A criação das Escolas Cenecistas no Brasil: uma abordagem histórica

The creation of the Cenecistas Schools in Brazil: a historical approach

Idinária Faustino Pereira
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Brasil
Lenina Lopes Soares Silva
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Brasil
Olivia Morais de Medeiros Neta
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

A criação das Escolas Cenecistas no Brasil: uma abordagem histórica

Research, Society and Development, vol. 7, núm. 11, pp. 01-14, 2018

Universidade Federal de Itajubá

Recepção: 18 Maio 2018

Aprovação: 28 Maio 2018

Resumo: A Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC) é uma instituição que possui uma presença significativa na educação brasileira e na política educacional. Sendo assim, nos propomos a pesquisar e analisar a história da CNEC, que começou como Campanha do Ginasiano Pobre (CGP), em Recife (PE), no ano de 1943. A pesquisa é de cunho documental e bibliográfico. O corpus documental é composto por Relatórios de atividade e publicações oficiais da CNEC. O entendimento de desenvolvimento de comunidade, educação não formal e história das instituições educativas orientam a análise da história da Campanha. O movimento para a criação da CGP originou-se no Brasil inspirado na experiência de Victor Raul Haya de La Torre, com a criação das Universidades Populares González Prada no início da década de 1920, no Peru. Felipe Tiago Gomes foi o principal protagonista e idealizador da Campanha que, junto com outros colegas universitários, resolveram preparar alunos carentes de recursos para dar continuidade aos estudos, além do ensino primário. Depois de fundar o primeiro Ginásio, resolveram expandir para todo o Brasil e chegaram ao Rio Grande do Norte em outubro de 1948. A CNEC assumiu um discurso de uma via entre o público e o privado, entre o Estado e o Mercado, embasando-se, para tanto, no mecanismo e no discurso do tema comunidade, um modelo onde as próprias pessoas da comunidade se encarregavam de administrar a Instituição.

Palavras-chave: CNEC, Felipe Thiago Gomes, Escolas Secundárias, História da educação.

Abstract: The National Campaign for Community Schools (CNEC) is an institution that has a significant presence in Brazilian education and educational policy. Thus, we propose to research and analyze the history of the CNEC, which began as the Ginasiano Pobre (CGP) Campaign in Recife (PE) in the year 1943. The research is documental and bibliographic. The documentary corpus is composed of activity reports, institutional publications of CNEC. The understanding of community development, non-formal education, and history of educational institutions guide our analysis of the history of the National Community School Campaign. The movement for the creation of the CGP originated in Brazil inspired by the experience of Victor Raul Haya de La Torre, with the creation of the Popular Universities González Prada in the early 1920s in Peru. Felipe Tiago Gomes was the main protagonist and founder of the Campaign, which, along with other university colleagues, decided to prepare students lacking resources to continue their studies, in addition to primary education. After founding the first Gymnasium, they decided to expand throughout Brazil and arrived in Rio Grande do Norte in October 1948. The CNEC took a one-way speech between the public and private, between the State and the Market, based , for both, in the mechanism and in the discourse of the community theme, a model where the people of the community themselves were in charge of administering the Institution.

Keywords: CNEC, Felipe Thiago Gomes, Secondary Schools, History of education.

1 Introdução

O objeto de estudo investigado para este artigo é a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC).[1] Esta é uma instituição que tem presença significativa na educação brasileira e na política educacional e que encontra-se presente em alguns estados da Federação. Sendo assim, nos propomos objetivamente a pesquisar e analisar a história da CNEC, que começou como Campanha do Ginasiano Pobre (CGP), em Recife (PE), no ano de 1943.

Nessa perspectiva, buscamos compreender também o momento histórico de implantação da CNEC para conhecer sua história educacional, social e política. Além disso, atentaremos para o papel exercido por Felipe Tiago, idealizador da Campanha, no processo de expansão da educação de nível médio no Brasil, bem como na política de implantação de escolas secundárias ginasiais no país.

Assim, quando pensamos na institucionalização da CNEC, nos deparamos com alguns questionamentos teóricos, inerentes a quem deseja realizar um trabalho voltado para a história e, nesse caso, história da educação. Com relação à instituição alguns questionamentos conduzem as reflexões, quais sejam: Por que essas instituições caíram nas graças dos governantes e obtiveram tanto apoio? A quem interessava essa Campanha? Desse modo, procuraremos compreender as razões que levaram a CNEC a obter tanto espaço na área educacional, além de tentar desvendar a sua tão pouca conhecida história no âmbito das pesquisas em história da educação.

Esses e outros questionamentos serviram de base para subsidiar a pesquisa de cunho documental e bibliográfico. Após mapear esse cenário, confrontamos a realidade encontrada com a bibliografia analisada e com os documentos norteadores, a fim de colaborar para a produção do conhecimento na área da história da educação, dando ênfase a história da educação profissional, bem como para contribuir com a prática pedagógica da formação de sujeitos que atuam na sociedade.

2. Felipe Tiago Gomes[2] e a Campanha para uma escola gratuita e de comunidade

Felipe Tiago Gomes nasceu no dia 1º de maio de 1921, no Sítio Barra do Pedro, município de Picuí, na Paraíba. Foi o filho caçula de Elias Gomes Correia e de Dona Ana Maria Gomes, que eram agricultores. O seu primeiro contato com os estudos foi em 1928, através da sua irmã Francisca, que já havia concluído o curso primário na cidade e assumiu a tarefa de alfabetizá-lo. (ASSIS; MAGALHAES; SOUZA , 2017).

Entre os anos de 1933 a 1935, ele passou a frequentar a escola pública de Picuí e depois foi conduzido por um professor ao Colégio Ginasial Pio XI, em Capina Grande/PB. Fundou e presidiu o Grêmio Lítero Cultural Humberto de Campos em Picuí, dois antes de concluir o Curso Ginasial. E no mesmo ano que se formara perdeu a mãe. (FERRER, 2010).

Terminado o Ginásio e sem condições financeiras para dar continuidade aos estudos, foi convidado por um juiz local, Dr. José Saldanha, para morar em sua residência no Recife e continuar seus estudos. Já em Recife, foi convidado por um colega, Everardo Luna, para morar na Casa do Estudante, onde também passou a trabalhar, primeiro, como porteiro, e logo em seguida como bibliotecário. Do contato diário com a biblioteca, ele teve acesso a diversas obras literárias. Dentre elas, O Drama da América Latina, do escritor John Gunther, onde é retratada uma experiência de Haya de La Torre para a alfabetização de índios no Peru. Essa obra o influenciou e o despertou para a criação de uma instituição que visasse assegurar o direito de estudar aos milhares de jovens carentes. Dois anos depois, em 1943, fundou a Campanha do Ginasiano Pobre, que no futuro, tornou-se a CNEC. (CNEG, 1959).

Em 1944, concluiu o pré-jurídico e em seguida ingressou na Faculdade de Direito do Recife, tornando-se representante da turma junto ao Diretório da Faculdade, posteriormente, presidente. Em 1945, Felipe chegava mais uma vez a Recife depois de suas viagens pelo Brasil, nesse momento aconteceu o assassinato de um colega da Faculdade pelo que ele chamava de “polícia-política” do Governo estadual. Era o tempo dos governos das Interventorias nomeadas pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas. Decepcionado ele adere ao Movimento de Redemocratização do País ao lado de José de Américo de Almeida e do Brigadeiro Eduardo Gomes. Filiou-se à UDN e formou um grupo de resistência ao Governo de Getúlio Vargas em Pernambuco.(FERRER, 2010).

Em 1946, foi eleito prefeito de Picuí (considerado, durante noves meses, o prefeito mais jovem do estado). Exerceu o mandato ao mesmo tempo em que frequentava as aulas da Faculdade de Direito. Foi presidente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Pernambuco e fundou o Teatro Universitário de Pernambuco .(FERRER, 2010).

Concluiu o curso de Direito em 1948, tornando-se funcionário no Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE), mas acabou pedindo demissão para poder da mais assistência a sua Campanha. (CNEG, 1953).

Em 1950, tornou-se integrante da Campanha de Erradicação do Analfabetismo no Estado do Rio de Janeiro e organizou o Movimento Popular de Alfabetização. Foi colaborador do movimento cívico contra o analfabetismo no Estado do Espírito Santo, nomeado diretor do Departamento de Ensino Médio da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro e, tornou-se membro diretor da Associação Brasileira de Educação. A partir de então, dedicou-se exclusivamente às ações da CNEC. (FERRER, 2010).

Professor Felipe Tiago Gomes faleceu em Brasília, no dia 21 de setembro de 1996, vítima de complicações cardíacas. Entre aqueles que o conheceram, a característica mais marcante da sua personalidade era a facilidade de se comunicar e conseguir apoio para fazer as coisas que desejava. Em sua trajetória de fundador e líder da CNEC, Felipe Tiago Gomes recebeu inúmeras homenagens, além de títulos de cidadão honorário de diversos estados da federação. É conhecido e respeitado por todos aqueles que conhecem o verdadeiro sentido de educar. (CNEG, 1959).

3. Campanha Nacional das Escolas da Comunidade – um pouco de sua História

A história da CNEC inicia em Recife, no ano de 1943, como Campanha do Ginasiano Pobre. A ideia de sua criação partiu do estudante secundarista Felipe Tiago Gomes, que, após a leitura do livro “O drama da América Latina”, encontrou a inspiração, em uma experiência educacional desenvolvida pelo líder peruano Haya de la Torre, na capital do Peru, Lima, na década de 1920. A ação do líder em criar escolas de alfabetização para os índios peruanos utilizando, como professores, estudantes que repassavam seus conhecimentos gratuitamente. (FERRER, 2010).

Empolgado em colocar em prática esse modelo no Brasil, Felipe convocou um grupo de amigos e expôs a experiência, propondo a ideia de fundarem um ginásio gratuito que pudesse preparar alunos carentes para o ensino secundário e, quem sabe, até para ingressarem na universidade. A ideia foi aceita e serviu como ponto de partida para a criação de uma rede de escolas em todo o Brasil. (FERRER, 2010).

O “Ginásio Castro Alves” foi o primeiro “Ginásio Gratuito” da Campanha, o mesmo foi inaugurado no dia 1º de agosto de 1944 e instalado à Rua Aurora, 363, 1º andar. A sala para o funcionamento do curso noturno foi cedida pelo Sindicato dos Contabilistas de Pernambuco. Nesse processo já se encontrava em funcionamento o Curso de Admissão ao curso secundário ginasial criado pela Campanha. Contudo, não havia cadeiras nem carteiras, os alunos tinham que assistir às aulas de pé. Mas, mesmo com todas essas dificuldades o ano terminou com duas grandes vitórias para a Campanha: a aquisição de 50 carteiras para o Curso de Admissão do “Ginásio” Castro Alves e doações de livros para a Biblioteca Miguel Couto. (GOMES, 1965).

O ano de 1945, no entanto, foi considerado um ano difícil, pois os jovens Felipe Tiago Gomes, Genivaldo Wanderley e Juarez Gomes Lopes, quase sem dinheiro, pegaram um avião da FAB e dirigiram-se ao Rio de Janeiro para junto ao Ministério de Educação e Saúde tratar do funcionamento oficial do Ginásio Castro Alves, sem grandes êxitos, apenas promessas (CNEG, 1953).

Em 1946, os líderes do movimento resolveram mudar o nome da entidade para “Campanha de Ginásios Populares”. Para eles, “Campanha do Ginasiano Pobre” dava a impressão de que se tratava de um trabalho sentimental (GOMES, 1965). No mesmo ano, 1946, para evitar que o movimento fosse confundido com uma obra comunista pelo uso da palavra “popular”, os líderes do movimento resolveram mudar o nome da instituição para “Campanha Nacional dos Educandários Gratuitos”- CNEG. Com as mudanças no Estatuto e com as reformas educacionais, os ginásios passaram a não ser mais gratuito o que terminou por definir o termo em Campanha Nacional das Escolas da Comunidade, que perdura até hoje. (GOMES, 1965).

O governo provisório de Getúlio Vargas (1930-1934) criou as bases para o desenvolvimento industrial do Brasil (FERRER, 2010). Mas, foi durante o período compreendido como Estado Novo (1937-1945) que a política educacional se voltou para a formação de uma força de trabalho em atendimento às necessidades de modernização da economia brasileira e para a regulação da participação na vida política. Esse período foi marcado por movimentos em favor do retorno as liberdades democráticas e por pressões internas contra a ditadura de Vargas, que seriam acirrados com o final da Segunda Guerra Mundial.

No ano de 1948, com o objetivo de conseguir financiamentos e apoio para a sua campanha, Felipe Tiago viajou pelo Brasil. Visitaram os Estados do Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba. Ao retornar a Pernambuco, presta contas da missão empreendida e comunica o objetivo de seguir adiante até os Estados do Sul, com o mesmo propósito. Assim, Felipe Tiago dá sequência a sua maratona pelos Estados em direção a sul, partindo, inicialmente, para Alagoas, seguindo em direção a Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo (ASSIS; SOUZA; MAGALHAES, 2017).

No dia 3 de janeiro de 1949, o Delegado da Campanha chegou ao Rio de Janeiro sem dinheiro e sem emprego e, depois de algumas visitas, deixou de ir ao Palácio do Catete e passou a frequentar os escritórios dos Deputados Federais, sendo bem sucedido, ao ponto de obter um auxílio em dinheiro para ajudar na Campanha, numa época considerada por ele muito difícil. No dia 20 de fevereiro do mesmo ano, o jornal Correio da Manhã publicou uma nota informando sobre a inauguração do “Ginásio Felisberto de Carvalho” em organização num prédio cedido pelo Governo do Estado. A matéria informava, ainda, que no mês seguinte seria “lançada, em todos os Estados a instalação de cinquenta ginásios gratuitos para classes pobres no Brasil, e estes deveriam ser inaugurados até o ano de 1950” (GOMES, 1965, p. 78).

O apoio do Poder Legislativo contribuiu com resultados favoráveis à CNEG. Na época, com a ajuda do Deputado paraibano Plínio Lemos, conseguiu marcar para que fosse realizada uma reunião no legislativo, no dia 7 de junho, onde compareceram representantes de onze Estados brasileiros: Amazonas, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo, Bahia, Rio de Janeiro, Mato Grosso, São Paulo e Paraná. A mesa redonda, presidida pelo Deputado Munhoz da Rocha, foi seguida de uma Comissão de Educação e Cultura do Senado Federal, outra da Assembleia Legislativa do Estado do Rio e outra da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Na ocasião, segundo Felipe Tiago, Plínio Lemos apresentou o projeto de Lei nº 199/49, publicado no Diário do Congresso, que beneficiava a Campanha com o valor de Cr$ 520.000 (quinhentos e vinte mil cruzeiros), embora a importância nunca tenha sido paga pelo Governo Federal (GOMES, 1965).

O ano de 1950 foi considerado como próspero para a Campanha, pois “surgiram mais de 19 ginásios, em várias regiões do país” (CNEG, 1953, p. 19). Na opinião de Felipe Tiago, o Brasil teria acordado por um instante e tomado conhecimento da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Para ele, a década de 1950 foi iniciada como um ano de grandes vitórias. Dos 5 (Cinco) estabelecimentos existentes em 1949, passava-se em 1950, para 26 (Vinte e seis). Dessa forma, além do Distrito, outros Estados como Amazonas, Pará, Maranhão, Pernambuco, o Espírito Santo, Mato Grosso, a Paraíba, Alagoas e Goiás, também foram contemplados com Educandários Gratuitos inaugurados nesse mesmo ano.

Entre o segundo semestre do ano de 1952 e o primeiro de 1953 foram criados 27 (Vinte e sete) novos ginásios distribuídos nos Estados do Maranhão, Piauí, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Minas Gerais, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Bahia. No mês de novembro, a CNEG passava a contar com uma subvenção federal no valor de ₢$ 500.000,00 (CNEG, 1953). Dez anos depois de sua criação, os dirigentes da Campanha conseguiriam ampliar a sua rede de escolas em todo o país. A CNEG já se fazia presente em todos os Estados da Federação, com 42 (Quarenta e dois) ginásios e 13 colégios, em 54 cidades, atendendo a 20 mil alunos (CNEG, 1953).

Foi através do Decreto nº 36.505, de 30 de novembro de 1954, que a CNEG foi instituída oficialmente como uma sociedade-civil, com sede na capital do Distrito Federal e declarada como uma instituição de utilidade pública. A adoção da denominação “movimento cenegista” seria apresentada no Boletim da CNEG, sendo publicado em dezembro do mesmo ano, intitulado: “Cenegismo – cenegista” (VERMELHO, 1959, p. 50). Felipe Tiago, admite que a Campanha ganhou espaço porque D. Sarah Kubitscheck, esposa do Presidente da República, havia assumido a presidência da Campanha entre 1956 e 1957, foi nesse momento que se intensificou a construção e ampliação da rede escolar no Brasil.

No ano de 1959, o movimento Cenegista, disseminado no país, até o mês de junho já contava com 224 (Duzentos e vinte e quatro) Educandários de Ensino Secundário do 1º ciclo e, 23 (Vinte e três) do 2º ciclo, além de 10 (Dez) Escolas Normais. Na época, teriam sido implantados pela CNEG, 203 (Duzentos e três) Ginásios e 21(Vinte e um) Cursos Comerciais, como também, 3 (Três) Cursos Científicos e 20 (Vinte) Cursos Técnicos de Contabilidade (2º ciclo) no Brasil (CNEG, 1959).

Na década de 1960, verificou-se uma queda na taxa de crescimento do número de escolas e de matrícula, apresentando decrescimento a partir do período 1976-1980. Entre os fatores desse fenômeno, podemos apontar a preocupação com a ampliação do seu patrimônio, construindo-se prédios próprios para as escolas já existentes e, também, expansão progressiva das suas atividades para outros setores de serviços e ramos do ensino. A participação de verbas públicas no financiamento da Instituição permanece. Tais contribuições são aquelas consignadas por lei, excluindo-se outras formas de contribuição, como cessão de prédios das escolas públicas para funcionamento das escolas da Campanha e de funcionários públicos para as administrações da Campanha, pagamento de professores e etc.

Com relação ao apoio estatal, entre os anos de 1965-1967 a Instituição demonstra preocupação em responsabilizar as comunidades pela manutenção das suas escolas. Nessa perspectiva é que se verificou, de forma progressiva, a diversidade de atuação da Campanha. Desde as décadas anteriores, a comunidade tem sua participação concretizada por meio de contribuição financeira, em serviços e donativos.

O Congresso da CNEG realizado, em 1969, teve a presença de alguns militares, demonstrando ainda a sua ligação com personalidades do Estado, semelhante ao que acontecia durante o período populista. Nesse encontro foram tomadas importantes decisões, como a modificação na denominação da entidade e relativas ao aspecto político-pedagógico. Estas decisões vinculam-se à política educacional do período, a qual dá ênfase à formação para o trabalho, o que vai prevalecer na reforma educacional preconizada na Lei 5.692 de 1971.

Outra medida pedagógica adotada tem como objetivo atividades de grupos, numa orientação do trabalho com comunidade. Esse trabalho torna-se cada vez mais evidente na orientação da CNEG e determinante na diversificação de atividades, as quais passaram a oferecer. Em consonância com o discurso da comunidade, dá-se continuidade ao debate sobre a mudança de denominação, iniciado em 1967. O tema da comunidade estará presente, também, na sua denominação, que passará a ser CNEC.

Na próxima fase da história da Campanha, iniciada em 1970, não haverá mais expansão no setor escolar, entretanto, relacionada ao comunitarismo, mas a expansão em outros setores de atividades. Isso está previsto no Estatuto de 1969, no qual consta entre as fontes de renda, atividades agrícolas, comerciais e industriais que viriam a ser exploradas.

Na década de 1980, Silva (2001), afirma que foi concretizada a implementação de escola produtiva, a exemplo de fazendas-escolas. Nessa experiência, a CNEC se propõe a oferecer ensino profissionalizante e melhorar a qualidade de vida da população, através da assistência técnica aos pequenos produtores. Essa é mais uma atividade ligada ao Desenvolvimento de Comunidade, a qual contou com o apoio de diversos órgãos governamentais, tais como o Instituto Brasileiro do Café e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, pretendendo a criação de Centros de Treinamento Rural.

No ano de 1985, a Campanha recebeu apoio da Secretaria de Ação Comunitária ligada à Presidência da República, a qual pretendia realizar projetos nas áreas de hortas e pomares comunitários, mecanização comunitária, telefonia comunitária, teatro amador, bibliotecas comunitárias, reparação de escolas primárias, horta e alimentação escolar, cursos pré-profissionalizantes, centro esportivo comunitário, creches comunitárias, campanha de roupas e agasalhos, posto médico comunitário, pontes e estradas, centro rural comunitário, entre outros (SILVA, 2001).

Na fase atual da trajetória da CNEC, iniciada no ano de 1985, a instituição vem alegando dificuldades em obter recursos estatais para a sua manutenção, apesar da manifestação de apoio por parte de autoridades governamentais e convênios com órgãos estatais, assim como repasse de recursos e auxílios diversos. Entretanto, as atividades desenvolvidas se diversificaram cada vez mais, como alternativa de captação de recursos (SILVA 2001).

No ano de 1995 durante o 33º Congresso Nacional da CNEC, no qual foram apresentadas as mudanças de rumos no sentido da maior eficiência gerencial e da elevação da qualidade dos serviços.[3] Consideramos que esse ano foi um marco na história da Instituição, em razão das mudanças significativas verificadas no discurso veiculado e nas ações adotadas. A Campanha assume-se como uma empresa privada e prepara-se para competir no mercado. O discurso comunitário é substituído por um discurso mais objetivo e racional, de cunho empresarial.

Apesar da crise da instituição, seus dirigentes a consideraram vitoriosa em razão de ter sobrevivido por cinquenta e cinco anos. O seu sucesso, segundo um dos dirigentes, citado em Silva (2001) que traz uma citação de Teixeira (1997-98, p.8), deve-se a três fatores básicos:

a) a falta de programas governamentais voltados para a expansão da rede pública e consequente atendimento de uma necessidade da população;

b) a carência de escolas nos municípios de pequeno porte;

c) a proposta de ação comunitária na solução dos problemas educacionais, envolvendo a própria população consumidora na organização e viabilidade de uma unidade de atendimento escolar (SILVA, 2001, p.14).

A adaptação da instituição ao novo contexto é uma necessidade é uma questão de sobrevivência, resgatando o trabalho com comunidade em novas bases. No ano de 1998, os superintendentes estaduais, reunidos em Brasília, discutiram a reestruturação organizacional, administrativo e financeiro da Campanha. Com relação ao MEC, a instituição efetiva uma redução na oferta de matrícula e amplia a oferta de serviços assistenciais, na perspectiva da ação comunitária, alegando ser uma instituição pública não estatal, ou privada sem fins lucrativos, a fim de manter os privilégios historicamente adquiridos do Poder Público, inclusive o de reivindicar os recursos financeiros que a legislação educacional permite.

Assim, a CNEC assumiu o discurso de uma via entre o público e o privado, entre o Estado e o Mercado, embasando-se, para tanto, no mecanismo e no discurso do tema comunidade, um modelo onde às próprias pessoas da comunidade se encarregavam de administrar a Instituição. Na realidade, ela se constitui, historicamente, em uma via de privatização adotada pelo Estado, sobrevivendo com recursos advindos dos poderes públicos.

Percebe-se, através da trajetória da CNEC, que o Estado continuou presente em suas ações, de forma modificada, nas políticas sociais: através de uma política privatista explícita e não apenas através de práticas clientelistas.

4. A política da Campanha Nacional das Escolas da Comunidade

Felipe e seus amigos cursaram o ginásio no período em que a construção da nacionalidade era a base de toda ação pedagógica. Essa nacionalidade era moldada na história mitificada dos heróis nacionais e do culto as instituições e autoridades. Já o conceito curricular era composto por matérias como educação moral e cívica com ênfase nos valores pregados pelo catolicismo brasileiro.

Servir a pátria virou uma palavra de ordem e a juventude se sentia responsável por efetuar as mudanças necessárias para o país entrar no ritmo do desenvolvimento econômico e social. Essa ajuda era materializada por intermédio de campanhas que se espalhavam pelo país inteiro solicitando a ajuda dos cidadãos no campo da educação. Nos panfletos, podíamos encontrar esse discurso patriótico e idealista, misturado a piedade franciscana para com os pobres e iletrados, pregando a ideia de que só a educação e a única capaz de libertar o homem da escravidão da ignorância e da pobreza.

A CNEC se definia como comunitária, de utilidade pública, sem fins lucrativos, negando a sua face privada. Nessa última fase da sua trajetória, passa a assumir-se como empresa, justificando a finalidade não lucrativa pelo fornecimento de serviços a preço de custo. Desde a fundação, ela passou por várias reformulações em sua estrutura administrativa e filosófica, pois já foi gratuita, semigratuita, escola de baixo custo; E foi gratuita quando ainda não recebia nenhuma ajuda financeira da União ou dos Estados. O exercício do magistério já foi inteiramente voluntário. Com o crescimento da rede, cresceu também a complexidade para administrá-la.

A política de expansão da educação de nível médio no Brasil, adotada por parte do Estado, no momento em que a defesa da escola pública, gratuita e de qualidade, era bandeira de luta em todo o país, passou a incorporar a escola cenecista, como forma de conciliar jogos políticos de interesses públicos e privados. Para Felipe Tiago Gomes (1965) a “escola cenecista”, caracterizada por um modelo de escola que se situava entre a escola pública e privada, consolidava-se como a escola da comunidade, como fruto dos impulsos de ordem filosófica e sociológica, e dos anseios do grupo fundador da Campanha originária no Recife em 1943 (GOMES, 1965). Já Cunha (1991) destaca a dimensão e importância da Campanha além de ressaltar o duplo interesse do Estado no incentivo nesse tipo de iniciativa: “I ) Cooptar as lideranças, fazendo-as intermediárias entre as demandas da população e as ‘realizações’ do governo; II ) Diminuir os gastos com os serviços públicos demandados pela população de baixa renda” (CUNHA, 1991, p. 389).

Nesse processo, vale assinalar a existência e a presença das disputas entre os setores sociais pela hegemonia do ensino secundário, estes que passaram a empreender esforços no sentido de garantir esse nível de ensino para as amplas camadas da população, que viam no ensino secundário uma possibilidade de acesso a melhores condições de vida e social. (RODRIGUES, 2009, p. 120-1).

Em defesa da CNEC, o professor Lucio de Melo, superintendente desse órgão por mais de três décadas, afirma em seu discurso que essa campanha teria sido responsável pela interiorização dos ginásios, pela democratização do ensino, pelo despertar do governo para a necessidade de mais escolas para os pobres e pelo surgimento de uma nova mentalidade pedagógico e administrativo escolar entre outras. Por outro lado, a Campanha é acusada por diversas vezes de “sugadora” de recursos públicos por prestar ensino de baixa qualidade e de ser meio de projeção políticas para algumas pessoas.

A campanha chegou até o começo desse século, com mais de 2000 escolas espalhadas por todo o Brasil, formando uma rede que penetrou nas cidades mais carentes e nas periferias dos grandes centros urbanos. A partir de 2001, reflexos das mudanças nas leis da educação, que obrigava os estados a oferecerem ensino público do primário ao secundário, a CNEC parece ter perdido a razão de ser. Sem o dinheiro público, passou a cobrar mensalidades escolares para manter as suas despesas, o que não a diferenciava dos estabelecimentos particulares, partindo para a livre concorrência.

Apesar da significativa contribuição da campanha, percebemos que, atualmente não existe nenhuma investigação a respeito desse tema, talvez por muitos acreditarem que essas instituições eram apenas sugadoras de recursos públicos. A partir dessa Campanha, uma grande quantidade de jovens, mesmo residindo em áreas distantes dos centros urbanos, teve a oportunidade de cursar o ensino secundário e até mesmo o superior.

5. Considerações finais

Este trabalho destacou-se a trajetória da implantação das escolas cenecistas no Brasil, como também as suas contribuições para a educação brasileira, além de destacar as ações e o papel exercido por Felipe Tiago Gomes no processo de implantação de escolas secundárias ginasiais no país, com a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos.

Embora a Campanha, protagonizada por Felipe Tiago Gomes, tenha exercido um papel importante no processo de expansão do ensino secundário no Brasil, onde milhares de jovens, com a criação de escolas ginasiais nas diversas regiões do país, tiveram a oportunidade de concluir os seus estudos. Observamos que a história oficial praticamente desconsidera a presença da CNEG e a ação de Felipe Tiago na memória educacional brasileira.

A presença de disputas políticas entre os setores sociais pela hegemonia do ensino secundário empreenderam esforços para garantir esse nível de ensino para as amplas camadas da população – os que podiam e os que não podiam pagar por seus estudos, pois viam no ensino secundário uma possibilidade de acesso a condições de existência mais dignas.

A “escola cenegista”, caracterizada por um modelo de escola que se situava entre a escola pública e a particular, consolidava-se como a escola da comunidade, como fruto dos impulsos de ordem filosófica e sociológica, e dos anseios do grupo fundador da Campanha originária no Recife em 1943.

A pesquisa destaca a dimensão e a importância da Campanha, ressalta o duplo interesse do Estado no incentivo desse tipo de iniciativa, fazendo das lideranças locais a ligação entre a população e as investidas governamentais nessa relação que mescla público e privado em questões sociais e de Estado no país.

A política de expansão da educação de nível médio no Brasil, adotada no momento em que a defesa da escola pública, gratuita e de qualidade era bandeira de luta em todo o país, passou a incorporar a escola cenecista como forma de conciliar jogos políticos de interesses públicos e privados, em conflito.

Ressalta-se que, a CNEC ao longo de sua existência tem se organizado com características diversas de acordo com os vários contextos onde se localiza, buscando sempre atender à política educacional implementada pelo Estado, e, com várias ações na perspectiva da educação comunitária, compreendendo um leque considerável de atividades, abrangendo da educação infantil, passando pela educação profissional até a educação superior.

Por fim, essa é uma pequena síntese da trajetória da CNEC que possibilita tornar evidentes alguns elementos que pode-se compreender contribuíram para a inserção do estranho modelo que mescla educação pública e privatizada na organização e funcionamento da educação brasileira. Isso permite um melhor entendimento da redução e/ou modificação da intervenção estatal nos serviços essenciais à população, como a educação e outros, partindo da ideia de que, enquanto o Estado se apresentava no modelo de Bem-Estar[4], oferecendo serviço social; a CNEC oferecia serviços, compondo um braço do Estado na oferta da educação, ou seja, uma via de privatização.

Referências

ASSIS, D. L. M; MAGALHAES, L. D. R; SOUZA, L. Felipe Tiago Gomes e a politica de criação dos “Ginásios gratuitos” no Brasil na primeira metade dos anos de 1950. Foz do Iguaçu, 2017.

CAMPANHA NACIONAL DE EDUCANDÁRIOS GRATUITOS (CNEG). Relatório das atividades da CNEG: jul. 1958 a jun. 1959. Salvador: CNEG, 1959.

CAMPANHA NACIONAL DE EDUCANDÁRIOS GRATUITOS (CNEG). Relatório dos primeiros dez anos de lutas em favor do ensino gratuito. Salvador: CNEG, 1953.

CUNHA, L. A. Educação, Estado e democracia no Brasil. São Paulo: Cortez, 1991.

FERRER, S. M. V. A campanha Nacional das Escolas da Comunidade – CNEC e o “entusiasmo” pela Educação Ginasial no Ceará no período de 1958 a 1963. 240p. (Dissertação de Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.

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Notas

[1] Usaremos a sigla CNEC – Campanha das Escolas da Comunidade, termo atualmente mais utilizado. Porém, algumas vezes citaremos outra nomenclatura CNEG – Campanha Nacional dos Educandários Gratuitos.
[2] Grande parte dos dados biográficos aqui citados foi retirada da página da CENEC na internet: http://www.cenec.br/portal12/index.php acessado em 20 de janeiro de 2018.
[3] Informação contida na Revista Educação Comunitária. Jul/ago/set de 1995, p. 04.
[4] Época compreendida pela política do Estado Novo no Brasil (1937-1945), caracterizada pela doutrina de concentração de poder no Estado, sendo este visto como a única instituição capaz de garantir e realizar o bem comum.
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