Recepção: 19 Junho 2019
Revised: 21 Junho 2019
Aprovação: 27 Junho 2019
Publicado: 27 Junho 2019
DOI: https://doi.org/10.33448/rsd-v8i10.1321
Resumo: O presente artigo objetivou discutir o conceito de paradigma no pensamento de Thomas Kuhn e Edgar Morin. Em termos metodológicos, este estudo foi realizado por meio de uma pesquisa bibliográfica em artigos científicos e livros, sendo a abordagem de análise dos dados qualitativa. A pesquisa realizada evidenciou a centralidade do conceito de paradigma para as obras de Thomas Kuhn e Edgar Morin. Na obra de Kuhn o paradigma assume uma função estruturante da forma como os fenômenos são analisados e compreendidos. Em Morin, o referido conceito assume um significado amplo, sendo entendido como a matriz do pensamento ocidental. Concluiu-se que a principal diferença entre a conceituação de paradigma para Morin e Kuhn relaciona-se à abrangência deste conceito. Em relação às similitudes, ambos os autores entendem que o progresso científico opera necessariamente por meio da quebra e ruptura destes modelos de explicação da realidade, sendo inclusive esta a proposta central da teoria da complexidade desenvolvida por Edgar Morin.
Palavras-chave: Thomas Kuhn, Paradigma, Edgar Morin, Teoria da Complexidade.
Abstract: The present article aimed to discuss the concept of paradigm in the thinking of Thomas Kuhn and Edgar Morin. In methodological terms, this study was carried out through a bibliographical research in scientific articles and books, being the qualitative data analysis approach. The research carried out evidenced the centrality of the paradigm concept for the works of Thomas Kuhn and Edgar Morin. In Kuhn's work the paradigm assumes a structuring function of the way phenomena are analyzed and understood. In Morin, this concept assumes a broad meaning, being understood as the matrix of Western thought. It was concluded that the main difference between the paradigm conceptualization for Morin and Kuhn is related to the comprehension of this concept. In relation to the similarities, both authors understand that scientific progress necessarily operates through the breaking and breaking of these models of explanation of reality, being even this the central proposal of the theory of the complexity developed by Edgar Morin.
Keywords: Thomas Kuhn, Paradigm, Edgar Morin, Theory of Complexity.
Resumen: El presente artículo objetivó discutir el concepto de paradigma en el pensamiento de Thomas Kuhn y Edgar Morin. En términos metodológicos, este estudio fue realizado por medio de una investigación bibliográfica en artículos científicos y libros, siendo el abordaje de análisis de los datos cualitativos. La investigación realizada evidenció la centralidad del concepto de paradigma para las obras de Thomas Kuhn y Edgar Morin. En la obra de Kuhn el paradigma asume una función estructurante de la forma como los fenómenos son analizados y comprendidos. En Morin, el referido concepto asume un significado amplio, siendo entendido como la matriz del pensamiento occidental. Se concluyó que la principal diferencia entre la concepción de paradigma para Morin y Kuhn se relaciona con el alcance de este concepto. En cuanto a las similitudes, ambos autores entienden que el progreso científico opera necesariamente por medio de la ruptura y ruptura de estos modelos de explicación de la realidad, siendo incluso esta la propuesta central de la teoría de la complejidad desarrollada por Edgar Morin.
Palabras clave: Thomas Kuhn, Paradigma, Edgar Morin, Teoría de la complejidad.
INTRODUÇÃO
Paradigma é descrito nos dicionários como um substantivo masculino que significa exemplo geral, conjunto de formas ou modelo de algo. Na linguagem coloquial é constantemente utilizada como sinônimo de padrão, exemplo, modelo, norma, protótipo e regra. Entretanto, Amorim & Neto (2011) ressaltam que o emprego do referido conceito nas discussões hodiernas das Ciências Humanas relaciona-se ao significado atribuído a essa palavra pelo físico e filósofo Thomas Kuhn nas suas pesquisas sobre epistemologia.
Pelegrini (2013) ressalta que a definição de paradigma elaborada por Thomas Kuhn tornou-se um conceito popular em variados campos de conhecimento. Pelegrini (2013) também aponta que o referido conceito passou a ser constantemente ressignificado pela academia, passando a figurar em títulos de trabalhos científicos e capas de livros. O citado autor ainda verifica que a utilização do conceito nas comunidades científicas permanece crescente “apesar das severas críticas dirigidas à sua imprecisão e inadequação de uso” (Pelegrini, 2013, p. 59).
A partir dos trabalhos desenvolvidos por Thomas Kuhn, diversos autores têm discutido e defendido mudanças na produção de conhecimento, isto é, mudanças paradigmáticas nos mais díspares campos de conhecimento (Pelegrini, 2013). Nesse sentido, tornou-se comum ouvir-se que determinado autor ou teoria defende a mudança de paradigma. Percebe-se que atualmente o conceito de paradigma tornou-se polissêmico, sendo utilizado como um valor explicativo universal tanto para a produção de conhecimento científico como para a atividade humana de maneira geral (Amorim & Neto, 2011).
Diante do exposto, o presente artigo pretende discutir a importância do conceito de paradigma para Thomas Kuhn e Edgar Morin. Thomas Samuel Kuhn (1922-1996) foi um importante físico e epistemólogo estadunidense que desenvolveu pesquisas revolucionárias acerca da história da ciência e do pensamento científico. É importante mencionar que sua obra se tornou um marco teórico para todas as posteriores pesquisas acerca da produção de conhecimento científico. Edgar Morin (1921) é um pensador francês de formação multi e transdisciplinar, cuja obra possui grande importância para várias e diferentes áreas de conhecimento. Sua teoria da complexidade representa uma nova forma de entender a realidade e de produzir conhecimento.
METODOLOGIA
O percurso metodológico trilhado no presente trabalho foi pautado em uma abordagem de cunho qualitativo e na pesquisa bibliográfica. Silveira & Córdova (2009) apontam que a pesquisa qualitativa não procura aprofundar a compreensão do objeto de estudo por meio da descrição numérica. Para as referidas autoras, pesquisas fundamentadas neste tipo de abordagem metodológica preocupam-se com os “aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais” (Silveira & Córdova, 2009, p. 32).
Ainda acerca da pesquisa qualitativa, Minayo (2012, p. 622) coloca que este tipo de abordagem “é composta por um conjunto de substantivos cujos sentidos se complementam: experiência, vivência, senso comum e ação. E o movimento que informa qualquer abordagem ou análise se baseia em três verbos: compreender, interpretar e dialetizar”. A mesma autora também ressalta que a pesquisa qualitativa responde questões que não podem ser quantificadas, ou seja, “trabalha universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (Minayo, 2002, p. 21-22).
Segundo Gil (2008), a pesquisa bibliográfica é realizada em materiais que receberam tratamento analítico no decorrer do seu desenvolvimento, ou seja, é realizada principalmente em artigos científicos, livros, teses e dissertações.
Nesse sentido, considerado que o presente artigo objetivou realizar um levantamento de informações ou conhecimentos científicos acerca da importância do conceito de paradigma em Thomas Kuhn e Edgar Morin, a pesquisa bibliográfica foi pautada na análise de artigos científicos e nas obras dos mencionados autores que discutem o mencionado conceito.
PARADIGMA E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO EM THOMAS KUHN
O entendimento das acepções atribuídas ao termo paradigma na ciência moderna pressupõe a reanálise do sentido concedido a este conceito por Thomas Kuhn (1998) (Pelegrini, 2013). Entretanto, esta reanálise não será uma tarefa fácil, pois “a noção de paradigma desenvolvida por Kuhn recebeu muitas críticas, mormente em função das dificuldades encontradas na elucidação dos muitos significados a ela conferidos” (Pelegrini, 2013, p. 60).
Thomas Kuhn (1998) entende que a ciência não se desenvolve por meio do progressivo acúmulo de novos conhecimentos, pelo contrário, o desenvolvimento científico é resultante de uma complexa relação de “subordinação” existente entre a seleção e a rejeição de dados e o paradigma vigente. Sobre tal questão, o autor esclarece que:
As operações e medições, de maneira muito mais clara do que a experiência imediata da qual em parte derivam, são determinadas por um paradigma. A ciência não se ocupa com todas as manifestações possíveis no laboratório. Ao invés disso, seleciona aquelas que são relevantes para a justaposição de um paradigma com a experiência imediata, a qual, por sua vez, foi parcialmente determinada por esse mesmo paradigma. Disso resulta que cientistas com paradigmas diferentes empenham-se em manipulações concretas de laboratório diferentes (Kuhn, 1998, p. 162).
Assim, percebe-se que inclusive a observação e experimentação, métodos científicos aparentemente neutros e objetivos, são condicionados pelo paradigma corrente. Nas palavras do autor em análise: “A observação e a experiência podem e devem restringir drasticamente a extensão das crenças admissíveis, porque de outro modo não haveria ciência. Mas não podem, por si só, determinar um conjunto específico de semelhantes crenças. ” (Kuhn, 1998, p. 23).
Dessa forma, o referido autor conceitua por paradigma “as realizações científicas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn, 1998, p.13). Logo, o fazer científico e, por consequência, o próprio conhecimento produzido são, essencialmente, condicionados pela adoção de um determinado paradigma, ou seja, o paradigma é “um conjunto de ilustrações recorrentes e quase padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais e na observação” (Kuhn, 1998, p. 67).
Sobre a noção kuhniana de paradigma, Pelegrini (2013) aponta que esta assemelha-se a uma estrutura mental utilizada para organizar a realidade e os fenômenos analisados por um conjunto de indivíduos integrantes de determinada comunidade científica, isto é, o paradigma “é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (Kuhn, 1998, p. 219).
É importante ressaltar que a consolidação de um paradigma está intrinsecamente relacionada ao surgimento de uma determinada forma de se fazer pesquisa denominada como “ciência normal” (Kuhn, 1998). Para Bartelmebs (2012), a noção kuhniana de ciência normal é tanto resultante como produtora de um paradigma. Tal relação é detalhada por Kuhn da seguinte maneira:
Invenções de novas teorias não são os únicos acontecimentos científicos que tem um impacto revolucionário sobre os especialistas do setor em que ocorrem. Os compromissos que governam a ciência normal especificam não apenas as espécies de entidades que o universo contém, mas também, implicitamente, aquelas que não contém. (Kuhn, 1998, p. 26).
A ciência normal é definida pela existência que pesquisas e resultados previsíveis, pois as “descobertas” são essencialmente fundamentadas em realizações passadas (Kuhn, 1998). Depreende-se que as pesquisas buscam tão-somente a legitimação das teorias e esquemas conceituais, bem como o aperfeiçoamento dos conhecimentos decorrentes do paradigma vigente (Bartelmebs, 2012).
Entretanto, a ascensão de novos questionamentos científicos que não podem ser respondidos pelos métodos e teorias do paradigma vigente origina a “crise de paradigmas” (Kuhn, 1998). Esta crise possibilita drásticas mudanças teóricas e procedimentais no âmago de um campo de conhecimento e seu surgimento relaciona-se ao aparecimento de anomalias dentro da ciência normal. Segundo aponta Kuhn (1998, p. 24):
E quando isto ocorre – isto é, quando os membros da profissão não podem mais esquivar-se das anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica – então começam as investigações extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência. Neste ensaio, são denominados de revoluções científicas os episódios extraordinários nos quais ocorre essa alteração de compromissos profissionais.
No momento no qual os método e teorias tradicionais não possibilitam a obtenção de respostas coerentes aos questionamentos decorrentes da análise de novos fenômenos, surgem inovações tanto no desenvolvimento das pesquisas como, de maneira geral, na forma de praticar-se ciência (Bartelmebs, 2012).
Como resposta à perturbação no modelo de pesquisa que caracteriza a ciência normal, há um processo de adequação e revisão das teorias, métodos e conhecimentos tradicionais (Bartelmebs, 2012). Todavia, a persistência de anomalias gera a crise de paradigma e, por consequência, uma revolução científica. Acerca de tais processos que caracterização a mudança de paradigma, Kunh (1998) afirma que:
De forma muito semelhante (ao que ocorre nas revoluções políticas), as revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma (Kunh, 1998, p. 26).
A partir da breve explanação, percebe-se que o conceito de paradigma exerce um papel central na teoria epistemológica de Thomas Kuhn. Para este autor, a produção de conhecimento científico é regulada e condicionada pela adoção de um determinado paradigma. Além disso, o processo de desenvolvimento da ciência é explicado por meio da mudança paradigmática, isto é, da mudança nas estruturas teórico conceituais que condicionam a seleção, organização e análise dos fenômenos.
MORIN E A MUDANÇA DE PARADIGMA
Para Edgar Morin, a noção clássica de ciência ainda vigente concebe como objetivo principal do conhecimento científico desvendar a complexidade dos fenômenos estudados (Morin, 2001a). Nesse sentido, a lógica que condiciona a produção de conhecimento é caracterizada pelo recorte arbitrário da realidade, isto é, seleciona-se determinados dados “significativos”, rejeita-se, por consequência, os dados “insignificantes”, em seguida, os dados coletados são separados e hierarquizados a partir de operações lógico-formais “aceitas” pela comunidade científica, conforme detalha o citado autor:
Todo o conhecimento opera por seleção de dados significativos e rejeição de dados não significativos: separa (distingue ou desune) e une (associa, identifica); hierarquiza (o principal, o secundário) e centraliza (em função de um núcleo de noções mestras). Estas operações de, que utilizam a lógica, são de facto comandadas por princípios supralógicos de organização do pensamento ou paradigmas, princípios ocultos que governam a nossa visão das coisas e do mundo sem que disso tenhamos consciência (Morin, 2001a, p. 14).
Morin denomina esse conjunto de princípios supralógicos que organizam a produção de conhecimento cientifico e, de forma geral, a ciência como o “paradigma da simplificação”. O autor esclarece que este paradigma mestre da ciência ocidental foi formulado por Descartes a partir da separação entre “o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa extensa (res extensa), quer dizer, filosofia e ciência, e ao colocar como princípio de verdade as ideias ‘claras e distintas, ou já, o próprio pensamento disjuntivo” (Morin, 2001a, p. 14).
É consenso que o paradigma da simplificação, vigente desde o século XVII, proporcionou enormes avanços científicos e filosóficos. Entretanto, o progresso científico cego e incontrolado, bem como a incapacidade de reconhecer e compreender a complexidade da realidade “antropo-social” também ocasionaram graves ameaças que começaram a revelar-se no decorrer do século XX (Morin, 2001a).
Diante desta realidade, o pensamento moriniano busca a superação deste paradigma simplificador fundamentado na racionalização exacerbada, na fragmentação do conhecimento e na incompreensão da complexidade dos fenômenos. Assim, Morin (2005) argumenta que a percepção da realidade pressupõe um conhecimento multidimensional e “capaz de conceber e compreender a ambivalência” (Morin, 2005, p. 16).
Acerca de tal perspectiva, Estrada (2009) aponta que Edgar Morin propõe uma teoria da complexidade, isto é, uma forma de pensamento sistematizado que busca recolocar as relações complementares e paradoxais do uno e do complexo, da inteligência e da afetividade, da ordem e da desordem no cerne da ciência.
Morin define a complexidade como aquilo que foi e é tecido junto, ou seja, só existe de fato:
[…] complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. (2001b, p. 38-39)
O paradigma da complexidade é uma oposição ao paradigma da simplificação, pois fundamenta-se em um discurso [...] “multidimensional não totalitário, teórico, mas não doutrinal […] aberto para a incerteza e a ultrapassagem; não ideal/idealista sabendo que a coisa não será nunca totalmente encerrada no conceito e que o mundo nunca será aprisionado no discurso”. (Morin, 2001a, p. 73). Desta forma, a proposta de reparadigmatização, mudança paradigmática, moriniana denota a imprescindibilidade de um paradigma “[…] que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis gerais” (Morin, 2005 p. 138).
Sendo assim, o pensamento de Morin deve ser entendido como uma proposta de reparadigmatização fundamentada em outra lógica de produção de conhecimento que, ao invés de reduzir e simplificar a realidade, busca compreender a complexidade como geradora de um saber consciente (Morin, 2005).
A obra de Edgar Morin apresenta uma conceituação sui generis de paradigma como “um tipo de relação muito forte, que pode ser de conjunção ou de disjunção, logo, aparentemente de natureza lógica, entre alguns conceitos mestres” (Morin, 1996). Esta forte relação condicionante, portanto, “determina o curso de todas as teorias, de todos os discursos que o paradigma controla” (Morin, 1996, p. 31). Todavia, o autor ressalta que a aceitação dos princípios lógicos do paradigma vigente não é consciente, pelo contrário, o “[…] paradigma é invisível para quem sofre os seus efeitos, mas é o que há de mais poderoso sobre as suas ideias” (Morin, 1996, p. 31).
Serva, Dias & Alperstedt (2010) ressaltam que a conceituação de paradigma presente na obra moriniana tornou-se essencial para a explicação da diferenciação existente entre o paradigma da simplificação e a proposta da complexidade defendida pelo autor. Os citados autores ainda colocam que a principal contribuição de Morin para a discussão acerca da conceituação de paradigma foi destacar a influência deste para além da ciência. Nas palavras do autor, “o paradigma institui as relações primordiais que constituem os axiomas, determinam os conceitos, comandam os discursos e/ou teorias” (Morin, 1991, p. 190). Assim, mesmo de maneira inconsciente, visto que aceitação dos princípios lógicos não é discutida, o paradigma “[…] irriga o pensamento consciente, controla-o, e, nesse sentido, é também subconsciente” (Morin, 1991, p. 190).
Fundamentado em uma significação ampla, o pensamento moriniano revela que o paradigma da simplificação se tornou a principal, talvez única, matriz do pensamento ocidental, sendo sua influência percebida tanto na produção de conhecimento cientifico como no desenvolvimento e consolidação do modelo socioprodutivo vigente, isto é, os princípios que organização a ciência moderna também estão presentes na economia, na indústria, na educação e, de maneira geral, na ordenação da civilização ocidental.
É por meio da ampliação do conceito que Morin explica a aceitação inconsciente do paradigma da simplificação pela civilização ocidental. Nessa perspectiva, entende-se o porquê da contínua utilização deste conceito no pensamento moriniano para analisar tanto a ciência como as transformações socioeconômicas provocadas por esta forma específica de compreender e explicar a realidade.
SIMILITUDES E DIFERENÇAS DA CONCEITUAÇÃO DE PARADIGMA EM THOMAS KUHN E EDGAR MORIN
Diante do exposto, percebe-se a centralidade do conceito de paradigma para Thomas Kuhn e Edgar Morin. Se em Kuhn o paradigma é fundamental para a explicação do desenvolvimento científico, em Morin este conceito assume um significado amplo, sendo entendido como a matriz consciente e supraconsciente do pensamento, ou seja, o paradigma:
[...] desempenha um papel ao mesmo tempo subterrâneo e soberano em qualquer teoria, doutrina ou ideologia. O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento consciente, controla-o e, neste sentido, é também supraconsciente. Em resumo, o paradigma instaura relações primordiais que constituem axiomas, determina conceitos, comanda discursos e/ou teorias. Organiza a organização deles e gera a geração ou a regeneração. (Morin, 2001b, p. 26)
A principal diferença entre a conceituação de paradigma para Morin e Kuhn relaciona-se à abrangência deste conceito, porém o pensamento moriniano conserva a compreensão kuhniana de que o paradigma assume uma função estruturante da forma como os fenômenos são analisados e compreendidos (Pelegrini, 2013).
A teoria epistemológica desenvolvida por Thomas Kuhn (1998) representa uma detalhada descrição da atividade científica e da produção de conhecimento, por isso, Amorim & Neto (2011) ressaltam que esta “tende a exercer influência muito insipiente sobre a prática real dos cientistas” (Amorim & Neto, 2011, p. 353). Nessa mesma perspectiva, Morin (2001b) entende que “ o paradigma efetua a seleção e a determinação da conceptualização e das operações lógicas” (Morin, 2001b, p.25), porém o autor é muito claro ao descrever o paradigma como uma estrutura de pensamento abrangente, pois este conceito designa “[…] as categorias fundamentais da inteligibilidade e opera o controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles (Morin, 2001b, p. 25).
O pensamento moriniano apresenta o paradigma como um poder imperativo e proibitivo que condiciona a ciência e o próprio processo cognitivo, bem como todas as outras esferas da vida humana. Essa concepção fica evidente quando o autor discorre acerca do impacto do paradigma da simplificação na contemporaneidade.
O poder imperativo e proibitivo conjunto dos paradigmas, das crenças oficiais, das doutrinas reinantes e das verdades estabelecidas determina os estereótipos cognitivos, as ideias recebidas sem exame, as crenças estúpidas não-contestadas, os absurdos triunfantes, a rejeição de evidências em nome da evidência, e faz reinar em toda parte os conformismos cognitivos e intelectuais. Todas as determinações propriamente sociais, econômicas e políticas (poder, hierarquia, divisão de classes, especialização e, em nossos tempos modernos, tecnoburocratização do trabalho) e todas as determinações propriamente culturais convergem e sinergizam para encarcerar o conhecimento no multideterminismo de imperativos, normas, proibições, rigidezes e bloqueios. (Morin, 2001b, p. 27)
É necessário frisar, entretanto, o fato de ambos os autores entenderem que o progresso científico opera necessariamente por meio da quebra e ruptura destes modelos de explicação da realidade, sendo inclusive esta a proposta central da teoria da complexidade.
Em Morin, dessa forma, a complexidade não é um conceito chave para a explicação de toda a realidade, longe disso, “o pensamento complexo é o pensamento que, equipado com os princípios de ordem, leis, algoritmos, certezas e ideias claras, patrulha o nevoeiro, o incerto, o confuso, o indizível, o indecidível” (Morin, 2005, p. 231).
Nesse sentido, o conceito de paradigma é fundamental para a compreensão da proposta de mudança de paradigma proposta pelo pensamento moriniano. Diferentemente da ideia de revolução científica kuhniana na qual o paradigma em ascensão pode manter ou “atualizar” características do paradigma vigente, a proposta de reparadigmatização defendida por Morin representa uma ruptura com o paradigma da simplificação, pois o paradigma da complexidade:
[…] não "produz" nem "determina" a inteligibilidade. Pode somente incitar a estratégia/inteligência do sujeito pesquisador a considerar a complexidade da questão estudada. Incita a distinguir e fazer comunicar em vez de isolar e de separar, a reconhecer os traços singulares, originais, históricos do fenômeno em vez de ligá-los pura e simplesmente a determinações ou leis gerais, a conceber a unidade/multiplicidade de toda entidade em vez de a heterogeneizar em categorias separadas ou de a homogeneizar em indistinta totalidade. Incita a dar conta dos caracteres multidimensionais de toda realidade estudada (Morin, 2005, p.334).
É a partir dessa concepção de reparadigmatização que Morin (2001b, p. 38-39) define que o pensamento complexo deve compreender que [...]:
Os desenvolvimentos próprios a nossa era planetária nos confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os desafios da complexidade. Em consequência, a educação deve promover a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global.
Nessa perspectiva, percebe-se que um outro aspecto importante que diferencia as conceituações de paradigma de Edgar Morin e de Thomas Kuhn é o papel que primeiro autor atribui à educação no enfrentamento das “verdades” estabelecidas pelo paradigma vigente. O autor aponta, nesse sentido, que:
O desenvolvimento do conhecimento científico é poderoso meio de detecção dos erros e de luta contra as ilusões. Entretanto, os paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões, e nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro. Além disso, o conhecimento científico não pode tratar sozinho dos problemas epistemológicos, filosóficos e éticos. A educação deve-se dedicar, por conseguinte, à identificação da origem de erros, ilusões e cegueiras. (Morin, 2001b, p. 21)
Portanto, compreende-se que a mudança de paradigma que orienta toda a obra de Edgar Morin não se resume à alteração de conceituações e operações lógicas como retrata a noção de revolução científica apontada por Thomas Kuhn. A reparadigmatização proposta por Morin é uma mudança radical na forma como os indivíduos enxergam e compreendem a realidade, pois, o paradigma da simplificação está “inscrito culturalmente neles” (Morin, 2001b, p. 25).
CONCLUSÃO
As discussões apresentadas no presente estudo evidenciaram a importância/centralidade da noção de paradigma nas obras de Thomas Kuhn e Edgar Morin. Para o primeiro autor, este conceito é fundamental para a explicação do modo como se pratica ciência, bem como para a análise do processo de produção do conhecimento cientifico. Em Morin, o conceito de paradigma elaborado por Kuhn torna-se determinante para o desenvolvimento da teoria da complexidade.
Concluiu-se que a teoria da complexidade objetiva uma mudança paradigmática, isto é, a superação de uma forma de compreender a realidade a partir da racionalização exacerbada e do recorte arbitrário do real. Entretanto, também foi possível compreender que a noção de paradigma presente no pensamento moriniano possui uma significação abrangente, sendo sua influência normativa sentida nas várias esferas da vida humana.
Entende-se que o presente trabalho apresenta um panorama geral das definições de paradigma presentes nas obras de Thomas Kuhn e Edgar Morin. Entretanto, considerando a polissemia do referido conceito nas obras dos citados autores, ressalta-se que esse trabalho possui limitações relacionadas ao número de obras analisadas. Uma maneira de superar tais limitações será o desenvolvimento de estudos aprofundados acerca da temática apresentada nesse artigo.
Além disso, sugere-se que os posteriores estudos também discutam o papel da educação no processo de reparadigmatização proposto pelo pensamento moriniano. Por fim, aponta-se a importância do desenvolvimento de trabalhos sobre a importância do conceito kuhniano de paradigma na elaboração do método que orienta o pensamento moriniano, especificamente, nas obras “O método III” e “O método IV”.
REFERÊNCIAS
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Silveira, D. T., & Córdova, F. P. (2009). Unidade 2 – A pesquisa científica. Métodos de pesquisa, 1.
Porcentagem de contribuição de cada autor no manuscrito
Pedro Bruno Silva Lemos - 25%
Francisco José Alves de Aquino - 20%
Solonildo Almeida da Silva - 20%
Sandro César Silveira Jucá - 15%
Francisco Euguenys Medeiros da Silva - 10%
Saulo Ramos de Freitas - 10%