Ressignificar o corpo: a educação dos sentidos
Resignify the body: the education of the senses
Resignificar el cuerpo: la educación de los sentidos
Ressignificar o corpo: a educação dos sentidos
Research, Society and Development, vol. 8, núm. 9, pp. 01-16, 2019
Universidade Federal de Itajubá

Recepção: 09 Junho 2019
Revised: 17 Junho 2019
Aprovação: 22 Junho 2019
Publicado: 26 Junho 2019
Resumo: Este ensaio reflete sobre a compreensão de corpo em Merleau-Ponty e as contribuições de sua fenomenologia para a Educação Física, considerando a educação dos sentidos numa perspectiva pedagógica. Para tanto, este estudo vale-se da pesquisa bibliográfica e da abordagem qualitativa. A partir dos conceitos merleau-pontyanos, apresentamos a ideia de que o corpo não é um instrumento passivo diante do mundo, mas que está fundamentado no tempo e no espaço, que carrega uma intencionalidade, sendo ao mesmo tempo, sujeito e objeto da percepção. Concluímos que uma aprendizagem voltada à sensibilidade, por meio de uma ação pedagógica delineada por uma experiência da corporeidade, possibilita ressignificar o corpo racionalizado e assim criar novos sentidos no processo de ensino-aprendizagem.
Palavras-chave: Educação Física, Corpo, Educação dos sentidos.
Abstract: This essay reflects on the understanding of body in Merleau-Ponty and the contributions of his phenomenology to Physical Education, considering the education of the senses in a pedagogical perspective. Therefore, this study is based on bibliographical research and the qualitative approach. From the Merleau-Pontyan concepts, we present the idea that the body is not a passive instrument before the world, but is based on time and space, which carries an intentionality, being at the same time the subject and object of perception. We conclude that a sensitivity-oriented learning, through a pedagogical action delineated by an experience of corporeity, makes it possible to re-signify the rationalized body and thus create new meanings in the teaching-learning process.
Keywords: Physical Education, Body, Education of the senses.
Resumen: Este ensayo refleja la comprensión del cuerpo en Merleau-Ponty y las contribuciones de su fenomenología a la Educación Física, considerando la educación de los sentidos en una perspectiva pedagógica. Para ello, este estudio se vale de la investigación bibliográfica y del abordaje cualitativo. A partir de los conceptos merleau-pontyanos, presentamos la idea de que el cuerpo no es un instrumento pasivo ante el mundo, sino que está fundamentado en el tiempo y en el espacio, que lleva una intencionalidad, siendo al mismo tiempo sujeto y objeto de la percepción. Concluimos que un aprendizaje orientado a la sensibilidad, por medio de una acción pedagógica delineada por una experiencia de la corporeidad, posibilita resignificar el cuerpo racionalizado y así crear nuevos sentidos en el proceso de enseñanza-aprendizaje.
Palabras clave: Educación Física, Cuerpo, Educación de los sentidos.
1. Introdução
Ao consultar a produção contemporânea sobre os estudos do corpo na área de Educação Física, é possível constatar uma constante presença da abordagem fenomenológica, na qual, decerto, a filosofia de Merleau-Ponty possui significativa contribuição. Confirmamos essa constatação ao entendermos que o aporte merleau-pontyano suscita uma fundamental experiência sensível do corpo para a Educação Física, por suas análises e aproximações.
Em sua obra intitulada Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (2018), confere destaque à compreensão da relação corpo-mundo, uma vez que, segundo o filósofo, o mundo é aquilo que percebemos e vivenciamos. A consciência por sua vez, projeta-se no mundo ao qual se dirige numa comunicação constante das experiências vivenciadas e nas experiências com os outros, que se engendram numa intersubjetividade e é revelada pelo campo fenomenal[1], o qual designa uma significação de abertura sensível ao mundo.
Sendo assim, este artigo objetiva analisar a compreensão de corpo em Merleau-Ponty e sua contribuição para a Educação Física, tendo em vista a possibilidade de uma prática pedagógica a partir da educação do corpo que valorize a sensibilidade do sujeito em sua relação com o mundo, na direção de alargar o sentido de ver, pensar e agir.
É pertinente ressaltar que, para a Educação Física, a reflexão sobre o corpo fenomenológico é de suma importância para a produção dos seus saberes, uma vez que permite direcionar um novo olhar sobre o corpo e o movimento. Nessa perspectiva, cabe uma pergunta central: como esse olhar sensível do/no corpo, relacionado à educação dos sentidos, pode avançar numa contribuição epistemológica para a Educação Física?
Ao vislumbrar esta questão, torna-se necessário explanar como a visão de corpo em Merleau-Ponty colabora fortemente para uma mudança radical nos paradigmas ocidentais que regiam e que ainda regem, em certos contextos, as ciências, a Educação, a Educação Física, o corpo e o movimento.
2. Metodologia
Este ensaio se insere no contexto mais amplo de uma pesquisa sobre corporeidade, e foi produzido por meio de uma abordagem qualitativa que, segundo Minayo (2001), refere-se a um nível de realidade que não pode ser quantificado e aprofunda-se no mundo dos significados, das ações e relações humanas.
Consoante a isto, a pesquisa apoiou-se no método bibliográfico para embasar a temática que, dada a natureza teórica deste trabalho, compôs-se basicamente de publicações e documentos científicos, cuja classificação, de acordo com Pereira, Shitsuka, Parreira e Shitsuka (2018) constituem-se de “uma gama enorme de documentos que incluem: monografias, trabalhos de conclusão de curso, relatórios, teses, dissertações, artigos científicos, resumos, resenhas, livros, capítulos de livros, projetos e muitos outros” (p.33).
Para referenciar a temática da corporeidade, recorreram-se às reflexões de Merleau-Ponty (2018) em sua obra Fenomenologia da Percepção; e aos estudos de outros autores com os quais dialogamos, entre estes: Nóbrega (2010); Gonçalves (2012); Maffesoli (1998); Le Breton (2016).
3. Reflexões do corpo: o corpo que tenho e o corpo que sou
Ao longo da história, o corpo esteve relacionado a amplos discursos e diversas significações. Na sociedade ocidental, as várias concepções de corpo foram marcadas por pensamentos dualistas em diferentes épocas. Não obstante, na história da Filosofia, o pensamento predominante esteve intimamente ligado à busca pelo conhecimento racional, alimentando a oposição entre consciência e corpo, corpo e mente, sujeito e objeto, vinculado também a modelos metafísicos resistentes a instabilidade de uma existência finita e temporal, ou seja, seu caráter fenomenal.
É interessante perceber que essas discussões e significações advindas das correntes racionalistas desses períodos possuem como ponto em comum, a desvinculação da relação do ser no mundo[2]. Nessa tradição filosófica de matriz platônica e metafísica, o pensamento sobre o Ser esteve associado à realidade transcendente e imutável, excluindo o concreto e o finito. Assim, tais correntes que reverberaram o pensamento ocidental encontram ressonância ainda hoje, em diversas áreas da filosofia, ciência e educação.
A visão do corpo na modernidade, no encontro com a filosofia mecanicista de Descartes sobressai à visão do corpo como uma forma mecânica. Essa concepção é marcada pelo dualismo mecanicista na fragmentação entre corpo-alma. Seguindo essa lógica, o cartesianismo abriu caminho para o racionalismo e a experimentação científica empírica, que tentava explicar o comportamento humano a partir de referências à anatomia, biologia ou química do corpo humano (Turner, 2014).
Nesse contexto, a abordagem do corpo como máquina, evidencia a clivagem mente-corpo e cria um corpo objetivado e fragmentado, sendo privado de sua subjetividade, em que desconsidera a relação corporal em sua concreticidade. Essa redução, consequentemente, funda a premissa de que ter um corpo é mais importante do que ser um corpo, o que implica dissociar o homem da sua totalidade, priorizando o corpo que se tem em detrimento ao corpo que se é.
Antes de adentrarmos na discussão que norteia nossa investigação, isto é a compreensão de corpo fenomenal, cabe ressaltar que para Merleau-Ponty, a visão de corpo fenomenológico designa sermos um corpo que possui uma conexão intencional com o meio e uma relação de unidade corpo-mundo. Referindo-se a isto, destaca Merleau-Ponty que:
tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (Merleau-Ponty, 2018, p. 03).
Diante desse pensamento, entendemos que o autor contrapõe-se a lógica racionalista ao considerar a condição humana como existencial, isto é, o corpo está no mundo em sua unidade existencial e a consciência é corporal, logo, a maneira como vemos as coisas está ligada à experiência de mundo que nosso corpo vive. O corpo não está como matéria passiva, mas como presença viva, em movimento.
Portanto, podemos pontuar um elemento de vital relevância para a compreensão de corpo em Merleau-Ponty (2018), que é o campo fenomenal, cuja elaboração pretende analisar a densidade das coisas sensíveis na experiência da percepção pelo corpo próprio[3] numa comunicação vital com o mundo, o vínculo intencional, e encontra na relação eu-outro-mundo, a consciência perceptiva do sentido do corpo.
Em um pensamento de síntese, Merleau-Ponty (2018) afirma que “percepção exterior e percepção do corpo-próprio variam conjuntamente porque elas são as duas faces de um mesmo ato” (p.276). Nesse sentido, Santos (2016) constata o pensar o corpo como sendo a unidade que compreende o ser biológico e cultural, ou seja, a compreensão de corpo se faz para além de sua estrutura biológica; o corpo deve ser visto também como ser cultural, pois expressa o sentir, o pensar e o agir, por meio de ações que são revestidas de intencionalidade, na qual é revelada a subjetividade do indivíduo, sendo este dotado de significações e sentidos, ou seja, o corpo como construtor de sentidos, que se apresenta de acordo com o mundo percebido e a vivência singular de cada um.
Dessa concepção de corpo, Santos (2016, p.463) afirma que na perspectiva fenomenológica, “a dimensão essencial só apresenta sentido se unida à dimensão existencial, ao mundo vivido. Essência e existência apresentam-se como dimensões de um mesmo fenômeno, o ser humano”. Pode-se ver, portanto, que seria ingênuo pensar que existem corpos separados ou tentar compreender o corpo humano sem considerar a complexidade de formas e existências que se envolvem na trama da existência humana. Assim, a partir das experiências vividas, integrando corporeidade ao movimento, configura-se a unidade do corpo fenomenal e a compreensão dos sentidos das coisas.
Até aqui, procuramos apresentar a visão de corpo na perspectiva de Merleau-Ponty que, ao contemplar a percepção corporal do ser-no-mundo, numa relação de comunicação, encontra a ressignificação da noção de corpo, quando considera que somos um corpo e não estamos passivos diante do mundo. Para tanto, considera o corpo como consciência encarnada, a qual se configura como “carne do mundo”, ao entrelaçar as coisas com o mundo e, como veremos, com outrem.
De posse dessas afirmações podemos concluir que essa visão de corpo, de perspectiva fenomenológica, é particularmente importante para áreas de conhecimento que tem como objeto de estudo o corpo, como o exemplo da Educação Física, uma vez que, permite direcionar um olhar sensível sobre o corpo e o movimento. Para tal reflexão, compreendemos que, ao integrar corporeidade ao movimento humano, estamos pensando o corpo como consciência encarnada, tomado de significações simbólicas, isso permite redimensionar novas possibilidades de expressões corporais dos sujeitos, assim, libertando o corpo do aprisionamento de movimentos mecânicos e padronizados.
Portanto, na seção seguinte, passaremos a discutir como é possível pensar a relação entre a Educação Física e essa consciência encarnada, que vislumbra a ressignificação do corpo perpassada pela dimensão sensível.
4. A Educação Física e a dimensão do sensível
Pensar a Educação Física é sentir o corpo em movimento. Mas, qual corpo em movimento estamos visualizando? Sabe-se que a Educação Física, em outros tempos, abrigou em seu bojo forte influência da metafísica cartesiana, que concebia o ser humano em dissociação ao mundo; cujo modelo de pensamento apresentava uma cisão entre ser corpóreo e motriz, assim perdendo de vista a totalidade humana e o convertendo em objeto mecânico manipulável.
Cabe destacar que, no contexto histórico das ideias racionalistas que incidiram sobre o corpo, a determinação do cogito e sua lógica racional como balizadora da compreensão do homem no mundo, confere um desprezo ao conhecimento sensível. Segundo Gonçalves (2012) essas correntes racionalistas influenciaram o pensamento ocidental, assim como o desenvolvimento da Ciência, tendo na Educação a consequência da divisão entre o Conhecimento Lógico e o Conhecimento Sensível.
Para tanto, Duarte (2000) afirma que o conhecimento lógico, ou inteligível, que submete o corpo a análises na perspectiva reducionista, mecanicista ou mentalista, nega a sabedoria do corpo. Assim, para além de reduzir o corpo a simplificações e a esquemas corporais, o corpo detém um saber, que reside na carne[4], em sua totalidade, o saber sensível.
Por isso, Merleau-Ponty (2013) afirma que “meu corpo está preso no tecido do mundo (...) e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo” (p.15), nos levando a depreender dessa afirmação a originalidade da relação homem-mundo, na qual o corpo interpreta seu entorno e age sobre ele, e a experiência do sensível encontra-se intrínseca as significações com as quais o mundo é vivido.
Tal noção de carne significa que o corpo é o centro de uma trama sensorial que emana sua essência no mundo. Ele é incluído no movimento das coisas e se mistura a elas com todos os seus sentidos (Merleau-Ponty, 2013). É por meio da dimensão do sensível, ou seja, a abertura ao mundo, que se desenvolve a consciência de si, em que o corpo experimenta a sua existência no entrelaçar das ressonâncias sensoriais e perceptivas que se comunicam a todo instante.
Para elucidar esse saber sensível, Ortega (2008) atesta a dimensão visceral do inconsciente corporal, em que o interior do corpo nem sempre pode ser controlado pela consciência, ou, em outras palavras, esse corpo que temos e somos é também, o sujeito da experiência e da ação, que conduz os movimentos e ações sem precisar constantemente de uma longa reflexão prévia.
Outro destaque conferido ao saber sensível pode ser encontrado em Laban (1978), que encontra na dança, o corpo como espaço expressivo, em que cada gesto, por mais simples que possa parecer, sempre representa uma experiência vivenciada, e se presentifica no movimento corporal, criando significações e sentidos, no entrelaçar dos mecanismos internos do organismo com o meio, diluindo as fronteiras entre o dentro e fora do corpo.
Percebemos nessa afirmação, que Laban (1978) compreende esse fenômeno, de dentro e fora, não como oposição, mas numa relação de imbricamento, ou seja, um pertence ao outro, e reconhece a continuidade gradativa em constante transição, como é o movimento humano. É importante frisar que Merleau-Ponty refere-se a esse entrelaçamento como quiasma[5], em outras palavras, o dentro e o fora articulados um ao outro, no sentido de ser interioridade e o sentido de ser exterioridade, em que se recusa considerá-los como separados, mas sendo fronteiras mutáveis.
Corroborando com este pensamento, Nóbrega (2019) acentua que, é por meio do corpo como presença no mundo, de forma intencional, carregado de significados e sentidos, que as sensações e as percepções são compreendidas em uma dinâmica de movimento. Portanto, essa compreensão do corpo como sujeito do movimento, entende que a percepção e a motricidade fazem parte do mesmo fenômeno em que tudo se relaciona.
Nesse contexto, Caminha (2019) afirma que reconhecer esse saber sensível é ter consciência de que somos seres encarnados, que o corpo humano sabe, sente, percebe, vibra, ecoa e ressoa sentidos, sendo dotado de significações vitais entrelaçadas à motricidade, sendo, ao mesmo tempo, um instrumento de apreender o mundo. Assim, podemos inferir que a experiência vivida nos permite ver ou saborear o mundo, com as suas sonoridades, com os seus sabores e os seus aromas, no qual o corpo sente o mundo enquanto sujeito perceptivo .
Assim, é sobre a base epistêmica da fenomenologia ao trato do corpo, em especial no pensamento de Merleau-Ponty, que Nóbrega (2005) destaca que a corporeidade funda-se no corpo em movimento, constituindo-se o espaço e o tempo, relacionado à facticidade, à história e à cultura. A autora conclui que eleger a corporeidade, no âmbito da Educação Física, significa uma chave de compreensão para a superação da dicotomia biológico-cultural, e ao mesmo tempo, a significação da unidade do ser no mundo.
Perante o exposto, a partir desse ponto de vista fenomenológico, podemos acrescentar a contribuição de Duarte (2000) que aponta para o equívoco em privilegiar o inteligível ou o sensível, ou seja, entre o compreender racionalmente e o saber com o corpo. Assim, é necessário articular o desenvolvimento do saber sensível com a educação do intelecto na relação de complementaridade e reciprocidade permitindo o equilíbrio em ambos os conhecimentos de acesso ao mundo.
Dessa forma, é possível superar a abordagem do corpo anatomofisiológico; de um corpo estudado e cientificamente explicado por visões unilaterais do racionalismo, em que o homem passa a ser definido nos seus limites biológicos. Essa visão persistiu na Educação Física até meados da década de 80 de forma majoritária, quando então ganharam corpo os estudos culturais e fenomenológicos que iniciaram uma mudança epistemológica na disciplina.
Por essa razão, Moreira (2019) destaca a importância da corporeidade na sala de aula, quer como tema teórico a ser refletido, quer como atitude a ser observada em profissionais e professores da área. Observamos, nesse sentido, que tal atitude deve transparecer, sobretudo, em uma vivência pedagógica condizente com as múltiplas possibilidades que a expressão criadora da corporeidade traz para o ambiente escolar.
5. Educação do corpo: redimensionar os sentidos
Já acentuamos, anteriormente, que no mundo ocidental, ao longo do tempo, o conhecimento do corpo esteve relacionado com a representação mecânica e os postulados da lógica racional. Desse modo, Le Breton (2016) evidencia que as descobertas ópticas, o advento dos procedimentos modernos da observação científica, como por exemplo, a fotografia, os raios x e a imaginária médica contribuíram para a supervalorização da visão. O autor afirma que o sentido da visão, principalmente, tornou-se hegemônico, e a valorização da observação meticulosa do visível influenciou a forma de ver e de pensar o olhar. Assim, a primazia da visão não revela somente o estabelecimento da observação objetiva, mas reflete o distanciamento progressivo do outro; um individualismo emergente que marca essa forma de conceber os sentidos.
Consequentemente, Ortega (2008) analisa que essa superioridade da visão científica repercute na medicina atestando que a tradição anatômica reconstrói o corpo a partir do modelo do cadáver, corpo objetivado e fragmentado que foi submetido a novas técnicas de visualização, em que a visão representa objetividade e precisão. Dessa forma, a história da visualização médica do corpo testemunha o afastamento do tato e dos outros sentidos, no qual, o privilégio da visão em detrimento dos outros sentidos, se constitui como um modelo de objetividade visual mecânica que terá como efeito a anestesia da sensibilidade humana.
Mais especificamente, pode-se perceber esse distanciamento e implicações, tanto na ciência e na educação. As análises e os estudos relacionados ao corpo humano reduziram e fragmentaram os sentidos, seccionando-os em aparelho visual, auditivo, olfativo, tátil e gustativo, como se fosse uma soma de órgãos com funções isoladas entre si. Ora, essa influência metódica, não é difícil de encontrar na educação, em que sobressai a exposição do corpo segmentado, e no qual se cristaliza nos processos de ensino-aprendizagem.
Merleau-Ponty (2018) contrapõe-se a essa visão de corpo racional, sob o enfoque mecanicista, apresentando a perspectiva fenomenológica, em que traz o corpo existencial situado na experiência vivida e o modo de ser no mundo. Nas palavras de Maffesoli (1998), a fenomenologia “trata-se de um ‘método’ erótico, enamorado pela vida e que se empenha em mostrar sua fecundidade” (p. 170). Desse ponto de vista, na perspectiva da fenomenologia, o conhecimento do corpo não pode ser reduzido a uma visão geométrica, isso seria uma maneira superficial de se ver o corpo.
É muito revelador, se pensarmos o corpo como unidade perceptiva que envolve toda uma dimensão de sentidos, de emoções e sentimentos que se entrelaçam e ressoam no mundo exprimindo nosso ser. Com efeito, a fenomenologia vislumbra o fenômeno, focaliza o corpo em sua complexidade, age na interpretação das relações significativas, que se envolvem na relação corpo-mundo, assim, representa um convite a mudança de perspectiva, direciona à integralidade, refutando assim, a visão mecanicista e explicativa causais ao qual o corpo foi submetido.
Como observa Maffesoli (1998) a fenomenologia como teoria erótica não está atrelada de forma unívoca a estética, a beleza natural das coisas, mas a compreensão do mundo social, as complexidades e formas das criações cotidianas, que se envolvem numa trama social, realidades que possuem uma beleza que não pode ser reduzida a simples razão.
Dessa forma, se por um lado, o racionalismo de Descartes expresso em “penso, logo existo”, suscita explicar o “porquê” das coisas, na relação causal, por outro lado, no pensamento merleau-pontyano temos a expressão segundo a qual “sinto, logo sou”, tendo na percepção do campo fenomenal a compreensão do “como” das coisas, e na relação existencial do homem e do mundo. Aqui, não se trata de uma redução de pensamento, mas um alargamento de pensar o mundo em sua complexidade, que o mundo não é o que penso, mas o que vivo, integrando o sensível e o inteligível, como afirma Merleau-Ponty:
[...] não é porque eu penso ser que estou certo de existir, mas, ao contrário, a certeza que tenho de meus pensamentos deriva de sua existência efetiva. Meu amor, minha raiva, minha vontade não são certos enquanto simples pensamentos de amar, de odiar ou de querer, mas, ao contrário, toda a certeza desses pensamentos provém da certeza dos atos de amor, de raiva ou de vontades, dos quais estou seguro porque eu os faço (grifo do autor). (Merleau-Ponty, 2018, p. 511).
Fica claro, pois, que o autor não só refuta o cogito cartesiano, mas coloca o corpo perceptivo como consciência encarnada da experiência. O que ele rejeita é a separação entre o sujeito e o objeto, entre corpo e alma. Essa cisão entre corpo e alma, não supõe apenas a divisão entre as dimensões do sensível e inteligível, mas atinge o próprio indivíduo, no sentido de limitar sua essência corpórea, quer dizer, a redução cartesiana ao pensamento como único caminho possível sobre a verdade das coisas.
Por isso mesmo é que Merleau-Ponty (2018) explicita que o corpo não é um instrumento passivo diante do mundo, mas que está fundamentado no tempo e no espaço; que carrega uma intencionalidade, sendo ao mesmo tempo, sujeito e objeto da percepção, pois ter um corpo é também ser um corpo. Assim, corpo vivo e corpo vivido expressam nossa corporeidade, constituindo uma relação no mundo sensível.
Nesses termos, Le Breton (2016) ressalta que ao experimentar o mundo, dando lugar a um corpo vivido, nessa experiência sensível, os nossos sentidos atuam em sua totalidade, evocando um leque semântico e permite que as nossas percepções sensoriais sejam construídas e enraizadas de significações com ampla subjetividade, na qual estará ligada de forma intrínseca a história pessoal, a sensibilidade e pela educação.
Naturalmente, essa experiência sensível, pode ser aprimorada pela educação do corpo e dos sentidos, ampliando a percepção do mundo, na interação entre sujeito e objeto, sendo pertencente a uma lógica sensível que emerge do corpo e que se revela pelo movimento. Portanto, nessa dinâmica de movimento, urge saber ver, ouvir, sentir, tocar e saborear o mundo.
Nessa reflexão, ao vislumbrar a experiência sensível, citamos Montagu (1988) em seu livro Tocar, o significado humano da pele, que utiliza a expressão “a mente da pele”. O autor faz uma análise da importância da experiência tátil, em que a pele, para além de um mero tegumento destinado a manter o esquema articulado ou as suas funções fisiológicas, é o ponto de contato entre o mundo interior e exterior, que o toque como experiência sensível não é somente físico, mas invólucro semântico que ecoa os movimentos do mundo e das experiências vividas. O mesmo autor ainda traz um conceito sobre o sistema háptico, em que apresenta um olhar ampliado ao discorrer sobre o corpo como sendo algo complexo e fascinante. Nas suas palavras, a seguinte definição:
o termo háptico é usado para descrever o sentido do tato em sua extensão mental, desencadeada diante da experiência total de se viver e agir no espaço. Nossa percepção do mundo visual, por exemplo, de fato mescla o que já sentimos em associações passadas com o que já vimos ou com a cena a nossa frente. O sentido háptico é adquirido, pois se aplica a objetos que tenham sido tocados ou usados em manipulações. (Montagu, 1988, p.31).
Conforme descrito acima, o sentido háptico desvela-se em um olhar mais sensível, um modo de percepção mais tátil do que visual, ao qual, metaforicamente, emana o saber tocar com o olhar e o despertar a novas sensibilidades. Para Merleau-Ponty (2018) a experiência visual e tátil formam uma experiência integral em que são feitas a partir do próprio corpo, como unidade do corpo, ao mesmo tempo que vê e toca, elucidando que não existe separação sujeito-objeto.
Desse modo, retomando a noção de quiasma, essa relação se faz por meio da reversibilidade, ou seja, a reversibilidade da carne. Nota-se que, essa reversibilidade, entrelaça o mundo e o homem num processo de comunicação contínua, essa relação orgânica do sujeito e do mundo, prolonga-se na extensão da existência, sendo o corpo uma trama de significações vividas que orienta no sentido harmônico.
Desta forma ao retomar o pensamento de Montagu (1988) observa-se que a pele que reveste o corpo inteiro, o corpo que habito, e que se torna elo do mundo e com os outros, é sempre um corpo ancorado de sentidos. Ele ainda menciona o tocar humano da pele, na relação entre mãe e filho, em que a pele é o filtro semântico e sensorial do bebê com o mundo.
Vale acrescentar, ainda nessa mesma perspectiva, que Anzieu (1989) em sua obra O Eu-pele, explicita as experiências pelas quais o bebê passa em contato com sua mãe, ainda no útero, e posteriormente, permite metaforicamente, associá-los a uma única pele. Assim, a pele da mãe que toca o bebê e o bebê que toca a mãe, ambos tocam e são tocados. Essa comunicação no contato com o outro ser e as sensações experimentadas, conduzem a abertura ao mundo.
A partir do ponto de vista dos autores Montagu (1988) e Anzieu (1989) a percepção tátil é evidenciada e se expressa no tocar humano, em que podemos nos aproximar do conceito de reversibilidade da carne de Merleau-Ponty, ou seja, em que tocado e tocante constituem uma relação significativa que em que ambos se tocam profundamente.
Em suma, podemos dizer que a discussão desses autores supracitados, ao exemplificar um olhar sensível sobre a pele, verifica-se no abandono de centralizar a visão do corpo instrumental e a instauração da visão do corpo como sujeito, que se relaciona com o mundo, nessa interação íntima e indissolúvel entre ambas.
Com efeito, Le Breton (2016) mostra que o corpo se faz sujeito na reversibilidade do sentir. O corpo é o veículo do ser no mundo, sendo inconcebível sem a carne que forma a sua existência. Isso significa que essa carne é uma textura sensorial sempre engajada ao mundo e que entrelaça o movimento dos sentidos, comunicando e expandindo a percepção sensível sem cessar pela experiência acumulada ou pela aprendizagem. Entretanto, essa comunicação atrelada aos sentidos, não é uma síntese permanente, mas uma dinâmica existencial que move um corpo humano em direção a outro. Ou seja, pela estesia do corpo é possível apreender a experiência vivida em suas múltiplas significações.
Assim, para Nóbrega (2010) pensar no conhecimento do corpo, é reencontrar a corporeidade, ao dimensionar a experiência vivida. Trata-se de um saber que se constitui na dinâmica dos processos orgânicos, aspectos simbólicos e sociais que se expressa na existência humana tendo no desvelar do corpo, do gesto e do conhecimento sensível a abertura a diferentes possibilidades para reflexão sobre o ser, rompendo, assim, com qualquer processo linear ou racionalista.
Tendo como base o pensamento merleau-pontyano, podemos redimensionar um novo olhar para a complexidade do corpo, uma percepção de corpo fenomenológico da experiência subjetiva, de corpo encarnado, que por meio das experiências vividas torna-se criador de sentidos, em que o movimento e o sentir entrelaçam-se entre o sujeito e o mundo, constituindo uma linguagem sensível.
Neste contexto, é coerente observarmos, em Rubem Alves a reflexão poética sobre ciência e sapiência, ao discorrer sobre as formas do olhar. Ele diz que:
o olhar é real. É real porque produz efeitos reais. O olho é também real. Sobre ele se pode ter conhecimento científico [...] Mas, o olhar não é objeto de conhecimento científico. Nem tudo o que é real pode ser pescado com as redes metodológicas da ciência. Há objetos que escapam pelos buracos de suas malhas. (Rubem Alves, 2005, p. 116).
O autor enfatiza que a capacidade de discriminar não pertence aos olhos, mas ao olhar, que exige uma luz interior. Entendemos que essa luz interior emana do corpo, do saber corpóreo, em que a apreensão das significações se faz pelo corpo, e assim, concordamos com Merleau-Ponty (2018, p. 210) quando evidencia que ao apreciar o corpo, “não é ao objeto físico que o corpo deve ser comparado, mas antes à obra de arte”.
Assim, podemos afirmar que é preciso reconstruir um olhar sensível, uma aprendizagem voltada à sensibilidade. Ou seja, delinear uma ação pedagógica, em que a prática de uma experiência sensível, por meio da educação dos sentidos, possa propiciar o pensar, a sensibilidade corpórea, o saber corporal, e assim redimensionar o corpo racionalizado, que tanto influenciou a Educação Física, e assumir um corpo sensível e ressignificado em sua totalidade.
6. Considerações finais
Ao abordarmos os estudos de Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da percepção procuramos evidenciar que a abertura à dimensão do sensível representa um reencontro com a corporeidade e que, portanto, a relação corpo-mundo nesse processo de significações é essencial para que o corpo viva uma experiência sensível.
Diante do exposto, acreditamos ter cumprido o objetivo a que nos propomos, no sentido de tecer uma análise do corpo merleau-pontyano e suas implicações para a Educação Física, na direção de uma prática pedagógica que valorize a sensibilidade do sujeito. Entendemos que, por meio da perspectiva fenomenológica, é possível compreender o corpo na direção de sua totalidade, sem negar ou hierarquizar as múltiplas experiências e possibilidades do corpo. Dessa forma, o destaque conferido a educação do corpo por meio do alargamento dos sentidos, representa uma chave de compreensão para se conceber o corpo humano com um dimensionamento que respeita sua unidade e complexidade.
Acrescentamos ainda que nossa contribuição soma-se ao conjunto de estudos sobre o corpo na educação, indicando que o trabalho docente deve abrir sua prática a novas leituras de mundo, leituras que partam de uma ampliação dos sentidos motivada pela fecundidade do pensamento de autores como Merleau-Ponty ou pela experiência vivida do mundo que compartilhamos, cujo sensível é de “espessura e riqueza inesgotável” (Merleau-Ponty, 2018, p.322). Assim, um possível caminho seria uma prática educativa que considere a capacidade criativa do corpo, ou seja, uma educação que incorpore as dimensões afetivas, cognitivas e socioculturais, com vistas à valorização do saber corpóreo. Nesse sentido, nos referimos a Gallo (2012) ao afirmar que o processo de aprendizagem, o ato de aprender, dá-se com a convivência com o outro, na interação, na percepção sensível; no corpo como presença, em sua inteireza, ou seja, onde o motor e o perceptivo compõem uma unidade.
Desse modo, a educação dos sentidos representa uma pista para a aprendizagem significativa que considera o corpo em sua totalidade, na relação com o mundo, e assim, se lança a superar o aspecto instrumental ao qual o corpo foi submetido ao longo dos processos educativos e que ainda hoje persiste nos resquícios das práticas educativas de muitos professores.
Essa compreensão de corpo fenomenológico em Merleau-Ponty possibilita o redimensionar dos processos de conhecimentos nas diversas práticas educativas. Destacamos ainda como sugestão para trabalhos futuros, a elaboração de atividades escolares e propostas de intervenção em diferentes áreas da educação, e não somente para a Educação Física, no sentido de despertar um olhar sensível no pensar e no refletir da relação teoria-prática na relação ensino-aprendizagem.
7. Referências
Alves, Rubem. (2005). Educação dos sentidos e mais. Campinas. SP: Versus.
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Porcentagem de contribuição de cada autor no manuscrito
Luciana Braga de Oliveira Freire – 30%
Patrícia Ribeiro Feitosa Lima – 25%
Aldayr de Oliveira Monteiro – 15%
Wesley Cosmo Martins – 15%
Sandro César Silveira Jucá – 15%
Notas