Artigo 8º, Inciso IX da Lei Maria da Penha: utopia ou uma real possibilidade de aplicação no contexto escolar?

Article 8º, Section IX of the Maria da Penha Law: utopia or a real possibility of application in the school context?

Artículo 8º, Inciso IX de la Ley Maria da Penha: utopía o una real posibilidad de aplicación en el contexto escolar?

Anaquel Gonçalves Albuquerque
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca/RJ, Brasil

Artigo 8º, Inciso IX da Lei Maria da Penha: utopia ou uma real possibilidade de aplicação no contexto escolar?

Research, Society and Development, vol. 8, núm. 9, pp. 01-13, 2019

Universidade Federal de Itajubá

Recepção: 03 Junho 2019

Revised: 05 Junho 2019

Aprovação: 08 Junho 2019

Publicado: 14 Junho 2019

Resumo: O presente artigo tem por objetivo discutir sobre a efetividade do artigo 8º, inciso IX da Lei Maria da Penha, que ressalta “o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.” (Brasil, 2006) Esta abordagem se deu por meio de pesquisa bibliográfica, expressando ser de grande relevância em razão dos crescentes casos de violência de gênero em todo o país, ratificando a necessidade de repensar soluções para o problema apresentado. Face a tais questões, conclui-se que apesar de toda evolução social e jurídica no que se refere à criação de mecanismos para coibir a violência de gênero, ainda são notórias as lacunas que impedem uma maior efetividade quanto à aplicação do artigo 8º, inciso IX da Lei Maria da Penha nas escolas, sendo necessárias ações mais precisas por parte do poder público.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha, Utopia, Possibilidade, Contexto Escolar.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the effectiveness of article 8, section IX of the Maria da Penha Law, which emphasizes "the emphasis in curriculum at all levels of education on contents related to human rights, gender equity and of race or ethnicity, and to the problem of domestic and family violence against women.”(Brazil, 2006) This approach was based on bibliographical research, expressing great relevance due to the increasing cases of gender violence throughout the country ratifying the need to rethink solutions to the problem presented. Faced with these issues, it is concluded that despite all social and legal developments regarding the creation of mechanisms to curb gender violence, the gaps that prevent greater effectiveness in the application of article 8, section IX of the Maria da Penha Law in schools, requiring more precise actions on the part of the public power.

Keywords: Lei Maria da Penha, Utopia, Possibility, School context.

Resumen: El presente artículo tiene por objetivo discutir sobre la efectividad del artículo 8, inciso IX de la Ley Maria da Penha, que resalta "el destaque, en los currículos escolares de todos los niveles de enseñanza, para los contenidos relativos a los derechos humanos, a la equidad de género y de raza o etnia y al problema de la violencia doméstica y familiar contra la mujer. "(Brasil, 2006) Este enfoque se dio por medio de investigación bibliográfica, expresando ser de gran relevancia en razón de los crecientes casos de violencia de género en todo el mundo país, ratificando la necesidad de repensar soluciones para el problema presentado. Ante estas cuestiones, se concluye que a pesar de toda evolución social y jurídica en lo que se refiere a la creación de mecanismos para cohibir la violencia de género, todavía son notorias las lagunas que impiden una mayor efectividad en cuanto a la aplicación del artículo 8, inciso IX de la Ley Maria da Penha en las escuelas, siendo necesarias acciones más precisas por parte del poder público.

Palabras clave: Ley Maria da Penha, utopía, posibilidad, Contexto Escolar.

1. Introdução

De acordo com Souza (2013) os estudos sobre políticas públicas no Brasil ganham destaque na década de 80, quando a escola rompe com o pensamento tecnicista que predominou na prática pedagógica durante o período da Ditadura Militar, que teve origem em 1964. Inicia-se, então, ao processo de redemocratização escolar, caracterizado pela busca da formação do educador, sendo importante destacar que embora a década de oitenta represente um marco na história da formação de professores, a característica da prática pedagógica da época continuou sendo conteudista, expressando que ainda havia muito por fazer na área de Educação.

Na década de 90, denominada “Década da Educação”, é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394/96, como mais uma tentativa de proporcionar ao professor o acesso a formação continuada, na busca pela melhoria da qualidade da educação no país, sendo necessário, ainda, a reflexão sobre outros fatores de extrema importância como formação inicial, melhoria nas condições de trabalho, salário e carreira. Os artigos 63 e 64 da Lei 9394/96 citam importantes aspectos alusivos à formação continuada de professores, destacando a valorização destes profissionais ao assegurar o aperfeiçoamento profissional continuado e o período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho.

Enfatiza-se então por meio desta legislação a necessidade da formação continuada, atrelada a aspectos fundamentais como melhoria das condições de carreira e de trabalho. No entanto, ao estabelecermos uma análise da lei supracitada frente ao atual cenário da área de Educação na qual estamos inseridos, verifica-se que embora exista uma legislação que dentre outros aspectos priorize a formação continuada de professores no Brasil, infelizmente nem sempre vemos na contemporaneidade esta mesma lei se efetivar na prática, dada a realidade diária dos professores de Educação Básica do país, que geralmente expressa dificuldades quanto ao investimento de tempo ou até mesmo recursos financeiros para esta formação.

Sousa (2008) destaca que para ser professor na atualidade é preciso estar comprometido com as mudanças que ocorrem na sociedade, possibilitando que os alunos exerçam os direitos básicos à cidadania. Espera-se, portanto, que este profissional seja capaz de reconhecer que sua atuação não deve somente se limitar a conteúdos trabalhados em sala de aula, mas concomitantemente contemplar as necessidades relativas à inserção dos alunos em sociedade, expondo a necessidade de melhor aproveitamento do tempo que se passa na escola.

Considerando o contexto no qual a formação de professores geralmente se apresenta de forma fragmentada, e no que tange à sociedade como um todo há a predominância das mais variadas relações de poder, estando presentes até mesmo no espaço escolar, surge o desafio de trabalhar o artigo 8º da Lei Maria da Penha. Desta forma, tendo por objetivo discutir sobre a efetividade do artigo 8º, inciso IX da Lei Maria da Penha, apresentamos a seguir a metodologia utilizada para realização da pesquisa, seguida de breve abordagem da própria lei em si para melhor compreensão da importância de abordagem do assunto nas escolas.

2. Metodologia

No que tange aos procedimentos técnicos, o presente artigo foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica, que caracteriza-se pelo “estudo sistematizado desenvolvido com base em material publicado em livros, revistas, jornais, redes eletrônicas. (...), conforme cita Vergara. (1998, p.46)

Boccato (2006) também destaca que a pesquisa bibliográfica busca resolver problemas por meio de referenciais teóricos publicados, de forma a analisar e discutir as diversas contribuições científicas.

Assim, espera-se que por meio da metodologia escolhida para o desenvolvimento da presente pesquisa possamos contribuir para melhor compreensão do artigo 8º, inciso IX da Lei maria da Penha e de sua real necessidade de aplicação no âmbito escolar.

3. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006

Ainda que ao longo dos anos a mulher tenha alcançado notórios avanços sociais, torna-se explícito o alto índice de violência praticada contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, servindo como um dos fatores que deram origem à criação de uma lei específica para tratar deste assunto, sendo intitulada Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006). Por meio desta legislação são criados mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente de sua orientação sexual, estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Esta mesma lei (nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006) também aborda aspectos importantes como procedimentos, medidas protetivas, atuação do Ministério Público, assistência jurídica e ações a serem realizadas por uma equipe de atendimento multidisciplinar, dentre outros fatores, sendo de grande valia para a nossa sociedade, dados os altos índices de violência a qual a mulher foi submetida ao longo de vários séculos, trazendo significativas mudanças no que diz respeito ao tratamento de casos de violência doméstica praticada contra a mulher e tentando solidificar direitos humanos, almejando que as mulheres tenham seus direitos respeitados e os seus respectivos agressores não sejam somente punidos, mas reabilitados, buscando prevenir a violência familiar e estimular ações de respeito mútuo, já que tal violência é oriunda de um processo histórico e cultural onde o homem deveria impôr seu poderio de macho.

A lei 11.340/2006 ganhou o nome de Lei Maria da Penha em homenagem a Maria da Penha Fernandes, sendo considerada um símbolo da luta contra a violência familiar e doméstica, tendo sofrido 2 tentativas de homicídio por seu ex marido, a qual ocasionou uma situação de paraplegia da vítima em questão. A história que impulsionou a escolha do nome da lei ganha um significado especial por representar a vida de muitas mulheres que também são submetidas a situações de violência e humilhação, permanecendo em silêncio para que agressões ainda maiores não venham de encontro a elas. No caso de Maria da Penha, sua luta por justiça foi determinante, tendo recorrido ao Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e ao Comitê Latino Americano e do Caribe para a defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), sendo apoiada e consequentemente formalizando denúncia contra o Estado Brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que decidiu pela condenação do país pela violação dos direitos humanos das mulheres. O agressor foi punido somente em 2002, ou seja, 18 anos após a prática do ato de violência, cumprindo pena de 2 anos em regime fechado e passando posteriormente para o regime aberto (Carrara et al, 2010, p. 65).

Desta forma, a referida lei é resultado de tratados internacionais firmados pelo Brasil, com o propósito de não apenas proteger a mulher, vítima de violência doméstica e familiar, mas também prevenir contra futuras agressões e punir os devidos agressores objetivando reverter tal situação, mas ainda não é possível avaliar seu impacto na totalidade (Debert; Gregori, 2008), já que ainda nos deparamos com recorrentes casos de violência contra a mulher.

Com a criação da Lei 11.340/2006 os casos de violência doméstica e familiar não mais são atendidos pela Lei 9.099, na qual os Juizados Especiais Criminais utilizavam o modelo conciliatório, por ser considerado de “menor potencial ofensivo” e a pena aplicada a esses crimes passa a ser alterada de 3 meses para 3 anos de prisão. São estabelecidas também medidas preventivas (visando implementar programas educacionais no sentido de evitar a violência), assistência às mulheres (consistindo em formas de assistência social, de saúde e jurídica), medidas protetivas de urgência (encaminhamentos para programas de proteção, afastamento do lar sem a perda dos direitos, restrição de contato com a vítima) e atendimento por equipes multidisciplinares.

A Lei Maria da Penha caracteriza o exemplo da implementação de uma política afirmativa que objetiva a igualdade entre homens e mulheres, oferecendo um tratamento diferenciado à mulher vítima de violência doméstica. A referida lei também demarca o reconhecimento pelo Estado da existência de discriminação contra as mulheres e da necessidade de se alcançar a igualdade nas relações de gênero.

Cumpre ressaltar que a Lei 11.340/2006, caracteriza uma grande conquista para a sociedade brasileira, constituindo um importante aparato político e jurídico contra as práticas de violência impetradas contra as mulheres, as quais foram ocultadas ao longo de muitos anos.

De acordo com Priori (2007) a violência de gênero representa uma das facetas da criminalidade social, causando danos irreparáveis à vida e sendo realizada no âmbito familiar geralmente pelo gênero masculino, baseada em uma cultura de exploração e dominação masculina que sempre se fez presente em nossa sociedade, pautada na criação de estereótipos femininos e masculinos, tendo por base os princípios de submissão e dominação e utilizando- se de várias formas de violência, como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral em prol da manutenção das relações de poder tão presentes em nossa sociedade.

Aspectos como o sistema patriarcal, o racismo e o sistema capitalista também corroboram para estruturar as relações de dominação masculina, conforme afirma Saffioti (1987), de maneira que a Lei Maria da Penha surge como mais um instrumento no enfrentamento da violência praticada contra a mulher, ainda não seja possível lograr uma resposta adequada para a resolução deste tipo de conflito, visto que o problema da violência de gênero é fruto de uma herança cultural construída ao longo de vários anos, que não conseguiremos desconstruir de forma tão imediata.

Já no período da colonização, quando da vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil em 1808 podemos identificar características do tratamento hierárquico e submisso ao qual a mulher estava submetida, tendo como única função procriar e raramente sabendo ler ou escrever (Alves, 1980) A partir destes dados já se torna possível verificar o grau de violência imputada à mulher, evidenciando uma trajetória histórica que sempre buscou atribuir a homens e mulheres papeis específicos, de forma a colocar a mulher em constante postura de subalternidade.

De acordo com o artigo 8º, inciso IX, da Lei Maria da Penha propõe-se que em todos os níveis de ensino sejam trabalhados “os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.” Entretanto, pautado neste breve relato de violência retratado contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, de que maneira este tema pode ganhar visibilidade nas escolas e contribuir para a prevenção e erradicação da violência de gênero, já que a escola também é um espaço de tensão, onde se expressam inúmeras relações de poder, construídas ao longo dos anos, e que os professores em sua formação inicial e continuada nem sempre são orientados quanto à respectiva abordagem do tema?

A partir de análise do artigo 8º, Inciso IX da lei Maria da Penha, buscar-se-à tecer uma reflexão sobre a importância de implementarmos nas escolas práticas diferenciadas com foco na erradicação da violência de gênero.

4. A formação de professores e a aplicabilidade do Artigo 8º, Inciso IX, da Lei Maria da Penha no contexto escolar

Havemos de reconhecer que o artigo 8º da Lei Maria da Penha, em seu inciso IX, é uma medida de prevenção à violência doméstica e familiar apreciável, visto que estimula os jovens quanto ao reconhecimento da importância de questões ligadas aos direitos humanos, principalmente aquelas relacionadas ao combate à violência contra a mulher.

Entretanto, alguns fatores devem ser considerados neste contexto, visto que a escola também é um espaço demarcado por regras que geralmente retratam e reforçam as relações de poder existentes em nossa sociedade, sendo este um dos elementos no qual precisamos estar atentos. Apresenta-se então como um grande desafio romper com padrões pré-estabelecidos em nossa sociedade, pois embora a própria Constituição brasileira cite, dentre outros quesitos, a cidadania e a dignidade humana como princípios fundamentais, não tem sido este o cenário vivenciado ao longo do tempo, visto que o Brasil vivenciou e ainda identifica sinais de forte autoritarismo em vários espaços sociais, tendo por exemplo a própria política centralizada nos interesses de grupos específicos, em detrimento de outros.

No que tange ao universo escolar Kohan (2000, p.147) afirma que “não são os professores que “oprimem” os alunos, nem os diretores que submetem os professores, mas todos eles são sujeitados no interior de um conjunto complexo de relações de produção, significado e poder.” Nos remetemos, então, ao espaço escolar enquanto parte de um sistema de controle social onde torna-se possível verificar inúmeras formas de interesse. Desta forma, como efetivar no cotidiano de nossas escolas o artigo 8º, inciso IX da Lei Maria da Penha, se ao longo de vários anos o próprio Estado de ausentou desta responsabilidade social e formou professores com práticas voltadas geralmente para a mera transmissão de conteúdo? O que dizer, ainda, dos currículos extensos e conteúdos muitas vezes tidos como desnecessários, que dificilmente contribuem para a compreensão e apropriação dos conceitos básicos de cidadania, reconhecimento de direitos e deveres, ou até mesmo para a reflexão quanto às situações de violência a que estes indivíduos eram e ainda são submetidos?

Como contribuir para dar fim a este processo de naturalização no que se refere à discriminação contra a mulher e outras categorias sociais, que tanto tem legitimado a “superioridade dos homens”? É certo que a criação de uma lei por si só, com criação de um inciso específico para o âmbito escolar, não será capaz de reverter toda esta desvalorização social da mulher. Hão de ser necessárias medidas mais efetivas, até mesmo para que esta medida se cumpra, visto que sequer há uma fiscalização específica para que isto aconteça. Entretanto, buscar formas de reflexão quanto a este tema configura como um princípio gerador de grandes mudanças neste cenário.

A formação continuada de professores destaca-se como um dos fatores essenciais para que esta abordagem se cumpra nas escolas, entretanto há de se considerar que a subjetividade é um fator de grande relevância, denotando a infeliz possibilidade de que alguns atores escolares acabem contribuindo para reforçar o conceito de violência já existente em nosso meio, caso não recebam uma prévia orientação ou formação sobre o assunto. Assim, os professores estariam sujeitos a deixar que a própria história de vida interfira na abordagem do tema, até mesmo por desconhecer fatores relevantes a serem discutidos sobre o problema da violência doméstica e familiar contra a mulher, repercutindo de forma negativa e contrariando os objetivos previamente destinados pela legislação.

De acordo com Libâneo (2004) a formação continuada se expressa como o prolongamento da formação inicial, tendo por objetivo o aperfeiçoamento teórico e prático, bem como o desenvolvimento de uma cultura geral mais ampla, ultrapassando o próprio exercício da profissão. Ou seja, o conhecimento não é algo pronto e acabado. Precisamos nos aperfeiçoar a cada dia, de maneira que o professor, enquanto profissional capaz de contribuir para a compreensão do conceito de cidadania e da própria violência em si, precisa acompanhar as mudanças sociais e se instrumentalizar a respeito da temática, configurando como pré-requisito para a abordagem da Lei Maria da Penha nas escolas. Até mesmo porque a formação docente não se esgota nela mesma, devendo ser um permanente exercício de reflexão e busca por novos conhecimentos, sem os quais a profissão perde o sentido, que seria o de contribuir para promover transformações sociais significativas.

Compreendendo que a própria versatilidade necessária para o exercício da docência também se constitui a partir do contato com o outro e do encontro consigo mesmo, ao abordar a temática da violência de gênero a escola passaria, então, a ressignificar o seu papel, visto que ao se trabalhar a dimensão ética da educação “o cotidiano se transforma no lugar privilegiado de reconhecimento da vida, de revelação das lutas e dos conflitos diários (...)” (Candau, 2008, p.161).

No que tange ao artigo 8º da Lei Maria da Penha o que infelizmente se percebe desde o período de implementação da lei é a ausência de formação específica para professores visando efetivar a legislação, assim como a falta de acompanhamento necessário das ações realizadas, ou até mesmo a prevalência de práticas que muitas delas sequer são contempladas no Projeto Político Pedagógico das escolas, mas desenvolvidas rapidamente em dias específicos, a fim de assegurar o cumprimento de uma determinação vigente. Outro fator merece destaque: ainda que algumas Secretarias se proponham a realizar palestras e encontros para melhor abordagem da lei, em virtude de exaustivas horas de trabalho, nem sempre os professores podem participar destes encontros. Seja em virtude do deslocamento até o espaço no qual se fará a abordagem ou até mesmo por dificuldades relativas à liberação de sua jornada diária para fins de construção de conhecimentos quanto à violência de gênero, dificultando a aquisição de novos aprendizados. Há de se destacar também que a mera realização de encontros para fins de abordagem da Lei Maria da Penha não resolve o problema da fragmentada formação de professores, cujo meio acadêmico habilitou de forma conteudista. Torna-se necessária a implementação de práticas mais sólidas e formativas, que contemplem também as formas de se trabalhar a lei nas escolas, reconhecendo a sua respectiva importância.

A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/96, promulgada na década de 90, não somente incentiva os docentes a investirem na própria formação continuada, bem como busca assegurar a estes profissionais a melhoria das condições de carreira e de trabalho. Porém, ainda que exista uma legislação estimulando a formação continuada de professores no Brasil, a referida lei também não se faz plenamente cumprida na contemporaneidade. Exemplo disto é o alto quantitativo de profissionais de educação que trabalham horas excessivas, devido aos baixos salários, tendo afetada a própria qualidade de vida e dificultando-os quanto à realização de um trabalho de excelência pois, muitas vezes, ainda que estes professores assim o desejem, as condições de trabalho se apresentam desfavoráveis quanto à conciliação de tempo entre trabalho, estudos e família, associado à falta de recursos financeiros para investimento.

Torna-se, então, novamente explícito que um dos papeis mais importantes da profissão docente reside no ato de contribuir para que os alunos sejam levados a questionar, concordar, discordar, observar e dar sentidos para cada experiência vivenciada. Ações estas que devem ser exercitadas até mesmo pelos próprios educadores, visto que no cotidiano são inúmeras as situações em que há a imediata aceitação de regras que são impostas, sem questionamentos ou até mesmo a própria compreensão quanto ao que foi solicitado, reforçando a importância da formação continuada de professores.

Freire (1996) já enfatizava a necessidade de se pensar criticamente a prática de hoje ou de ontem, com vistas à melhoria da própria atuação no cotidiano escolar, despertando mais uma reflexão quanto ao posicionamento que deve pautar a prática docente, buscando a participação e construção de conhecimento de forma coletiva. Sendo assim, a partir da contribuição de inúmeros autores da área de Educação e análise do próprio cotidiano escolar, a formação continuada de professores torna-se imprescindível para o melhor desempenho de suas atividades diárias, mediante a perspectiva de que não somente o conteúdo dos currículos seja abordado, mas que os alunos sejam levados a uma aprendizagem que vá além dos muros da escola.

Como integrar todas as áreas do conhecimento na abordagem de um assunto tão importante (a violência de gênero), visto que possibilita repensar e desconstruir conceitos arraigados em nossa sociedade, se a maior parte dos próprios professores dificilmente consegue se reunir num mesmo horário para fins de planejamento, em virtude da notória sobrecarga de trabalho? Ou até mesmo de que forma se torna possível trabalhar violência de gênero nas escolas sem que o senso comum prevaleça, em virtude da ausência de ações específicas para a abordagem do assunto? Conscientizar os alunos sobre as diversidades existentes em nosso meio e disseminar a ideia de que é possível existir respeito e igualdade na escola, certamente é uma das possibilidades de se reconstruir conhecimentos e saberes, bem como favorecer a melhoria das relações interpessoais existentes não somente na escola, mas em toda a sociedade. No entanto, como implementar ações que assegurem cumprir este objetivo?

Enquanto o tempo passa e as respostas a tais questionamentos não são encontradas Ferreira (2013) ressalta que a violência social chama atenção por sua propagação, que impõe risco e insegurança no âmbito escolar, de forma que não é permitido ao cidadão cruzar os braços. Ainda de acordo com a referida autora temos como resultado a institucionalização da violência, necessitando que se coloque um freio neste cenário, pois corre-se o risco da escola se tornar incapaz de assegurar os direitos de todos os envolvidos.

Neste contexto, fatores emocionais como medo, abalos psíquicos e desestruturação da personalidade se fazem presentes nas vítimas de violência de gênero, em virtude da constante opressão em que convivem, levando-as também ao isolamento e inferioridade, conforme cita Priori (2007).

Assim sendo, trabalhar o artigo 8º, Inciso IX da Lei Maria da Penha se caracteriza como mais uma forma de busca pela erradicação da violência, mas para que de fato esta prática seja implementada nas escolas ainda há um longo caminho a ser percorrido, não se esquecendo de que uma formação de professores mais contextualizada pode ser o princípio para grandes conquistas nesta área.

5. Considerações finais

A discussão aqui apresentada expressa a necessidade de realização de novas formas de desnaturalização do processo discriminatório e violento a que inúmeras mulheres são submetidas rotineiramente, visto que uma legislação por si só não é capaz de transformar uma estrutura de dominação que sempre se fez presente em nossa sociedade. Não se pretende com isto afirmar que a escola não possa ser um espaço para abordagem dos aspectos relacionados aos direitos humanos, à eqüidade de gênero, raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher, mas ao contrário: a escola deve levar o aluno a compreender a sua própria realidade, situar-se nela, interpretá-la e contribuir para sua transformação, sendo um espaço fundamental para a formação da cidadania. Porém, enquanto espaço composto por um público proveniente das mais distintas realidades, torna-se perceptível as diferentes manifestações culturais e sociais, apresentadas pelos alunos como reflexo da conduta daqueles com os quais convivem, expressando a necessidade de repensar meios que promovam um maior preparo e capacitação dos profissionais envolvidos, bem como propiciar novas formas de romper com este sistema de dominação-exploração a que somos submetidos.

Contribuir para desenvolver o senso de pertencimento ao espaço escolar e estimular ações cotidianas de respeito mútuo pode ser o início de uma prática que estimule a adoção de novas formas de combate à exclusão social e consequente redução do quadro de violência de gênero vivenciado na sociedade brasileira. A partir de então, quem sabe a lei Maria da Penha possa ser trabalhada de forma mais ampla nas escolas.

Referências

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