A concepção de mulher no currículo da Escola Doméstica de Natal (1914 – 1944)
The conception of woman in Escola Doméstica de Natal’s curriculum (1914-1944)
A concepção de mulher no currículo da Escola Doméstica de Natal (1914 – 1944)
Research, Society and Development, vol. 7, núm. 3, pp. 01-17, 2018
Universidade Federal de Itajubá

Recepção: 30 Junho 2017
Aprovação: 12 Agosto 2017
Resumo: O presente trabalho apresenta uma discussão sobre a concepção de mulher no modelo curricular presente na Escola Doméstica de Natal(ED), localizada em Natal/RN, no período de 1914 a 1944. Tem como objetivo identificar a formação pensada para o público feminino nesta instituição. A metodologia adotada parte um estudo analítico, fazendo comparações entre as informações coletadas no arquivo da escola e os estudos teóricos. Na ED tivemos acesso ao acervo da instituição, no qual foi possível levantar fontes como documentos, boletins e fotos. O currículo foi construído com base nesses documentos, nos dados encontrados no jornal A República e a partir dos estudos de Andrea Gabriel Francelino Rodrigues (2007). Além disso, os estudos teóricos permitiram encontrar discursos proferidos por Henrique Castriciano, pela Liga de Ensino do RN (LERN) e a partir dos estudos de Marques Neto (2015). Por meio do programa curricular apresentado percebemos que a visão de educação feminina nesse período era voltada ao lar. As reflexões permitem perceber que a mulher, para a Escola Doméstica, era concebida como o pilar das mudanças sociais, levando em consideração seu papel na família. A Liga de Ensino do RN defendeu os mesmos preceitos em que a educação feminina deveria ser aquela onde a mulher soubesse guiar-se nos caminhos da vida no lar ou fora dele. No decorrer da pesquisa percebemos quem era essa mulher do início do século XX e quais as contribuições da Escola Doméstica para a construção desse ideário feminino.
Palavras-chave: Escola Doméstica de Natal, Mulher, Educação Doméstica, Currículo.
Abstract: This paper presents a discussion about the women's conception in the curriculum of Escola Doméstica de Natal, from 1914 to 1944. It aims to identify the planned training for the female population in this institution. The adopted methodology is based in an analytical study, by making comparisons between the collected information in the school's archive, as well as in the theoretical studies. At ED we had access to the institution's archive, in which it was possible to raise sources such as documents, reports and photos. The curriculum construction was based on these documents, on the data found in the newspaper A República and through the studies of Andrea Gabriel Francelino Rodrigues (2007). In addition, the theoretical studies allowed to find speeches given by Henrique Castriciano, by the Liga de Ensino do RN (LERN) and also through the Marques Neto (2005) studies. Through the presented curriculum we realized that the concept of women education in this period was directed to home and family. The reflections allows to notice that the woman, in Escola Doméstica's conception, was conceived as the social change pillar, taking into account her position in the family. The LERN defended the same percepts in which women education should be the one where the woman would know how to guide herself in the ways of life at home or outside it. In the course of the research we realized who was that woman in the beginning of the 20th century and which were the contributions of the Escola Doméstica for the construction of this feminine ideology.
Keywords: Escola Doméstica de Natal, Woman, Domestic Education, Curriculum.
1. Introdução
Este artigo parte dos resultados e discussões de uma pesquisa que vem sendo realizadadurante o período de 2014 a 2017, vinculado ao plano de trabalho Os currículos da Escola Doméstica de Natal (1914-2014). Durante esse tempo buscamos analisar os modelos curriculares presente na Escola Doméstica no período de 1914 a 2010.
Ao estudar o programa curricular de 1914 e suas reformulações, foi possível perceber diversos aspectos do currículo, como o caráter escolanovista, higienista e positivista deste, como afirma Rodrigues (2007). Assim, optamos por perceber qual a concepção de mulher presente no modelo curricular no período de 1914 a 1944. Ou seja, por meio das reflexões estabelecidas buscamos identificar a formação pensada para o público feminino nesta instituição.
Esse período trata dos 30 primeiros anos de funcionamento da instituição, anos de transição até chegar ao período em que a Diretora Noilde Ramalho fica à frente da ED por 65 anos. Portanto, é importante perceber queo estudo trata-se de um momento importante para consolidar os ideais precursores da Escola.
2. Metodologia
Inicialmente, foram feitas pesquisas de campo na Escola Doméstica, as quais tiveram o objetivo de coletar informações sobre a instituição por meio dos documentos oficiais, como as grades curriculares. Na instituição tivemos acesso a documentos como boletins, fotos, cardápios de diversas épocas, relatos e materiais didáticos utilizados. Tais informações foram obtidas no Acervo Nísia Floresta, localizado no segundo andar do prédio de aulas da ED.
Após a coleta de dados na pesquisa em campo, optamos por iniciar os estudos sobre a História da Educação, trabalhamos com Gadotti (1993), Giles (1987), Lourenço Filho (1961) e Cambi (1999), a fim de comparar as ideias pedagógicas apresentadas por esses autores com o currículo da instituição.
Para analisar os currículos, precisamos compreender o que é o currículo, por isso nos detivemos em informações sobre essa temática, tendo como base Silva (2005), de modo que partimos da concepção de currículo como histórico, visto que referido autor afirma que a questão central para qualquer teoria de currículo é: O que deve ser ensinado? E para responder a essa pergunta as diferentes teorias recorrem a discussões sobre a natureza humana, natureza da aprendizagem e a natureza da cultura e da sociedade. Fica claro, então, que o currículo é um resultado de uma seleção e que varia de acordo com o contexto vivido pela sociedade.
Foi necessário buscar fontes sobre a instituição para que fosse possível fazer reflexões e discussões importantes dentro da temática. Recorremos às produções de Lima (2004), Barros (2000), Pinheiro (2005) e Rodrigues (2007). Portanto, a metodologia adotada parte de um estudo analítico, traçando paralelos entre as informações coletadas no arquivo da Escola à luz dos estudos teóricos.
3. Contexto histórico e Currículos da Escola Doméstica de Natal
A Escola Doméstica de Natal foi fundada no dia 1 de setembro de 1914, seu idealizador e fundador foi Henrique Castriciano de Souza (1874 – 1947)[1]. A instituição foi pioneira no que se refere ao ensino doméstico no Brasil, além de ter representatividade para o nordeste e para o Rio Grande do Norte. Sua inauguração da Escola Doméstica em Natal foi o marco inicial da institucionalização da educação doméstica, voltada à educação das mulheres e ao espaço privado (PINHEIRO, 2009).
O primeiro prédio da escola tinha um estilo neoclássico, era localizado na Praça Augusto Severo, na Ribeira, e foi construído pelo governo do Estado, que estava apoiando o projeto de Castriciano. O prédio ficava em uma boa localização, tendo em vista que a Ribeira era o principal bairro de Natal, onde ficavam o comércio, as atividades culturais e sociais e sendo também área residencial. Contudo, essa localização deixou de ser privilegiada com o passar do tempo devido as mudanças na década de 1940 que fizeram com que o bairro Ribeira deixasse de ser o principal bairro da Cidade.
A ED foi idealizada a partir da necessidade, percebida por Castriciano, de oferecer à mulher uma educação digna, na perspectiva em que ele acreditava que reformas sociais importantes aconteceriam devido à influência da mulher nos lares e na família. O fundador criticava a moral e os costumes da época e tinha como projeto pessoal a luta pela reforma da sociedade por meio da educação da mulher (PINHEIRO, 2005). Esse ideal partia do contexto Europeu, como afirma a referida autora, de modo que na época em que Castriciano estava idealizando a instituição de ensino doméstico, a Europa vinha enfatizando uma educação generalizada da população, tendo a mulher como transmissora da cultura e valores de um modelo social, passando a ter o papel de preparar o homem moderno.
O interesse do idealizador na Educação Doméstica crescia cada vez mais e, por meio de uma viagem para a Suíça ele conheceu a École de Ménagére de Fribourg, a qual é considerada a principal influência da Escola Doméstica de Natal. Esta École é uma escola feminina da Suíça.
Nos baseamos em Rodrigues (2007, p. 95) para enfatizar que a ideia de educar a mulher para o lar está ligada as concepções associadas
(...) às mudanças de crescimento populacional e urbano que o continente europeu atravessou no final do século XIX, sendo fruto também de movimentos que reivindicavam melhorias nas condições sanitárias e higiênicas para a população, numa conjuntura social e econômica pautada pelo crescimento acirrado e desordenado das cidades européias, com a industrialização e o advento do capitalismo.
Nesse período – em que Castriciano visitou a Europa – a educação no continente vinha passando por mudanças teóricas e práticas. Considerando o século XX como o século do homem novo, Cambi (1999) discute que a prática educativa voltou-se para um novo sujeito e impôs novos protagonistas (a criança, a mulher e o deficiente). Se discute ainda que “no século XX, a escola sofre processos de profunda e radical transformação. Abre-se às massas. Nutre-se de ideologia” (CAMBI, 1999, p. 513). Nessa mesma perspectiva, acreditamos que a prática da ED estava voltada para a formação de uma nova mulher, tendo em vista que acreditavam na mudança da sociedade por meio da mulher no lar.
Nesse prisma, os intelectuais da Liga de Ensino do RN (LERN)[2] acreditavam em uma renovação da educação em que “(...) seria necessária a formação de um sujeito, particularmente um sujeito feminino, para ser o signatário da sociedade advinda do sistema capitalista e da forma republicana de governo que se organizava” (RODRIGUES, 2007, p. 58).
Enfatizamos, contudo, que embora tenha se inspirado na escola suíça, a Liga de Ensino, junto às gestões da instituição, procuraram adaptar as práticas curriculares à realidade norte-riograndense, mostrando que a intenção de Castriciano não foi reproduzir a Escola da Suíça em Natal por meio da ED, mas, sim, realizar uma adaptação à cultura brasileira, especialmente a natalense.
Para isso vieram duas professoras formadas na École de Ménagère de Fribourg, que foram as duas primeiras diretoras da instituição. Antes de iniciar o trabalho na instituição, as professoras estrangeiras tiveram reuniões com professoras natalenses a fim de conhecer mais a realidade local (LIMA, 2007).
Durante 101 anos de funcionamento, a Escola Doméstica de Natal teve 16 (dezesseis) diretoras. Para os fins do presente trabalho dividimos essas diretoras em dois momentos conforme apresentado na Tabela 1. É importante verificar que no período do qual se trata a tabela a ED teve 11 (onze) diretoras, bem como vale ressaltar que o primeiro momento refere-se às sete primeiras diretoras da instituição que eram estrangeiras enquanto o segundo apresenta as diretoras brasileiras que antecedem a direção de Noilde Ramalho em 1945. Esse recorte antes da Diretora Noilde Ramalho acontece devido a importância que esta teve para a instituição e ao tempo em que passou a frente da direção.
| MOMENTOS | DIRETORAS | PERÍODO |
| 1º MOMENTO (1914-1926) | Héléne Bondoc | 1914-1915 |
| Jeanne Negulesco | 1915-1918 | |
| Leora James | 1919-1922 | |
| Allexandra Von Schimnielpfeig | 1923 | |
| Edwirges Schuller | 1924 | |
| Isabel Baird | 1925 | |
| Júlia Serivé | 1926 | |
| 2º MOMENTO (1927-1944) | Maria Emiliana Silva | 1927-1930 |
| Caetana de Brito Guerra | 1930-1935 | |
| Alix Ramalho Pessoa | 1935-1944 | |
| Amélia Bezerra Filha | 1944 |
O primeiro período (1914-1926) consiste nas direções exercidas pelas diretoras estrangeiras que tiveram o papel de consolidar o projeto idealizado por Henrique Castriciano, trazendo as experiências da Europa e Estados Unidos. Já o segundo momento (1927-1944) caracterizou-se pelas primeiras diretoras nacionais, que foram ex-alunas da Escola Doméstica, marcado por mudanças significativas em relação ao momento anterior, especialmente no que diz respeito a aproximação a cultura local.
No primeiro momento (1914-1926), destacamos a importância das duas primeiras diretoras, Héléne Bondoc e Jeanne Negulesco, visto que foram responsáveis pela confecção e consolidação do primeiro currículo, junto a LERN, o qual permaneceu nos primeiros quatro anos. A direção de Héléne Bondoc (1914-1915) contribuiu no currículo trazendo disciplinas da Ecole Ménagére de Fribourg de forma adaptada às necessidades das alunas que vinham das cidades do interior, enquanto a LERN defendeu uma educação onde a mulher era possibilitada a guiar-se nos caminhos da vida por meio da educação oferecida pela instituição.
A segunda direção foi a de Jeanne Negulesco (1915-1918). A partir dos estudos consideramos que ela deu continuidade ao trabalho que estava sendo feito pelas diretoras anteriores, tendo em vista que manteve as mesmas diretrizes, por exemplo, a estrutura curricular, que sofreu as primeiras alterações apenas em 1922. De acordo com Barros (2000), a diretora Leora James (1919-1922) teve um papel importante no que diz respeito a ampliação dos aprendizados artísticos e culturais na instituição, ainda de conformidade com a referida autora, as diretoras Allexandra Von Schimnielpfeig (1923) e Edwirges (1924) realizaram poucas modificações na instituição, esses fatos podem ser justificados pelas dificuldades financeiras que a escola estava passando nesse período.
Acreditamos que as dificuldades financeiras estavam associadas a baixa quantidade de alunas da instituição. Rodrigues (2007) discute que este fator estava associado ao alto custo que era exigido para manter as alunas na escola, de modo que no ano de 1923 a instituição teve duas alunas diplomadas, enquanto em 1924 não teve nenhuma[3].
Posteriormente, as diretoras Isabel Baird (1925) e Júlia Serivé (1926) realizam mudanças importantes no currículo, adicionando disciplinas que tinham a base teórica em autores como Platão, Emmanuel Kant, Hebert Spencer, Rosseau e Pestalozzi, como afirma Barros (2000) com base em documentos da instituição.
Assim inicia-se o segundo momento, de 1927-1945, em que entram as primeiras diretoras brasileiras. A primeira delas é Maria Emiliana Silva (1927-1930), diplomada pela Escola Normal de Natal. Ela acreditava que as práticas curriculares da instituição não estavam mais de acordo com as concepções iniciais de Castriciano, por isso, objetivou fazer alterações no currículo a fim de manter a tradição da instituição.
Em 1930, Caetana de Brito Guerra (1930-1935) passa a ser a diretora, foi diplomada pela Escola Doméstica e com curso de aperfeiçoamento na Bélgica. Segundo Barros (2000), ela teve dificuldades devido à Revolução de 1930. Acreditamos que essas dificuldades tenham sido fruto das modificações no ensino, impostas pela legislação nacional. Por exemplo, em 1931 foi criado o primeiro Ministério Nacional da Educação e Cultura e, além disso, foram feitos alguns decretos-leis que alteraram a estrutura do ensino primário e secundário do país. Rodrigues (2007) discute que uma das características dessa Reforma foi a inflexibilidade dos ensinos profissionalizante e secundário, “pois ao concluir o ensino técnico e profissional, o aluno somente poderia dar continuidade aos estudos no ramo profissional correspondente (...)” (RODRIGUES, 2007, p. 164).
No tocante a esta característica, podemos identificar que a ED seguia essa mesma linha, tendo em vista que não possibilitava o ingresso em instituições de ensino superior, sendo essa uma luta da Escola somente mais à frente. Documentos da Escola, como o Boletim comemorativo de 75 anos da Escola Doméstica de Natal (1914 – 1989) explicita que “muitas foram as dificuldades de ordem econômica e financeira” (p. 10) que a diretora Guerra enfrentou.Barros (2000) afirma que nesse período a escola apresenta uma intensa evasão de alunas, de modo que em 1930 a escola possuía noventa e duas alunas e passa a ter, em 1931, trinta e nove. O número de diplomadas em 1930, embora maior que os dos anos anteriores, era apenas de 10 alunas.
Em 1935, Alix Ramalho Pessoa (1935-1944) assume a direção, diplomada pela ED e com curso de aperfeiçoamento na Bélgica. Ela passou nove anos no cargo, além de ficar na direção, a referida diretora também atuou como professora de Leiteria e Cozinha Artística, como enfatiza Barros (2000). Ainda devido à evasão Pessoa teve dificuldades em realizar alterações no currículo ou no funcionamento da escola. Outro fator que pode ter interferido foram as dificuldades enfrentadas no período da Segunda Guerra Mundial, tendo em vista que a cidade de Natal foi considerada cenário estratégico para ação dos militares, como afirma Rodrigues (2007), o que causou medo à população, fazendo com que muitas estudantes da ED voltassem para casa. Finalizando esse segundo momento, assume o cargo de diretora por nove meses a professora Amélia Bezerra (1944), diplomada pela Faculdade de Filosofia do RJ, em Escola Doméstica (1989) é destacado que a diretora impulsionou o desenvolvimento cultural das alunas da instituição.
Acreditamos que as diretoras brasileiras tiveram um papel de transição entre as diretoras estrangeiras para o período seguinte, tendo em vista que apesar de, em sua maioria buscar manter a tradição, aturam em uma perspectiva de aproximar a instituição à realidade das alunas.
Na Tabela 2 podemos ver a grade curricular da instituição em 1914, a qual foi pensada pelas duas primeiras diretoras junto a LERN, tal programa foi apresentado no jornal A República. Esse foi a primeira grade curricular da instituição, a qual sofreu poucas alterações durante o período de 1914 a 1944. É importante que se observe atentamente a referida tabela para compreender as discussões estabelecidas a seguir.
| 1º ANO | 2º ANO |
| Aritmética | Algebra |
| Português | Português |
| Francês/Inglês | Francês/Inglês |
| História do Brasil | História Universal |
| Geografia | Anatomia e Fisiologia |
| Cultura Física | Cozinha/Costura |
| Costura | Leiteria |
| Cozinha | Agricultura |
| Música | Cultura Física |
| Caligrafia | Caligrafia |
| Música | |
| 3º ANO | 4º ANO |
| Algebra | Contabilidade |
| Português | Português |
| Cultura Física | Cultura Física |
| Costura | Costura |
| Cozinha | Música |
| Música | Música |
| Criação | Educação Social |
| Jardinagem | Cozinha Artística |
| Francês/Inglês | Metodologia |
| Higiene | Economia de casa |
| Lavagem | Francês/Inglês |
| Puericultura e Medicina Prática | |
| Química Alimentar |
Observando a grade curricular acima e por meio da revisão bibliográfica, chegamos à conclusão que Heléne Bondoc buscou trazer disciplinas da Ecole Ménagére de Fribourg de forma adaptada para as necessidades das alunas que vinham das cidades do interior. No entanto, pensamos que, inicialmente, essa adequação teve alguns problemas, pois nos relatos apresentados por Barros (2000), foi possível notar que nesse primeiro momento a diferença de cultura e língua entre alunas e diretoras foi uma barreira no currículo tanto no que se refere a grade curricular quanto no contato cotidiano.
Um exemplo em que esse fator é evidenciado são algumas receitas aprendidas na disciplina Cozinha, as quais não eram refeições típicas no Brasil e até mesmo o cardápio das alunas era em francês. Segundo Barros (2000), após reclamações e dificuldades de diálogo com as alunas o cardápio foi modificado para português, contudo, continuou composta por comidas típicas francesas. Durante muito tempo foi considerado normal pelas diretoras estrangeiras servir berinjelas como janta, ou seja, uma refeição que não é comum no Brasil e era incomum para as alunas. Por conseguinte, pensamos que as reformulações feitas nesse período podem ter sido feitas para melhorar o currículo nesse aspecto, de aproximá-lo às necessidades e à cultura das estudantes.
Embora as disciplinas de caráter teórico apareçam no currículo, conclui-se que não foi dada a atenção necessária em 1914, em que as disciplinas foram desvalorizadas e pouco desenvolvidas no programa. Também é possível perceber que a metodologia utilizada não foi especificada nos documentos da instituição, em que o foco foi dado na questão da prática, valorizando-a.
A estrutura curricular funcionou desse modo até 1922, como afirma Rodrigues (2007), quando foram acrescentadas outras disciplinas, como Desenho e Cozinha teórica e prática.
Com a alteração feita pela Liga de Ensino em 1922, a disciplina Higiene foi adicionada no primeiro ano do curso, as disciplinas Desenho e Medicina prática foram adicionadas no segundo ano e, no terceiro ano, foram adicionadas as disciplinas Agricultura, Medicina Prática, Desenho, Lavagem e Engomada.
A disciplina higiene, então, era ensinada em todos os níveis de ensino da instituição, Rodrigues (2007) afirma que a disciplina funcionava como pré-requisito de todas as outras disciplinas, fato que reforça – novamente – a força da ideologia higienista. Nessa mesma perspectiva, percebemos no programa que a disciplina Cozinha, por exemplo, era fundamentada nos princípios de uma alimentação racional e higiênica. É importante salientar que “os preceitos higienistas estavam presentes nos discursos pedagógicos adotados em vários Estados brasileiros no que se refere também a práticas escolares” conforme explicitam Azevedo e Stamatto (2012, p. 67).
Para Pinheiro (2005), essa proposta curricular não se detinha apenas ao aprendizado de habilidades manuais, atividades de memorização e recomendando a educação intelectual da mulher, mas também possibilitava a profissionalização aquelas que desejassem o seguimento de uma carreira.
4. A concepção de mulher no currículo da Escola Doméstica
O primeiro aspecto a ser destacado nessa grade curricular é a prevalência da formação para o lar, a qual já era prevista nos documentos escritos por Castriciano. Marques Neto (2015) afirma que o fundador da ED queria que o conhecimento doméstico fosse a base do aprendizado na instituição, pois para ele o destino das alunas era o lar e a família. Para compreender o currículo da instituição não podemos perder de vista os ideais do fundador ao decidir criar a ED, tendo em vista que é defendido pela instituição a permanência de certos valores até os dias atuais.
A primeira legislação que concedeu o direito à instrução da mulher no Brasil surge em 1827[4], admitindo as meninas apenas no primeiro grau. Os liceus, ginásios e as academias eram reservados ao sexo masculino. Para a Pinheiro (2005), existia uma crença na melhoria da sociedade através da educação feminina que passou a tornar-se mais válida, desde que seguissem os preceitos da mulher no lar.
Nessa perspectiva, trazemos a discussão de Neto (2011, p. 242), que apresenta um discurso proferido por Castriciano em Conferência sobre educação da mulher, em que ele proferiu em seu discurso que uma mulher que soubesse ler não deixaria seus filhos ignorantes, pois quando se educa um homem, se educa um indivíduo e quando da instrução a uma menina, prepara-a para educação de uma família. Percebemos, então, uma perspectiva de mulher de conformidade com a discussão estabelecida por Stamatto (2002, p. 9) em que o lugar da mulher, naquele contexto, era o matrimônio, tendo ainda “o magistério primário visto como uma alternativa ‘decente’ para as não casadas, ainda que sob a tutela masculina.” A referida autora, cita, ainda, o caso de uma Escola Normal, no Piauí em 1882, cujo currículo oferecia, disciplinas propedêuticas e voltadas ao lar, contudo, ela discute que em 1910,
“(...) estavam institucionalizados em todo o país os grupos escolares, com novidades em termos de ensino, direção e supervisão escolar, havendo se não superioridade, igualdade numérica dos efetivos femininos nas escolas. Todavia, ao que parece (...) os costumes e as práticas cotidianas ainda amarravam as mulheres a velhos hábitos.” (STAMATTO, 2002, p. 8)
Nessa perspectiva, percebemos que o currículo da Escola Doméstica estava mais próximo às disciplinas oferecidas pela Escola Normal do Piauí, ainda focada na formação para o lar.
A Escola Doméstica era voltada ao âmbito privado da sociedade natalense, bem como era voltada às mulheres que buscavam o lar e o casamento, reiterando o ideal do lugar da mulher ser o matrimônio (PINHEIRO, 2009). A referida autora enfatiza que para as mulheres que não procuravam o lar e o casamento, mas, sim, buscavam o exercício da profissão docente, existia a Escola Normal de Natal.
Além dos fatores discutidos, Pinheiro (2005) também destaca que, em sua obra, Henrique Castriciano apresenta a forte presença da concepção de maternidade, desde o poema Mãe, de 1897, até a outros poemas que se dedicavam ao tema morte, que tratavam geralmente de órfãos ou mães que perdiam seus filhos, como “Berço Esquife” (1895), “Alma Extinta” (1895), “Supplica” (1896), entre outros.
Almeida (2004) discute que esse era o modelo normativo de mulher que foi criado desde meados do século XIX, um modelo no qual a mulher é sempre associada a maternidade, inspirado nos “arquétipos do cristianismo”. A referida autora continua a discutir sobre esse viés religioso da visão da mulher, expondo que para a Igreja “a ausência de educação religiosa nas escolas seria especialmente danosa às mulheres”, o que fez com que escolas católicas dirigidas às elites prosperassem cada vez mais no Brasil.
Apesar de ter uma imagem da mulher diretamente ligada à maternidade e ao lar, percebemos a ausência de disciplinas ligadas à religião, um ideal do fundador Castriciano, que buscava a laicidade e liberdade de culto na escola. Pinheiro (2005, p. 54), afirma que essa era a ideologia de Castriciano desde a idealização da ED.
Nesse contexto, Henrique Castriciano busca a modernização do processo educativo laico e fundamentado em procedimentos científicos, baseados no paradigma cartesiano. (...) A construção de um novo currículo se daria pelas ideias modernas, científicas, que se colocassem aliadas às práticas tradicionais.
Apesar de não conter disciplinas de cunho religioso, percebemos que a instituição continha em suas práticas cotidianas idas à missa, o que nos leva a pensar que de certo modo não consiste em laicidade, tendo em vista que o currículo não envolve apenas o quadro de disciplinas da instituição, mas também seus eventos e práticas cotidianas.
Em relação à mulher, é possível notar que a Liga de Ensino do RN defendeu os mesmos preceitos, levando em consideração “uma educação onde a mulher fosse instruída para que, no lar ou fora dele, soubesse guiar-se nos caminhos da vida” (BARROS, 2000, p. 91).
Na Tabela 3, optamos por dividir as disciplinas do currículo de 1914, reformulado em 1922, em teóricas e práticas, buscando evidenciar a prevalência para o lar de modo quantitativo. Nas discussões que seguem a tabela podemos refletir sobre a ênfase dada pela instituição às disciplinas de caráter prático.
| DISCIPLINAS | QUANTIDADE | |
| PRÁTICAS | Cultura Physica | 18 |
| Costura | ||
| Musica | ||
| Calligraphia | ||
| Cosinha | ||
| Agricultura | ||
| Leiteria | ||
| Anatomia | ||
| Criação | ||
| Jardinagem | ||
| Hygiene | ||
| Lavagem | ||
| Contabilidade | ||
| Cosinha artística | ||
| Methodologia | ||
| Economia da casa | ||
| Puericultura e Medicina prática | ||
| Chimica alimentar | ||
| TEÓRICAS | Arithmetica | 8 |
| Portuguez | ||
| Historia do Brasil | ||
| Geografia | ||
| Francez ou Inglez | ||
| Álgebra | ||
| História Universal | ||
| Educação Social |
Por meio do programa publicado no Jornal “A República”, edição nº 191 de 27/08/1914, foi possível perceber, entre outros fatores, que as disciplinas teóricas são mostradas de forma condensada, enquanto as disciplinas práticas são apresentadas com uma descrição mais detalhada.
Observamos que, de certo modo, as disciplinas de caráter teórico não eram prioridade para a instituição, tendo em vista que não apresentavam um delineamento de como deveriam ser ensinadas no programa curricular. A exemplo das disciplinas de português, história do Brasil e geografia, as quais são apresentadas juntas, como podemos perceber abaixo:
“LINGUA NACIONAL – CHOROGRAPHIA E HISTÓRIA DO BRASIL
- Estudo da Língua Portugueza: Grammatica applicada; composições práticas de construção e redação; analyse lexicológica, fonética e lógica das proposições.
- Elementos da chorographia e História do Brasil e, especialmente, do Rio Grande do Norte” (BARROS, 2000, p. 104).
Pinheiro (2005), no entanto, considera o currículo da escola amplo, por ter disciplinas de educação moral, doméstica, social, intelectual, estética, técnica, profissional, entre outras. Em alguns aspectos concordamos com a autora, por exemplopensamos que o currículo é amplo, contudo, também percebemos que a Escola Doméstica tinha uma perspectiva de ensino mais voltada à formação feminina de modo centrado no ensino prático doméstico, deixando de lado as disciplinas de cunho teórico. No próprio programa da instituição podemos verificar tal afirmação, assim, podemos compreender que era um currículo amplo, porém em alguns aspectos limitado.
Constatamos, assim, que o motivo pelo qual a instituição não dava a devida importância às disciplinas teóricas na época é que elas tinham o poder de fazer com que houvesse a reflexão e o ato de pensar, e para Castriciano não deveria exigir da mulher um
(...) excessivo esforço mental (...) e nem o meio social do Brasil tem necessidade de sábias e doutoras (...) a mulher não pode entregar-se a esforços intelectuais sob pena de atrofiar-se, atrofiando os seres a que psicologicamente está presa (PINHEIRO, 2005, p. 112).
Pinheiro (2005) salienta que nesse currículo, nota-se que a mulher não teria mais uma educação com princípios religiosos e sim científicos, mas como pilar das mudanças sociais, tendo como horizonte seus deveres primordiais com a família. Essa proposta curricular não se detinha apenas ao aprendizado de habilidades manuais e atividades de memorização e recomendando a educação intelectual da mulher. O que nos faz pensar na contraditoriedade de deixar as disciplinas teóricas de lado.
A transferência da disciplina higiene para o primeiro ano de curso reforça o forte caráter higienista da época. Para Moreira (2011, p. 126), o higienismo é uma “(...) ideologia científica que antecede o século XX vai ganhar contornos mais definidos e presentes a cada reforma de ensino chegando a seu ápice a partir dos anos de 1920”. Além disso, esse discurso higienista reforçava o lugar da mulher no lar, cuidando dos filhos, pois lhes “era atribuída a tarefa de ensinar a humanidade a formar novos cidadãos comprometidos com o novo Regime político e social, que poderia ser exercitada nos papéis de mãe e professora” (RODRIGUES, 2007, p. 97). Por conseguinte, percebemos que existe uma associação entre os preceitos higienistas que a instituição adotou e o projeto de mulher e sociedade que a instituição tinha.
5. Considerações finais
Foi possível concluir, dentre outros fatores, que a Escola Doméstica tinha uma perspectiva de ensino mais voltada à formação feminina de modo centrado no ensino prática doméstico. A mulher que a instituição pretendia formar teria como principal tarefa gerir a família, ser mãe e esposa.
Além disso, concluímos que a instituição adotou o discurso higienista e tal concepção fortaleceu a concepção de mulher da instituição, tendo em vista que Castriciano criou a escola a fim de formar para o lar e para a vida. Ou seja, fortaleceu a ideia de que o lugar da mulher era no lar, cuidando dos filhos, sendo atribuída à elas a formação de novos cidadãos – os filhos.
Consideramos que seja possível realizar um estudo mais detalhado acerca dessa temática, levando em consideração a ligação entre a concepção da mulher que a escola buscava formar e os preceitos pedagógicos adotados. Além disso, é possível buscar informações sobre quem foram as alunas da instituição e quais caminhos seguiram após passar pela formação doméstica da ED.
Referências
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Notas