Melancolia: Arte, Ciência e História no ocidente
Melancholia: Art, Science and History in the west
Melancolia: Arte, Ciencia e Historia en el ocidente
Melancolia: Arte, Ciência e História no ocidente
Research, Society and Development, vol. 8, núm. 5, pp. 01-14, 2019
Universidade Federal de Itajubá
Recepção: 21 Janeiro 2019
Revised: 30 Janeiro 2019
Aprovação: 07 Março 2019
Publicado: 08 Março 2019
Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender momentos importantes do percurso histórico e social do conceito de melancolia, considerando seus encontros com a arte, a filosofia e a ciência. Nesse sentido, ocupa-se da investigação das origens do conceito, na Antiguidade Clássica, e suas transformações ao longo da história ocidental, mais particularmente relativas ao período compreendido entre os séculos XVIII e XIX, em que destacam-se sua expressão pelo movimento romântico europeu e sua apreensão pelo discurso médico moderno. Trata-se de uma revisão bibliográfica de abordagem qualitativa e não sistemática, em livros e bases de dados digitais. Desde os postulados hipocráticos, acrescidos das contribuições platônicas e aristotélicas, atravessando todo o medievo, o sujeito melancólico esteve em alguma medida relacionado à genialidade, a um tipo de loucura sagrada e a determinados picos de performance em áreas como a poesia, a filosofia, a política e as artes, em contraponto à sua taciturnidade inerente. Tais características e expressão se acentuam entre o Renascimento e o Romantismo, com o avanço da sociedade industrial, sendo finalmente cerceadas pelo discurso médico moderno, que passa a situar a melancolia em descrições psicopatológicas, em detrimento de suas grandes e enigmáticas potências criadoras.
Palavras-chave: melancolia, arte, psicanálise, história..
Abstract: The present work lends itself to the objective of understanding the historical and social course of the concept of melancholy and its encounters with the scientific and artistic discourses of the West. For that, a historical survey is presented with an emphasis on the origin of such discourse, in Ancient Greece, and in the romantic period of European literature, where the theme was manifest in a pulsating way. It is a bibliographical review of a qualitative and non-systematic approach in SciELO, PePSIC and Portal Capes books and databases, based on the descriptors History of Melancholy, History of Art, Psychoanalysis and Romanticism. It is concluded that, from its origin until its greater expression, in the romantic poetry, the melancholy was associated with a type of exceptionality, an access to deep ideas and interiorizations, being source of important productions of the culture. Only from the nineteenth century, with the apprehension of the concept by medicine, psychiatry and by psychoanalysis itself, is it inserted in the field of psychopathological frameworks.
Keywords: melancholy, art, psychoanalysis, story.
Resumen: El presente artículo tiene como objetivo comprender momentos importantes del recorrido histórico y social del concepto de melancolía, considerando sus encuentros con el arte, la filosofía y la ciencia. En este sentido, se ocupa de la investigación de los orígenes del concepto, en la antigüedad clásica, y sus transformaciones a lo largo de la historia occidental, más particularmente relativas al período comprendido entre los siglos XVIII y XIX, en que destacan su expresión por el movimiento romántico europeo y su aprehensión por el discurso médico moderno. Se trata de una revisión bibliográfica de abordaje cualitativo y no sistemático, en libros y bases de datos digitales. Desde los postulados hipocráticos, además de las contribuciones platónicas y aristotélicas, atravesando todo el medievo, el sujeto melancólico estuvo en alguna medida relacionado a la genialidad, a un tipo de locura sagrada ya determinados picos de performance en áreas como la poesía, la filosofía, la filosofía, política y las artes, en contraposición a su taciturnidad inherente. Tales características y expresión se acentúan entre el Renacimiento y el Romanticismo, con el avance de la sociedad industrial, siendo finalmente cercenadas por el discurso médico moderno, que pasa a situar la melancolía en descripciones psicopatológicas, en detrimento de sus grandes y enigmáticas potencias creadoras.
Palabras clave: melancolia, art, el psicoanálisis, historia.
Introdução
O fascínio do homem por compreender e desvendar o que se oculta nos sintomas e manifestações da melancolia fez com que, ao longo de toda a história, desde os tempos mais remotos, houvessem produções, seja na arte, na ciência ou na filosofia, sobre o tema. Com definições singulares, próprias de cada tempo, a história da melancolia acompanha a história do próprio ser humano desde a Grécia Antiga (Santa Clara, 2009).
Se por um lado, ao recorrer a fontes atuais de pesquisa acadêmica, o conceito de melancolia vem sendo associado ao campo médico-psiquiátrico, vinculado às noções de depressão e podendo ser considerada como um subtipo desta – como é o caso do Código Internacional de Doenças (CID-10) –, por outro é sabido que tal conceito nem sempre esteve sob a égide do saber psicopatológico. Antes pelo contrário, segundo o que Roudinesco e Plon (1998) expõem sobre a questão da melancolia em seu consagrado Dicionário de Psicanálise, quem melhor soube dar sentido ao significado desse conceito foram as obras literárias, filosóficas, as pinturas e não o discurso médico-psiquiátrico ou mesmo o psicanalítico.
No que tange a isso, desde os tempos de Homero, passando pelas teorias de Hipócrates, Platão, Aristóteles, e Galeno até encontrar seu grande apogeu durante o surgimento do movimento romântico do século XVIII, incontáveis foram as obras que se debruçaram sobre a temática da melancolia, buscando desvendar-lhe os mistérios, ou que espontaneamente a expressaram em forma de arte. Seja como musa, como fonte de inspiração ou estado da alma de grande valia ao artista, esteve ela rondando as incertezas do homem. Revela-se, assim, desde a Grécia Antiga, como aponta Teixeira (2005), aproximações entre melancolia e criação, entre o ser do melancólico e suas habilidades criativas e intelectuais.
Diante do exposto, o presente artigo tem como objetivo compreender momentos importantes do percurso histórico e social do conceito de melancolia, considerando seus encontros com a arte, a filosofia e a ciência. Nesse sentido, ocupa-se da investigação das origens do conceito, na Antiguidade Clássica, e suas transformações ao longo da história ocidental, mais particularmente relativas ao período compreendido entre os séculos XVIII e XIX, em que destacam-se sua expressão pelo movimento romântico e sua apreensão pelo discurso médico moderno.
Metodologia
O presente artigo se trata de uma revisão bibliográfica não sistemática, uma vez que a temática da melancolia, envolvendo fatores sociais e históricos, torna necessário um olhar que englobe aspectos variados. É possível, através da revisão bibliográfica, observar o percurso e as relevâncias acerca do objeto de pesquisa em questão a partir de diferentes momentos históricos, pensamentos e autores. Esse tipo de pesquisa é desenvolvida através de materiais já elaborados, possibilitando uma análise das diversas posições acerca de um tema, consequentemente dando margem para que a pesquisa abarque uma vasta gama de fenômenos (Gil, 2002).
As fontes de informação utilizadas para a revisão consistiram em livros e artigos científicos referentes à melancolia e suas manifestações na cultura, buscados nas plataformas de dados SciELO, PePSIC e Portal Capes. Os descritores utilizados para esta pesquisa foram: História da Melancolia; História da Arte; Psicanálise; e Romantismo. Em função da larga amplitude temporal em que se encontram os diversos autores que se debruçaram sobre o tema, interessante ao presente trabalho, não foi definida uma margem de data para a procura do material utilizado.
Como método de pesquisa, no que diz respeito à abordagem do problema, optou-se pelo tipo de pesquisa de natureza qualitativa. Gil (2002) refere que a pesquisa qualitativa é aquela que tem enfoque na compreensão mais profunda dos elementos, na sua complexidade, e não voltando-se para a representatividade numérica dos fatores estudados. Prodanov (2013) se refere à mesma como um método que considera a relação dinâmica que há entre o objeto estudado e o mundo, uma modalidade de ênfase à subjetividade que não pode ser traduzida em números.
O método de análise foi baseado na Análise de Conteúdo de Bardin (2009), sendo este dividido em três etapas: pré-análise; exploração de material; tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Para discussão e análise dos dados obtidos foram elaboradas as seguintes categorias: a) Da Antiguidade Clássica à Idade Média: as origens do discurso sobre a Melancolia; e b) Do Renascimento ao século XIX: o cerceamento do sujeito melancólico.
Roudinesco e Plon (1998), bem como Starobinski (2016), concordam em afirmar que o primeiro registro do estado melancólico da alma na literatura ocidental encontra-se na grande Ilíada de Homero, o icônico poeta grego cuja vida, ao que se estima, data de aproximadamente 29 séculos atrás. Referem-se, os autores, ao canto VI do poema homérico, onde narra-se o encontro honrado entre os valorosos guerreiros Diomedes e Glauco em sangrenta batalha da guerra de Tróia, este último contando ao primeiro a história de seu avô, Belerofonte. O desgosto abissal de Belerofonte é descrito por Homero em apenas três versos, e seu motivo – reconheçamos – fica a nós obscuro:
Mas quando, alfim, se tornara também, pelos deuses, odiado,
E pelos campos Aleios famosos vagava sozinho,
A alma por dentro a roer e a fugir do convívio dos homens...
(HOMERO, 1959)
As palavras sensíveis do poeta descrevem a enigmática tristeza da personagem em um momento onde a cultura ainda não havia produzido um discurso sobre a melancolia. Bem se sabe que a origem do termo deriva do grego mélas (negro) e kholé (bílis), devendo-se a Hipócrates de Cós (450-370 a.C.) a inauguração da ideia de melancolia, então situada como uma forma de loucura caracterizada pelo humor sombrio, a “doença da bílis negra”. Em sua conhecida Teoria Humoral, similar em muito às medicinas tradicionais do oriente, o médico grego postulou que o corpo humano contém quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. A doença, segundo seu sistema, seria oriunda da falta ou do excesso de um ou mais destes fluidos no organismo, a terapêutica, então, consistindo em intervenções com vistas a equilibrá-los (Cairus & Ribeiro, 2005).
De acordo com Hipócrates, cada uma dessas quatro substâncias estaria relacionada a um dos quatro elementos (como postulado por Empédocles: terra, ar, água e fogo), a uma das quatro estações do ano, a uma fase da vida e – o que mais nos interessa – a um certo temperamento ou “tipo psicológico”, de acordo com o humor predominante no organismo: a quem destacava-se pelo alto nível de sangue, denominava-se sanguíneo: indivíduo de caráter corajoso e esperançoso; ao portador de maiores níveis de fleuma, fleumático: calmo e pouco emotivo; à bílis amarela, chamava-se colérico: irritável e mal-humorado; e, finalmente, à bílis negra, o melancólico: depressivo, insone e irascível (Rooney, 2013).
O perspicaz e esmerado olhar de Hipócrates aos seus enfermos o levou à interessante constatação de uma atração irresistível, destacadamente frequente no melancólico, por coisas relacionadas à morte, a ruínas, ao luto e à nostalgia. Ânimo entristecido, sentimento de abismo infinito, torpor, supressão do desejo, da libido e da fala foram percebidos, mas estes, curiosamente, seguidos de uma exaltação, de um entusiasmo, de luminosos momentos de excitação incomum do pensamento, das ideias e da criatividade (Roudinesco & Plon, 1998).
De acordo com Lopes (2011, p. 5), ao referir-se à visão hipocrática, “a oscilação da temperatura da bílis explicaria os diferentes estados de espírito: quando quente levava a uma euforia, e fria conduzia a um humor depressivo”. Esta peculiar característica da melancolia recebeu particular atenção dos filósofos da Antiguidade, de Platão (428-347 a.C.) em especial, e mais ainda de seu principal aprendiz, Aristóteles (384-322 a.C.). O primeiro atribuiu aos melancólicos uma loucura sagrada, que “abre o olho interior ao reino das ideias”, colocando-os como “aqueles que acedem facilmente à experiência interna, desconhecida, oculta” (Lopes, 2011, p. 8).
Mais demoradamente do que seu mestre, Aristóteles dedicou um grande estudo ao tema, conhecido como Problema XXX, partindo da seguinte questão: “Por que é que todos os homens que se tornaram excepcionais em filosofia, política, poesia e artes se afiguram melancólicos?” Neste trabalho, o filósofo distingue a melancolia enquanto temperamento da melancolia enquanto doença. A primeira situação refere-se à presença natural de um mais elevado teor de bílis negra no organismo do indivíduo, inerente à sua constituição – uma “melancolia estrutural”, congênita. No segundo caso, a melancolia teria sua origem no desequilíbrio dos humores adquirido através de uma adulteração na mistura, decorrente de situações diversas (estilo de vida, alimentação, paixões desmedidas...), delineando um estado patológico de obscurecimento das faculdades mentais. Aristóteles conclui que estes excepcionais homens de gênio padecem da variante congênita da melancolia. Segundo essa perspectiva, ainda que os sujeitos melancólicos sejam suscetíveis aos sintomas típicos do excesso de bílis negra – misantropia, depressão, suicídio... –, apenas um número restrito dentre eles é capaz do “acesso aos picos de performance nas diferentes áreas de ação” (Carvalho, 2015).
Ainda que os pioneiros pressupostos hipocráticos tenham perpassado a visão destes pensadores, algumas escolas os contestaram. No entanto, foi a influência milenar dos tratados de Galeno (129-200 d.C.) que assegurou que eles fossem preservados pelos séculos no cânone absoluto do antigo saber médico. O “príncipe dos médicos”, hipocrático declarado, partia da teoria humoral para defender com clareza sua teoria dos vapores acerca da melancolia: fumaças que, oriundas da bílis negra, sobem do estômago ao encéfalo, gerando as ideias negras, o obscurecimento do espírito, visões endógenas e alucinações. Três origens possíveis às afecções melancólicas foram ainda estimadas: o encéfalo, o sangue e o estômago. Neste campo, poucas inovações podem ser atribuídas a Galeno. Seu mérito, entretanto, se deve à longeva autoridade de seus escritos, que fixaram as noções definitivas sobre a melancolia do séc. II ao séc. XVIII e mesmo depois (Starobinski, 2016).
Por um impressionante período de tempo, que se estende por mais de dois milênios, o discurso ocidental primaz acerca da melancolia esteve diretamente ligado aos postulados de Hipócrates, sendo acrescido das investigaçoes filosóficas de Platão e Aristóteles e entronizado por Galeno, atravessando todo o medievo e chegando a alcançar os primeiros momentos do período moderno. É apenas paulatinamente que tais concepções passam a perder a majestade, em uma Europa em crise e com a excelência dos estudos de Robert Burton, no séc. XVII, nos quais o pensamento do ocidente vê um colosso suficientemente imponente a ponto de deixar uma marca indelével na história da melancolia e alterar o curso de sua abordagem, como apresentaremos a seguir.
Do Renascimento ao século XIX: o cerceamento do sujeito melancólico
A Europa Ocidental, entre os séculos XIV e XV, passa a ver-se imersa em uma série de crises que perpassam o campo da economia, da política, da religião e que acabaram culminando no gradual declínio do modelo feudal e na transição da Idade Média para a Idade Moderna. O acelerado crescimento demográfico, a escassez de alimentos, a peste negra, o aumento de conflitos armados entre os povos, a insegurança, a crise na aliança político-religiosa entre as monarquias e a Igreja Católica foram fatores que assolaram a população europeia. Em contrapartida, a própria sociedade buscou vias de escape para tais mazelas. Gradualmente, o comércio ganhou força e as rotas comerciais foram se expandindo, até a conquista de novas nações, tendo a burguesia desempenhado aqui um papel crucial (Cotrim, 2005).
Segundo o referido autor, Renascimento é o nome dado para este movimento cultural que refletiu em uma série de transformações no modo de agir e pensar em diversas regiões europeias durante os séculos XV e XVI. Dogmas religiosos foram contestados, a racionalidade passou a ser valorizada, o homem fez-se criador e criatura do seu próprio mundo em meio a coletividade: eis que tem início o processo de emersão do indivíduo, de criação do seu semblante moderno e de todo seu universo subjetivo. Na arte, na filosofia e na ciência houve um retorno, um renascer de antigos ideais greco-romanos, o que não foi diferente no que tange a compreensão da ideia de melancolia.
Se da Antiguidade até a Idade Moderna, tendo atravessado todo o medievo, o escopo grego cunhado em torno da melancolia pouco foi alterado, o mesmo não se dá a partir da monumental obra de Robert Burton (1577-1640), The Anatomy of Melancholy, publicada em 1621, cuja extensão e acuracidade inigualadas a elevam ao lugar de referência principal no assunto. Ainda que a elaboração do filósofo conserve algo do vocabulário humoral, esta passa a contar com os atravessamentos de uma Europa golpeada pela revolução copernicana: a melancolia, em Burton, associa-se ao desespero do sujeito abandonado por Deus (Roudinesco & Plon, 1998; Starobisnki, 2016).
Lopes (2011) narra a construção de um sujeito-artista que ganha corpo durante o Renascimento, com a retomada da visões aristotélica, do gênio melancólico, e plantônica, sobre a anteriormente referida loucura sagrada, quase divinatória. Sujeito este que se vê em uma eterna inconstância entre a loucura e a sanidade, entre o seu dilaceramento e a possibilidade de iluminação. Mas é justamente dessa linha tênue que flui o seu potencial criador. Sujeito solitário, introspectivo, contemplativo, ultrassensível, preso na angústia e que vê na melancolia uma possibilidade de libertar-se. Liberdade esta que encontra vias de superação com a morte ou criação.
Na esfera da arte, a melancolia fez-se presente também como musa, como objeto de inspiração e fonte de representação. A famosa gravura Melancolia I, do renascentista alemão Albrecht Dürer (1471 – 1528), datada do ano de 1514, é uma das mais importantes obras deste período. Esta constitui-se como marca deste encontro artístico em que a melancolia aparece como tema, não como característica do artista (Lopes, 2011). Santa Clara (2009) completa afirmando que é durante o renascimento que ganha potência a noção de que o ser melancólico, ser único, seria dotado de uma grande genialidade, de uma singular capacidade criativa, fazendo da experiência melancólica uma busca para com o que há de mais profundo do Ser.
Dois séculos depois, inspirado em uma obra de Maximilian von Klinger (1752 - 1831), surge na Alemanha um movimento denominado Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), anunciando significativas transformações no campo da arte, mas sobretudo no campo do sujeito (Meira, 1983).
Tal movimento, que tem como principais referências Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774) e Fausto (1775), de Johann Wolfgang Goethe (1749 - 1832), marca o início de um outro movimento denominado como Pré-Romantismo, que atravessou tanto a literatura como a música, a pintura e o teatro. Ele surge como resistência, como reação a um modelo dominante fortemente arraigado aos ideais Iluministas de culto à racionalidade e expresso nas artes como um culto à forma, à rigidez e ao classicismo, e nasce junto a uma série de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais que a Europa vinha passando com o advento da sociedade industrial e capitalista (Carpeaux, 1962). Tal movimento, segundo o referido autor, se manifesta em diversos lugares, mas ganha magnitude na Alemanha. Já na França, o pré-romantismo cresce lado a lado às insatisfações sociais que culminaram na Revolução Francesa de 1789.
Segundo Guimarães (2016), dentre as principais características do Romantismo, que tem origem com os pré-românticos do século XVIII e que se consolidaria no século XIX, estão: o mergulho ao universo das emoções em contrapartida ao excessivo racionalismo vigente na época, a defesa por uma liberdade de criação que considere aspectos subjetivos e intuitivos, o pessimismo quanto ao futuro e a nostalgia quanto à possibilidade de recuperar algo que fora perdido.
Carpeaux (1962) convoca-se a reflexão de que tal estado sentimental e melancólico não deve ser tido como tão surpreendente quando considerada a contextualização histórica. O autor nos apresenta artistas que se deparavam com a exclusão, com a impossibilidade de gozar dos benefícios da emergente sociedade burguesa, preocupada com o acúmulo de capital, com a ascensão social e com aquilo que era considerado útil pela grande maioria da população. Aos compositores, poetas e literatos, restavam a boemia dos cafés filosóficos e a inspiração na natureza infértil e nas ruínas. Baudelaire, tido como um dos últimos poetas românticos e precursor da poesia moderna, retrata com tamanha profundidade, no poema Bénédiction, esse sentimento de desprezo e exclusão.
Quando, por uma lei das supremas potências,
Poeta surge aqui neste mundo enfadado,
Sua mãe a verter blasfêmias e insolências
Crispa as mãos contra Deus, que a contempla apiedado:
– “Ah! Tivesse eu gerado um rolo de serpentes,
Em vez de alimentar esta irrisão comigo!
Tal haja a noite em que, nos gozos inconscientes,
Meu ventre concebeu o meu próprio castigo!”
(Baudelaire, 1944)
Meira (1983), romancista e escritor aclamado por uma das mais destacadas traduções de Fausto, ao apresentar-nos um esboço sobre a vida e obra de J.W. Goethe no preâmbulo na edição de Victor Civita, publicada em 1983, aponta a sua primeira versão, tornada pública em 1775, como a obra máxima do espírito da época, da alma moderna, embriagada pela angústia e perdida em seus ideais. Dr. Fausto seria a suma expressão do jovem pré-romântico que busca transcender os limites do humano em uma busca infindável por algo que se encontra além, por um efêmero momento de gozo, mesmo que para isso seja necessário a entrega de sua própria alma ao demônio. É o próprio Mefistófeles, em diálogo com o Senhor, quem melhor nos dirá dos anseios do homem:
O que o tolo devora é bem celestial.
E move-o, sem dúvida, ânsia do Infinito.
De que é louco talvez ande mesmo ciente,
Quer do céu as estrelas, esse pobre aflito,
E da Terra os prazeres todos busca e sente.
De tudo o que há na terra ou céu, em alto rito,
Nada há que o console ou que o apascente.
(Goethe, 1983, p. 25)
Silva (2013), em tom crítico, busca aprofundar a compreensão do impacto de Os Sofrimentos do Jovem Werther, no discurso acerca da dita subjetividade moderna. O autor convoca a uma nova leitura da obra que contrapõe formulações que apontam a aspiração de Goethe em traduzir, com Werther, o espírito do crescente número de leitores vorazes de romances. A partir da proposta de Silva, o fim trágico, contra todas as expectativas do público e mesmo ao otimismo dos costumes literários da época, dado com a morte do protagonista, inscreveria o caráter crítico lançado contra certos ideais culturais vigentes no século XVIII, expressos, em certa medida, na própria personagem.
A partir da mesma obra, Lopes (2011) procura discorrer, no campo da melancolia, sobre as dimensões do desejo, do amor, da perda, da morte e da criação. A impossibilidade de alcançar o objeto amado, Charlotte, leva o jovem Werther a deparar-se com a dimensão da perda, a defrontar-se com a inacessibilidade de realização do seu desejo – desejo de ser amado, constituinte do ânimo melancólico. A perda do objeto de amor é causa da dor, do desespero, que coloca o melancólico neste abismo entre o medo da falha, da incompletude do seu ser e a culpa (Lopes, 2011).
É durante o século XIX, porém, que a melancolia passa a ser capturada pelo quadro psiquiátrico em elaborações diversas como um dos três tipos modernos de loucura, ao lado da esquizofrenia e da paranoia. Foi denominada Lipemania por Esquirol (1772 - 1840), Loucura circular por Falret (1794 - 1870) e Psicose maníaco-depressiva por Kraeplin (1856 - 1926). Em meio a um cenário de primazia dos estudos psicopatológicos, é possível afimar que Freud foi quem dispendeu mais interessantemente um olhar ao funcionamento melancólico. Em 1917, lança seu notável Luto e melancolia, colocando esta segunda como a forma patológica do primeiro. Estando considerado o luto como o período de elaboração da perda de um objeto de amor, a melancolia subsiste na impossibilidade de fazê-lo. Marcada por grave culpa e pela negação da perda, “o eu se identifica com o objeto perdido, a ponto de ele mesmo se perder no desespero infinito de um nada irremediável” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 507). Ainda que não escape das observações de quadros melancólicos enfermos, ressalta-se, esteve ele atento em suas elaborações aos componentes históricos e culturais que atravessam a compreensão da complexidade do ser melancólico.
A produção do discurso médico e científico, em crescente ascensão a partir do século XVIII, trouxe consequências irrevogáveis na compreensão e no lugar sociocultural ao qual a melancolia esteve vinculada ao longo da história. Como destaca Santa Clara (2009), deve-se principalmente à Kraeplin, considerado o pai da psiquiatria moderna, a apropriação do termo melancolia pelo saber psiquiátrico e o distanciamento de sua historicidade milenar. De lugar de exceção, associado à genialidade e à criação, o sujeito da melancolia passa a ser cerceado pelas teorias psicopatológicas, aprisionado em instituições psiquiátricas, descrito, classificado e categorizado em tratados médicos.
Considerações Finais
Ao partir da proposta de compreender alguns dos mais importantes momentos do milenar percurso histórico e social do conceito de melancolia, faz-se claro o quanto as nuances somadas ou decrescidas ao seu entendimento nos diferentes períodos da cultura foram – e continuam sendo – atravessadas pelo curso das transformações do próprio homem ocidental. Embora seja, como qualquer outra, uma ideia sujeita às impermanências impostas pelo tempo, há nela algo que permanece e não cessa em retornar; algo de importância evidente e eloquente, muito embora esforcemo-nos para não lhe ver ou escutar; algo dotado de um poder irresistível sobre a alma humana, suficientemente forte a ponto de atravessar os milênios sem perder, se não a atenção que recebe, a grandeza e o enigma que o envolvem. É isso o que faz com que no campo das artes, da filosofia ou da própria ciência o fascínio exercido pela melancolia ainda se faça presente, seja na literatura, na música, no teatro, na pintura, na academia ou mesmo nos controversos manuais diagnósticos de nossos dias.
A significativamente numerosa produção de estudos relevantes e expressivos em relação à temática permitiu à pesquisa uma abordagem que abarcasse diferentes óticas, conferindo abertura às devidas ênfases ao conceito em suas origens, na Antiguidade, em suas expressões renascentistas e românticas, bem como em sua apreensão pelo discurso médico moderno. Cada um desses pontos, não nos resta dúvida, configura um campo verdadeiramente fértil a aprofundamentos mais especificamente circunscritos, partindo de perspectivas as mais variadas, aprofundamentos estes aos quais os autores da pesquisa ora apresentada intentam a que o(a) leitor(a) se sinta convocado(a).
Ainda no mesmo sentido, muitas das obras aqui citadas mereceriam mais demorada e pormenorizada atenção. Em relação a questões mais estreitamente ligadas à contemporaneidade, destacamos as polêmicas em torno do DSM e da proporção geométrica com que nos últimos anos, de forma endêmica, cresce a disseminação de diagnósticos de transtorno bipolar, fonte de acaloradas discussões perpassadas por saberes que se estendem das ciências da saúde às ciências humanas, sociais e além. Assinalamos ainda a relevância das contribuições do pensamento psicanalítico à abordagem da melancolia em relação ao sujeito e à cultura, sobretudo em suas dimensões ética, estética e política, igualmente merecedoras do olhar atento do(a) pesquisador(a). Tais problemáticas ficam desse modo mencionadas como esperançosas provocações a pesquisas vindouras.
Referências
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Porcentagem de contribuição de cada autor no manuscrito
João Pedro Oliveira do Amaral – 40%
Tatiana Michaelsen – 30%
Janaína Pereira Pretto Carlesso– 30%