A Copa do Mundo 2014 em Natal (RN - Brasil): Um estudo sobre a percepção dos moradores
The 2014 World Cup in Natal (Brazil): A study concerning the perception of dwellers
A Copa do Mundo 2014 em Natal (RN - Brasil): Um estudo sobre a percepção dos moradores
Research, Society and Development, vol. 5, núm. 1, pp. 49-76, 2017
Universidade Federal de Itajubá

Recepção: 26 Março 2017
Aprovação: 12 Abril 2017
Resumo: Hospedar um megaevento promove transformações na paisagem do local onde ele acontece e impactos que incidem sobre a vida das populações que ali habitam. Logo, além de entender as importantes questões técnicas que norteiam tais intervenções, é essencial que as pesquisas nesse campo investiguem os processos psicossociais que as envolvem e o modo como as pessoas percebem esses empreendimentos. Em Natal (RN-Brasil), a participação como subsede da Copa2014, mais do que a construção do complexo Arena das Dunas, trouxe mudanças em seu entorno imediato e na infraestrutura da Região Metropolitana, com influencias na estrutura de serviços/equipamentos e na mobilidade urbana. Partindo desse quadro geral, esse artigo tem como objetivo investigar as percepções de moradores da cidade do Natal sobre os impactos socioambientais ocasionados pela realização da Copa do Mundo 2014 na cidade. Para tanto, enfoca a percepção dos habitantes da cidade com relação ao evento, os significados psicológicos que eles associam a tais mudanças e as expectativas em relação a elas. A pesquisa utilizou um questionário composto por dados sociodemográficos, redes semânticas e dez variáveis associadas a mudanças socioambientais relativas ao evento: aparência (estética), condições de emprego, espaço público, imagem da cidade, lazer, limpeza urbana, serviços de saúde, mobilidade urbana, transporte público e turismo. Participaram 214 habitantes com idade entre 15 e 74 anos e instrução média ou superior (85%). Os dados coletados mostraram que: turismo, emprego e imagem da cidade receberam avaliação elevada em relação ao período da Copa e avaliações negativas após o evento; mobilidade urbana teve avaliação negativa nos dois momentos; serviços básicos (saúde, segurança e transporte público) obtiveram as menores médias; as categorias economicamente significativas tiveram avaliação positiva para o período do evento. Na Rede Semântica os termos turismo, emprego e futebol foram os mais evocados, seguidos por corrupção, violência e desapropriações; além disso, repetindo o discurso midiático e como esperável para uma cidade turística, as palavras turismo e emprego aparentaram estar diretamente associadas. Verificou-se, ainda, que a percepção dos participantes variou em função de sua instrução e de seu acesso à informação, e que as pessoas mais instruídas e com acesso a canais de informação alternativos, como internet, tiveram posicionamento mais crítico em relação às mudanças. A discussão final relacionou os resultados obtidos a conceitos psicossociais mais amplos, como apego ao lugar e identidade de lugar.
Palavras-chave: Copa do Mundo de Futebol 2014, Transformações socioambientais, Significado do ambiente, Psicologia Ambiental.
Abstract: Hosting a mega-event promotes transformation in the local’s landscape and impacts the life of its population. Thus, in addition to understanding the important technical issues that guide such interventions, it is essential that research in this field investigate the psychosocial processes involved and the manner in which people perceive these endeavors. The participation of Natal (Brazil) in the 2014 FIFA World Cup brought more than the construction of the Arena das Dunas complex: it changed its own immediate surroundings and the infrastructure of the Metropolitan Region, interfering with the service/equipment structure and urban mobility. Using this context as a starting point, this article investigates the perceptions of residents of the city of Natal about the social and environmental impacts caused by the 2014 World Cup in the city. For this, it focuses on the inhabitants’ perception, the psychological meanings they associate with these changes, and their expectations. The research used a questionnaire, which included socio-demographic data, semantic networks and ten variables associated with socio-environmental changes related to the event: appearance (aesthetics), employment conditions, public space, city image, leisure, urban cleaning, health’s services, urban mobility, public transport and tourism. We interviewed 214 inhabitants aged between 15 and 74 years old who had reached medium or higher education (85%). The data collected showed that: (a) tourism, employment and the image of the city received high evaluation during the 2014 FIFA World Cup and negative evaluations after the event; (b) urban mobility was negatively evaluated at both times; (c) basic services (i.e. health, safety and public transport) obtained the lowest averages; (d) the economically significant categories had a positive evaluation during the event. In the Semantic Web the terms tourism, employment and soccer were the most frequently employed, followed by corruption, violence and expropriations; in addition, the words tourism and employment appeared to be directly associated, which was an expected result due to the media discourse as well as the fact the Natal is a sought-after tourist destination. It was also noted that the participants' perception was associated to their education and their access to information, and that more educated people with access to alternative information channels, such as the Internet, were more critical about the changes. The final discussion explored the relationship between results and broader psychosocial concepts, including attachment to place and place identity.
Keywords: 2014 World Cup, Environmental changes, Meaning of environment, Environmental Psychology.
1. Introdução
Apesar de sua duração reduzida (no máximo em torno de 30 dias), os megaeventos geralmente envolvem longas etapas preparatórias (podem abarcar vários anos) e, de acordo com a literatura (HALL, 1992; HILLER, 2006; PREUSS, 2008; AQUINO, FERRARI, 2013; MACHADO, RUBIO, 2013; SANTOS JUNIOR, 2015), induzem transformações nas cidades-sede, envolvendo, entre outros, reestruturação urbana, aumento da necessidade de serviços (de saúde, segurança, transporte, recepção dos turistas) e formação de trabalhadores. Tais alterações induzem mudanças na definição de zonas urbanas utilizáveis e no uso dos espaços públicos e privados da cidade, impactando direta e indiretamente a vida de seus habitantes.
A confirmação de Natal-RN como uma das cidades brasileiras que se tornariam subsedes da Copa2014 não fugiu a essa regra geral, tendo promovido alterações urbanas que envolveram desde o local do evento (construção do estádio) e seu entorno imediato (serviços e equipamentos inseridos) até a infraestrutura urbana na Região Metropolitana (RMNatal) e sua conexão com municípios circunvizinhos, com o país e com o mundo. A polêmica em torno do evento, que começou com a demolição do estádio ‘Machadão’ para a construção do complexo ‘Arena das Dunas’, se estendeu a questões como desapropriação de áreas para implementação das obras, dificuldades na mobilidade urbana para possibilitar as mudanças exigidas, comparação entre a quantidade de investimentos públicos mobilizados e os recursos destinados a outros setores (como saúde e educação).
Com base neste contexto e em investigações anteriores (ELALI, 2012), a pesquisa apresentada neste paper (GURGEL et al, 2015) teve como objetivo entender a percepção dos habitantes da cidade sobre os principais impactos socioambientais das ações empreendidas em função da Copa Os objetivos específicos ligaram-se a: compreender tecnicamente as mudanças socioambientais promovidas pelo evento, com base nas declarações de seus idealizadores; entender os significados psicológicos associados pelos moradores ao evento e às mudanças realizadas para recebê-lo; entender as expectativas dos moradores com relação a como a cidade de Natal estaria após o evento.
Tal preocupação se justifica, já que as pesquisas sobre megaeventos costumam estar centradas nos impactos econômicos gerados pela sua preparação/realização, negligenciando aspectos subjetivos relativos ao fenômeno (AQUINO, FERRARI, 2013; GAFFNEY, 2015). A atenção à percepção dos moradores fundamenta-se no fato deles serem cotidianamente impactados pelo evento em todas as suas etapas e escalas, desde as obras iniciais até os possíveis legados (positivos ou negativos) restantes após seu término. Sem subestimar consequências que possam estar relacionadas a outros setores da sociedade (gestão municipal, estadual e federal, organização do trabalho, patrocínio, turismo, etc.), a investigação realizada enfocou as mudanças ocorridas e seu potencial para transformar a relação das pessoas com seus entornos, no que se refere aos vínculos e às memórias associadas ao lugar.
Destaca-se, assim, a importância da participação popular no debate sobre os detalhes que delimitam um evento, sobretudo quando sua realização faz emergirem questões que se refletem na qualidade de vida de todos, como o direito à cidade e a apropriar-se dela (HARVEY, 2008). Em síntese, um megaevento catalisa debates, embates e reflexões e, nesse contexto, é essencial dar visibilidade ao sentido da apropriação, interpretação e vivência popular frente ao que acontece, pois, corroborando-se Moreno (1999), o significado é um elemento essencial à mediação entre objeto e ação.
Além disso, ressalta-se a importância de entender um evento ligado ao futebol acontecido no Brasil, onde tal esporte é propalado como forte elemento da identidade nacional (“paixão nacional”). Nesse sentido, parte da divulgação do evento tentou promover um movimento social positivo, remetendo ao sentimento de patriotismo e construindo a imagem dos brasileiros como grandes apreciadores e praticantes do futebol. Assim, a investigação acerca das percepções e significados psicológicos buscou identificar se a Copa2014 foi percebida como um evento de futebol ou se foi associada a outros elementos econômicos e midiáticos, a exemplo do que sugere Eco (1984, p. 224), ao afirmar que: “o esporte como prática não mais existe, ou existe por motivos econômicos; (...) as energias físicas não estão mais em jogo; portanto a competição se desloca a mero nível político”.
Tendo como base a Psicologia Ambiental, a pesquisa lança luzes sobre os processos psicossociais presentes nas relações pessoa-ambiente, relacionando-os às transformações da paisagem urbana. Entende-se que as diversas relações que as pessoas estabelecem com os locais em que vivem, como casa, trabalho, vizinhança e cidade, são mediados por processos psicológicos, a partir dos quais as pessoas dão significados e atribuem valores aos lugares, vinculando-se aos mesmos, de modo que eles passam a fazer parte de sua identidade, do que são. Esses processos são influenciados pela cultura, pelos grupos sociais aos quais as pessoas pertencem ou que se façam presentes no local e pelas características do espaço físico. Ao longo da convivência com estes lugares, tanto as pessoas se transformam quanto transformam os ambientes, sendo seus sentimentos expressos por meio do seu discurso e do seu comportamento (linguagem verbal e não-verbal). Sob este ponto de vista, as transformações nas características locais (ou mesmo a expectativa delas) podem ser entendidas como fatores que podem influenciar a percepção do ambiente, condição que aumenta a responsabilidade social dos profissionais que atuam nesse campo.
Para investigar as percepções de moradores da cidade do Natal sobre os impactos socioambientais ocasionados pela realização da Copa do Mundo 2014 na cidade, a pesquisa realizada recorreu a um questionário composto por dados sociodemográficos, redes semânticas naturais e variáveis associadas às mudanças experenciadas durante e após o evento. O grupo de participantes foi composto por 214 habitantes que responderam ao instrumento entre os meses de março e maio de 2013.
Este artigo apresenta os principais resultados daquela investigação, focalizando, em especial, os dados originados da aplicação da Escala Semântica. Para tanto ele se subdivide em cinco seções: (i) apresentação do contexto de pesquisa, isto é, a construção do Complexo Arena das Dunas e as questões infraestruturais relacionadas ao evento; (ii) método de estudo, com ênfase para a aplicação das escalas semânticas; (iii) principais resultados obtidos; (iv) reflexão sobre os resultados a partir de conceitos relativos à perspectiva teórica adotada, notadamente no que diz respeito aos vínculos entre as pessoas e a cidade, em termos de ‘apego ao lugar’ e ‘identidade de lugar’; (v) considerações finais.
2. O contexto
No final de maio/2009 a cidade do Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil, foi anunciada como uma das 12 cidades-sede dos jogos da Copa do Mundo de 2014 da Associação da Federação Internacional do Futebol (FIFA), decisão comemorada pelo Governo local, que se empenhara em atrair o evento.
A cidade se lançou como candidata a ser uma das sedes do evento em 2007, com o projeto do "Estádio Estrela dos Reis Magos", localizado no município de Parnamirim, na Região Metropolitana. Alguns meses depois, o Governo do Estado apresentou novo projeto, envolvendo uma grande operação urbana em área próxima ao seu centro geográfico no eixo leste-sul, coincidente com o centro administrativo do estado. A proposta envolvia a demolição do Estádio João Machado (‘Machadão’), do Ginásio Humberto Nesi (Machadinho), do Kartódromo de Natal, do Centro Administrativo do Rio Grande do Norte (conjunto de prédios de 3 pavimentos que acomodam as secretarias estaduais) e do Presépio de Natal / Papódromo; no local seria construído o complexo multiuso Arena das Dunas, de um novo centro administrativo, de uma lagoa e de edifícios comerciais/residenciais de grande porte (RIO GRANDE DO NORTE, 2008).
O projeto obteve o primeiro lugar na categoria ‘Obra Pública’ do 6º Prêmio de Arquitetura Corporativa (São Paulo, 02/julho/2009), e o prêmio ‘Master’ (geral), como melhor projeto inscrito no evento (TRIBUNA DO NORTE, 2009; NOVO JORNAL, 2013). Segundo a revista Veja (2009), dentre os 12 estádios previstos para participação na Copa2014, o Arena das Dunas seria “o estádio mais verde e sustentável" (Figura 1). A matéria indica como principais elementos que contribuíram para esse entendimento: (a) reaproveitamento do entulho da demolição, usado em fundações e movimento de terra; (b) captação e drenagem da água em toda a área do complexo para reutilização em limpeza e irrigação, que seria armazenada em um lago (promovendo o ressurgimento da “Lagoa Nova” que deu nome ao bairro); (c) uso de sanitários com equipamentos para reduzir o consumo de água, semelhantes aos usados em Sydney 2000 (Olimpíadas e Paraolimpíadas); (d) estação de tratamento de esgoto; (e) uso de energia solar, captada por placas fotovoltaicas e por antena, e distribuída de modo racional, com gerenciamento de softwares específicos; (f) utilização de estrutura mista de concreto e aço, parte desmontável após o evento; (g) cobertura adotando o sistema aprovado no ‘Cubo D'Água’ de Pequim (China); (h) priorização do uso, nos prédios, de recursos renováveis produzidos pelo Estado, notadamente as energias solar e eólica.
Apesar do otimismo inicial, a viabilização do projeto se mostrou difícil; para facilitar o processo, o governo estadual reduziu a proposta. “A ideia de fazer um bosque, um lago artificial, hotéis de alto padrão, prédios comerciais e novos centros administrativos para o Governo do Estado e a Prefeitura do Natal é abandonada (...) O foco passa a ser construir a nova arena esportiva” (NOVO JORNAL, 2013)
Como as duas primeiras licitações não tiveram interessados, o governo estadual criou o "Fundo Garantidor da Parceria Público Privada Arena as Dunas", formado por R$ 70 milhões da arrecadação prevista dos royalties pagos ao estado pela Petrobrás, tornando-se, assim, avalista da futura concessionária no seu empréstimo ao Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES). Na terceira licitação, o Grupo OAS (construtora paulista reconhecida nacionalmente) apresentou-se, e em 15/agosto/2011 o Consórcio Arena Natal iniciou as obras, as últimas a começarem dentre os doze estádios aprovados para a Copa2014 (SECOPA, 2011).

Nos anos seguintes, os custos da obra foram discutidos cotidianamente pela imprensa, tornando-se parte da polêmica em torno do evento. Estimava-se o valor final da obra como superior a um bilhão de reais, embora o valor previsto para a construção fosse quatrocentos milhões (TRIBUNA DO NORTE, 2011). Em abril/2014, analisando as finanças estaduais Luciano Ramos, então procurador do geral do Ministério Público de Contas, alertou:
Inauguramos uma nova fase, o primeiro contrato de Parceria Público Privado - PPP. (...) O grande valor remuneratório do parceiro privado no caso da PPP vem de pagamentos do poder público. Banca todo o empréstimo e mais alguma coisa que a Arena das Dunas pegou para construir o estádio. Essas cifras girariam em torno dos R$ 400 milhões pagos de maneira direta, com mais algum lucro que seria razoável para o ente privado que realizasse; essas cifras, ao se colocar na conta todos os valores pagos ao longo de 20 anos, passarão da casa do R$ 1,2 bilhão, R$ 1,3 bilhões. (...) A opção gera um problema para um Estado que tem dificuldade de receita (MARQUES, 2014).
Após 29 meses de construção (Figura 2), que começou pela demolição do Machadão (que não pode ser implodido devido à proximidade do lençol freático), em 22/janeiro/2014 o estádio foi inaugurado pela presidente Dilma Roussef e a governadora Rosalba Ciarlini (A TARDE, 2014). Na ocasião não faltaram protestos populares organizados por sindicatos de servidores públicos mobilizados contra os gastos públicos na Copa e a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa - ANCOP (ANCOP, 2012), com a participação de populares ligados a grupos que se consideravam prejudicados pelo evento devido às desapropriações.

(a) – Estádio ‘Machadão’, em março/2011, fonte: Nominuto (2011).
(b) – Fim da demolição do ‘Machadão’, novembro/2011, fonte: Nominuto (2011).
(c) – Obras da Arena em maio/2012, fonte: Flickr (2012).
(d) – Obras em dezembro/2012, fonte: Flickr (2012).
(e) – Obras em outubro/2013, fonte: PortalCopa2014 (2014).
(f) – Obras, janeiro/2014, fonte: PortalCopa2014 (2014).
No primeiro jogo oficial, em 26/janeiro/2014, os principais problemas foram a dificuldade de acesso (as obras ao redor da arena permaneciam em curso), o estacionamento sem demarcação e iluminação, e o público reduzido, sendo essa última a maior preocupação com relação à própria obra realizada, como alertava a imprensa:
A Arena das Dunas, em Natal, é o segundo dos chamados “Elefantes Brancos” a ficar pronto para a Copa do Mundo de 2014. (...). Na inauguração a Arena recebeu um público modesto: 19244 pessoas, sendo 16552 pagantes (...). Por aí e pelo fato de os dois grandes do estado (ABC e América) terem disputado apenas 5 edições na série A nos últimos 30 anos, entende-se por que não foi feito um estádio maior - e há o risco de ficar às moscas (PLACAR, 2014).
3. A Arena
O complexo multiuso Arena das Dunas está situado no bairro de Lagoa Nova, entre duas importantes artérias viárias: BR-101 e Av. Prudente de Morais. A área se aproxima do centro geográfico do município no sentido leste/sul e congrega o centro administrativo do estado, shoppings e o campus central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tal implantação confirma o que Harvey (2008) classificaria como reforço a uma centralidade previamente existente, ou seja, a obra foi inserida em área urbana que já ocupava posição de destaque na malha urbana (nesse caso centralidade geográfica e administrativa).
Na contramão do planejamento metropolitano, mas convergente com a lógica da concentração fundiária e da acumulação do capital, (...) a construção do novo estádio Arena das Dunas foi confirmada na mesma gleba onde se encontrava o Machadão, no eixo dinâmico leste–sul. A construção (...) não comparece em nenhuma agenda de planejamento municipal ou metropolitano, pelo menos da última década (...); sua localização contraria as indicações dos estudos que embasam o Plano Natal Metrópole 2020, cuja orientação para implantação de equipamentos se faz na direção dos municípios de Macaíba e Parnamirim (BENTES SOBRINHA, CLEMENTINO, 2012, pp. 5 e 6).
O complexo, implantado em um terreno de 450.000m2, ocupa 227.000m2, tem capacidade para 31.375 espectadores sentados (com o uso de arquibancadas flexíveis chega a 42 mil assentos), e foi projetado para comportar eventos de grande porte, lojas e exposições. O projeto arquitetônico foi capitaneado pelo arquiteto australiano Christopher Lee, coordenador geral da equipe da Papulous (www.populous.com), multinacional com sede nos EUA especializada em arquitetura desportiva e planejamento de eventos e responsável por projetos de estádios como, entre outros, Testra (Sydney, Austrália), Algarves e da Luz (ambos em Portugal), Aviva (Irlanda), Nanjing (China), Emirates e Wembley (Inglaterra). Para este projeto o grupo associou-se ao escritório carioca Coutinho, Diegues e Cordeiro Arquitetos (CDCA), com assessoria local do escritório potiguar Felipe Bezerra Arquitetos, e projeto executivo do Grupo Stadia (www.grupostadia.com.br/). A proposta inseriu-se na perspectiva do place-marketing (DUNLOP, 1996; CASTELLO, 2007; VALENÇA, 2016), ou seja, foi planejada para tornar-se um marco urbano, um “cartão postal” da cidade.
A polêmica em torno da obra teve origem com a divulgação da demolição do Estádio João Cláudio de Vasconcelos Machado, conhecido como “Machadão” (inaugurado em 1972 como Estádio Humberto de Alencar Castelo Branco, “Castelão”, e que havia mudado de nome em 1989). O edifício era um dos símbolos da arquitetura moderna no estado (NASCIMENTO, SILVA, 2010); seu projeto, datado do final da década de 1960, foi do arquiteto Moacyr Gomes da Costa, com cálculos do engenheiro José Pereira da Silva. Originalmente ele acomodava 38.000 pessoas e chegou a receber 50.000 torcedores, capacidade reduzida para 32.000 na década de 1990, com o fechamento da “geral”. A demolição foi justificada por não atender aos padrões da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), embora o projetista tenha elaborado um estudo para modificação do prédio, justificado pelos baixos custos financeiro e ambiental, e que foi apresentado em seminário organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no Rio de Janeiro em setembro/2008.
Moacyr aponta problemas de diversas instâncias, acerca da escolha de se construir um megacomplexo esportivo, em detrimento da manutenção do Machadão. Os problemas contemplam aspectos de ordem financeira (proposta mirabolante/ megalomaníaca); grandes possibilidades de irregularidades (superfaturamentos, etc); de ordem técnica (circulação / esgotamento sanitário / atingimento do lençol freático); e de ordem ambiental (degradação). Esse quadro (...) vai de encontro à própria identificação da proposta com o conceito de “Modernização” (NASCIMENTO, 2012, p. 12).
Apesar da mobilização das escolas de arquitetura e urbanismo locais, e das filiais norteriograndenses do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a demolição do Machadão foi pouco discutida nos fóruns sobre a participação de Natal na Copa2014. A única vez que ocupou a pauta principal da Assembleia Legislativa do Estado foi na Audiência Pública de 05/outubro/2009, a qual, no entanto, apenas reforçou a justificativa de demoli-lo para atender às exigências da FIFA (VELOSO, VIEIRA, PEREIRA, 2010).
4. A infra-estrutura
Além da construção do Complexo ‘Arena das Dunas’, os investimentos para a realização da Copa2014 em Natal inicialmente envolveriam quatro grandes frentes ligadas à mobilidade urbana: conclusão do Aeroporto Internacional de São Gonçalo do Amarante; prolongamento da Av. Prudente de Morais; adequação da Av. Eng. Roberto Freire (RN-063); instalação de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Como anunciado no projeto, ao priorizar o eixo de integração estádio/hotelaria/estádio (Figura 3), tais mudanças deveriam afetar significativamente, não apenas as áreas circunvizinhas à Arena, mas a dinâmica da cidade de Natal e da Região Metropolitana (RMN), e mesmo sua relação com outras regiões do país e do mundo (SILVA et al, 2016).

Considerando que o Estado concedeu a terra para o novo empreendimento em área dotada de expressiva centralidade, viabilizando a substituição de um equipamento público por um novo de caráter privado, identifica-se o aprofundamento das modalidades de apropriação de terras e de privatização de bens comuns (BENTES SOBRINHA, CLEMENTINO, 2012, p. 6).
Segundo a Secretaria Estadual da Copa (SECOPA), várias obras complementares de menor porte iriam se incorporar a estas metas, tais como: construção de túneis/viadutos para maior vazão de trânsito nas Av. Prudente de Morais, Av. Capitão-Mor Gouveia e BR-101 (área próxima ao estádio); reforma da Rodoviária de Natal; reestruturação da ligação entre Natal e o novo aeroporto; ampliação do Porto de Natal para receber cruzeiros; revitalização da orla marítima (calçadão) entre Ponta Negra e Redinha; áreas exclusivas para ciclistas e pedestres nas principais vias de acesso ao estádio; eliminação de barreiras arquitetônicas (acessibilidade física) das áreas circunvizinhas ao estádio, em especial das calçadas da Av. Romualdo Galvão (SECOPA, 2011).
Uma semana antes do evento começar, muitas destas obras tinham sido retiradas do calendário e vinculadas a outros projetos, mesmo algumas daquelas antes consideradas ‘essenciais’, como a adequação da RN-063, a implantação do sistema de VLT e a reestruturação do porto. Naquela ocasião, alguns dos pesquisadores envolvidos nessa investigação realizaram visitas in loco às principais obras, nas quais detectaram situações variadas: (i) a reforma da Rodoviária de Natal estava concluída (com custo superior a 4 milhões de reais, embora o valor previsto fosse 2,6 milhões); (ii) a reestruturação da Av. Capitão-mor Gouveia e do calçadão da orla não tinham condições de uso (foram concluídas apenas no ano seguinte); (iii) na Av. Prudente de Morais, a construção de dois túneis vizinhos ao estádio, que tinha 2012 como prazo final, só teve início no final de 2013 (sua conclusão aconteceu após o evento); (iv) o Aeroporto Internacional, prometido para 2010, ainda não tinha entrado em funcionamento (começou a funcionar apenas uma semana antes do primeiro jogo na Arena das Dunas), e sua ligação com a cidade ainda permanecia precária (o acesso sul só foi concluído em 2015 e mesmo atualmente, 2017, o acesso norte ainda não funciona).
Eis, portanto, em linhas gerais, a situação vivenciada na cidade do Natal no período que antecedeu a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Obviamente tais ações fizeram parte do cotidiano de seus moradores e eram comentadas, com maiores ou menores detalhes, por toda a cidade. Algumas pessoas as vivenciaram de modo próximo (como os trabalhadores das obras ou os moradores de seus arredores); outras assistiram da janela do carro ou do ônibus, ao trafegar cotidianamente pela malha viária interditada, outros, ainda, evitaram aproximar-se. Independentemente do tipo de envolvimento de cada pessoa, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa - ANCOP (2012) comentava que a população não estava sendo consultada, que os habitantes das áreas atingidas eram pouco ouvidos ou sequer informados do que aconteceria no momento seguinte.
Diante do exposto, a pesquisa se voltou para verificar como os moradores da cidade do Natal perceberam as mudanças que aconteceram na cidade e, nesse contexto, compreender seu posicionamento face ao megaevento.
5. Método
Para investigar as percepções de moradores da cidade do Natal sobre os impactos socioambientais ocasionados pela realização da Copa do Mundo 2014 na cidade, a pesquisa (GURGEL et al, 2015) recorreu a multimétodos (SOMMER, SOMMER, 2002; GUNTHER, ELALI, PINHEIRO, 2011). Sintetizando a metodologia, a Tabela 1 relaciona os objetivos específicos da pesquisa, os métodos escolhidos para realização da coleta de dados e o modo de tratamento das informações adotado.
| Objetivos específicos | Coleta de dados | Tratamento dos dados |
| Compreender tecnicamente as mudanças socioambientais promovidas pelo evento | Pesquisa documental Acompanhamento de notícias veiculadas na mídia local (impressa e digitais). | Análise de discurso |
| Entender os significados psicológicos associados pelos moradores ao evento e às mudanças realizadas para recebê-lo | Aplicação de questionários incluindo: - Caracterização do respondente - Fontes de conhecimento da pessoa sobre a Copa2014; - Posicionamento do respondente sobre a realização do evento (a favor ou contra). - Escalas semânticas - Escalas Likert para avaliação de: aparência, condições de emprego, espaço público, imagem da cidade, limpeza urbana, serviços de saúde, lazer, tráfego, transporte e turismo | Análise dos dados dos respondentes (estatística descritiva e correlações por via de análises uni e bivariadas). Análise da Rede Semantica. Análise das respostas às escalas Likert. |
| Entender as expectativas dos moradores com relação a como a cidade de Natal estaria após o evento |
Esse artigo apresenta os resultados derivados do questionário, que foi composto por quatro blocos de questões, respondidas em sequência: (a) Redes Semânticas Naturais (RSN); (b) dados sociodemográficos; (c) Variáveis associadas a mudanças durante e após o evento, abordando os temas (aqui elencados em ordem alfabética) aparência (estética), condições de emprego, espaço público, imagem da cidade, limpeza urbana, serviços de saúde, lazer, tráfego, transporte público e turismo; (d) Fontes de conhecimento; (e) Posicionamento face à realização do evento (a favor ou contra). Nesse contexto o foco maior do artigo são as Redes Semânticas Naturais (RSN), técnica que busca detectar como o conhecimento é armazenado e articulado na memória de longo prazo (MILFONT, 2010; PESSOA, PINHEIRO, 2010), e permite entender “os elementos específicos de informação que os sujeitos têm, (...) a forma pela qual um conceito está representado na memória e, assim, seu significado psicológico” (CORTEZ, MILFONT, BELO, 2001, p. 24).
Para avaliar as variáveis elencadas os participantes foram solicitados a se posicionar diante de escalas Likert que, no caso de mudanças ocorridas na cidade variou de -2 (= avaliação muito negativa, equivalente a “estou muito pessimista com relação a ...”) a +2 (= avaliação muito positiva, equivalente a “estou muito otimista com relação a ...”). Escalas Likert também foram utilizadas para investigação de itens relacionados à pessoa, nesse caso variando entre 0 (resposta totalmente negativa, equivalente a “nada”; exemplo: “não tenho acesso a ...”) a 4 (resposta totalmente positiva, “muito”, exemplo: “tenho muito acesso a ...”).
Como o estudo pretendido adotou perspectiva exploratória e estratégia qualitativa, optou-se por utilizar uma amostra definida por conveniência (LAVILLE, DIONE, 1999), técnica de amostragem não probabilística cuja seleção dos participantes é deixada ao encargo do pesquisador, sem preocupação com a representatividade quantitativa do grupo participante, e sim com a diversidade de seus membros. Os questionários foram aplicados em vários pontos da cidade entre março e maio de 2013, atendendo às exigências da Ética na Pesquisa. Como critérios de inclusão foram considerados: tratarem-se de pessoas com no mínimo 15 anos de idade, moradoras em Natal ou na Região Metropolitana há mais de 5 anos, que estivessem em área pública e se mostrassem dispostas a contribuir com o estudo. Participaram, voluntariamente, 214 pessoas, cuja idade média foi 35 anos (entre 15 e 74 anos; com desvio padrão = 12,6), a maioria com instrução média ou superior (85%).
No primeiro bloco da pesquisa, participantes foram solicitados a elencar os 5 primeiros termos que lhes ocorressem após ouvir três palavras-estímulo: cadeira (estímulo neutro), Cidade do Natal e Copa2014. Os dois primeiros termos foram utilizados apenas instruir o participante, de modo que o interesse da pesquisa se voltou para o último.
A análise dos dados relacionados à caracterização dos participantes utilizou o SPSS versão 21, para identificação dos indicadores descritivos (frequência, média, desvio padrão) e correlações por via de análises uni e bivariadas (testes não-paramétricos).
A análise das informações relativas aos RSN recorreu ao software de análise lexical IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), para explorar estatísticas textuais clássicas e especificidades entre grupos, análises de similitude e a produção de nuvem de palavras (CAMARGO; JUSTO, 2013). Foram analisados os seguintes indicadores: Tamanho da Rede (TR), composto pelo número total de palavras (definidoras) produzidas a partir da palavra estímulo Copa do Mundo 2014; Peso Semântico (PS), importância de cada palavra definidora para o termo em analise; Núcleo da Rede (NR), palavras definidoras com peso semântico mais alto; Distância Semântica Qualitativa (DSQ), distanciamento entre os termos da NR.
6. O que pensam os moradores
De modo geral, os participantes indicaram ter um acesso mediano à informações sobre assuntos relacionados à Copa do Mundo em Natal, com média de 2,19 numa escala variando de 0 a 4, (0 = nenhum acesso; 4 = muito acesso). As vias midiáticas mais acessadas foram televisão (82%) e internet (47%); ressalte-se que as pessoas podiam indicar mais de uma mídia, mas geralmente não o fizeram. Quanto ao seu posicionamento em relação à Copa, a maioria se declarou favorável (54%).
Os participantes avaliaram as mudanças ocorridas na cidade em função do evento de forma mais positiva durante sua realização do que após o término (p < 0,001), e os setores de emprego, turismo e propaganda foram os mais bem avaliados, obtendo médias entre 1,19 e 1,57 (numa escala que variou de -2 a +2). O grupo favorável à Copa, composto por pessoas com menor grau de instrução, apresentou avaliações mais altas e positivas sobre as mudanças durante e após o evento. Já o grupo contrário ao evento avaliou as mudanças mais negativamente após o evento (p < 0,05), e os setores de transporte, segurança e saúde receberam as médias mais baixas (entre -0,91 e -1,15). Apenas o item trânsito foi avaliado negativamente pelos dois os grupos, tanto durante quanto após a Copa2014. Nota-se, portanto, que as pessoas com menor instrução e menos acesso a canais de informação apresentaram maior aceitabilidade em relação ao evento e avaliaram mais positivamente as mudanças ocorridas em função do evento. Já as pessoas com maior instrução e que têm mais acesso a fontes alternativas de informação (notadamente internet) se posicionaram mais negativamente sobre as mudanças e, em geral, fizeram avaliações mais baixas.
Esses dados apresentam convergência com os resultados da análise da RSN. Quanto ao Tamanho da Rede (TR), o número total de palavras (definidoras) usadas para definir Copa do Mundo 2014 foi de 518. O TR é um indicador da variabilidade da rede e, quanto maior é o tamanho da rede, melhor é a compreensão e conhecimento acerca do que a palavra-estímulo significa para aqueles indivíduos. Os termos que apresentaram maior PS (ou seja, que compuseram o NR) foram nessa ordem: Emprego, Turismo, Futebol, Jogo, Desapropriação, Dinheiro, Estádio, Bola, Segurança e Trânsito. Quanto à DSQ, é possível observar graficamente por via da análise de similitude as distâncias e coocorrências entre os termos que compuseram o NR (Fig. 4). De forma semelhante, a partir da nuvem de palavras também identificamos a importância dos termos de acordo com sua frequência de evocação (Fig. 5).


Para refinar esse entendimento a análise foi repetida, desta vez subdividindo-se os participantes em dois grupos: favoráveis e contrários à Copa, respectivamente 54% e 46% do total. O novo estudo gerou as Figuras 6 a 9, nas quais nota-se que:
O grupo favorável (maior, logo, mais influente no total) repetiu o resultado mais amplo, com a presença central das palavras turismo, futebol e emprego no NR, acrescida de desenvolvimento e segurança (Figs. 6 e 7).
Entre as pessoas não-favoráveis à Copa (o menor), observou-se clara divergência com o grupo anterior, menor variabilidade de termos definidores e maior número de ocorrências únicas, o que sugere mais dispersão e menor índice de consenso. Entre eles o NR também foi formado por menos termos com PS mais baixos: Desnecessário, Bola, Desapropriação, Roubo e Violência. As coocorrências mostram termos menos convergentes (Figs. 8 e 9), dispersão também sugerida pela nuvem de palavras, pois há mais termos com níveis de importância semelhante. Nesse grupo os termos evocados apresentam caráter negativo e podem estar associados ao discurso veiculado por mídias alternativas (o grupo afirma ter a internet como fonte de informações).




7. O que os resultados dizem
Embora possam existir várias possibilidades para discussão das informações e resultados aqui apresentados, este artigo tenta entendê-los a partir do enfoque da Psicologia Ambiental, especialmente no que se refere aos vínculos que as pessoas desenvolvem em relação aos ambientes em que estão inseridas, dentre os quais destacam-se o apego ao lugar e a identidade de lugar. O primeiro conceito pontua que as pessoas formam vínculos afetivos (positivos, negativos ou ambíguos) com os espaços físicos que lhes são significativos, enquanto o segundo aponta para os espaços físicos como um dos constituintes de identidade individual (TWIGGER-ROSS, BONAIUTO, BREAKWELL, 2003). Assim, quando alguém é identificado, por exemplo, como natalense, paulistano ou carioca, é associado a uma expressão de elementos de um local (a cidade), que pode emergir em suas atitudes e comportamentos diante do mundo e dos outros. Além disso, lugares que foram significativos ao longo do desenvolvimento de cada pessoa, como o bairro ou a vizinhança em que cresceu, influenciam seu desenvolvimento, ajudando-a delimitar quem é e o tipo de relação que estabelece. Sob essa perspectiva, uma ocorrência que transforme substancialmente o ambiente pode alterar tal relação, influenciando tanto na percepção do local como um lugar significativo quanto no modo da pessoa vincular-se a ele. Por induzirem mudanças em larga escala e em tempo reduzido, os megaeventos podem se inserir nesse processo, quer incrementando um vínculo pré-existente, quer dificultando ou impedindo a vinculação, considerando que algumas destas implicações tem relação com o evento em si, e outras extrapolam seus limites imediatos, podendo ser associados à cidade como um todo (ou até a região), o que amplia sua importância/significado.
A partir dos resultados obtidos na pesquisa se percebe um conjunto de significados relacionados à avaliação das mudanças promovida pela Copa2014, os quais ultrapassam o evento e passam a ser associados ao meio urbano como um todo. Nesse sentido, o vertiginoso crescimento da vinculação da cidade do Natal ao turismo e suas implicações na estrutura socioeconômica da cidade não se restringe, por exemplo, à rede hoteleira ou a alguns serviços, mas participa do imaginário social a respeito à totalidade do lugar, sendo hoje parte da imagem socioambiental da cidade (como ilustra a expressão “Natal, cidade turística”).
Nota-se que, por exemplo, os termos associados à identidade da cidade como turística se destacam entre o público favorável ao evento, ou seja, a avaliação positiva tende a enfatizar elementos que relacionam Natal ao turismo. Também é possível inferir que o próprio destaque obtido pela categoria emprego na RSN, se deve à associação dessa palavra com os postos de trabalho diretamente gerados pelo setor de turismo, ou mesmo aos postos indiretamente induzidos por ele.
Do ponto de vista psicológico, os elementos constituintes da identidade também pressupõem influencias para a autoestima dos indivíduos, o que pode explicar essa valorização. Além disso, aquilo que permite distinguir um lugar com o qual nos identificamos de outro, tende a sobressair. Logo, para a identidade de seus moradores, o turismo pode surgir como o que “temos a mais” em relação a outras localidades (ao menos as mais próximas).
Por outro lado, para aqueles contrários ao evento, a associação feita parece indicar um posicionamento mais associado ao tipo de veículo de informação que, por sua vez, indica temas mais específicos e imediatos ao cotidiano individual, como trânsito e segurança. Assim, se uma das dimensões fundamentais para o desenvolvimento das relações afetivas entre pessoas e seus ambientes é o quanto esses favorecem às atividades cotidianas de cada um, ao identificarmos esses aspectos como desagradáveis ou não-resolvidos, incorporamos uma imagem negativa ao nosso arsenal, o que degenera a imagem geral do lugar. Quando pensam as transformações na cidade, a avaliação é mediada por essa interpretação das necessidades imediatas, como mobilidade e segurança. Isso não significa que sejam impressões neutras. A percepção de tais elementos do dia-a-dia muda em função do grupo socioeconômico ao qual a pessoa pertence. O grupo de respondentes contrário possui também maior grau de escolaridade, o que em geral caracteriza grupos economicamente mais favorecidos; note-se que segurança e trânsito são fatores que se tornam mais facilmente salientes à percepção de quem tem muito a perder nesse aspecto. Infelizmente outras preocupações, como acesso a saúde, saneamento básico e habitação, não entraram na pauta de tais posicionamentos críticos, indicando claramente os vieses presentes no estudo.
De maneira geral, a prevalência de emprego, turismo e futebol (vistos como elementos mais gerais, não imediatos), em combinação com elementos comuns do discurso cotidiano, como Trânsito e Dinheiro, indica uma mistura entre significados gerais que identificam Natal e elementos básicos que a cidade oferece aos moradores nas ações do dia-a-dia (ou o que não está oferecendo). Esses elementos constituem a forma como os moradores se vinculam com a cidade. Nesse sentido, a avaliação das mudanças trazidas pelo megaevento é, do ponto de vista psicológico, uma avaliação do que isso implica para tais significados.
Isso se destaca de tal maneira que, na pesquisa, o estímulo Copa2014 trouxe mais respostas imediatas relacionadas ao turismo e ao emprego, o que pode ser explicado pela ampla divulgação pelos veículos oficiais (centrada na ideia de que o evento deixaria um bom legado nesses setores), pelo próprio formato da entrevista realizada (que buscava trazer o respondente para o âmbito da cidade do Natal) e pela crescente divulgação dessas características da cidade nos telejornais e internet. Destaca-se, no entanto, que, no imaginário social, a copa do mundo é, numa visão inicial, uma oportunidade ou risco para a cidade e, apenas em segundo plano, um evento de futebol.
Outro ponto a comentar é a participação popular no planejamento da cidade, que precisa ser considerada com base na soma de quatro fatores: (a) acesso à informação sobre intenções de mudanças; (b) possibilidade das pessoas fornecerem elementos/sugestões que, se incorporadas à solução final, venham a atender suas expectativas/necessidades; (c) voz e voto nas decisões; (d) atuação na fiscalização da execução/resultados. Além de um direito e uma necessidade, a literatura nessa área aponta a participação como um modo de ampliar a satisfação das pessoas com o resultado obtido (sobretudo em intervenções de maior porte, nas quais elas não conseguem acessar a todos os elementos), pois influencia fortemente no modo (boa-vontade) com que enfrentam as diferentes etapas para sua implantação, uma vez que estariam mais dispostas a se envolverem e arcarem com possíveis consequências, se sentindo representadas por ela. Por razões óbvias, essa cooperação seria uma atitude altamente esperada no planejamento de megaeventos. No caso da proposta e execução do Arena das Dunas, no entanto, a participação foi muito reduzida durante todo o processo, o que também contribui para a imagem negativa verificada em quase metade das respostas.
8. Considerações finais
Sendo este um estudo voltado para a percepção dos moradores, não cabe aqui uma crítica final à proposta do Complexo Arena das Dunas, em Natal, quer arquitetônica quer urbanísticamente, à sua execução ou mesmo ao que não foi realizado, embora tais pontos aflorem naturalmente do texto. Ressalta-se, ainda, que o artigo apresenta apenas uma pequena parte dos resultados da pesquisa realizada (GURGEL et al, 2015), e que aborda outros pontos relacionados às tranformações socioambientais vivenciadas na cidade de Natal para torna-se uma cidade-sede da Copa2014 e analisa perspectivas futuras relativas a tais alterações, sempre enfocando especialmente a percepção dos moradores.
No estudo, a utilização das Redes Semânticas se mostrou satisfatória na captação dos significados atribuídos ao evento, possibilitando um acesso inicial ao modo como os natalenses compreenderam e interpretaram as mudanças socioambientais vivenciadas. Os dados mostram claramente que os significados e vínculos das pessoas com seus ambientes cotidianos são impactados pelas modificações que acontecem no meio urbano (sejam elas de pequeno, médio ou grande porte) e, principalmente, alertam para a necessidade de ter especial cuidado com as ações que possam vir a alterá-los.
Nesse sentido, o que vem acontecendo na área de megaeventos é um reflexo de uma prática que vem se tornando cada vez mais comum, e precisa ser (re)avaliada: mudanças urbanas que são decididas em gabinetes, e cujos impactos surpreendem grande parte da população, nem sempre adequadamente preparada para que as transformações pretendidas aconteçam ou sequer de acordo com a proposta.
A placa “o incomodo passa, o benefício permanece para sempre” é muito facilmente encontrada em nossas cidades, mas precisaria ser utilizada com mais parcimônia, em pequenas doses, e não em larga escala, como aconteceu em Natal entre 2013 e 2014 e tem acontecido em várias outras localidades. Ao divulgar esses primeiros resultados espera-se contribuir com novos estudos nesse campo e, sobretudo, para a incorporação do ponto de vista dos cidadãos como elemento essencial à proposição de intervenções urbanas.
Referências
A TARDE. Com presença de Dilma Arena das Dunas é inaugurada. Publicada em 22/janeiro/2014. Disponível em http://atarde.uol.com.br/esportes/copa/materias/1563411-com-presenca-de-dilma-arena-das-dunas-e-inaugurada. Acesso em julho/2014.
AQUINO, F.; FERRARI, C. M. Gol de quem? A comunicação e o turismo na Copa do Mundo Brasil 2014. Revista Hospitalidade. São Paulo, v. 1, n. 1, jun. 2013, p. 97 - 120.
ARTICULAÇÃO NACIONAL DOS COMITÊS POPULARES DA COPA (ANCOP). Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, 2012. Disponível em: http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2012/01/DossieViolacoesCopa.pdf . Acessado em 12/dez./2014.
BENTES SOBRINHA, M. D. P.; CLEMENTINO, M. L. M. Estádio Arena das Dunas: modernização de estruturas, aprofundamento de centralidades e de espoliação na Região Metropolitana de Natal. In: II ENANPARQ. Anais do II ENANPARQ. Natal, RN: Firenze, 2012 (CD Rom).
CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Iramuteq: Um Software Gratuito para Análise de Dados Textuais. Temas em Psicologia, v. 21, n. 2, 2013, p. 513-518.
CASTELLO, L. A percepção do lugar: repensando o conceito de lugar em arquitetura-urbanismo. Porto Alegre: PROPAR/UFRGS, 2007.
CORTEZ, J. C. V., MILFONT, T. L., BELO, R. P. Significados psicológicos do lixo: Um estudo através das redes semânticas naturais. PSICO-USF, v. 6, 2001, p. 21-28.
DUNLOP, B. Building a dream: the art of Disney Architecture. Nova Iorque: Harry Abrams, 1996.
ECO, U. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
ELALI, G. A. A cidade que temos, a cidade que queremos: a percepção de Natal-RN pelos natalenses. (Relatório de pesquisa). Grupo de Pesquisa Inter-Ações Pessoa-Ambiente. Natal: UFRN, 2012.
FLICKR. Galeria de fotos: Natal - Arena das Dunas. Copagov. Publicada em maio/2012. Disponível em: http://flickr.com/photos/65602478@N02/. Acesso em: dez./2014.
GUNTHER, H.; ELALI, G. A.; PINHEIRO, J. Q. Multimétodos. In: CAVALCANTE, S.; ELALI, G. A. (Orgs.). Temas básicos em Psicologia Ambiental. Petrópolis Vozes, 2011, pp. 369-396.
GURGEL, F. F. (Coord.); FARIAS, T. M.; DINIZ, R. F. Copa do Mundo 2014 na cidade do Natal/RN: investigando aspectos psicológicos nas relações pessoa-ambiente. (Relatório de pesquisa). Grupo de Pesquisa Inter-Ações Pessoa-Ambiente. Natal: UFRN, 2015.
HALL, C. M. Hallmark Tourist Events: Impacts, Management and Planning. Londres, 1992.
HARVEY, D. El Derecho a la ciudad. New Left Review, n. 53, 2008, p. 23-40.
HILLER, H. Post-event outcomes and the post-modern turn: the Olympics and urban transformations. European Sport Management Quarterly. v.6, n.4, 2006, p.317-332.
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed, 1999.
MACHADO, R. P. T.; RUBIO, K. Legado do esporte: atleta, cultura e educação. In: MARCELLINO, N. C. (Org.). Legado de megaeventos esportivos. São Paulo: Editora Papirus, 2013.
MARQUES, C. Procurador fala sobre o Arena (Entrevista com Luciano Ramos, procurador geral do Ministério Público de Contas do RN). JORNAL DE HOJE, 05/abril/2014. Disponível em: http://Jornaldehoje.com.br/.Acessoem10/abril/2015 .
MILFONT, T. El significado psicológico de las actitudes de conservación y uso: un estudio basado en la técnica de la red semántica natural. Ecopsychology, v. 1, n. 1, 2010, pp. 57-70.
MORENO, A. El significado psicológico de conceptos relativos a la educación ambiental. Revista Interamericana de Educación de Adultos, v.1, p. 93-114, 1999.
NASCIMENTO, J. C. E o poema tornou-se obsoleto: considerações sobre o processo de domolição do estádio Machadão, Natal-RN. In: II ENANPARQ. Anais do II ENANPARQ Natal, RN: Firenze, 2012 (CDRom).
NASCIMENTO, J. C.; SILVA, P. R. C. De poema a “poeira”: Estádio Machadão, Natal/RN – a decretação da obsolescência de uma referência modernista. In: 3 DOCOMOMO N/NE. Anais do 3 DOCOMOMO Natal, 2010 (CDRom).
NOMINUTO. Fotos da Copa2014. Disponível em: http://www.nominuto.com. Acesso em 10/abril/2015.
NOVO JORNAL. Melhor projeto para a Copa 2014. NOVO JORNAL, dez/2013. Disponível em: http://www.novojornal.jor.br/_conteudo/2013/12/esporte/24905. Acesso em 15/abril/2015.
PESSOA, V. S., PINHEIRO, J. Q. “Do que Você Lembra quando Pensa em Energia do Vento?” Um Estudo sobre o Conhecimento da Energia Eólica. Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology, V. 44, N. 2, 2010, pp. 361-367.
PLACAR. Os estádios da Copa 2014: o Arena das Dunas, Natal. PLACAR, jan/2014. Disponível em: http://www.placar.abril.com.br/materia. Acesso em 10/abril/2015.
PORTAL COPA2014. Galeria de fotografias: Arena das Dunas, Natal, 2013. PORTAL COPA2014. Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/galeria/natalarenadasdunas. Acesso em: dez./2014.
PORTAL COPA2014. Natal - Sede da Copa 2014! PORTAL COPA 2014, jan./2014. Disponível em: http://www.portal2014.org.br/cidades-sedes/NATAL/. Acesso em: junho/2015.
PREUSS, H. Aspectos sociais dos megaeventos esportivos. In: RUBIO, K. (Org.). Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.
REVISTA VEJA. Copa 2014: conheça os novos estádios. VEJA, Edição 2140, 25/nov./2009. Disponível em: http://veja.abril.com.br/251109/imagens/ambiente1. Acesso em 10/abril/2015.
ROCHA, R. No RN, tudo pela Copa. PORTAL2014, Publicada em 26/jan./2009. Disponível em: http://www.portal2014.org.br/noticias/7/NO+RN+TUDO+PELA+COPA.html/. Acesso em: junho/2015
SANTOS JUNIOR, O. A. Metropolização e megaeventos: proposições gerais em torno da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016 no Brasil. In: SANTOS JUNIOR, O. A.; GAFFNEY, C.; RIBEIRO, L. C. Q. (Orgs.). Brasil: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016. Rio de Janeiro: E-papers, 2015, pp. 21-40.
SECRETARIA ESTADUAL DA COPA – RIO GRANDE DO NORTE (SECOPA-RN). Tudo sobre a Copa 2014. Projeto Arena das Dunas. Dezembro/2011. Disponível em http://copa2014.natal.rn.gov.br. Acesso em junho/2015.
SILVA, A. F.; CLEMENTINO, M. L.; LIMA, H. A.; CÂMARA, R. L.; ALBUQUERQUE, P. A.; COCHAND, A.; PONTES, M. A.; LUZARDO, L. C. Metropolização e megaeventos: impactos da copa do Mundo 2014 em Natal-RN. In: SANTOS JUNIOR, O. A.; GAFFNEY, C.; RIBEIRO, L. C. Q. (Orgs.). Brasil: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016. Rio de Janeiro: E-papers, 2015, pp. 345-366.
SOMMER, B.; SOMMER, R. A practical guide to behavioral research: tools and techniques. New York, Oxford University Press, 2002.
TRIBUNA DO NORTE. Custos do jogo. TRIBUNA DO NORTE, 03/julho/2009. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/. Acesso em 10/abril/2015.
TRIBUNA DO NORTE. O preço da festa. TRIBUNA DO NORTE, 17/março/2011. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/. Acesso em 10/abril/2015.
TWIGGER-ROSS, C. L., BONAIUTO, M., BREAKWELL, G. Identity Theories and Environmental Psychology. In: BONNES, M.; LEE T.; BONAIUTO, M. (Orgs.). Psychological Theories for Environmental Issues. Inglaterra: Ashgate, 2003, pp. 203- 234.
VALENÇA, M. M. Arquitetura de grife na cidade contemporânea: tudo igual, mas diferente. Rio de Janeiro: MauadX, 2016.
VELOSO, M.; VIEIRA, N. M.; PEREIRA, M. V. Crônica de uma Morte Anunciada: Arquitetura Moderna em Natal X Copa de 2014. In: 3 DOCOMOMO N/NE. Anais do 3 DOCOMOMO. João Pessoa, 2010 (CDRom).