INDÚSTRIA CULTURAL E CIDADES LOCAIS: A GEOGRAFIA DOS FESTIVAIS EM GUARAMIRANGA – CEARÁ
CULTURAL INDUSTRY AND PLACES TOWNS: THE GEOGRAPHY OF FESTIVALS IN GUARAMIRANGA-CEARÁ
INDUSTRIA CULTURAL Y PUEBLOS DE LA ZONA: LA GEOGRAFÍA DE FESTIVALES EN GUARAMIRANGA-CEARÁ
INDÚSTRIA CULTURAL E CIDADES LOCAIS: A GEOGRAFIA DOS FESTIVAIS EM GUARAMIRANGA – CEARÁ
GEOSABERES: Revista de Estudos Geoeducacionais, vol. 7, núm. 12, pp. 53-67, 2016
Universidade Federal do Ceará
Recepção: 12 Fevereiro 2015
Aprovação: 19 Junho 2015
Resumo: O artigo objetiva delinear caminhos para a reflexão da cidade a partir da abordagem cultural na geografia. Partindo-se do conceito de indústria cultural, busca-se compreender o processo de mercantilização da arte e da cultura expressos na realização de festivais musicais na cidade local de Guaramiranga, no Estado do Ceará. A análise visa afirmar a importância que o aspecto cultural vem adquirindo nos estudos geográficos, buscando enaltecer a relevância concedida atualmente ao binômio cidade – cultura. Intenta-se assim contribuir para o fortalecimento das análises que privilegiam as cidades denominadas locais, por tanto tempo negligenciadas na ciência geográfica, enaltecendo as diversas possibilidades de abordagens para o entendimento das diversas ordens que compõem a realidade desses lugares.
Palavras-chave: Cidade local, Cultura, Indústria cultural, Festivais.
Abstract: This article aims to outline ways for the reflection of the city from the cultural approach in Geography. Based on the concept of cultural industry, we seek to understand the process of mercantilization of art and culture expressed in musical festivals in the local city named Guaramiranga, state of Ceará. The analysis aims to affirm the importance that the cultural aspect has acquired in geographic studies, seeking to enhance the relevance currently granted to the binomial city-culture. Therefore, this work has the purpose to improve the strengthening of the analysis that emphasize the cities named local cities, for so long neglected in geographic science, exalting the different posibilities of approaches for understanding the different orders that consist the reality of these places.
Keywords: Local City, Culture, Cultural industry, Festivals.
Resumen: El objetivo de este artículo científico es delinear formas para la reflexión de la ciudad desde el enfoque cultural em la geografia. Partiendo del concepto de industria cultural, buscamos entender la mercantilización del arte y la cultura expressada em la realización de festivales musicales em la ciudad local de Guaramiranga, estado de Ceará. El análisis afirma que el aspecto cultural viene ganando importância em los estudios geográficos, buscando enaltecer la relevancia concedida actualmente al binômio ciudad-cultura. De es a manera, se tiene la intención de contribuir al fortalecimento de los análisis que privilegian lãs ciudades denominadas locales, por tanto tempo descuidada em la ciencia geográfica, enaltecendo las diferentes possibilidades de enfoques para la comprensión de las diferentes órdenes que componen la realidade de estos lugares.
Palabras clave: Ciudad local, La cultura, La industria de la cultura, Festivales.
INTRODUÇÃO
Durante muito tempo esquecida nos estudos geográficos, a abordagem das cidades pela perspectiva da cultura foi recentemente inserida na agenda dessa ciência e tem se firmado como importante vertente no desvelar acerca destes espaços. Soma-se a esse quadro deficitário, a ínfima atenção dispensada pelos geógrafos aos centros urbanos de menor inferência nas redes, as chamadas cidades pequenas, também reconhecidas como cidades locais, o que nos conclama a colaborar na atual reparação histórica dessa área de estudos em geografia.
Como aponta Corrêa (1999) o ‘significado’ passou a ser a palavra-chave nos estudos culturais a partir de sua renovação em meados de 1970, possibilitando a discussão da cidade e do urbano nessa perspectiva em nível mundial, fazendo despertar o interesse dos geógrafos.A inserção de temas antes alheios à análise geográfica passam a figurar com importância. Estudos como os relacionados à Música, por exemplo, iniciados a pouco mais de quarenta anos por P.H. Nash (autor de “Music Region and Regional Music” em 1968), começam a ser reconhecidos, sendo em seguida, os trabalhos de George Carney e Lily Kong (2009) os de maior expressão. Esse tipo de análise, no entanto, ficou durante muito tempo restrita aos Estados Unidos, vindo somente a pouco ser prestigiado pelos geógrafos brasileiros.
A temática que envolve a cultura na perspectiva de análise dos eventos festivos e suas relações com as cidades não é recente. Sua abordagem é multidisciplinar, envolvendo, sobretudo a sociologia, a antropologia, a história, entre outras há bastante tempo. Na Geografia, no entanto, é recente esse tipo de investigação, ainda mais se considerarmos em incluir na referida análise, o arcabouço teórico acerca da chamada indústria cultural.
Como tem afirmado Corrêa (1999) cultura e cidade são conceitos imensamente relacionados. Frisa o autor que a cidade, a rede urbana e o processo de urbanização são ao mesmo passo, expressões e condições culturais e nisto, a cidade tem sido vista dentro do processo de renovação da abordagem cultural na geografia (a partir da década de 1970) como um complexo cultural per si. Os estudos que versam sobre a cidade têm se debruçado sobre várias ordens que compõem a realidade como a política e a econômica que buscam, dentre outros mecanismos, instituir “discursos” e “imagens”, com vistas à promoção e venda delas enquanto mercadoria para o turismo, fortalecendo em muitos momentos, as festas e manifestações populares de base tradicional ou “criando” eventos que propiciem a atração e circulação de pessoas e capital.
Deste modo, ainda que de forma preliminar nos propomos aqui a discutira relação cidade e cultura a partir das manifestações da indústria cultural, vivificadas através dos eventos festivais musicais, realizados periodicamente na cidade local de Guaramiranga. Situada em serra úmida, com qualidades ambientais típicas das grandes altitudes, constituindo-se como exceção no âmbito sertanejo que a circunda, Guaramiranga é a menor cidade do Estado do Ceará em população e sedia o “Festival Jazz e Blues”, já em sua 14ª edição e que se constitui como o evento de maior destaque no calendário festivo da cidade, ladeado também pelo Festival Nordestino de Teatro que celebrou em 2015 sua 22ª edição, dentre outras iniciativas de menor expressão.
Eventos nesses moldes figuram há pouco tempo no Ceará. Sabe-se que a partir da década de 1990, passam a ser desenvolvidas nesse estado, políticas públicas objetivando a descoberta de potencialidades das cidades. Nisto, a cultura tornou-se a estratégia principal para a divulgação de algumas cidades, onde a promoção de eventos como os festivais musicais tornaram-se correntes, como na cidade que compõe o campo empírico desta discussão. Discursos e imagens lastreados pela mídia passaram a “vendê-la” enquanto centro receptor para o turismo, o que de certo modo efetivou-se.
Seguindo uma lógica recorrente que se mostra latente em nível mundial, a tendência de produção de eventos festivos espetacularizados, também vem se caracterizando como uma tônica em muitos lugares do Brasil, incluindo-se os espaços citadinos de menor inferência, aqui tratados sob a nomenclatura de cidade local. Tais eventos segundo Castro (2010) têm sido utilizados pelos gestores públicos e por grupos econômicos como divulgadores de atributos culturais materiais e imateriais de muitas cidades, com o intuito de inscrevê-las no circuito turístico dos estados.
Nota-se que para alcançar tais propósitos, além da produção de eventos, largamente divulgados pela mídia, algumas cidades têm investido na valorização da questão cultural em documentos institucionais como os planos diretores urbanos, permitindo a construção de equipamentos materiais como teatros, praças, parques e imateriais, como os “slogans” e “marcas” que rebatizam os lugares, na tentativa de torná-los polos culturais por excelência. As cidades, de forma geral, têm buscado reforçar seu papel de centros de consumo, potencializando suas atratividades por meio do turismo, do entretenimento, de inovações culturais, que culminem em melhores qualidades de vida e do meio urbano.
Deste modo, acreditamos que a realidade vivida na cidade que compõe a presente análise, insere-se no contexto geral apresentado e aponta interesses para a sua discussão a partir do conceito de cultura, que transcende seu entendimento enquanto o conjunto de manifestações livres do espírito humano e a aproxima dos ditames do imperativo do consumo, tornando mercadoria os substanciais da arte, entre eles a Música, presente como vetor relevante em nossas reflexões.
CIDADE E CULTURA: APROXIMAÇÕES COM A MULTIDIMENSIONALIDADE DO TEMA
As várias dimensões do objeto aqui discutido, no qual se agrega a cidade, a cultura e arte, considerando as especificidades de suas formas de apropriação, exige o estabelecimento de um marco teórico que melhor explique a realidade em estudo. Essa construção nos coloca diante de teorias do conhecimento produzidas ao longo da história da Ciência que apresentam divergências na concepção do real.
Buscamos ancorar nossas reflexões nas teorias que concebem a realidade como um todo, prenhe de contradições em plena construção, intentando assim, compor um quadro teórico que compreenda o processo estudado dentro de uma totalidade historicamente construída, e, portanto, compreensível em suas contradições. Ou seja, pretende-se alcançar os objetivos desse estudo a partir da dialeticidade que envolve teoria e prática, reconhecendo a realidade como histórica, dinâmica e fruto de ações sociais.
A escolha de conceitos tem se mostrando um dos caminhos viáveis nesse estudo e tem demonstrado validade na intenção de entendimento do objeto, pois como enfatiza Lencioni (2008), todo conceito serve para se compreender a essência dos objetos, dos fenômenos, das leis e, nesse sentido, se constitui num instrumento de conhecimento e pesquisa. Para a autora, a construção de conceitos é um exercício do pensamento sobre o real e esse real existe independentemente de pensarmos sobre ele ou de termos conceitos acerca dos objetos do real; os conceitos são um reflexo dos objetos e que estes sempre estão em nexo com outros conceitos.
Nesse estudo, estão em primeira ordem os conceitos de cidade, cultura e indústria cultural, temporalidade e espacialidade. Acreditamos, no entanto, que outros podem se mostrar necessários ao longo do estudo, não sendo a rigidez na utilização dos conceitos uma tônica a seguir.
O primeiro dos conceitos, a cidade, é um conceito difuso. Seu sentido pode designar e ser utilizado para expressar desde pequenos aglomerados de duas mil pessoas a imensas aglomerações de milhões de habitantes. Convém atenuar a tensão que envolve a construção desse conceito, entendendo que embora seja um reflexo do real, ele é infinitamente mais pobre que o real, devendo o conceito refletir aquilo que é essencial, os aspectos essenciais, as relações essenciais, enfim, a essência do objeto. A construção de um conceito exige sempre um exercício de captura do que é essencial ao objeto que é motivo da reflexão, conforme coloca Lencioni (2008), e é nessa perspectiva que recorremos ao conceito de cidade nesse estudo, como múltiplo e variável.
Embora nunca tenha sido a cidade um conceito exclusivo da geografia, visto que muitas são as abordagens que a privilegiam, para essa ciência tem sido um desafio abordá-la pela perspectiva cultural. Assim como a própria geografia, a cidade é multifacetada e sua interpretação induz-nos a concebê-la desde como abrigo de memória, signos, arte e subjetividade como as descrevia Calvino (2000) em “Cidades Invisíveis” até na atualidade, como palco de produção e consumo, metamorfoseada como mercadoria, objeto de fetiches e realidades fictícias, de reinvenções, como assinala Soares (2008).
A dissociabilidade entre ela (cidade) e o modo de vida que nela opera (urbano) não é possível. A cidade como materialização das relações sociais é substanciada e portadora de uma natureza que é o urbano. Assim como apregoa a análise dialética, não pode haver separação completa entre forma e conteúdo (CAVALCANTI, 2001). Mais do que máquina a produzir e a consumir, habitar e circular, como especificavam os urbanistas da Carta de Atenas, a cidade é feita também de carne e de sangue, dos homens e mulheres que a habitam e a animam. Ou ainda, além da cidade produto e cidade reprodução, é também praticada, herdada, representada, carregada de sentido, (RACINE, 1996).
É importante compreendê-la como a marca maior do processo de transformação histórica do espaço pela sociedade, portanto, heterogênea e produto de contradições, exigindo dessa forma, o entendimento da constituição da luta de classes e das relações sociais de produção. Não se pode reduzir a cidade a uma simples localização e arranjo de lugares, uma vez que ela é a expressão de um modo de vida que está ligado não somente ao modo de produção econômica, embora sofra seu constrangimento, mas está ligado a todas as esferas da vida social: cultural, simbólica, psicológica, ambiental e educacional (CAVALCANTI, 2001).
Henri Lefebvre em a Revolução Urbana (1999) expõe elementos que diferem os conceitos de cidade e de urbano. Para ele, a cidade, é algo que existe desde a Antiguidade, desde a separação campo-cidade trazida pela divisão social do trabalho e a define como sendo a base material e arquitetônica, a forma concreta, prático-sensível que tomou o processo histórico de divisão sócio espacial. Enquanto o urbano compõe-se como a dinâmica à qual engendra o tecido social presente na cidade, a centralidade, as relações e atividades desenvolvidas por “seres concebidos, construídos ou reconstruídos pelo pensamento” (op. cit. p.54).
Porém, a problemática que envolve o estudo das cidades refere-se também o de sua classificação. O que são cidades médias, pequenas ou grandes? A grande maioria das abordagens toma como referência sócio espacial as metrópoles. Às cidades pequenas, coube adjetivá-las como lugares de “vida simples”, com existências atreladas ao limite entre os caracteres próprios tanto do modo de vida urbano quanto os do rural.
Algumas dessas cidades, no entanto, não deixam de ser percebidas pelos segmentos de mercado que as reinventam, a partir, inclusive da mercantilização da cultura, como é o caso explicitado nesta pesquisa. Como afirma Harvey (1996, p. 55), “acima de tudo a cidade tem de parecer como lugar inovador excitante, criativo e seguro para viver, visitar, para jogar ou consumir”.
Timidamente, a partir da segunda metade do século XX, as cidades pequenas passaram a desempenhar importantes papéis nas redes urbanas, e com isso, muitas perspectivas de estudos sobre esses lugares necessitam se desenvolver, a fim de prover a análise desses espaços antes colocados à margem da análise cientifica e geográfica. Dentre essas perspectivas, àquelas ligadas à perspectiva cultural são quase inexistentes, salvo os estudos que buscam debruçar-se sobre os aspectos das festas populares de cunho religioso, manifestação primeira dessa tipologia de cidades. Santos (1988, p.46), esclarece que “as cidades pequenas ou grandes, enquanto lugares, são singulares e uma situação não é semelhante a outra, e cada lugar combina de maneira particular variáveis que podem ser comuns a vários lugares”, singularidades estas que destacam os núcleos que compõem o campo empírico nesse estudo.
Nessa reflexão, a cidade tomada aqui é classificada como pequena, se considerarmos as nomenclaturas e critérios oficiais, porém optamos aqui pela utilização do termo local ao invés de pequena, primando o realce das especificidades de cada uma delas, objetivando assim, o entendimento de seu papel, sua área de influência, as integrações que a constituem internamente e externamente às redes, dentre outros aspectos que possibilitem apreende-la como cidade local, inclusive pela função a ela atribuída de epicentro de difusão cultural.
Se vista simplesmente pelo aspecto quantitativo, no qual são destacados números populacionais e sua distribuição, o núcleo em estudo pouco revela sobre si. Aponta aspectos típicos de áreas serranas, onde a predominância da população residente em estabelecimentos classificados como não-urbanos (sítios, fazendas) ressaltam a expressiva discrepância entre o total de habitantes situados em área urbana e os que residem em área rural. Registra-se sobre Guaramiranga algum destaque no tocante a ser, segundo o Censo 2010, o município que menos cresceu no Estado (27,11%) e que detém o menor número de habitantes, conforme dados abaixo (ver Tabela 1).
Cidades | Pop. Absoluta | Pop. Urbana (sede) | Taxa de Urbanização | Área(Km²) | Ano de Criação |
Guaramiranga | 4.164 | 1.416 | 59,92 | 100,9 | 1890 |
Por outro lado, se a pensarmos pelo aspecto qualitativo, torna-se evidente seu papel que extrapola os limites da macrorregião[1] onde se situa, calcado nos atributos que o configura como centro de produção e difusão cultural. É relevante assim, buscarmos compreender os mecanismos das politicas públicas de cunho cultural traçadas para os pólos regionais (aqui em estudo o Maciço do Baturité), afim de que se compreenda como a cidade local aqui estudada é assistida e de que forma se dão os rebatimentos dessas politicas em seu tecido urbano. Segue o mapa de localização do município (ver Figura 1).
Na intenção de estabelecer conceitos que clarifiquem o objeto em estudo, o de cultura é o que apresenta maior grau de polissemia entre os vários campos do conhecimento humano, e não achamos adequado (a exemplo de renomados estudiosos da abordagem cultural em geografia), consagrá-lo na fixidez ontológica de um conceito, mas de flexibilizá-lo como uma ideia que tem orientado as reformulações dos estudos culturais em geografia a partir da década de 1970. É aceitável aqui a reflexão de Bonnemaison (2002, p. 86) de que,
Dedica-se hoje uma atenção nova à irredutibilidade do fato cultural. Este não é mais visto como a superestrutura vaga e fluida na qual se tenta encerrar uma concepção bastante materialista. A cultura hoje tende a ser compreendida como uma vertente do real, um sistema de representação simbólica existente em si mesmo e, se formos ao limite do raciocínio, como uma “visão de mundo” que tem sua coerência e seus próprios efeitos sobre a relação da sociedade com o espaço.
Reconhecendo a cultura, portanto, para além da simples produção de objetos materiais de “formas materiais, mas um sistema cultural (valores morais, éticos, hábitos e significados [...], um sistema simbólico (mitos e ritos [...]) e um sistema imaginário” (ZANATTA, 2008, p. 254), a geografia tem se imbuído nas últimas décadas de um importante papel na apreensão da dimensão simbólica dos lugares. A possibilidade para o desenvolvimento desse tipo de análise apoia-se no arcabouço teórico trazido com a renovação da geografia pelas humanidades, que toma para si questões desta natureza, apresentando um grande potencial para reparar o peso excessivo geralmente dado à estrutura econômica na explicação tradicional da geografia humana. Como enfatizam Rosendahl e Corrêa (1999, p. 8-9):
[...] as explicações em voga, fortemente calcadas em uma perspectiva econômica não são capazes de dar conta dos processos, formas e interações espaciais, portadoras de uma objetividade, mas também geradoras de uma avaliação que culmina com diferentes intersubjetividades.
As cidades como expressão urbana do espaço, exprimem também um valor simbólico que vai alimentar o conjunto de visões acerca de sua organização, possibilitando por vez a criação de aspectos subjetivos que incidem direta ou indiretamente na forma de percebê-lo e identificá-lo. A inteligibilidade da produção espacial da cidade em sua dinamicidade se reformula para além da leitura das estruturas econômicas e se complementam pela significância da vertente cultural em sua abordagem.
A realização de eventos com vistas a promover o desenvolvimento de cidades locais, tônica nesse estudo, torna-se um objeto passível de ser analisado no contexto em que a cultura se eleva ao status de vetor diferencial da cidade em voga, porém enxergada como conjunto de ações cooptadas pela lógica de mercado, e não como manifestação nata que particulariza os lugares.
Deste modo, o conceito de Indústria Cultural[2]se tornou basilar nessa reflexão. Já que estamos diante de uma “reinvenção” dos lugares, tendo-se a cultura como estratégia principal de distinção dos mesmos. De forma sucinta, o conceito de indústria cultural designa a ideologia da prática do consumo e da produção em série de arte. De outra forma, pode compreendê-la a partir da incorporação dos bens culturais à lógica da mercadoria e das consequências mais amplas dessa incorporação, tanto para a cultura quanto para a consciência dos indivíduos. Trata-se, grosso modo, da mercantilização da arte e da cultura a partir da lógica da produção capitalista, transfigurando-as em “mercadorias culturais”, ou ainda, como a submissão da arte às regras do mercado.
Conforme afirma Adorno (2009) a cultura é uma mercadoria paradoxal. É de tal modo sujeita à lei da troca que não é nem mesmo trocável; resolve‐se tão cegamente no uso que não é mais possível utilizá-la. Funde‐se por isso com a propaganda, que se faz tanto mais onipotente quanto mais parece absurda, onde a concorrência é apenas aparente. Os motivos, no fundo, são econômicos. É evidente que se poderia viver sem a indústria cultural, pois já é enorme a saciedade e a apatia que ela gera entre os consumidores. Por si mesma ela pode bem pouco contra esse perigo. A publicidade é o seu elixir da vida.
Na indústria cultural tudo se torna negócio. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais (ADORNO, 2009). É evidente, no entanto, que as nuances que compõem o conceito vão bem além na profundidade reflexiva de Adorno na construção do referencial. O que buscamos realçar é a atualidade da reflexão do filósofo e sua utilidade na análise das manifestações culturais regidas pelo mercado. No entendimento do processo cooptação da arte e da cultura pelo capital, transfigurado, inclusive, nas diversas formas de espacialização de eventos culturais nas variadas escalas geográficas, como por exemplo, nesse estudo, os festivais de música realizados em cidades locais do país. Manito apudReinaldo (2011, p. 143) enfatiza que,
Além das festas, os festivais estão também cada vez mais presentes como objetivo na política global de uma coletividade. Os festivais são a principal ferramenta para vender uma cidade, mas o importante é que o festival se baseia num ponto forte da cidade em questão ou que gere uma nova singularidade.
A aproximação do componente simbólico das cidades locais, antes sem visualidade nas teorias do estudo geográfico tem se mostrado viável a partir da reflexão sobre a mercantilização da arte e da cultura, aludida no conceito de indústria cultural. A cidade de Guaramiranga, apesar de guardadas suas particularidades, tem se revestido num campo empírico importante nesse tipo de discussão. A mesma na última década tem manifestado uma consistente relação com a “indústria da cultura”, como vistas à construção de atributos que a encarecem como produto turístico.
Guaramiranga carrega o signo de “Suíça Cearense” ou ainda “Cidade das Flores”, e, recentemente, no ano de 2011, o Governo do Estado sancionou a Lei 14.899/11 que a confirma como a “Capital do Jazz e Blues do Ceará”. Nessa cidade, além do festival Jazz e Blues aqui discutido, outros eventos também são realizados, como o Festival Nordestino de Teatro, e sobre eles alguns estudos já foram efetivados. Reinaldo (2011) tem em seus artigos, relatado sobre os eventos na cidade e assim descreve,
[...]O café foi sua grande riqueza econômica, no passado, e o turismo cultural, a base da sua economia atual. A cultura como desenvolvimento é o traço fortalecido pela realização de festivais. Mas esse perfil cultural de Guaramiranga é uma tradição, como ressalta a ex-secretária da Cultura da cidade, Nilde Ferreira [...]Por muitos anos, Guaramiranga foi uma cidade de muitas flores, uma rua e dois teatros. Essa configuração espacial denota uma política e uma poética que privilegiam a cultura e as artes como expressões cotidianas. E aqui talvez seja importante frisar o caráter da cidade como lugar do acontecer histórico, das micro-relações sociais [...] (REINALDO, 2011, p. 142-143).
Sobre a tradição enquanto sustentáculo do impulso às políticas culturais em Guaramiranga, a ex-secretária de cultura, Nilde Ferreira citada por Reinaldo (2011, p. 142) explica que,
A origem do perfil cultural de Guaramiranga está muito ligado às culturas agrícolas da cana-de-açúcar e do café. Nossos ancestrais artistas, nasceram e se criaram (inclusive artisticamente), nos canaviais e nos roçados de café; onde improvisavam versos para gerar divertimento e aliviara dura carga de trabalho. As mulheres se educavam nas cozinhas dos fazendeiros, escutando as cantigas das tradições européias da boca das patroas holandesas e portuguesas. A essas cantigas, deram sua interpretação e daí, nasceram nossos tradicionais “dramas”.
Ainda sobre a realização de festivais, a autora diz que,
Os festivais ajudam a consolidar a ideia de desenvolvimento cultural que Guaramiranga tem como norteadora de seus rumos e papéis no estado. Ao mesmo tempo em que difundem os valores da cidade junto aos mais diversos públicos, colaboram para que a cidade esteja sempre em contato com outros valores culturais e a possibilidade de crescimento que esse diálogo, essa troca pode permitir. Como ícones da atividade turística, possibilitam que Guaramiranga se torne uma referência de turismo cultural no Brasil, com público qualificado e dinamizam a atividade turística que, atualmente, apesar de todas as vulnerabilidades, é a mais sólida atividade econômica do município (REINALDO, 2011, p. 144).
Amélia Mamede, executiva da empresa realizadora do Festival Jazz e Blues e outrora produtora cultural de festivais como o Festival Nordestino de Teatro, relata no artigo de Reinaldo (2011) suas impressões acerca da dinamicidade vivida pela cidade. Segundo a produtora,
O impacto econômico, social, cultural, na cidade é perceptível, e fortemente apoiado pela comunidade, partícipe e protagonista. Evidentemente, com conflitos, desafios postos e a serem vivificados e vencidos. Percebeu-se, de 2000 até 2009, um aumento de oito estabelecimentos hoteleiros e dois restaurantes para 23 e 24 respectivamente.[...] É possível promover a pluralidade cultural, o acesso a diferentes produtos, gerando novas significações, além de incentivar novos negócios, criar novas ocupações e descentralizar a economia através da cultura e da economia criativa por ela gerada.
Se a vocação cultural do lugar é apontada como um produto da tradição, que inclusive, ancora o revigoramento das políticas culturais vividas na última década pelos segmentos citados, como justificar a substituição dessas representações “tradicionais” por formas próprias de uma cultura globalizada? Ou seja, como justificar que a tônica dos festivais de música (nos quais predominam a forma instrumental, especificamente o Jazz, o Blues, entre outros) sejam atualmente, elementos construtores de representações que refletem imagens/identidades da cidade local em estudo?
Guaramiranga, por exemplo, surpreende ao se visualizar na tabela abaixo, o número de instrumentos institucionais e equipamentos urbanos que dispõe frente às demais cidades da região do Maciço do Baturité e no conjunto de cidades locais cearenses (ver Tabela 2).
MUNICIPIO | CULTURA - 2014 | TURISMO - 2014 | |||||||||||||||||
Sistema Municipal | Plano de Cultura | Conselho de Cultura | Fundo de Cultura | Museus | Teatro/Anfiteatro | Biblioteca Pública | Centro Cultural | Escola de Artes | Grupo Folclórico | Banda de Música | Grupo de Música | Grupo de Dança | Grupo de Teatro | Hotéis/Pousadas | Número de leitos | Restaurantes | Trilhas demarcadas | Guias capacitados | |
Acarape | N | N | S | N | 0 | 1 | 1 | 1 | 0 | 3 | 0 | 0 | 0 | 1 | 2 | 30 | 3 | 1 | N |
Aratuba | S | S | S | N | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 10 | 1 | 4 | 1 | 1 | 6 | 110 | 6 | 3 | S |
Aracoiaba | N | N | N | N | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 2 | 2 | 3 | 1 | 0 | 1 | 20 | 4 | 0 | N |
Barreira | N | N | N | N | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 2 | 30 | 5 | 0 | N |
Baturité | S | N | S | N | 2 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 2 | 1 | 1 | 9 | 140 | 10 | 0 | N |
Capistrano | S | N | S | N | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 2 | 20 | 4 | 0 | N |
Caridade | S | N | S | N | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 2 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 10 | 8 | 0 | N |
Guaiúba | N | N | N | N | 0 | 2 | 1 | 1 | 1 | 3 | 1 | 4 | 3 | 1 | 1 | 50 | 15 | 4 | S |
Guaramiranga | S | S | S | S | 1 | 2 | 1 | 1 | 2 | 7 | 0 | 7 | 0 | 7 | 28 | 600 | 23 | 4 | S |
Itapiúna | S | N | S | N | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 3 | 0 | 4 | 1 | 2 | 4 | 30 | 13 | 0 | N |
Mulungu | S | S | S | S | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 0 | 2 | 1 | 6 | 120 | 7 | 0 | N |
Ocara | N | N | S | N | 1 | 3 | 1 | 0 | 1 | 6 | 1 | 2 | 1 | 1 | 4 | 80 | 7 | 2 | N |
Pacoti | S | N | N | N | 0 | 2 | 2 | 1 | 1 | 3 | 1 | 4 | 2 | 2 | 8 | 300 | 10 | 1 | N |
Palmácia | N | N | N | N | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 2 | 20 | 5 | 1 | N |
Redenção | S | N | N | S | 2 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 4 | 70 | 6 | 0 | N |
TOTAL REGIÃO | - | - | - | - | 11 | 13 | 16 | 6 | 9 | 44 | 12 | 32 | 13 | 19 | 80 | 1630 | 126 | 16 | - |
As ações que têm sido implementadas, como a realização sistemática de eventos, demonstram a existência de uma política estatal cearense, atuante desde o início da década de 1990 (voltada à descoberta e ao desenvolvimento das potencialidades das cidades, através de vultosos incentivos para programar o turismo no Ceará) vingou para algumas cidades locais, dentre elas, Guaramiranga e em menor escala para Viçosa do Ceará. Os governos municipais aderiram a essa proposta, desenvolvendo ações de políticas culturais de forma a transformar as cidades em lugar “vendável”, apoiados pelo governo do Estado para a criação, atração e circulação no turismo em Guaramiranga, tendo como estratégia a cultura (ALVES, 2011).
A cidade como palco da sociedade do espetáculo e como circunscrição da “indústria cultura” pós-moderna, é vendida de duas formas: como um pacote comercial maquiado de arte e cultura, e assegurado pelo discurso ideológico de planejamentos micro-isolados, que atendem a lucratividade e o bem-estar de pequenas parcelas privilegiadas da sociedade e, em fragmentos que são os locais e espaços subsidiados por grandes empresas, que ao incentivarem o acesso à cultura elas legitimam e fortalecem sua marca. Neste quadro temos a cidade como uma mercadoria que pode ser comercializada integralmente ou de forma parcelada (SOARES, 2008, p. 3).
A política de eventos é uma ação marcante nessa política de venda das cidades. Garcia apudOliveira e Santos (2010), afirma que o movimento de passagem do espaço mercadoria à cidade mercadoria situa-se no marco temporal dos anos de 1990, quando em função da reestruturação econômica mundial e da fluidez espacial de empresas e capitais, os governos municipais intensificaram suas políticas de “venda” das cidades. Para a autora:
Este modelo produz representações que obedecem a uma determinada visão de mundo, uma série de imagens-síntese sobre a cidade é construída, assim como são criados discursos referentes à cidade, de forma a encontrar na mídia e nas políticas de city marketing os instrumentos para a difusão e a afirmação desse modelo. (GARCIA apudOLIVEIRA; SANTOS, 2010, p. 4).
A cidade de Guaramiranga aparece assim como exemplo da reprodução de um fenômeno mundial de reestruturação econômica e deste modo, se faz importante que a ciência geográfica busque desvelar as especificidades desse processo, dentre elas as formas como essa cidade é representada ou “reapresentada”, através da mídia[3]. Guaramiranga, por exemplo, é largamente divulgada como o principal destino dos turistas que buscam afastamento da atribulação das festas carnavalescas em função do Festival Jazz e Blues.
Os produtos da extensa veiculação midiática dessa cidade já podem ser verificados. A forte especulação imobiliária vem promovendo a ocupação de áreas da APA do Maciço do Baturité. A cidade tem seu sítio nessa área de proteção. Outro aspecto é o expressivo domínio do capital estrangeiro (alemão, português, italiano) no ramo da hotelaria, que também tem sido um aspecto marcante do lugar. Ferreira (2006, p.4) em pesquisa que analisou os impactos sociais, econômicos e culturais do turismo em Guaramiranga aponta que,
O centro da cidade urbanizado foi substituído por equipamentos turísticos e por casas de veraneio bem localizadas e com boa infra-estrutura. Houve uma comercialização injusta de terrenos, alguns moradores venderam suas casas para os visitantes a preços bem abaixo do mercado e vivem atualmente em pontos periféricos do município ou mesmo em favelas na capital. A especulação imobiliária dos terrenos além de causar esses efeitos sociais perversos, agrediu o meio ambiente, mesmo com a fiscalização da SEMACE, o órgão responsável pelo monitoramento ambiental da região.
Como dito anteriormente, a utilização de um conceito serve para que se compreenda a essência dos objetos estudados, dos fenômenos; são reflexos da realidade e sempre estabelecem nexos com outros conceitos para se validarem. Deste modo, achamos relevante recorremos ao par conceitual espacialidade e temporalidade para entendermos o conjunto de relações que se desenvolve nas cidades e nos eventos que constituem o campo empírico da pesquisa.
Na experiência de caminharmos nas ruas da cidade em voga nos dias de semana, em períodos de baixa estação, longe do olhar vislumbrado do turista, engendramos num cotidiano bastante simplório típico das cidades locais, onde os habitantes se reconhecem facilmente e onde a relação com o rural ainda é marcante. As praças, as ruas são abrigo para os núcleos de conversação.
Percebe-se a existência do tempo para a confabulação entre amigos. A repetição dos trajetos em trechos urbanos próximos e limitados faz do habitante pedestre, que reconhece a cidade, onde cada rua, cada esquina, é lugar de lembrança, de experiência, do vivido. Diferente da metrópole, as ruas não são apenas lugares de passagem e circulação, há toda uma vida de relações manifestada, é lugar (topia) do encontro, sem o qual não existem outros encontros possíveis nos lugares (LEFEBVRE, 1999).
Há, deste modo, um tempo para o cotidiano (a vida no dia-a-dia), produzido no urbano “precário” e outro tempo para o evento, momentâneo, para o imediato, ou seja, para os festivais, objetivados aqui. Entender, pois, as cidades como compósitos de espacialidades e temporalidades é reconhecer que o processo de produção do urbano gera formas, conteúdos e representações em múltiplos níveis de investigação (ABREU, 2005).
Para Santos (2009, p. 22), a espacialidade pode ser explicada "a partir da noção de espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações[onde] podemos reconhecer suas categorias analíticas internas" (2009, p.22), e esses espaços referem-se à configuração e à divisão territorial, o espaço produzido, e o espaço das manifestações sociais, culturais e religiosas, por exemplo. Para Santos (2009), os recortes espaciais podem ser feitos em consonância com as problemáticas existentes em escalas do lugar.
As cidades, por menores e pontuais que sejam, incluem-se na totalidade global, segundo ritmos e processos singulares capazes de formalizar no espaço continuo uma infinidade de espaços diferenciados. Os conceitos de espacialidades e temporalidades se mostram úteis para se pensar sobre as dinâmicas dessa inclusão. No caso especificado neste estudo, a tentativa de entendimento acerca das temporalidades cotidianas e àquelas ditadas pelos eventos tem se mostrado relevante na apreensão da realidade da cidade analisada. Sobre esses conceitos, Salgueiro (2005, p.100) explica que,
Existe um espaço palco ou contentor, mas várias espacialidades resultantes da reprodução e apropriação daquele mesmo espaço, o que significa dar-lhe novas formas e imbuí-lo de sentidos associados ao seu uso por cada indivíduo ou grupo. [...] Existe o tempo longo e contínuo da sucessão linear dos acontecimentos históricos e o tempo desconectado, com diferentes ritmos, intensidades e valores que se cruzam, as temporalidades também elas produzidas e diferenciadas.
Ainda nesse entendimento, para Abreu (2005), os processos sociais que se manifestam no urbano, se dão em variadas escalas espaciais (dentre elas, as mais particulares) e estão submetidos a múltiplas escalas temporais, carecendo de serem entendidas no contexto das realidades locais. Para o autor, se o tempo do evento, do acontecimento, do imediato, é aquele que mais nos chama a atenção, por estar mais próximos de nós, por se materializar em paisagens e representações que são rapidamente captadas pelos nossos sentidos, por alterar a nossa vida quotidiana, ele só adquire significado maior se o inserirmos em tempos mais espessos, tempos braudelianos, tempos da conjuntura e da longa duração. E estes por sua vez, só podem ser corretamente compreendidos quando relacionados com as escalas espaciais. Isto porque o que nos interessa é o tempo social, e este só faz sentido relacionado ao espaço.
CONCLUSÕES PRELIMINARES
Há aproximadamente seis décadas, Walter Benjamin publicou a Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, na qual parecia antever as transformações na forma de se perceber a arte a partir da possibilidade de sua reprodução técnica. Segundo o autor, a arte em si sempre foi reprodutível, artistas tem a imitação como forma de perpetuá-la, mas asseguravam a permanência de sua aura, sua essência, diferentemente da reprodução técnica que a vulgarizou, desvalorizou.
Não sabia Benjamin, a que ponto essas transformações estabeleceriam novos padrões estéticos para a arte e culminariam rapidamente no estabelecimento da “arte industrializada”, alinhada fundamentalmente ao mercado, que a tornou objeto massificado e a submeteu aos imperativos da acumulação capitalista, que a tudo tende a homogeneizar como mercadoria, compondo a lógica da chamada por Theodor Adorno de Indústria Cultural.
Deste modo, submetidas a uma nova servidão as regras do mercado capitalista e a ideologia da Indústria Cultural, baseada na ideia e na prática do consumo de “produtos culturais” fabricados em série (CHAUÍ, 1995), as artes tornam-se variáveis relevantes de reinvenção das cidades, palco e mercadoria da acumulação capitalista. Como afirma Soares (2008), a cidade, campo de estratégias do capital se transforma sob o redirecionamento da indústria cultural em laboratório de testes, que visam buscar a maneira mais eficiente de se obter lucratividade. Arantes apudSoares (2008) corrobora enfatizando que a cultura hoje em dia não é o outro ou mesmo a contrapartida, o instrumento neutro das práticas mercadológicas, mas é a parte decisiva do mundo dos negócios e o é como grande negócio.
As grandes cidades já denotam há tempos a expressividade da cultura enquanto mercadoria. Para Cosgrove (1998) as cidades, e em especial os grandes centros urbanos, se mostram com mais potencial a esses processos e mudanças na vida e na mercantilização das práticas culturais tradicionais. Grandes eventos de abrangência mundial marcam as cidades, pois nelas, estão dadas todas as possibilidades ou condições de continuidade do processo de produção das relações de produção material no nível global (FREIRE, 2012).
A arte e a cultura são colocadas no jogo de legitimação das cidades enquanto centros de consumo. De acordo com Soares (2008), a própria arte e cultura no jogo econômico é revestimento e signo de consumo, signos esses em suas novas significações fetichizadas suplantam o nível do sensível e são artificializadas junto ao consumo da cidade, promovidas a partir de desenvolvimento sempre crescente, das técnicas de publicidade. Lefebvre citado por Soares (2008, p. 4) descreve sobre a ação da publicidade e afirma:
A publicidade exerce função de ideologia, [...]torna-se a poesia da (pós) Modernidade, o motivo e o pretexto dos espetáculos mais bem-sucedidos. Ela captura a arte, a literatura, o conjunto dos significantes disponíveis e dos significados vazios. Torna-se arte e literatura, apoderar-se das migalhas da Festa a fim de reconstituí-las para seu próprio uso. Assim como faz a mercadoria, que ela empurra até as últimas consequências da sua lógica, confere a todo objeto e a todo ser humano plenitude da dualidade e da duplicidade: o duplo valor como objeto (valor de uso) e como mercadoria (valor de troca), organizando cuidadosamente a confusão entre esses “valores” em proveito do segundo deles.
A partir deste entendimento, temos objetivado refletir sobre a atuação da indústria cultural nos espaços urbanos de menor escala, ou seja, as pequenas cidades ou cidades locais. É inegável a abrangência dessa tipologia de análise em várias áreas do conhecimento humano, considerando o nível escalar dos grandes centros urbanos, inclusive sobre a perspectiva do city marketing. Na geografia é irrelevante, ainda mais se considerarmos a obscuridade concedida aos estudos da pequena cidade durante muito tempo.
Muitas dessas cidades pouco privilegiadas na análise cultural de toda ordem, agora passam a considerar a arte e cultura como estratégias possíveis ao seu desenvolvimento, seja apostando na revitalização de moldes culturais tradicionais, seja, “inventando” tradições, no conceito de Hobsbawm (1984). Guaramiranga, campo empírico em tela, passa a apostar, inicialmente na política de promoção de eventos, em especial os festivais de Música que se consolidam a cada ano como integrantes do calendário de eventos culturais tanto do Estado do Ceará como em nível nacional e tem sido desafiador aproximarmos uma análise da realidade desse lugar dentro da abordagem cultural pretendida pela geografia, reconhecendo o cotidiano dos lugares em plena transfiguração, isto é, como objeto mensurável na escala do perceptível, do sentido.
A oferta da arte e da cultura nos moldes mercadológico, análogo aos grandes centros urbanos antes descritos (guardadas as devidas proporções), tem obtido relativo êxito, se nos é permitido já anteciparmos essa afirmativa. A análise do aspecto da atração de pessoas pelos eventos tem funcionado para as cidades. Não se desconsidera, no entanto, a visibilidade de relevantes impactos sociais e ambientais para a implementação dessa lógica do capital, ligada ao consumo das/nas cidades.
O número de visitantes que excede o total das populações nativas a cada ano é expressivo. Guaramiranga, que representa o menor aglomerado urbano do Estado do Ceará, com menos de 2000 habitantes assentados na sede do município recebendo, em uma estimativa do poder público, mais de 15000 visitantes durante o festival Jazz e Blues, nos encaminha a pensar o evento como um construtor de um campo simbólico ímpar (imagens, imaginários) para o lugar, bem como nos instiga a pensar sobre a existência de espacialidades e temporalidades para os vários momentos da vida da cidade, já que nem todo dia é dia de festa e que por isso tem sido possível a observância de uma variedade de dinâmicas, expressas em ritmos de tempos e espaços na cidade.
REFERÊNCIAS
ABREU, Mauricio de. Cidades: Espacialidades em temporalidades. In: CARLOS, A.F. A.; LEMOS, Amália I. G. (orgs.). Dilemas Urbanos. Novas Abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2005. p. 97-98.
ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. Paz e Terra. São Paulo, 2009.
ALVES, Lilian Paula de S. Guaramiranga: O alinhavar de percepções e sentidos sobre a cidade. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/issue/view/610. Acesso em: 20 jun. 2012.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Disponível em: http://www.ideafixa.com/wp-content/uploads/2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf. Acesso em: 10 maio 2015.
BONNEMAISON, Joël. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002. p. 83-132. (Série Geografia Cultural).
CASTRO, Janio R. B. de. A Proposição do conceito de centralidade cultural e a promoção de eventos festivos como estratégia de turistificação de pequenas cidades: reflexões a partir de alguns estudos de caso. In: LOPES, Diva M. F; HENRIQUE, Wendel (org.) Cidades Médias e Pequenas: Teorias, conceitos e estudos de Caso. Salvador: SEI, 2010.p.118-120.
CAVALCANTI, Lana de Souza. Uma Geografia da Cidade – elementos da produção do espaço urbano. In: CAVALCANTI, Lana de Souza (org.). Geografia da Cidade. Goiânia: Alternativa, 2001.p. 11-32.
CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CHAUÍ, Marilena. Indústria cultural e cultura de massa. Convite à Filosofia. Ática, São Paulo, 1995.p. 422-427.
CORRÊA, Roberto L. Geografia Cultural: Passado e Futuro. In: CORRÊA, R. L e ROSENDAHL, Z. (orgs.). Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.p. 49-58.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FERREIRA, Iane Carolina R. Os impactos sociais, econômicos e culturais do turismo em Guaramiranga-Ce. Revista Turismo. Jun/06. Disponível em: http://www.revistaturismo.com.br/artigos/guaramiranga.html. Acesso em 14 ago. 2015
FREIRE, Ana Lucy Oliveira. Cultura como mercadoria e prática socioespacial na cidade contemporânea. Anais do Encontro Nacional de Geografia, 2012. Disponível em: http://www.eng2012.org.br/lista-de-artigos?download=739:texto-eng2012&start=140. Acesso em: 14 ago. 2015.
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, NERU, n. 39, p. 48-64, 1996.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
KONG, Lily. Música Popular nas análises geográficas. In: CORREA, R. L. e ROSENDAHL Z. (orgs.) Cinema, Música e Espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.p.129-175.
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
LENCIONI, Sandra. Observações sobre o conceito de cidade e urbano. Revista GEOUSP. n.24, 2008. Disponível em: http://geografia.fflch.usp.br/publicacoes/Geousp/Geousp24/Artigo_Sandra.pdf. Acesso em: 08 set. 2015.
OLIVEIRA, Anita L.; SANTOS, Patrícia dos. Música e imaginários na produção da cidade: a vitalidade complexa da lapa carioca. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, vol. XIV, nº 331 (95). Disponível em: http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-331/sn-331-95.htm. Acesso em: 19 jul. 2015.
RACINE, Jean-Bernard. Entre o paradigma crítico e as visões humanistas. In: DERICKE, P. H. Huriot, J. M., PUMAIN, Denise (organisateurs). Penser Ia ville. Théoriesetmodeles. Paris: Anthropos, 1996 (Tradução Livre).
REINALDO, Maria Rejane. Festival nordestino de Teatro de Guaramiranga – FNT: O Nordeste é o mundo. O mundo é aqui. Ou afetos e impactos na cidade das flores. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/6877/4732. Acesso em: 20 jul. 2015
ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, R. L. Apresentação. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, R. L. (Orgs.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.p.7-13.
SALGUEIRO, Tereza B. Espacialidades e Temporalidades Urbanas. In: CARLOS, A. F.; LEMOS, A. I. G. (Orgs.). Dilemas Urbanos. Novas Abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2005.p.99-104.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1988.
SOARES, Antonio M. de C. O Merchandising urbano: cidade-mercadoria, arte e indústria cultural. Anais do I Seminário Arte e Cidade, UFBA, 2008. Disponível em: <http://www.contatosociologico.crh.ufba.br/site_artigos_pdf/O%20MERCHANDISING%20URBANO%20cidade%20mercadoria,%20arte%20e%20ind%C3%BAstria%20cultural.pdf>. Acesso em: 12 set. 2015.
ZANATTA, Beatriz Aparecida. A Abordagem Cultural na Geografia. Temporis(ação) (UEG), v.1, p. 249-262, 2008. Disponível em: https://www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/article/view/5995. Acesso em: 06 ago. 2015.
Notas