Educação, Sociedade e desenvolvimento: rupturas e continuidades da repetição de Auschwitz*

Education, Society and development: ruptures and continuities of the repetition of Auschwitz

Educación, Sociedad y desarrollo: rupturas y continuidades de la repetición de Auschwitz

Rogério Rodrigues
Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), Brasil

Educação, Sociedade e desenvolvimento: rupturas e continuidades da repetição de Auschwitz*

Research, Society and Development, vol. 8, núm. 1, pp. 01-14, 2019

Universidade Federal de Itajubá

Recepção: 29 Agosto 2018

Revised: 26 Setembro 2018

Aprovação: 01 Outubro 2018

Resumo: O objetivo deste ensaio é abordar reflexões referentes às mediações entre educação, sociedade e desenvolvimento, no sentido de compreender a hegemonia dos processos formativos que se constituem como um paradigma, em que as características componentes de um sujeito ideal e padrão funcionam no imaginário social de sujeito educado - embora ele permaneça como um ideal a ser alcançado numa noção de competência. A problematização de tal processo estigmatizador será enriquecida por meio das questões levantadas sobre as relações entre educação e sociedade, a partir da teoria crítica. A metodologia de investigação deste trabalho insere-se numa hermenêutica da leitura de autores que subsidiam a análise sobre a questão do sujeito educado na modernidade. Baseia-se também em dados coletados numa unidade de ensino superior. Os resultados indicam, a partir de Adorno (1995, p.121), que “[...] é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são impelidas necessariamente para o lado subjetivo”. Conclui-se, então, que prevalece como paradigma no campo educacional um foco instrumental, que consiste numa atitude fria e calculada, na qual a ideia de eficácia e eficiência são triunfos valorizados como a noção de orgulho próprio para que o indivíduo se constitua enquanto sujeito capaz e competente para o ingresso no mercado de trabalho, que, por sua vez, pauta-se numa estrutura de hierarquia de subordinação do sujeito.

Palavras-chave: Educação, Desenvolvimento, Prática Educativa, Conhecimento.

Abstract: The purpose of this essay is to address reflections regarding the mediations between education, society and development, in order to understand the hegemony of the formative processes that constitute as a paradigm, in which the component characteristics of an ideal and standard subject work in the social imaginary of subject educated - although it remains an ideal to be achieved in a notion of competence. The problematization of such a stigmatizing process will be enriched through the questions raised about the relations between education and society, based on critical theory. The research methodology of this work is inserted in a hermeneutics of the reading of authors who subsidize the analysis on the subject of the educated subject in modernity. It is also based on data collected at a higher education unit. The results indicate, from Adorno (1995, p. 211), that “[...] é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são impelidas necessariamente para o lado subjetivo”. We conclude that an instrumental focus prevails as an educational paradigm, which consists in a cold and calculated attitude, in which the idea of effectiveness and efficiency are valued triumphs as the notion of self pride for the individual to become an able and competent for entering the labor market, which, in turn, is based on a structure of hierarchy of subject subordination.

Keywords: Education, Development, Educational Practice, Knowledge.

Resumen: El objetivo de este ensayo es abordar reflexiones referentes a las mediaciones entre educación, sociedad y desarrollo, en el sentido de comprender la hegemonía de los procesos formativos que se constituyen como un paradigma, en que las características componentes de un sujeto ideal y patrón funcionan en el imaginario social de sujeto educado - aunque él permanezca como un ideal a ser alcanzado en una noción de competencia. La problematización de tal proceso estigmatizador será enriquecida por medio de las cuestiones planteadas sobre las relaciones entre educación y sociedad, a partir de la teoría crítica. La metodología de investigación de este trabajo se inserta en una hermenéutica de la lectura de autores que subsidian el análisis sobre la cuestión del sujeto educado en la modernidad. Se basa en datos recogidos en una unidad de enseñanza superior. Los resultados indican, a partir de Adorno (1995, p.121), que "[...] es extremadamente limitada la posibilidad de cambiar los supuestos objetivos, es decir, sociales y políticos que generan tales acontecimientos, los intentos de contraponerse a la repetición de Auschwitz son impulsadas necesariamente hacia el lado subjetivo ". Se concluye, entonces, que prevalece como paradigma en el campo educativo un foco instrumental, que consiste en una actitud fría y calculada, en la cual la idea de eficacia y eficiencia son triunfos valorados como la noción de orgullo propio para que el individuo se constituya en cuanto sujeto capaz y competente para el ingreso en el mercado de trabajo, que, a su vez, se pauta en una estructura de jerarquía de subordinación del sujeto.

Palabras clave: Educación, el desarrollo, Práctica Educativa, Conocimiento.

I. Introdução – o impossível na formação do sujeito emancipado

Compreender as relações entre o desenvolvimento e a modernidade implica diversos fatores complexos e, dir-se-ia, portanto, a necessidade da produção de conhecimentos que abordem a velocidade da dinâmica do real, que se reconstitui a cada momento e resulta em diversos fatores que subsidiam as condições objetivas e subjetivas da existência humana.

No caso específico desta linha de investigação, o ponto de estudo centra-se nas interfaces entre educação, sociedade e desenvolvimento, em que se repete uma estrutura não emancipatória do sujeito (BOURDIEU, 1982) perante o social. Portanto, o objetivo deste ensaio é abordar reflexões referentes às mediações entre educação, sociedade e desenvolvimento, no sentido de compreender a hegemonia dos processos formativos que se constituem como um paradigma, em que as características componentes de um sujeito ideal e padrão funcionam no imaginário social de sujeito educado - embora ele permaneça como um ideal a ser alcançado numa noção de competência.

Neste contexto, cada um dos eixos (educação, sociedade e desenvolvimento) constitui-se uma grande esfera de estudo, mas a preocupação é estudar as bordas de contato entre esses campos, que podem definir a repetição das condições necessárias para o embrutecimento ou as rupturas para o processo de emancipação do sujeito.

Como podemos pensar a polaridade entre o embrutecimento ou emancipação? Basicamente, podemos compreender que ocorrem as condições do embrutecimento “[...] quando uma inteligência é subordinada a outra inteligência” (RANCIÈRE, 2002, p. 31). Desse modo, é de fundamental importância afinar o estudo nessas dimensões que realizam a interface entre educação, sociedade e desenvolvimento, no sentido de se estabelecer um plano de estudo para a identificação de elementos comuns, que permitam balizar essas diversas esferas em que o sujeito se insere no cotidiano de sua existência em sociedade, caracterizando-se interditado para os processos de emancipação.

Parte-se do pressuposto de que o ponto comum e central desse pano de fundo é a questão de como seria possível o sujeito, na modernidade, realizar-se numa vida que se constitua em harmonia com todo o sistema de vida do planeta. Portanto, em todo início de curso, para os alunos do mestrado que possuem em sua ementa propositiva o dever de questionar os modelos hegemônicos que se encontram estabelecidos, pergunta-se como seria possível a transmissão de saberes que pudessem colaborar com a construção de um planeta que tenha como base a harmonia entre os sujeitos (educação), um modo de vida consistente (sociedade) e a produção da subsistência, o respeito para todas as espécies do planeta (desenvolvimento).

Analisa-se que essas preocupações ecológicas - ou uma hipótese de sujeito no campo da educação, sociedade e desenvolvimento - façam parte de uma necessidade de se evitar práticas não democráticas, em que algumas decisões são tomadas em diversas instâncias, não se levando em consideração o conjunto de todas as espécies do planeta e contrariando a todos com a atuação de práticas autoritárias (educação), com a produção de vida doente (sociedade) e com a desconsideração da sustentabilidade na produção da subsistência (desenvolvimento).

Dir-se-ia que pensar ecologicamente no conjunto das práticas sociais é, em parte, favorecer o exercício da produção do conhecimento multidisciplinar, que, também, em parte, seria algo central, que atravessa os cursos oferecidos no programa mestrado em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), pois de que adianta a produção do saber científico, se não se levar em consideração que

O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente “ossificada” por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão [...] (GUATTARI, 1990, p. 7).

Nesse caso, ao se pensar as relações presentes entre educação, sociedade e desenvolvimento, tem-se, como principais elementos de estudo, a radicalização da compreensão crítica do sujeito e o questionamento das condições de ruptura e continuidade da barbárie, que pode ser observada em diversas modalidades de atuação dos sujeitos, desde as mais simples do seu cotidiano, como lavar a calçada da rua com água potável, até as decisões maiores assumidas por gestores de empresas, que contaminam grandes rios e nascentes com elevadas quantidades de poluentes.

No cotidiano, são diversos os exemplos de práticas não condizentes e que produzem o descaso com a vida em sociedade. O que mais chama a atenção é quando as formas de lazer, na ocupação do tempo livre também se constituem em modalidades sistemáticas de agressão ao meio ambiente. No entorno da cidade de São Paulo, nas proximidades do Parque Estadual da Serra Cantareira, existem áreas que são usadas como espaço para diversão daqueles que praticam uma atividade chamada “trilha ecológica”. Essa prática de lazer consiste em ficar encalhando carros e motos, por horas, nos caminhos entre as árvores. Essa diversão tem promovido um processo erosivo que chega a medir três metros de profundidade em alguns lugares. Interpreta-se que isso é uma prática nada ecológica, pois leva à destruição, por completo, do solo. No entanto, o que se pode falar daqueles que vão à praia e deixam na areia uma grande quantidade de plástico, que, muitas vezes, é lançado ao mar? Em termos de história, por diversas vezes, os conflitos de guerras colocam em evidência o que o “humano, demasiadamente humano” (NIETZSCHE, 2000) tem de pior, como por exemplo, a ocupação alemã na Segunda Grande Guerra Mundial (1940-1945), que realizou a proeza da degeneração das relações humanas nos campos de concentração: o extermínio de milhões de prisioneiros dos territórios ocupados.

Pode-se ter como um paradigma em comum dessas produções humanas da destruição que se apresenta nas práticas de lazer em finais de semana nas proximidades da Serra da Cantareira, o plástico no mar e a barbárie produzida no campo de concentração e extermínio, qual seja: uma atuação organizada por uma consciência alienada que produz, respectivamente, a morte de árvores, peixes e tartarugas e de sujeitos aptos à violência, que buscam eliminar os outros identificados como diferentes. Ficam as seguintes questões: hoje, como se pode pensar a modernidade como algo que possa se constituir numa resistência às práticas desumanas no campo da educação, sociedade e desenvolvimento para as rupturas de elementos que favoreçam continuidades à repetição de degradação do solo, água e relações humanas?

Seria possível afirmar que se vive na atualidade um conjunto de práticas sociais que se situam numa mistura que se apresenta como rupturas e continuidades da repetição de Auschwitz, como modelo de campo de extermínios de pessoas, e que se reproduz nas práticas corriqueiras em diversas “banalidades do mal” (ARENDT, 1999, p. 274)?

Esse questionamento paradoxal é de fundamental importância para focar quais seriam os elementos presentes nas práticas cotidianas e nos processos formativos que se apresentam nessa mistura como sendo repetição e contribuição de ruptura da destruição e, portanto, há a necessidade de aprofundar esse tema, no sentido de se contrapor à alienação da sociedade de mercado e proporcionar as condições de resistência, no sentido de favorecer a emancipação do sujeito.

O paradoxo desse questionamento é o reconhecimento crítico de que cada pessoa faz parte de um conjunto de relações humanas em que se reproduz, em grande parte, uma sociedade que exclui grande parcela da população da distribuição da riqueza produzida coletivamente.

Especialmente no campo dos processos formativos seria muito importante que educadores tivessem como pergunta central, constantemente, quais seriam as possibilidades de emancipação do sujeito. Nesse caso, dever-se-ia avaliar e pensar o conjunto das práticas educativas. Aqueles que atuam nas unidades escolares, principalmente, deveriam questionar o que estão realizando com os sujeitos/alunos no conjunto das intervenções que possuem como objetivo comum inserir todos no campo da cultura. Portanto, já seria hora de fazer com que todos aqueles profissionais da educação realizassem um acerto de contas com a própria consciência e, principalmente, refletissem sobre os processos educativos que ocorrem na prática docente e como as práticas educativas favorecem e, simultaneamente, impedem a realização do sujeito emancipado.

II. Metodologia – a questão do método na investigação dos processos formativos entre a repetição do embrutecimento ou a emancipação do sujeito

O surgimento dessa inquietação acerca da investigação dos processos formativos entre a repetição do embrutecimento ou a emancipação do sujeito se origina na discussão do trabalho da disciplina Educação, Trabalho e Saúde, que se encontra vinculada ao programa de mestrado em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI), e em cuja ementa fica estabelecido como foco de estudo compreender o:

[...] contexto da sociedade contemporânea, em perspectiva crítica, com o objetivo de apreender os processos de produção de subjetividades no mundo do trabalho (dor, sofrimento, estresses e segurança, dentre outros), as relações que aí se estabelecem e suas implicações na saúde do sujeito, tomando como aporte teórico de partida referências no campo da filosofia, psicologia, educação e economia (CAPES, 2011, p. 11).

Entende-se que essa ementa permite à compreensão as interfaces entre os processos formativos e a saúde do sujeito, basicamente, em duas posturas diante do real, quais sejam: 1) Uma posição não crítica do tanto faz, porque o mundo é objetivamente constituído, e cabe somente adequar-se aos determinantes sociais apenas ajustando o sujeito ao modelo de produção estabelecido, no campo das relações entre educação, sociedade e desenvolvimento ou 2) Uma posição crítica de não concordar com as condições estabelecidas no modelo de produção e de pensar em mecanismos de resistências, com a finalidade de produzir novas relações entre educação, sociedade e desenvolvimento.

Particularmente, busca-se o enquadramento no conjunto daqueles que discordam das condições estabelecidas, em que a produção é coletiva e a apropriação da riqueza produzida é individual. Portanto, o caminho da pesquisa, enquanto método seria compreender a importância dessa reflexão em diálogo com outras áreas do conhecimento, e criar as condições para trazer para o campo da pesquisa uma determinada concepção de mundo. No caso específico da ciência, analisar a educação como processo formativo, para se estabelecer a crítica da crítica, pelo fato de serem pais e educadores responsáveis pela reprodução de elementos que possam favorecer a compreensão do real no conjunto das sínteses das múltiplas determinações (MARX, 1983).

No interior do programa de mestrado em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI), busca-se apresentar diversos pressupostos de pesquisa, por meio dos quais se possam aprender a dinâmica multidisciplinar do objeto de investigação. Nesse caso, em específico, o tema abordado é educação, sociedade e desenvolvimento em interface com outros temas diversos que emergem nas demarcações de pesquisa, em que a questão do “narcisismo da pequena diferença” (FREUD, 1990, p. 119) pode se apresentar como objeto central para diversas abordagens de estudo, como, por exemplo, nos campos da educação, sociedade e desenvolvimento, analisando-se a questão do preconceito e o espaço social dado às pessoas e como se constituem as diferenças significativas como forma de ordenação política nas relações de poder que se estabelecem entre os sujeitos.

Essas demarcações das diferenças significativas se constituem como discursos que podem produzir a intolerância e permitir o surgimento de sociedades com alto grau de violência e completa negação do processo civilizatório. Isso se apresenta como justificativa para a escolha deste tema a ser analisado como objeto de reflexão nas relações entre educação, sociedade e desenvolvimento.

Neste contexto, a metodologia de investigação deste trabalho insere-se numa hermenêutica na leitura de autores que subsidiam a análise sobre a questão do sujeito educado na modernidade, baseia-se também em dados coletados com sujeitos que se inserem no processo formativo no interior da unidade de ensino superior, no campo da ciência e tecnologia.

III. Análise e discussão – os processos formativos e a constituição da consciência alienada

Compreendemos, a partir do referencial teórico, que a questão primordial que estabelece uma linha de corte entre a emancipação e o embrutecimento do sujeito seria a identificação, no social, das condições objetivas e subjetivas para que os sujeitos possam, respectivamente, elaborar condições de existência, ou não saibam lidar com as diferenças no campo das relações sociais.

O não saber lidar com a diferença pode direcionar o sujeito para condições de intolerância ou na subordinação a posturas autoritárias, preferindo sempre o mesmo na reprodução das maneiras de existir como sujeito, mais propriamente, as manias de cada pessoa. Poder-se-ia iniciar essa reflexão com a seguinte questão: o que seriam pessoas com diferenças significativas como elemento de ordenação política nas relações de poder que se estabelecem entre os sujeitos?

Parte-se do pressuposto de que todos são portadores de algumas diferenças e de que, no conjunto dessas diferenças, ocorrem algumas que são significadas. Há um conjunto dessas representações de diferenças que são eleitas no campo do tecido social e que comprometem o grau de relacionamento entre o eu e o outro no conjunto da sociedade. Portanto, a diferença é uma interpretação do sujeito que destaca no outro um valor de similitude ou de negação.

Há, de um lado, a propaganda de mercado, que busca desenvolver uma ideia de diferença por similitude, ou seja, uma pessoa quer ser a outra e, para tanto, deve consumir as mesmas coisas que a outra consome. Por outro lado, há o poder político, que busca estabelecer uma ideia de diferença por negação, ou seja, as pessoas são iguais e, portanto, protegem-se do outro diferente que se constitui como sujeito que produz o estranhamento.

Ao se afirmar que as diferenças são significativas e que, principalmente, são eleitas, diz-se, diretamente, que elas são uma escolha de mercado/política e de controle sobre o outro. Isso se deve ao fato de que o social é um território que, por si só, apresenta um conjunto de estigmas e uma luta pela hegemonia no campo, que se pode denominar como uma política de existência do sujeito.

Numa sociedade pautada no mercado e na obtenção do lucro imediato, o elemento principal do desajuste se dá quando o sujeito se apresenta com a perda da capacidade de realizar, no trabalho, sua humanidade e, portanto, adoece e fica fora da cadeia produtiva.

Nesse caso, como seria possível falar em inclusão ou perda de estigmas numa sociedade pautada na exclusão estabelecida pela lógica do mercado? Dir-se-ia que a noção de inclusão na sociedade de mercado seria o mesmo que dizer que cada pessoa é definida pela sua capacidade de ser consumidora e produtora de coisas. Parte-se da hipótese de que romper com essa noção de consumo e produção seria um ponto chave para se iniciar um conjunto de análise sobre as possibilidades de rupturas e continuidades da repetição de Auschwitz, e que, portanto, o ponto central seria compreender que:

Sobre a intolerância da pequena diferença ¾ o estrangeiro ¾, não podemos deixar de fazer referência ao duplo processo de massificação que se encontra presente entre o “eu” e o “outro” para que este mecanismo de ódio e violência possa operar. Podemos encontrar tanto no lado do carrasco como no lado da vítima processos de anulação da subjetividade, ou seja, os dois lados são aglomerados e sem identidade ¾ coisificados. Somente nessa condição de coisa é que todo o mecanismo de truculência pode iniciar-se sem nenhuma objeção de ambas as partes (RODRIGUES, 2004, p. 36).

Contudo, ainda permanece a questão do como produzir o sujeito no campo de estruturas sociais emancipatórias e ¾ por que não dizer? ¾ no favorecimento de relações sociais que resultem numa sociedade plenamente democrática e tolerante perante o outro. Há como indicativo dessa tarefa o pressuposto de Adorno, que afirma que:

[...] é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são impelidas necessariamente para o lado subjetivo (ADORNO, 1995, p. 121).

O salto qualitativo seria uma ampliação do diálogo com esse outro que destrói o solo, a água e as relações humanas, e a tentativa de compreender como ele se posiciona perante os temas em que se visa abordar reflexões referentes às mediações entre educação, sociedade e desenvolvimento. Podemos, então, encontrar um denominador comum que se apresenta na produção da “consciência coisificada” (ADORNO, 1995, p. 130), no sentido de encontrar algum caminho nos processos formativos na reconstituição que faça ruptura com os processos que produzem o sujeito que se aliena no campo do pensamento crítico.

Entretanto, há aqui um paradoxo: como evitar o embrutecimento e emancipar o sujeito perante o saber, sem assumir a função explicativa que posiciona o outro como aquele que se encontra incapaz, na desigualdade do saber e que não sabe se constituir para a competência?

Pode-se observar que, nos cursos de ensino superior, o elemento que prevalece como hegemonia, como a premissa do sucesso profissional na sociedade, é o caráter empreendedor e inovador, que transparece no discurso da competência técnica (CHAUÍ, 2014). Para Chauí (2014), isso seria um álibi da nossa modernidade para instaurar as formas de dominação presentes na formação para o trabalho do especialista, pois a constituição do domínio do saber fazer torna-se o elemento chave para fazer funcionar todo o modelo de exploração, em que

(...) o neoliberalismo fragmentou o mundo do trabalho e a sociedade, deu ao mercado a chave da suposta racionalidade do mundo, fez da competição individual a condição da existência bem-sucedida, fortaleceu a ideologia da competência ou a divisão social entre os que supostamente sabem e devem mandar e os que não sabem e por isso devem obedecer (...) (CHAUI, 2016, p. 50).

Neste breve panorama, torna-se possível compreender a dita formação escolar de qualidade no campo da ciência e tecnologia sob dois aspectos pedagógicos. De um lado, em relação ao fato de que ocorre a hegemonia do pedagógico tecnicista, numa relação pautada no estímulo e resposta, tem-se a prevalência do saber fazer instrumental, em que a qualidade na educação seria inserir o sujeito na lógica da reprodução do referido sistema simbólico (BOURDIEU; PASSERON, 1975), que se resume no dito popular: “quem sabe manda e quem não sabe obedece”. Essa mecânica entre mandar e obedecer constitui o processo formativo como um campo de guerra, em que o saber fazer, pautado na ideia de competência, torna-se um trunfo arquitetônico para o posicionamento do sujeito na conquista do seu lugar na hierarquia estabelecida nas organizações de fábrica. Esse elemento institui a racionalidade administrativa que “(...) será tanto mais eficaz quanto mais todos os seus membros se identificarem com ela e com seus objetivos, fazendo de sua vida um serviço a ela, retribuído com a subida na hierarquia de poder” (CHAUI, 2016, p. 55).

Por outro lado, não hegemônico, a ruptura com a racionalidade administrativa seria a realização do impossível pedagógico, isto é, a formação do sujeito que duvida do discurso da competência e da impertinência da crítica, portanto, isso escapa da lógica que impera nos didáticos manuais e livros técnicos. Para tanto, a cultura elaborada não é instrumento de trabalho para reprodução do capital. A cultura é instrumento para tornar-se sujeito crítico no seu modo de fazer as coisas, para que se possa responsabilizar os próprios sujeitos pelos seus atos, destituindo a consciência cínica que se esconde no seu fazer, em nome do dever, como é o caso descrito por Arendt (1999), em seu livro Eichmann em Jerusalém, sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann, por seus crimes hediondos durante a ocupação alemã no continente europeu. Nesse julgamento, a Corte Distrital de Jerusalém defrontou-se com um réu “respeitador das leis”. Durante seu julgamento, Eichmann declarou que estava “(...) contente com essa oportunidade de separar a verdade das inverdades que haviam sido despejadas em cima dele durante quinze anos” (ARENDT, 1999, p. 244). Arendt (1999) salientava que Eichmann se definia como um sujeito que “(...) cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia a ordens, ele também obedecia à lei” (ARENDT, 1999, p. 152). Portanto, destituir a consciência cínica requer oposição ao modo de compreender o processo formativo no campo da cultura para justificar o dever neutro de obediência. A transmissão dos elementos da cultura deveria inserir o sujeito no processo civilizatório com o desconforto da dúvida, pois deveríamos desconfiar de nossas certezas, em que o saber fazer nos processos de de/formação gira em torno do conceito de cultura no campo escolar com o saber pleno da competência técnica e, portanto, na formação desse profissional, trata-se de compreender como se estabelecem os discursos de verdades nos cursos de ciência e tecnologias, como a separação entre aqueles que possuem ou não a cultura científica pertinente a esse campo.

Na ruptura com ao conceito de competência, evidencia-se a necessidade do questionamento dessa tarefa: como seria possível exercer a função do mestre que se emancipa no interior dos laboratórios de ensino e pesquisa, no campo das ciências impregnadas numa concepção de mundo não emancipado?

No intuito de responder a esses questionamentos, observamos que o elemento contraditório seria compreender que a formação escolar é algo também associado ao acúmulo de informação para o esclarecimento do sujeito. Essa noção de causalidade encontra-se presente na concepção de ensino de algumas respostas dos alunos do curso superior na área de ciência e tecnologia, em que prevalece a compreensão presente em todo o processo formativo e chega até os anos finais escolares da universidade como competência técnica instrumental.

Portanto, dentro desse contexto, foi perguntado aos alunos do curso na área de ciência e tecnologia, numa instituição com seiscentos e quarenta e cinco ingressantes, obtendo-se total de duzentas e vinte nove respostas. Torna-se evidente que grande parte dos alunos associa diretamente a quantidade de informação à qualidade do processo formativo, em que a plena formação está associada ao conhecimento instrumental, como podemos observar nos trechos selecionados do universo das respostas:

Acho que o curso deve levar o ingressante a vivenciar mais o dia-a-dia da sua engenharia. Deveria haver mais visita técnica, onde o ingressante veria aquilo que ele está vendo em sala posto em prática (Aluno a do curso).

Espero que o curso me permita adquirir conhecimentos teórico e práticos para que eu possa estar mais preparado para o mercado de trabalho (Aluno b do curso).

Eu espero que o curso deva permitir ao aluno um bom conhecimento teórico quanto prático. Que o aluno não sai do curso com todo um embasamento teórico mas que não sabia aplica-lo (Aluno c do curso).

Sim. Adquiri muitos conhecimentos específicos possibilitando seguir diferentes caminhos no âmbito da engenharia (Aluno d do curso).

O curso é bom, mas faltam laboratórios com tecnologias mais recentes. A área administrativa deixa a desejar, é uma batalha conseguir fazer as disciplinas que a gente precisa e forma com muito atraso (Aluno e do curso).

Nesse pequeno recorte do conjunto de respostas, torna-se evidente interpretar que ocorre uma demanda por uma educação instrumental, para que o professor assuma a posição de mestre explicador, e isso condiz com a concepção de que a formação seja somente de qualidade como algo diretamente relacionado à quantidade de informação. No campo escolar, isso se traduz como o processo da obediência cega ao roteiro da aula ou do experimento, que se consolida no determinismo mecanicista, que é “(...) o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pela capacidade de dominá-lo e transformar” (SANTOS, 1988, p. 51). Isso contradiz diretamente com o princípio do ensino no campo da ciência como lugar do trabalho da experiência do fazer e, principalmente, do pensamento, pelas circunstâncias de compreender o conceito em que:

No domínio da organização do trabalho cientifico, a industrialização da ciência produziu dois efeitos principais. Por um lado, a comunidade cientifica estratificou-se, as relações de poder entre cientistas tornaram-se mais autoritárias e desiguais e a esmagadora maioria dos cientistas foi submetida a um processo de proletarização no interior dos laboratórios e dos centros de investigação. Por outro lado, a investigação capital-intensiva (assente em instrumentos caros e raros) tornou impossível o livre acesso ao equipamento, o que contribuiu para o aprofundamento do fosso, em termos de desenvolvimento cientifico e tecnológico, entre os países centrais e os países periféricos (SANTOS, 2008, p. 57-8).

Entretanto, o que seria uma experiência do pensamento que possa escapar da lógica explicativa: hierarquização ou impedimento aos equipamentos? Dir-se-ia que as instituições de ensino deveriam resgatar a noção de experiência como elemento do ensaio para compreensão do conceito e isso seria algo que se encontra aberto às diversas variantes que podem alterar os seus resultados. Essa condição de imprevisibilidade pode tornar a unidade escolar e, inclusive, a vida em laboratório, um lugar vivo e dinâmico e, principalmente, permitir, de fato, a constituição do pensamento crítico e compreender radicalmente o educar no campo da ciência no sentido próprio do laboratório como lugar do trabalho da experiência ou como o lugar do trabalho do pensamento para constituir-se como sujeito reflexivo perante o real.

IV. Considerações finais – as possíveis rupturas da repetição de Auschwitz

As principais contribuições dessa investigação acerca da transmissão da cultura científica e tecnológica seria compreender criticamente os processos formativos como lugar da realização da experiência de vida. Portanto, compreendemos que, no campo das interfaces entre educação, sociedade e desenvolvimento, a linha divisória entre emancipação e embrutecimento seria compreender, respectivamente, os elementos que permitem as condições propícias para o surgimento da consciência crítica ou da consciência alienada.

Neste caso, compreendemos que o divisor de águas entre esses dois estados de sujeito seriam as condições simbólicas que nos permitem elaborar o real. Desse modo, podemos identificar que o sujeito não é nem uma coisa nem outra coisa, mais propriamente, o sujeito se apresenta como mistura incoerente, em que determinadas situações atua de modo inconsistente, e por outro lado, pode expressar um grau de radicalidade no seu modo de ser. Entretanto, quais seriam as condições ou diferenças próprias que podem promover os processos formativos que instauram esse tipo de sujeito e que podem elaborar uma reflexão ou se alienar numa condição de recusa em ampliar a tolerância perante a diferença do outro?

Essa discussão específica sobre a produção da consciência crítica ou alienada invade todas as esferas das práticas humanas, portanto, deveríamos ficar atentos aos pequenos detalhes que se apresentam como “[...] lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos” (ARENDT, 1999, p. 274). Nesse caso, o que nos chama a atenção e nos detém na discussão é um tipo de sujeito que atua de modo reflexivo como intelectual e que, paradoxalmente, em algumas esferas da vida social se encontra associado ao estado pleno de alienação. Portanto, as condições próprias de emancipação não se realizam por falta de esclarecimento, e sim por apoiar-se na condição de esclarecido para expressar sua completa falta de compaixão perante as “pequenas diferenças” (FREUD, 1990, p. 119). Nesse ponto, acerca das diferenças e da tolerância, apresenta-se toda a ilusão do projeto de modernidade, em que se concebe a ideia de esclarecimento como projeto social e que, inclusive, incluem-se os processos de escolarização, que ainda nos dias atuais insistem na possibilidade da vida em harmonia entre os sujeitos. Isso não significa dizer que o processo de escolarização não seja um elemento importante na construção do desenvolvimento social e, principalmente, do estado de civilização. Contudo, dever-se-ia considerar o paradoxo do processo formativo, para não compreender de maneira ingênua as relações entre educação e desenvolvimento, para que se percebam as determinações das impossíveis rupturas e das possíveis continuidades da repetição de Auschwitz. Portanto, a referida análise poderá servir de referência para que os gestores da área da educação e os especialistas do ensino possam redefinir, respectivamente, a política pública e os conteúdos no sentido de resignificar a transmissão da cultura científica e tecnológica numa abordagem que seja plenamente democrática.

Gratidão

* Agradecimentos à Universidade Federal de Itajubá e ao programa de mestrado em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI).

V. Referências Bibliográficas

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