não se constitui por usos particulares, mas pela partilha coletiva, definidora de territórios onde semelhanças se fundem e diferenças se conflitam. É como ponto de pausa no contexto da cidade, que o bairro foi explorado neste texto.

Através de vivências-convivências-conveniências pessoas compartilham um “lugar” e com ele alguns “lugares” sejam eles geográficos, sócio-econômicos, afetivos. Lugares lembrados ou esquecidos no contexto da cidade.

Produto de espaços territorializados por seus usos e definidos por limites não apenas geográficos, o bairro é também um território fronteiriço, sobretudo, em termos de prioridades sociais. A atual Política Nacional de Assistência Social (PNAS) leva em conta recortes territoriais que contenham populações em situações similares, ao privilegiar a descentralização, através de espaços ou regiões homogêneas, como pré-requisito para ações integradas. Isso se constitui um avanço da esfera pública em seu modo de olhar os condicionantes que diferenciam os espaços da cidade.

Assim como é importante o olhar da cidade para o bairro e do bairro para a cidade, também o é, o do bairro pelo próprio bairro. É através do olhar endógeno que é possível construir a identidade sócio-local e ver alimentada a autoestima de seus habitantes.

O texto apresentado é sustentado pelo debate entre o campo disciplinar da Geografia, sobretudo na vertente da Geografia Cultural Humanista, com as Ciências Sociais Aplicadas, onde a Política Social se coloca. Trata-se de um esforço de aproximação entre áreas e leitores convergentes, cuja proposta é apresentação das categorias: espaço, Lugar; Bairro; Vivências dos Moradores destacando a interseção entre elas, sem desconsiderar as características específicas que as definem e legitimam.

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Notas

[2] Embora a expressão “os homens” tenha sido apresentada na citação, no sentido de humanidade, cabe destacar que “mulheres e homens vivem e pensam o mundo a partir de diferentes ‘lugares’, tendo dessa forma, necessidades diferenciadas” (MACEDO, 2002, p.59).
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