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O pátio do recreio: Interação, ‘bullying’ e gramáticas emocionais da vitimização

In the School Yard: Interaction, Bullying, and the Emotional Grammars of Victimization

Maria Claudia Coelho
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brazil
Johana Pardo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brazil

O pátio do recreio: Interação, ‘bullying’ e gramáticas emocionais da vitimização

Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 11, núm. 3, pp. 533-561, 2018

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Recepção: 14 Janeiro 2018

Aprovação: 28 Setembro 2018

RESUMO: O artigo examina as gramáticas emocionais de experiências de vitimização em episódios de bullying. A perspectiva teórica adotada é a sociologia interacionista, com ênfase na relação entre emoções e conformidade individual às normas sociais. Os dados consistem em onze entrevistas em profundidade realizadas com jovens egressos do ensino médio no Rio de Janeiro. A análise revelou a existência de um complexo emocional composto por raiva, vergonha e compaixão, que é comparado com gramáticas emocionais encontradas em experiências de vitimização em outras modalidades de violência, como assaltos a residências e sequestros, sugerindo a existência de uma gramática emocional da vitimização.

Palavras-chave: bullying, emoção, interação, violência escolar, vitimização.

ABSTRACT: In the School Yard: Interaction, Bullying, and the Emotional Grammars of Victimization analyses emotional grammars elicited by victimization in bullying episodes. Its theoretical approach draws on symbolic interactionism, with emphasis on the relation between emotions and individual compliance with social norms. The data consists in eleven in-depth interviews conducted with young people graduated from high school in Rio de Janeiro. The analysis revealed the existence of an emotional complex composed of anger, shame and sympathy, which is compared to emotional grammars found in victimization experiences in other forms of violence, such as burglaries and kidnappings, suggesting the existence of an emotional grammar of victimization.

Keywords: bullying, emotion, interaction, school violence, victimization.

Introdução

Este artigo tem por objetivo analisar as gramáticas emocionais que perpassam episódios de bullying, entendidos aqui como uma cena interacional e examinados sob a perspectiva da sociologia interacionista.

As emoções são um objeto de pesquisa consagrado na sociologia interacionista americana desde os anos 1970. Hochschild (2013), a partir de uma comparação entre as obras de Goffman e Freud, sistematizou um programa de estudos sobre as emoções com base nas noções de regras emocionais e trabalho emocional. Muito antes disso, contudo, já era possível identificar um interesse pelas emoções em autores dedicados ao estudo das interações, como nos textos precursores de Georg Simmel sobre a fidelidade e a gratidão (SIMMEL, 1964a) e sobre o ciúme (Idem, 1964b). Nesses trabalhos, Simmel discute, entre outros temas, o papel dos sentimentos na promoção da estabilidade e da coesão da vida social, como quando se refere à fidelidade como “a inércia da alma” (Idem, 1964a), trabalhando a serviço da manutenção dos vínculos sociais ao substituir a motivação afetiva original que teria engendrado a relação.

A esse problema teórico da relação entre emoções e estabilidade dos vínculos sociais podemos acrescentar uma segunda questão de igual magnitude teórica: a conformidade às normas sociais, ou ainda, o papel dos sentimentos na promoção da adesão do sujeito às regras sociais. É nessa chave analítica que se situam as análises de Erving Goffman (2011) sobre o constrangimento, de Thomas Scheff (1990) sobre a vergonha e de Jack Katz (2013) sobre a dinâmica humilhação-raiva.

O viés interacionista é recorrente na literatura sobre o bullying1 nas ciências sociais no Brasil, em particular a obra de Goffman (2011). A contribuição pretendida aqui é o aprofundamento desse viés analítico por meio da análise das emoções presentes na cena do bullying, aqui abordadas segundo o instrumental teórico presente nas obras de Simmel, Goffman (2011), Everett Hughes (2013), Scheff (1990), Katz (2013) e Candace Clark (1997).

A análise se concentra no complexo emocional formado pela vergonha, pela raiva e pela compaixão, identificado nos relatos de nossos entrevistados. A metodologia empregada é a entrevista em profundidade. Foram analisadas onze entrevistas com jovens egressos do ensino médio em escolas públicas ou particulares no município do Rio de Janeiro.2 Entre os entrevistados, há cinco mulheres e sete homens, com idades variando entre 19 e 20 anos, que se apresentavam como tendo sido vítimas de bullying. Os episódios narrados tiveram lugar quando os entrevistados tinham entre 10 e 18 anos. Como critério de seleção dos entrevistados, adotou-se a idade mínima de 18 anos e a condição de recém-egressos do ensino médio (concluído há até dois anos antes do momento de realização da entrevista). Os entrevistados foram selecionados entre as redes pessoais dos integrantes da equipe de pesquisa.3

O roteiro das entrevistas, de natureza aberta, concentrou-se no relato de episódios de bullying vivenciados, presenciados ou conhecidos pelo entrevistado, tendo como ponto de partida a narrativa desses episódios. No decorrer da entrevista, os seguintes temas foram abordados: exposição das percepções dos entrevistados sobre as causas das atitudes dos envolvidos (agressores, vítimas ou espectadores); comentário sobre motivações atribuídas aos participantes, seja na qualidade de agressor, vítima ou espectador; comentário sobre as emoções dos envolvidos; e comentário sobre as atribuições de responsabilidade pelos episódios narrados (aos agressores, às vítimas, aos pais, à comunidade escolar e/ou outros).

O texto está estruturado em duas seções. Na primeira, revisamos a literatura sobre bullying das áreas de antropologia e sociologia no Brasil, expondo as principais vertentes analíticas utilizadas e as metodologias empregadas, bem como os principais resultados. Há dois pontos principais a serem destacados: a recorrência do recurso à sociologia interacionista, em particular à obra de Goffman (2011), como prisma analítico e a prevalência das metodologias de natureza quantitativa, em que pese algum esforço de combinação com métodos de pesquisa qualitativos.

O artigo pretende contribuir para aprofundar o rendimento teórico da sociologia interacionista na análise do bullying por meio do recurso a trabalhos de mesma orientação teórica, porém voltados para o estudo das emoções. Assim, a segunda seção, de cunho analítico, subdivide-se em duas partes. Inicialmente, examinamos a existência de um deslizamento semântico entre as categorias do bullying e a expressão “coisa de criança”, utilizada recorrentemente pelos entrevistados como categoria alternativa de classificação dos episódios narrados. A partir dessa fronteira borrada, discutimos a função desempenhada pelo espectador na cena interacional do bullying, com ênfase em sua indiferença e/ou divertimento. Com base nesses aspectos identificados nos relatos, sugerimos ser o bullying uma forma interacional triádica, nos termos de Simmel (2013), na qual o terceiro elemento seria o espectador, entendido como uma “boa pessoa” na acepção de Hughes (2013).

A análise prossegue examinando a gramática emocional da cena do bullying, com ênfase nos sentimentos de vergonha, raiva e compaixão expostos pelos entrevistados. Aqui, diversos autores de perspectiva interacionista são acionados, como Scheff (1990) e Goffman (2011) discorrendo, respectivamente, sobre a vergonha e o constrangimento; Katz (2013) analisando o complexo emocional humilhação-raiva; e Clark (1997) discutindo a capacidade micropolítica da compaixão de estabelecer hierarquias.

Na conclusão, discutimos a hipótese da existência de uma gramática emocional da vitimização, presente em experiências de vitimização em outras modalidades de violência. Para isso, recorremos ao estudo de Coelho (2010) sobre as emoções suscitadas por episódios de vitimização em assaltos a residências e, de forma assumidamente um tanto iconoclasta, ao relato de Ingrid Betancourt (2010) sobre sua experiência como refém em poder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

O ‘bullying’ como objeto de pesquisa nas ciências sociais no Brasil

Em revisão bibliográfica sobre a produção científica brasileira sobre o fenômeno do bullying no período de 2009 a 2011, Menegotto, Pasini e Levandowski (2013) apontam o predomínio das áreas de pediatria, pedagogia, psicopedagogia, educação física e direito na análise do tema. Os autores inventariam um conjunto de temas predominantes, entre eles a preocupação com a definição precisa do fenômeno e suas características, os efeitos sobre a saúde e a autoestima das vítimas, a importância da participação da escola e dos professores e a necessidade de formulação de políticas de prevenção e intervenção. Apontam ainda, ao final do texto, para a ausência de análises de orientação disciplinar da psicologia sobre o bullying.

O mesmo pode ser dito em relação às ciências sociais. O bullying é um tema de enorme recorrência na mídia, em particular quando associado a tragédias como o já icônico massacre de Columbine, no Colorado (EUA), e a tragédia de Realengo, no Rio de Janeiro. Entretanto, um levantamento bibliográfico mostrou que a atenção midiática nem sempre se faz acompanhar por interesse acadêmico equivalente. Em levantamento realizado nos principais eventos da área, especificamente Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), e no banco de teses e dissertações restrito à área de ciências sociais, foram encontrados cinco artigos e quatro dissertações de mestrado. Nesta seção, expomos as análises realizadas em três dissertações (MEDEIROS, 2012; ROLIM, 2008; SILVA, 2006) e dois artigos (BAZZO, 2017; ESTEVES, 2015) com o objetivo de mapear as formas como a construção teórica do bullying como objeto de pesquisa vem sendo feita pelas ciências sociais, bem como as metodologias de pesquisa empregadas.

O conceito de ‘bullying’: imprecisões e tangências

A dissertação de Alexandre Medeiros (2012) constitui um esforço por delimitar o conceito de bullying, visto que tem sido usado para outros fenômenos de violência, como a homofobia ou a violência sexual e doméstica, e que esse deslocamento confundiu o problema, que deve se limitar ao ambiente escolar, segundo o autor. Revisa diferentes pontos teóricos da perspectiva da educação e da psicologia como, por exemplo, Dan Olweus, citado para explicar as primeiras análises do conceito, e Cleo Fante, indicada como principal ponto de pesquisa do tema no Brasil. O autor recorre também aos conceitos de violência simbólica, de Pierre Bourdieu, e construção da face, de Erving Goffman - embora sem aprofunda-los.

Medeiros revisa como o termo foi usado nos livros publicados por autores no Brasil durante o período de 2000 a 2010 com a finalidade de entender sua utilização para denominar outras formas de violência, aspecto que, segundo o autor, promove a banalização do conceito. Neste intuito, realiza também uma avaliação dos modelos, protocolos e programas para o enfrentamento do bullying no mundo e no país, observando as diferentes características e objetivos dos programas que visam a prevenção e preparação dos profissionais de educação, pais e estudantes para detectar e enfrentar os problemas relacionados com essas práticas. O autor avalia que esses programas alcançam resultados satisfatórios, embora sejam feitos pela obrigação que as leis impõem. Essas legislações também foram analisadas na pesquisa. Observou-se a dificuldade na delimitação do termo, que leva ao problema da formalização dos processos judiciais e das possíveis indenizações por danos morais, pois, na ausência de definição do termo na legislação, o bullying é tratado como injúria ou lesão corporal.

O autor prossegue analisando os diferentes fenômenos de violência que foram denominados como bullying, tais como assédio moral no ambiente de trabalho, violência doméstica, violência intrafamiliar, entre outros. É o caso da homofobia, em que se analisam os abusos cometidos contra um casal de homens em São Paulo por parte de um grupo skinhead. Ele afirma que esse episódio não poderia ser considerado bullying, pois carece de um elemento fundamental: a repetição. Outro exemplo é o termo bullying militar, que na realidade poderia ser enquadrado, segundo Medeiros, em outras categorias, como assédio moral, sexual e abuso de poder, porém não como bullying. Para finalizar, propõe sua definição do conceito:

O conjunto de atitudes hostis e agressivas, que ocorrem de maneira direta ou indireta, intencionais e repetitivas e sem motivação evidente, adotado por um ou mais alunos contra outro(s) no ambiente escolar, sem distinção de gênero ou de idade, que apresenta a diferença de poder entre os envolvidos, causando dor, angústia e sofrimento para a vítima e o sentimento de satisfação para o agressor (MEDEIROS, 2012, p. 101).

Estudos de caso sobre ‘bullying’ no Brasil

Em sua dissertação de mestrado, Dezir Silva (2006) realiza um estudo de caso em escolas públicas do ensino fundamental em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. A perspectiva teórica adotada é o interacionismo simbólico com o recurso à obra de Goffman (2011), se dando de diversas maneiras: na caracterização das escolas como instituições totais; na utilização da teorização sobre o estigma como forma de explicar a origem do bullying a partir do potencial estigmatizante de determinados atributos; e na aplicação de conceitos oriundos das teses sobre a apresentação de si para a compreensão da teia de relações do ambiente escolar, como a distinção entre transmissão e emissão de informações e a oposição entre regiões de fachada e de fundo.4

A metodologia empregada combina um conjunto variado de técnicas de pesquisa, de natureza quantitativa e qualitativa. O autor entende a aplicação de questionários e sua análise por meio de tabelas como uma forma de subsidiar a pesquisa qualitativa. Com esse objetivo, aplica cerca de 400 questionários a alunos de oito escolas, em um universo aproximado de 3.500 alunos. A amostra é composta por meninos e meninas entre 10 e 17 anos, estudantes da quinta e da sétima série em escolas da rede pública. Entre os temas do questionário, estão as diversas modalidades do bullying, sofrido, praticado ou testemunhado, e a relação dos estudantes com a escola e seus espaços (banheiros, corredores, pátio de recreio e salas de aula). Os dados foram quantificados em tabelas tendo por eixo comparativo o gênero.

A pesquisa quantitativa, além de dimensionar o fenômeno, funcionou como ponte para a pesquisa qualitativa. Foram realizados 24 grupos focais com alunos que se voluntariaram para participar após o preenchimento do questionário. Além disso, foram adotadas as técnicas de pesquisa do relato escrito e da observação participante no ambiente escolar. A perspectiva etnográfica combina a ideia de descrição densa, de Clifford Geertz (1978), com os pressupostos interacionistas de Herbert Blumer (1982), acionados por meio da distinção entre ação e comportamento, enfatizando a dimensão simbólica que orienta toda ação. Essa distinção é aplicada ao ambiente escolar como forma de compreender os significados dados pelos atores àquilo que fazem.

Como principal resultado, o autor realiza um esforço de tipificação de vítimas, agressores e espectadores, sugerindo a existência de alguns traços recorrentes, como por exemplo a fragilidade física, o retraimento ou a exibição de alguma característica pouco comum, no caso das vítimas; maior força física e comportamento impositivo, para os agressores; e comportamento organizado, apreço pela escola e sensibilidade na interação com os outros, no caso dos espectadores.

A dissertação de mestrado de Marcos Rolim (2008) compartilha alguns aspectos da forma de construção do bullying como objeto de pesquisa com os demais trabalhos aqui expostos. Entre elas, está a preocupação com a precisão do conceito de bullying, com atenção para dois aspectos: a origem do termo - e as dificuldades colocadas por esforços de tradução empreendidos em várias línguas - e seu lugar no grupo das diversas formas da chamada violência nas escolas. O trabalho de Rolim se aproxima ainda dos demais em sua preocupação de contribuir para a formulação de políticas de prevenção, arroladas, em seu trabalho, como área de segurança pública.

O trabalho traz também uma revisão da literatura internacional sobre a ocorrência do bullying. Em seu esforço, fica evidenciada a inclinação fortemente quantitativa do tratamento metodológico dos estudos sobre o fenômeno. São apresentados diversos índices de incidência e correlações entre características dos participantes, entre elas as relações entre bullying e autoestima, diversos problemas de saúde, trajetória criminal e suicídio.

Três autores constituem o arcabouço intelectual construído para a análise do bullying: o interacionismo de Goffman (2011), em particular suas teses sobre as formas de elaboração da identidade individual; a sociologia figuracionista de Norbert Elias (1994, 1980 e 2000), com sua ênfase nas redes de interdependência e, de maneira mais focada, sua discussão sobre autoestima e humilhação - acionada na conclusão para discutir o sofrimento provocado pelo bullying; e Hannah Arendt (1983), que o autor recorre tanto para discutir a natureza da violência quanto para discutir, nas considerações finais, a relação entre dor e humilhação. A metodologia empregada é um estudo de caso em uma escola pública de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Foram combinadas metodologias de natureza quantitativa, com a aplicação de questionários a professores e alunos, e de natureza qualitativa (observação, entrevistas e grupos focais).

Entre as principais discussões do estudo, destaca-se o diagnóstico de um ciclo de violência, apontado a partir da incidência da superposição dos papéis de vítima e de agressor, com a vitimização aparecendo como uma possível motivação para a agressão. Um segundo ponto digno de destaque é o questionamento da atribuição de culpa, em que o culpado pela agressão pode ser, de acordo com alguns depoimentos, aquele que provoca e com isso causa a agressão que sofre. Rolim (2008) conclui inventariando diversos programas de prevenção ao bullying realizados em diversos países e listando um conjunto de medidas a serem adotadas para a formulação de um programa dessa natureza no Brasil.

Em seu artigo intitulado “‘Bullying’: Uma violência que desafia a escola”, Pamela Esteves (2015) realiza uma reflexão sobre a problemática do bullying a partir de dois pontos teóricos: o (não) reconhecimento da diferença, de Charles Taylor (2000 apudESTEVES, 2015), e a banalidade do mal, de Arendt (1999 apud ESTEVES, 2015). Quanto ao primeiro, reflete sobre a noção de identidade, explicando que para sua construção é de vital importância o reconhecimento das particularidades de indivíduos ou grupos. Esse processo, na modernidade, conduz ao conceito de Taylor (2000 apud ESTEVES, 2015) denominado política de reconhecimento, em que se espera cumprir com as demandas do ideal de igualdade das democracias modernas, evitando cair no universalismo da dignidade - base do direito formal - que oculta as desigualdades que se fundamentam nas diferenças. Essa visão coincide com a visão de Boaventura de Sousa Santos (2006 apud ESTEVES, 2015) sobre a complementaridade das políticas da igualdade e diferença.

A autora realiza uma pesquisa qualitativa em uma escola da rede estadual do Rio de Janeiro, onde foram aplicados 147 questionários, entre os quais foram escolhidas dez entrevistas. Os dados foram analisados à luz do conceito de banalidade do mal, a partir da indagação sobre a superficialidade das motivações para a prática do bullying. Esteves ressalta que esse conceito não tem como pano de fundo uma malignidade ou perversão, mas sim uma normalidade sem nenhuma motivação substantiva ou ontológica, um tipo de mal sem raízes no qual reside a novidade da reflexão. Ela considera que o bullying é assumido como lugar comum e é visto como uma simples brincadeira de crianças, visão outorgada pelos pais e profissionais das escolas que o consideram uma questão comum e natural. Esse aspecto é questionado pela autora, que argumenta que essa banalidade recaída sobre os atos do bullying pode esconder a monstruosidade e o horror que ocasiona nas vítimas.

Como conclusões principais a autora observa o bullying como um comportamento que não deve ser tolerado e que está relacionado com dois fatores: a incapacidade da aceitação das diferenças por parte dos estudantes e a banalização do mal que permeia este tipo de violência. Esse tipo de violência possui como principal característica a impossibilidade, por partes dos estudantes, de pensar e refletir sobre seus atos, valores e identidades, e a ausência de motivação para isto. Ela pensa, por fim, como proposta, ações pedagógicas que visem educar para o pensamento e para a reflexão, cultivando atitudes que possibilitem o diálogo interno.

O ‘bullying’ como experiência de vitimização

Em seu artigo “Memórias revisitadas: Sobre os testemunhos das vítimas retroativas de ‘bullying’ no contexto brasileiro”, Juliane Bazzo (2017) conjuga um conjunto de temáticas para definir a centralidade do seu olhar sobre o bullying. Seu ponto de partida é o alargamento da noção de vítima, tal como vendo sendo discutido por Sarti (2011), ou seja, a percepção da vítima como uma formação subjetiva contemporânea, cuja presença perpassa hoje uma vasta gama de fenômenos. Bazzo combina essa tese sobre o espraiamento da noção de vítima ao conceito de empreendedores morais, central para a teoria interacionista do desvio de Howard Becker (2008); às discussões de Didier Fassin e Richard Rechtman (2009) sobre o trauma e a dimensão moral da violência; e ao conceito de evento crítico de Veena Das (2007).

O material analisado é composto por três relatos de mulheres adultas que vivenciaram experiências de bullying na infância e por textos midiáticos sobre celebridades que contam também terem sido vítimas de bullying. A análise de Bazzo é centrada na ideia de que haveria uma ressignificação dessas experiências, hoje entendidas à luz do conceito de bullying, anacrônico, contudo, em relação ao episódio vivenciado. O recurso à noção de bullying seria, assim, uma forma de dotar de um sentido particular uma experiência pregressa.

As conclusões do artigo trazem dois pontos principais. O primeiro seria a identificação de uma estrutura narrativa comum aos dois conjuntos de dados, que seria composta por quatro momentos: a exposição da agressão sofrida; o apelido que sintetiza o estigma; a superação pelo esforço; e o entendimento do próprio êxito como uma forma de vingança contra o agressor (BAZZO, 2017, p. 64). O segundo ponto seria o predomínio de uma visão psicologizada no relato dessas experiências, em detrimento da atenção para com a dimensão sociológica do problema, o que, segundo a autora, acarretaria problemas para uma compreensão mais consequente do bullying, suas causas e seus efeitos.

Interação e gramáticas emocionais em experiências de ‘bullying’

O ‘bullying’ como uma cena interacional: uma formação de três

Em pesquisa sobre a violência nas escolas realizada com base em entrevistas com professores, Bomeny, Coelho e Sento-Sé (2010) descrevem a presença de uma ambivalência na própria definição, pelos entrevistados, daquilo que seria o objeto de pesquisa: a oscilação entre indisciplina e violência, com os episódios relatados sendo classificados ora em uma rubrica, ora em outra. A essa oscilação, os autores se referem como um deslizamento semântico, com o eixo principal que definia a alocação do episódio em uma ou outra categoria sendo o respeito (ou não) à autoridade do professor.

Esse fenômeno pode ser entendido à luz das reflexões de Debarbieux (2001) ao discutir a construção da violência na escola como objeto da sociologia na França. Mostrando como, ao longo de algumas décadas, as fronteiras entre violência e bagunça, delitos/infrações, autoviolência ou absenteísmo estiveram borradas tanto pelos membros da escola e do campo educacional como pelos teóricos, Debarbieux (Idem, p. 164) afirma “que fatos sociais heterogêneos sejam reunidos sob o termo genérico de ‘violência’ pelos atores da escola é em si mesmo um fato social digno de ser pensado”.

O autor advoga em favor de uma perspectiva teórica em que a violência seria “aquilo que eu considero como tal” (Idem, p. 177). E justifica assim seu posicionamento: “não se trata aqui de uma posição subjetivista e solipsista, mas de uma tentativa de agrupar segundo categorias sociais e ordenações institucionais os fatos qualificados de violência pelos próprios atores sociais que os sofrem, os operam ou são deles testemunhas” (Idem).

A análise das nossas entrevistas sugere a existência de fenômeno semelhante: uma tensão na definição do que seria bullying, tanto da parte dos próprios entrevistados como na concepção que atribuem aos personagens das histórias relatadas (pais, professores, coordenadores e afins), em um novo deslizamento semântico feito entre bullying e “coisa de criança”, como expressado pelos entrevistados. Alguns exemplos de vítimas de bullying:

- Eles não ficam três dias em casa, ficavam um, no máximo, porque os pais falavam que era coisa de criança, normal. Isso acontece. Faz a criança ficar forte. Eles falavam exatamente isso. (Entrevista 3)

Em resposta à pergunta sobre o que motivava a agressão:

- Não sei, pode ter sido coisa de criança também, você não tá vestida do jeito que você tem que vestir pra andar com a gente, então nós vamos te excluir. (Entrevista 1)

- Eu acho que eu tentaria falar de novo com a professora e com a coordenadora e falaria principalmente com meus pais. Porque, sei lá, ter um apoio em casa, eles falando “ah, isso não tem nada a ver, isso é besteira de criança”, já melhoraria bastante, né, a ajuda deles. (Entrevista 1)

A oscilação entre bullying e “coisa de criança” tem uma fronteira borrada, com a segunda sendo utilizada, como sugerem os depoimentos, para diminuir a gravidade ou os riscos dos eventos.5 Essa atenuação pode, por sua vez, ter propósitos ou consequências distintas, justificando a não intervenção por parte dos pais, como no primeiro depoimento; a destituição de importância por parte dos próprios entrevistados, como no segundo depoimento; ou ainda servir como estratégia de apoio à vítima, como no terceiro depoimento.

A classificação de um episódio cuja narrativa é suscitada pela pergunta sobre bullying como “coisa de criança” é também uma ótima pista para refletirmos sobre o papel dos espectadores na cena interacional do bullying. Dois exemplos iniciais em que essa percepção aparece sem maior elaboração por parte dos entrevistados:

- Eu acho que eles pensavam em brincadeira. “Vamos zoar que é divertido, vamos rir, vamos ficar feliz com isso”... Só isso que eu penso assim. “Vamos ficar felizes com isso. Vamos nos divertir. Não vamos ter mais problema porque ninguém fala, ninguém monitora”. (Entrevista 3)

- E tinha um pessoal, o resto da sala, só foi porque “eles fazem isso, então deve ser legal também, vamos fazer”. (Entrevista 1)

No conjunto de onze entrevistas aqui analisadas, apenas três entrevistados dizem não terem sido vítimas de bullying. Seus relatos, assim, concentram-se em episódios que presenciaram. Seus comentários enfatizam essa dimensão jocosa dos episódios, que em alguma medida parece substituir o reconhecimento do sofrimento infligido.

- E aí relembraram um episódio, que tinha uma menina que eu e um outro amigo a gente ficava encarnando nela, porque ela era gordinha e aí a gente chamava ela de baiacu. Ela até, assim, aquela coisa, não teve... Ela reclamava, tinha aquela coisa de criança, ela corria atrás da gente pra bater. Mas assim, foi mais uma coisa de criança, mesmo. (Entrevista 4)

- Eu já fui para um restaurante com um colega quando eu tinha mais ou menos uns treze anos [e] ele perguntou: “Quanto você pesa?”. Eu dei tipo um número que eu não tinha ideia de quanto eu pesava aí eu falei um número, sei lá, 50. E ele diz: “Ah! Tá, até parece”. Eu digo: “Por que?”. Ele: “Você é muito grande”. Aí eu respondi “obrigada”. Eu fiquei “nossa, estou muito feliz agora” e essa que [é] a coisa, entendeu? Porque depende muito. Ele, por exemplo, falou isso para mim, mas ele era meu amigo, então eu ria. Mas se fosse uma outra pessoa falando, ela ia falar de outra forma: “você está gorda”, “você tem que emagrecer”, “você tem que fazer alguma”. Ela vai falar nesse intuito e crianças, que é onde mais acontece o bullying, nem pensam nisso. (Entrevista 10)

A relação entre “coisa de criança” e bullying é por vezes traçada como um continuum, havendo um momento em que um limite é ultrapassado, quando a brincadeira se torna agressão, como no depoimento abaixo:

- Mas assim, eu acho que a forma como as pessoas lidam também vai caracterizar se realmente pode vir a ser bullying ou não, né, porque muitas pessoas levam como brincadeira, mas outras podem se sentir mais afetadas, ter o psicológico abalado por isso. E também tudo tem limite, né. Às vezes você tá na brincadeira e você pode ultrapassar o limite da brincadeira e atingir mais seriamente a pessoa. Ou violar o espaço dela, no caso de um bullying com um cunho mais agressivo, que a gente vê que acontece. (Entrevista 4)

- E como as pessoas reagiam à situação, as que estavam ao redor?

- Né, eu acho que a gente vê isso até hoje, muita gente ignora, muita gente acha graça de qualquer situação assim, do bullying, no caso, muita gente ignora, muita gente acha graça, tem gente que se preocupa, tem gente que se preocupa só no momento depois ignora, tem gente que acha que nunca vai acontecer com elas, tem gente que ajuda isso acontecer mesmo de uma forma indireta. Então, acho que no caso de meu amigo, as pessoas riam, achavam graça e depois que precisavam falavam algo do tipo “fulano bichona”, que era como falavam, e depois falavam “fulano vem cá, me ajuda” com tal coisa, como se estivesse tudo ok. (Entrevista 10)

Bullying e brincadeira confundem-se também não do ponto de vista da natureza da interação, mas sim do ponto de vista da sua recorrência no cotidiano:

- Às vezes até pode parecer palhaçada, de “ah, não está fazendo muito caso”, às vezes não. Às vezes são brincadeiras que são permanentes e as pessoas não gostam, o bullying não precisa ficar nesse patamar de algo extremo como a gente vê em comerciais. Eu acho que ele está nas atitudes que acontecem durante o dia, ao longo dos dias, também. (Entrevista 10)

- A brincadeira tem um limite, quando começam a focar só em você, tanto verbalmente quanto fisicamente, aí se torna bullying. (Entrevista 6)

Outro fator que esmaece o traçado desse limite é a ausência de clareza inclusive quanto a quem deve defini-lo, se é o agressor, vítima, espectador, pais ou autoridades escolares.

- Como era a atitude dos espectadores, das pessoas que ficavam olhando?

- Tinha gente que ficava calado. Eu ficava calado, eu não falava nada. Eu não gostava, mas não falava nada, porque eu não queria me meter naquilo, porque eu sabia que era confusão. Eu sabia que a mãe dele ia, volta e meia, a mãe dele ia na escola, a mãe reclamava, na direção, a direção já sabia quem fazia, quem praticava o bullying. (Entrevista 9)

- Todo mundo do grupo percebia, mas vocês comentavam entre si? Tipo, “ah, fulano tá fazendo isso”? Ou deixava passar?

- Não, nunca comentamos. Deixava passar. Acho que como eu falei antes que por ele não, pelo menino não levar a questão adiante, deixava meio que o assunto encerrado, como se tivesse morrido ali.

- Então deveria vir dele a reação?

- Ah, não. Nesse caso, sei lá. Às vezes, quando tá aparentando ser um pouco excessivo as pessoas poderiam dar um toque no outro menino, mas eu por mim não tive esse ímpeto, essa ação de fazer isso. Não sei se alguma pessoa chegou a ter. (Entrevista 4)

Além da indefinição quanto a quem cabe traçar o limite - “sei lá”, “as pessoas poderiam”, “não sei se alguma pessoa chegou a ter” -, esse depoimento chama a atenção pela franqueza com que o entrevistado diz não ter feito nada por não ter tido o ímpeto. Sua reação era de indiferença, como que em um meio termo entre a crítica/intervenção e o endosso/aplauso. Indagado se ele, como espectador, achava legal o episódio de bullying que narra e se era parte daquilo, ele responde: “É, de certo modo, sim. Mas não como algo legal, pra mim era simplesmente indiferente. Não chegava a aplaudir, nem nada assim” (Entrevistado 4). E, de forma mais contundente, quando perguntado sobre o que sentia, foi respondido:

- Cara, eu vou ser bem sincero: eu não sentia nada. Às vezes me sentia levemente incomodado porque achava que tava demais, mas também não tive o ímpeto de impedir ou de tomar alguma atitude, assim, não fiz nada. (Entrevista 4)

Como explicar essa indiferença, essa ausência assumida de qualquer sentimento diante do sofrimento que o entrevistado sabia estar sendo imposto? Por que, se ele sabia haver sofrimento, não se sentia compelido a reagir?

Vários entrevistados apontam a importância de uma plateia para que o praticante do bullying se sinta incentivado a continuar com suas agressões, sejam elas de natureza física ou verbal (zombar, apelidar ou xingar), como na fala a seguir:

- O que tá acontecendo na mente de quem faz o bullying? O que vai ganhar com isso? O pior é que ela tem seguidores. Tem gente que apoia. Uma pessoa que faz bullying tá fazendo pra outras pessoas verem, pra outras pessoas sofrerem. Porque a gente só ri quando o palhaço faz graça. (Entrevista 7)

Se é assim, a cena interacional do bullying é composta por três participantes - agressor, vítima e espectador -, caracterizando uma formação de três, ou uma tríade, nos termos de Simmel (2013).

Discutindo a importância sociológica da tríade, Simmel (Idem) esboça uma tipologia do terceiro, que pode ser aquele chamado a dirimir um conflito: o árbitro, que decide em nome das partes, ou o mediador, que produz um acordo entre as partes; aquele que provoca o conflito para dominar as duas outras partes da tríade - como na estratégia do divide et impera; ou ainda o tertius gaudens - “aquele que se regozija” (Simmel, Idem), ou seja, que aufere algum benefício do conflito.

Acompanhando a tipologia de Simmel, poderíamos, então, sugerir a hipótese de que, se a cena interacional do bullying é uma tríade, o espectador indiferente, que não arbitra o conflito, não promove a paz nem se impõe com base na desavença entre agressor-vítima, seria um terceiro ao estilo do tertius gaudens. Ou seja, um terceiro que obtém algum tipo de ganho com o conflito. Mas qual ganho?

Em texto voltado simultaneamente para um mapeamento dos estudos sobre o bullying em ambiente escolar e para a formulação de uma agenda propositiva para a análise do fenômeno, Horton (2011) aponta a centralidade do tema da agressividade individual para os primeiros diagnósticos. Em sua visão, essa preponderância teria ofuscado, por um lado, a importância das articulações entre agressores e as relações de poder nas quais se encontram inseridos; e, por outro, das articulações entre suas ações e as ordens moral e social mais amplas.

É importante, assim, considerar de que forma o bullying se relaciona com as ordens moral e social dentro do grupo, dentro do ambiente institucional e dentro da sociedade mais ampla, porque, embora episódios de bullying possam ser condenados e considerados inaceitáveis, as ordens por eles controladas e reiteradas podem ser amplamente aceitas (HORTON, 2011, p. 170).

O ponto parece ser, na visão do autor, que aqueles que fazem o papel dos agressores no enredo do bullying podem ser exatamente aqueles que se adaptam a distinções aceitas na ordem social mais ampla (Idem, p. 271).

O ganho do espectador indiferente seria, assim, a reiteração de uma ordem do mundo da qual faz parte. Ele não faz sofrer nem quer fazer sofrer, mas ele não se importa que façam sofrer, não se importa que sofram. Esse personagem, que aufere um ganho indireto e sutil por meio de uma suposta passividade, ao não interferir em um conflito, é, contudo, parte ativa dessa dinâmica que produz sofrimento, uma vez que, sem sua atuação como plateia, a cena interacional seria inviável. Sua atuação se dá pela delegação tácita da função de impor sofrimento, sofrimento esse que produz regozijo, seja explicitamente, pelo riso como em “Chegou a rir ou achar que era certo? Ah, sim. Não... Ri, mas não pelo sentido de concordar, mas por, sei lá, em algum momento parece engraçado” (Entrevistado 4), seja implicitamente, pela reiteração daquela ordem do mundo na qual se insere.

Ora, essa dinâmica da delegação tácita já foi conceituada há tempos pela sociologia interacionista: trata-se da “boa pessoa” de Hughes (2013). Em artigo publicado com base em depoimentos colhidos em uma viagem à Alemanha em 1948, Hughes discute a dinâmica social que produziu o Holocausto, articulando três personagens: os judeus vítimas do Holocausto, os membros das Schutzstaffel (SS) que faziam o “trabalho sujo” nos campos de concentração e as “boas pessoas” - aquelas que nada sabiam, mas que desempenhava a função de uma delegação tácita para a execução do “trabalho sujo” (HUGHES, 2013).

Embora o caso utilizado por Hughes para abstrair essa conceituação seja de excepcional dramaticidade, ele se preocupa em mostrar sua utilidade como forma sociológica (SIMMEL, 1971), sugerindo que a mesma dinâmica pode ser encontrada com outros conteúdos, como no caso do racismo ou das atitudes diante das populações carcerárias nos EUA. E essa dinâmica tem interesse ainda mais amplo para a sociologia, uma vez que nos permitiria acessar a constituição moral da sociedade, expressa sob a imagem de círculos concêntricos de inclusão/exclusão.

O espectador da cena triádica do bullying poderia, assim, ser entendido como um terceiro, um tertius gaudens de tipo específico: uma “boa pessoa”, entendida como tipo sociológico ao estilo simmeliano (vide os conceitos de o estrangeiro, o avarento ou a coquete). Ou seja, entendida como aquele que autoriza, por meio de sua indiferença, a discriminação, com ela regozijando-se pela reiteração que lhe oferece de sua visão de mundo. Se é assim, então, a cena interacional do bullying é um pequeno drama em que a ordem moral e social é encenada: o algoz a defende em sua agressão, o espectador a endossa em seu silêncio, sua indiferença, seu riso, a vítima a personifica em seu sofrimento.

Mas, até aqui, vimos apenas um processo de ordem cognitiva e interacional. Cabe agora perguntarmo-nos qual é a gramática emocional que confere vitalidade a essa cena.

Vergonha e raiva: gramáticas emocionais do ‘bullying’

Indagados sobre o que sentiam diante dos episódios de bullying de que haviam sido vítimas, os entrevistados falam de diversos sentimentos, tais como raiva, vergonha, pena, solidão, medo, impotência e arrependimento. Alguns aparecem de maneira mais pontual em um ou outro relato, como o arrependimento ou a solidão; outros são mencionados por diversos entrevistados, tais como a raiva e a vergonha, que permeiam boa parte das entrevistas. São esses sentimentos que, devido a sua recorrência, orientarão a análise das gramáticas emocionais da experiência da vítima de bullying. Procuraremos, para além de evidenciar sua centralidade, rastrear suas regras sintáticas - investindo na metáfora da gramática -, ou seja, a forma como dois ou mais sentimentos se combinam, seus alvos, as razões que os engendram ou as reações que suscitam.

O sentimento de vergonha está presente em muitos depoimentos, com frequência direcionado aos pais. Apesar dessa recorrência, a vergonha tem, nos depoimentos, conteúdos distintos, tais como uma suposta fraqueza que seria atribuída pelos pais ou a possível pecha de esquisito em comparação com os irmãos. Alguns exemplos:

- E com os pais, já pensou em falar, na época?

- Com meus pais eu nunca falei. Sempre tive vergonha com meus pais. Acho que eu pensava que era fraco, que era coisa de criança, não iam aceitar aquilo.

- Você acha que ia ter vergonha a respeito de falar com seus pais sobre alguma coisa assim?

- Vergonha sim. Vergonha de tentar, tipo, fazer ir lá por causa de garotos da mesma idade. Por isso sempre ia pra parte mais agressiva da situação.

- Sim. Aí nesse sentido por que você acha que tinha essa vergonha?

- Porque eu sempre via meu pai como alguém forte, que nunca ia se abater por um bagulho daquilo. Então eu acho que, por mim, não precisaria falar com ele. Nem com a minha mãe. Pessoas fortes em minha vida. Então eu tinha que resolver aquilo sozinho. Sempre pensava em resolver aquilo sozinho porque eu pensava que aquilo ia acabar um dia. Que ia entrar outra pessoa, que eu ia ficar livre. Entendeu? (Entrevista 3)

- Eu desisti de falar com a professora, porque quando eu fui falar com a coordenadora não deu em nada, eles só caçoaram ainda mais da minha cara: “Otária, (...) a gente não vai parar”. Daí, que que adiantaria eu falar com a professora? Porque a professora ficaria brigando e eles iam me tirar de mais otária ainda. Então, eu fingia, eu tentava fingir que não tava ligando, mas impossível. E com meus pais eu tinha vergonha de falar, porque eles só poderiam ir lá também falar com a coordenadora, e também eles não iam poder trocar. Não sei se depois disso eles iam lá comprar a sapatilha, não sei. Tive vergonha, não sei, era criança. (Entrevista 1)

- Porque era vergonha, porque assim, nenhum pai quer que o filho passe por isso. Quando você tem assim irmãos e tal, que no caso são os populares, e você é o esquisito, assim, você fica até com mais vergonha, assim, poxa, minha irmã é a perfeita, porque eu vou ser errada, poxa, meu pai vai ficar chateado porque a filha dele... (Entrevista 2)

- Não ter medo de agir. Faltou muito isso em mim quando estava crescendo, raiva, em vez disso eu corria, para falar com a diretora, é... Eu tremia muito, eu coçava os dentes de tantas raiva... Chorava quieto, eu tinha vergonha até de falar com minha mãe que sofria bullying na escola, meu pai então, reacionário do jeito que ele é, se eu falasse para ele “pai, eu estou com um problema na escola, tem crianças zombando de mim na escola, por eu ser gordo, por eu ser educado, por eu falar com os, por eu ser amigo dos professores”, ele me dava na cara... (Entrevista 7)

Thomas Scheff (1990) aborda o paradigma sociológico durkheimiano, discutindo a centralidade atribuída ao problema da natureza coercitiva do fato social. O autor aponta para o viés fortemente cognitivo dessa perspectiva teórica e se propõe a analisar a dimensão emocional da conformidade às regras sociais. Para isso, defende um lugar central para os sentimentos de vergonha e orgulho como emoções-chave para a compreensão da dinâmica subjetiva da adesão às normas sociais. O orgulho atestaria o estado intacto dos vínculos sociais, ao passo que a vergonha seria evidência de uma ameaça a esses vínculos.

Para Scheff, a vergonha seria uma emoção social primária, que “surge do monitoramento das próprias ações por meio da visão de si mesmo pelo ponto de vista dos outros” (SCHEFF, 1990, p. 80). A vergonha faria parte de uma “família de sentimentos”, que integrariam um “sistema sutil de sanções sociais” (Idem, p. 75) por meio da desvalorização do sujeito perante si mesmo por um (real ou hipotético) não atendimento às regras sociais. E aqui retomamos o tema esboçado na primeira parte dessa análise: a hipótese de que a cena interacional do bullying dramatizaria a ordem moral e social, com a vergonha por um suposto de não atendimento das normas atestando a adesão.

É nesse sentido que aponta a análise empreendida por Goffman (2011) sobre o constrangimento. Discutindo a relação entre a adesão às expectativas normativas do comportamento social, Goffman aponta que o constrangimento/embaraço atestaria a incongruência entre a ação individual e as normas sociais, tal como percebida pelo sujeito. Seu desconforto diante disso, portanto, longe de evidenciar um desvio, seria prova de seu apreço pela norma. “O indivíduo fica desconfortável não porque ele é pessoalmente desajustado, mas sim porque ele não o é” (GOFFMAN, 2011, p. 106).

Esse embaraço proveniente da autopercepção como desajustado pode levar o indivíduo a um retraimento das situações sociais, fonte para ele de profundo incômodo. Esse retraimento, por sua vez, seria um novo indício a favor de sua conformidade à norma: “o indivíduo que mais se isola de contatos sociais pode então ser o menos isolado das exigências da sociedade” (Idem, p. 104). Essa dinâmica descrita por Goffman nos fornece, assim, um esquema para a compreensão da experiência emocional-interacional do bullying, capaz de explicar o porquê do isolamento social que os indivíduos alvo dessa forma de agressão terminam por impor a si mesmos, evitando falar do assunto por vergonha e, em alguns casos relatados, desejando não mais ir à escola.

A vergonha não é, assim, o único sentimento capaz de trazer para a experiência emocional do sujeito a conformidade às normas sociais. Daquela família de sentimentos aventada por Scheff (1990), fariam parte também o constrangimento e a humilhação, com a principal distinção entre eles sendo a intensidade. Essa aproximação entre vergonha e humilhação nos permite, assim, fazer uma ponte entre as teses de Scheff e a análise de Jack Katz (2013) sobre a dinâmica humilhação-raiva em “cenas interacionais” que culminaram em assassinatos, criando uma chave analítica para compreender a proeminência dos sentimentos de raiva e vergonha nos relatos dos nossos entrevistados.

Katz realiza uma reflexão sobre o complexo humilhação-ira, com especial atenção à definição da situação. Analisa os crimes que podem parecer em um primeiro momento incompreensíveis, mas que são cometidos em defesa do “bem”, ou seja, de valores centrais na visão que os agressores têm do mundo e de si mesmos. Esse seria o caso de um pai que assassina seu filho bebê porque chora em excesso. O autor argumenta que este pai pode até padecer de uma doença mental; não obstante, se pergunta “por que não o matou outras vezes quando a criança chorou? O que acontece neste momento específico?” (KATZ, 2013). Seu possível problema psíquico não explica o acontecimento, uma vez que a situação já estava moralmente moldada, não sendo incomum que os pais exijam respeito de seus filhos. Para o autor, nessa cena o pai interpreta o choro como um desafio à autoridade paterna; a agressão, nessa situação, parece honrá-la.

Outro caso que Katz oferece se dá quando um homem mata o amante de sua esposa quando os encontra juntos na frente da casa onde se encontravam os filhos do casal. Esse homicídio não foi considerado crime pela justiça, pois teria sido cometido em defesa da honra do marido. Da mesma forma, o autor cita um caso em que uma mulher mata seu marido, que durante anos a espancou. A mulher recebia assistência social e estava matriculada em uma escola de negócios. A versão do “bem” defendida nesse assassinato era o sonho americano, amplamente aceito por pessoas de variadas convicções políticas, que busca se livrar da dependência financeira da assistência social pela via da ascensão social. Outros casos que parecem ter em comum a defesa do direito de propriedade como “bem” supremo são o homem que mata o tio de seu vizinho por estacionar seu carro na frente da sua garagem e o sujeito que mata seu amigo por tirar comida de seu prato.

Em todos esses casos, os homicidas defendem um status social, seja como pai, marido, mulher pobre esforçada ou proprietário. Parecem defender ao mesmo tempo a moralidade do sistema social e as reivindicações pessoais de valor moral.

As cenas têm em comum dois pontos principais: a percepção pelo agressor de que as atitudes da futura vítima colocam em xeque um bem moral supremo que os define, e uma dinâmica emocional que consiste na passagem de um sentimento de humilhação para a ira. É quando a humilhação se torna ira que surge a situação própria do “massacre justo”. Katz (2013) chama a atenção para as semelhanças entre a humilhação e a ira: em ambas, o indivíduo se sente impelido por forças que não pode controlar e que ameaçam tomar conta da pessoa, sendo sentimentos holistas que transcendem os limites do corpo. Tanto a ira quanto a humilhação colocam o corpo inteiro a seu serviço, “o corpo humilhado é insuportavelmente vivo; a essência do ser está humilhada” (Idem, p. 236).

Diversos entrevistados relatam sentir raiva ou ódio, bem como sentimentos de irritação ou reações de agressividade, que juntos formariam um campo semântico. Esse campo semântico, contudo, aparece mesclado a sentimentos como dor ou humilhação, conforme os relatos abaixo:

- Acabava ficando mais irritado, (...) nunca era uma pessoa muito convivível, sempre era mais agressivo. (...) Nesse ponto era muito ruim na minha infância, na adolescência. (Entrevista 3)

- Primeiro, era ódio, raiva, dor. Sempre era muita dor. Sempre queria acabar com essa dor, sempre. Nunca tinha vontade de querer ir mais pro colégio. (Entrevista 3)

- Na época, os sentimentos que você tinha era o que, de agressão, humilhação?

- Humilhação. Sentia raiva também.

- Raiva dos coleguinhas?

- Isso, raiva deles, querendo que um dia me pagasse.

- Se sentia inferior de alguma forma?

- Sim, inferior com certeza. Porque todo mundo da sala falando algo de você, deixando de ser seu amigo, só porque você foi com um tênis. (Entrevista 1)

- [O] que você sentia quando isso acontecia?

- Raiva... Muita raiva, porque tudo o que eu passei, eu nunca fui do tipo de tomar represálias de vingança, eu sabia como me portar, eu sabia com quem devia falar, apesar de que eu acho que eu devia ter dado um soco na cara de alguém em aquela época, eu teria tido respeito. (Entrevista 7)

A raiva é interpretada em vários relatos de entrevistados como um sentimento que se acumula. Mesmo a tristeza acumulada se pode transformar em ódio e raiva, que no plano simbólico parece transbordar os limites corporais. É como se a raiva não “coubesse” no corpo e devesse buscar vazão:

- Isso vai te irritando, irritando, vai ter uma hora que você vai explodir. Essa explosão eu acho meio perigosa, você não sabe o que é capaz de fazer, você pode agredir alguém, você também perde razão. Isso que é perigoso. Aí já parte para agressão, aí já é caso de polícia, como tem na televisão, casos de bullying que foi para a polícia por agressão, não era nem agressão moral, era agressão física. (Entrevista 9)

- E porque acha que isso [a tragédia em Realengo] aconteceu?

- Eu acho quando você sofre de uma forma categórica esse tipo de agressão verbal física, você desenvolve 300 milhões de sentimentos, né. Um deles pode ser raiva, pode ser esse sentimento de vingança. Você se sente impotente, você pensa “pô, os caras bem aqui e você não tem o que fazer, eles estão em maior número, eles são mais fortes, eu não consigo nem responder o tempo todo”. Geralmente, essas pessoas são muito introvertidas, têm dificuldade de comunicação. E acho que você vai, ou você fica muito triste, o que essa cara deve ter tido lá do sentimento de tristeza, mas um deles deve ser de vingança também, de raiva, de ódio, e aí ou você alimenta esse sentimento, de tal maneira que você efetua, você faz alguma atitude que seja drástica como ele tomou, ou você acaba sucumbindo à tristeza. Ou, então, acaba de alguma forma saindo de, nesse caso, desses sentimentos, e que você acumula durante esse tempo. Eu acho que ele não conseguiu sair desses sentimentos de forma nenhuma ou começou a acumular e alimentar esses sentimentos e, basicamente, efetuou o que ele deve ter achado que foi uma forma de justiça, porque o cara sempre estava indefeso e, agora, ele botou uma coisa de superioridade. E ele era o superior àqueles que sempre praticaram bullying com ele. Acho que é difícil. É o tipo de coisa que acredito que nenhuma pessoa em sã consciência diga que esse cara é um monstro, porque ao mesmo tempo que uma coisa horrível que você matar umas pessoas, mas o que ele sofreu para ele chegar nesse ponto, muita gente não sofre, muita gente não sabe como é que é, e esse foi simplesmente a forma como ele reagiu a tudo isso, né? Acumulou tudo aquilo e voltou... Para... Simplesmente teve que extravasar... E foi a forma de extravasar e botar esse ódio para fora dele. (Entrevista 11)

No último depoimento, o entrevistado formula um entendimento sobre uma tristeza acumulada que se tornaria ódio/raiva, entendimento que faz com que ele afirme que ninguém poderia dizer que o autor da tragédia de Realengo é um monstro. Cria-se, assim, uma situação ambivalente: o ato é atroz, mas, ao mesmo tempo, o sofrimento que causa é desculpável e compreensível por resultar de um sofrimento anterior que lhe teria sido imposto, este sim incompreensível.

Essa raiva, contudo, nem sempre tem como alvo o agressor. Há entrevistados que relatam sentir raiva de si mesmos, como nos exemplos abaixo:

- Raiva de mim mesma, por não ter antes e agora também. (...) Por mais que, no caso, não me bateram, no meu amigo bateram, a culpa não é dele, a culpa é nossa. A gente é que está errado, eles conseguem fazer isso com a gente. (Entrevista 2)

- Qual era o sentimento quando isso acontecia?

- Eu ficava chateada, eu ficava pensando “ah, tem algo de errado mesmo comigo, eu tenho que mudar, eu tenho que fazer alguma coisa, porque só assim as pessoas vão falar comigo, só assim os garotos”, né. É assim: criança acha que é só isso, que isso que importa, os garotos vão ter interesse em mim e eu vou ser mais legal. (Entrevista 10)

Então, por que desviar a raiva do agressor e endereçá-la a si mesmos?

A démarche das respostas oferecidas por alguns entrevistados à pergunta sobre as motivações do agressor para praticar o bullying sugere uma pista. Com frequência, diante dessa pergunta, os entrevistados, em vez de buscarem no agressor - suas características, sua história de vida, seu momento pessoal - as causas da prática do bullying, buscam a resposta na própria vítima, sejam eles mesmos ou outras pessoas).6 Alguns exemplos:

- Então, aquela coisa de “vamos implicar com alguém que a gente ache que tá certo de implicar”, ok, é isso... Na verdade, o bullying ele só se manifesta em aquelas pessoas, infelizmente, que são um pouco mais acessíveis para isso. Então, se você vê que tem uma criança gordinha, tímida, não sei que, é muito mais fácil implicar com ela que implicar com uma outra que conversa com todo mundo, todo mundo conhece, entendeu. É mais difícil isso acontecer. (Entrevista 10)

- Se falasse com alguém, tanto os pais como a diretora, até conversando com a própria professora, mesmo assim não pararia, teria que mudar o meu jeito. (...) Sei lá, para emagrecer ou mudar alguma coisa assim no visual, alguma coisa, mas falando com a pessoa em si não pararia. (...) Ter que me adaptar, porque eles não mudam. (Entrevista 2)

- Ah, com certeza, como a sociedade impõe um padrão de beleza, que tem que ser magro... Porque, além disso, também tinha os outros bullyings, com crianças gordas. Assim como a sociedade impõe um padrão de beleza, eu acho que também tem muito disso do ter, né? Por exemplo, (...) se você não tinha a canetinha da Faber Castell, você já era, “ralé”, você não era tão “top” assim. (Entrevista 1)

- Eu acho que fora, qualquer ser que for diferente da sociedade, se você usa óculos, se você quer usar cabelo curto, usar cabelo grande, usar black, você vai sofrer. Você tá fora da sociedade, você é um incomum na sociedade, você não é o padrão correto. Então, isso que é o errado, isso que faz você querer, a pessoa quer te zoar, querer te provocar. (Entrevista 3)

- Eu lembro que uma das pessoas que fazia bullying comigo, eu me lembro que ele começou a usar óculos, aí os amigos dele largaram ele porque ele usava óculos. (Entrevista 3)

Aquela raiva de si mesmos poderia, assim, ser entendida como uma nova versão daquela conformidade às normas sociais sugerida pela eclosão da vergonha por ser alvo de bullying, uma vez que a agressão teria como causa suas próprias características - explicando, assim, a concomitância dos sentimentos de raiva e vergonha na gramática emocional da vitimização nas cenas de bullying aqui analisadas.

Resta ainda uma pergunta: o que fazer com essa vergonha e essa raiva? Os entrevistados, em sua maioria, dizem não ter reagido às agressões. Em lugar disso, relatam sentimento de tristeza e solidão que por vezes geraram reações de isolamento social. Paralelamente, contudo, deixam entrever outras formas de reagir subjetivamente, expressas de maneira mais ou menos explícita quando discorrem sobre os agressores, suas supostas motivações e suas trajetórias posteriores (reais ou fantasiadas).

Vários entrevistados atribuem a prática do bullying a uma suposta inveja dos agressores por méritos e qualidades suas:

- Uma das situações foi porque a mãe dessa criança comparava muito ela comigo. Me via como a certinha. Então, essa pessoa não gostava disso e usava contra mim. (Entrevista 12)

- Na maioria das vezes acho que é inveja. A maioria das vezes a pessoa que sofre bullying, ela é destacada por alguma coisa que ela faz bem, que ela sabe fazer, ela sabe atuar bem em certa coisa. E aquela pessoa que tá praticando bullying tem inveja dela por isso. Eu, eu enxergo por mim mesmo e o que eu conheço do bullying. Quando eu cheguei na escola eu era uma pessoa diferente, eu vinha de outro bairro, de outro município. Eu entendia as matérias rápido, eu era bom em Inglês, poucos na escola eram. Era bom em Inglês, fazia o dever rápido. (...) Também pode ter outras [motivações], por exemplo, eu conheço casos de bullying também que, pelo fato de ter um conhecimento maior, por exemplo, a pessoa que sofreu bullying é uma pessoa boa, generosa, ajuda as pessoas. (Entrevista 7)

- Acho que, assim, às vezes o agressor se sente muito inseguro com ele mesmo. Já também vi casos de agressores que faziam isso, por se sentirem inseguros e tentavam menosprezar as pessoas mais fracas. (...) O bullying também vem da inveja, porque a pessoa vê que a pessoa é insegura, mas a pessoa, sei lá, tem uma coisa especial que ela não tem, ela sente inveja e acaba atacando também. (Entrevista 6)

Em uma espécie de contraponto lógico, há também depoimentos que apontam falhas de várias naturezas nos agressores, desqualificando sua pretensa superioridade:

- Pra quem faz o bullying, ele tem que ficar por cima, tem que ficar mais forte, tem que dizer que é o melhor. Eu acho que quem pratica, em alguns pontos, outros não, pensa que é o maioral só porque fez um cara chorar, zoando ele, acha que é o melhor. Só porque bateu num cara acha que é o melhor. Eu acho que esse ato de ser superior é que é a pior parte de quem faz. (Entrevista 3)

- Eles sempre tiravam nota menor. Eles nunca eram os melhores alunos, nunca eram as melhores notas. (Entrevista 3)

Essa desqualificação não se restringe a uma avaliação retroativa do desempenho do agressor, mas se projeta para uma fantasia de um futuro fracasso:7

- Hoje em dia, muitos jovens se formam no ensino médio, vão pra faculdade e as pessoas, os “bonzões” daquela época, perdem tudo. Perdem aqueles amigos, perdem tudo. Porque não tem mais ninguém. Só tem aquela vontade que é “fazer merda”. Acaba se envolvendo com outras coisas, acaba se envolvendo com muitas drogas. O pessoal do bullying também, talvez, como uma forma de encontrar algo que possa confortar eles. (Entrevista 3)

Essas estratégias, tomadas em conjunto, parecem se constituir em uma reivindicação de superioridade sobre o agressor, em uma espécie de revide àquelas agressões que os inferiorizavam e excluíam: inveja, fantasia de fracasso do agressor, etc. Mas talvez a estratégia que melhor sintetize esse revide emocional esteja no depoimento abaixo:

- Ainda convivo com alguns, já não sofro bullying, mas eu vejo que (...) eles tiveram uma infância de merda. Eles não foram nem criança. Eles pensavam em coisas que não eram da época deles, eles viviam numa fase complicada, alguns nem tinha o que comer. Mas era isso. Eles se revoltavam e botavam culpa em quem não tinha, hoje eu tenho pena. Sinceramente. (Entrevista 7)

- Eu uso isso como troféu, pode não parecer, o bullying foi uma coisa ruim, foi. Mas hoje ele é meu troféu, porque eu passei por ele, eu vivi, sobrevivi, eu passei pelo bullying. Só que, como eu disse antes, eu não tenho mais raiva daquelas pessoas, eu tenho pena. (Entrevista 7)

Clark (1997), analisando o sentimento da compaixão nos EUA contemporâneos, aborda as regras que orientam o dar e receber compaixão. Para a autora, a compaixão seria um sentimento assimétrico, dotado de uma capacidade de criação/reiteração de hierarquias sociais, ou seja, de uma dimensão micropolítica. Na cena interacional da compaixão, o compadecer-se pode elevar o status de um indivíduo, ao mesmo tempo em que ser objeto da compaixão alheia pode inferiorizar o outro.

Essa capacidade micropolítica da compaixão faz dela uma emoção de demarcação de status. Reside aí a chave para compreendermos qual o papel da pena que a ex-vítima de bullying diz sentir de seus antigos agressores: compadecer-se de quem o humilhou seria um revide emocional, por meio do qual a vítima construiria para si mesma, no plano simbólico, um status superior àquele de seu agressor, esquivando-se assim ao lugar inferiorizado em que havia sido colocada pelo sentimento de humilhação suscitado pelas agressões.

Considerações finais

Bazzo (2017, p. 57) insere sua análise do bullying no contexto mais amplo de “alargamento do espaço social ocupado pela vítima”, seguindo as colocações de Sarti (2011). Ao explicitar essa vinculação, a autora produz um instigante deslocamento, uma vez que a explicitação em si tem o efeito de desnaturalizar a relação entre vitimização e bullying, sugerindo que essa associação não é necessária, mas guardaria relação com a proeminência que a figura da vítima vem ganhando como uma formação subjetiva contemporânea.

A análise dos depoimentos revelou a existência de uma gramática emocional da vitimização em episódios de bullying marcada por um complexo emocional composto pela vergonha - ou suas “parentes”, a humilhação ou o constrangimento -, pela raiva e pela pena. Para concluir, gostaríamos de sugerir a possibilidade de estender essa gramática emocional para a vitimização em outras formas da violência.

Em outro lugar, Coelho (2010), examinando relatos de experiências de vitimização em assaltos a residências, identificou a existência de gramática emocional semelhante. As vítimas retratavam os assaltantes como imundos, desorganizados e ignorantes, entre outros atributos, e falavam de um sentimento de impotência diante das agressões. Os homens, em particular, falavam também da raiva que sentiam e do desejo de reagir, inibido por uma avaliação da situação de que não seriam bem-sucedidos ou pelo receio de expor outros personagens - em geral, suas mulheres ou filhos - a algum risco. Na sequência de seus relatos, surgem então sentimentos de desprezo pela suposta ignorância dos assaltantes - que, por exemplo, não saberiam distinguir os bens de marca mais valiosa - ou de pena pela suposta falta de opções na vida que os teria levado à criminalidade.

Ora, assim como a pena, o desprezo é também uma emoção de demarcação de status (MILLER, 1997). Estaríamos, assim, diante de um complexo emocional no qual a raiva provocada pela impotência ou pela humilhação, impedida - na definição da situação feita pelos sujeitos - de desembocar em uma agressão física, como nos casos analisados por Jack Katz (2013), cederia o lugar à compaixão ou ao desprezo. Esses elementos seriam capazes de, em sua dimensão micropolítica, devolver da mesma forma ao sujeito sua autoestima, restaurando assim o lugar de que se julga merecedor na ordem moral do mundo.

Estamos, portanto, diante de experiências de vitimização provocadas por duas formas distintas da violência - o bullying escolar e os assaltos a residências - que engendram uma gramática emocional de contornos semelhantes, sugerindo a existência de uma gramática emocional da vitimização.

Mas qual seria a sua abrangência? Seria possível estender esse complexo emocional ainda a outras experiências de vitimização?

Ingrid Betancourt (2010), em seu relato sobre os sete anos que passou como refém das Farc na Colômbia, conta sobre os momentos que se sucederam a uma tentativa de fuga. Capturada na selva, ela relata assim seu retorno:

A volta para o acampamento me pareceu muito longa sob o peso de minha humilhação e de seus sarcasmos. Um na minha frente, os dois outros atrás, eles falavam em voz alta e trocavam gritos de vitória. Eu não tinha vontade de chorar. Não era orgulho. Era só um desprezo necessário, para comprovar que a crueldade daqueles homens e o prazer que tiravam disso não haviam estragado minha natureza, porque não tinham atingido minha alma (BETANCOURT, 2010, p. 26).

A conjugação entre humilhação e desprezo está por demais explícita aqui: puxada por uma corrente atada em seu pescoço, a autora escapa à humilhação descrevendo-se como inatingível e, portanto, superior em seu desprezo. Resgata, assim, por meio dessa dinâmica emocional, seu lugar no mundo abalado pela experiência do sequestro e pela condição de refém.

Seria procedente a comparação? Não haveria um quê de exagero em sugerir que pode haver semelhanças entre a vitimização em um assalto, a vitimização em um episódio de bullying e a vitimização em um sequestro das Farc?

Um pouco mais tarde, nessa mesma ocasião, Betancourt é levada diante do chefe do acampamento. Após conversarem, ela volta, humilhada, para sua cela. No caminho, os guerrilheiros cantam em coro, à sua passagem, uma canção: “Esses oligarcas filhos da puta que roubam a grana dos pobres/Esses burgueses malnascidos vamos acabar com eles, vamos acabar com eles” (BETANCOURT, 2010, p. 34).8 A provocação é evidente, todos parecem se divertir. Ela se vira para uma guerrilheira e diz: “Não cante mais essa música na minha frente. Vocês têm fuzis, no dia em que quiserem me matar, basta fazê-lo” (Idem). A comparação é explícita: o escárnio é pior do que a morte.

Mas é comparável com o bullying? A própria autora nos sugere, ainda que involuntariamente, que a comparação não é descabida. Pois é assim que descreve a impressão geral que a cena lhe suscita: “Havia na atitude deles a maldade criminosa dos pátios de recreio” (Idem, p. 34).

O recurso ao pátio de recreio como metáfora para descrever uma experiência dramática de cativeiro em um sequestro nos sugere que a comparação não é exagerada. Metáforas são, em sua acepção mais clássica, a substituição de uma coisa por outra, havendo uma equivalência entre elas, uma relação subjacente entre ambas no espírito do sujeito que metaforiza. As metáforas às quais recorremos revelam o modo pelo qual vivemos uma situação, como no título do conhecido livro de Lakoff e Johnson (1980), Metaphors We Live By.

Seria sim, portanto, possível comparar a condição de vítima para além da natureza das formas específicas de violência. Da mesma forma, é possível estender, como fizemos acima, o tipo sociológico da “boa pessoa”, abstraído a partir do caso histórico do nazismo por Hughes (2013) - e aplicado a outras situações pelo próprio autor, como o racismo ou as populações carcerárias -, para o espectador na cena interacional do bullying.9

Mas é possível supor, insistimos, que uma comparação entre as gramáticas emocionais da vitimização por um sequestro das Farc, por assalto ou por bullying, por um lado, ou, por outro, o recurso ao tipo sociológico da “boa pessoa”, construído a partir do nazismo, para pensar sobre o bullying, pode incomodar, produzir desconforto. É como se a própria comparação pudesse empalidecer a enormidade e a relevância históricas daquelas experiências originais que geraram os conceitos.

Ora, conceitos são feitos para serem abstraídos dos dados referentes a circunstâncias particulares e são tanto mais relevantes quanto maior for a possibilidade de descolamento - do fenômeno original empírico a partir do qual foi gerado - e de deslocamento - para outros fenômenos histórica e contextualmente distintos. Reside exatamente aí seu valor heurístico. Basta, para isso, lembrar da sugestão de Agamben (2004) de que o conceito de homo sacer, construído para dar conta da experiência concentracionária, poderia ser utilizado para pensar sobre as populações que habitam as periferias das metrópoles contemporâneas.

E se, além disso, nos lembrarmos das experiências icônicas da reflexão sobre o bullying - Columbine, com 13 mortos, 24 feridos e dois suicídios; ou Realengo, com 12 mortos, 13 feridos e um suicídio -, fica a hipótese: a impressão de exagero na comparação não seria proveniente, justamente, daquela banalização do bullying que se constitui, ao mesmo tempo, em condição maior de sua possibilidade e causa maior do sofrimento que impõe?

Referências

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Notas

1 Segundo Rolim (2008), o conceito de bullying tem sua formulação original tradicionalmente associada à obra de Dan Olweus. O interesse pelo fenômeno teria, segundo Rolim, se iniciado nos anos 1970 nos países escandinavos, a partir do suicídio de três adolescentes na Noruega, em 1983, em circunstâncias que foram associadas ao bullying. Ainda segundo o autor, o bullying teria três componentes básicos, de acordo com a Associação Médica Americana (AMA): “1) Um comportamento agressivo intencionalmente voltado à imposição de sofrimento por uma pessoa ou grupo; 2) Um comportamento oferecido de forma repetida e insistente contra as vítimas; 3) Um comportamento entre pares que vitima as pessoas que possuem menos poder” (ROLIM, 2008, pp. 15-16). Também segundo a AMA, o bullying apresentaria três dimensões possíveis: verbal (ameaças e insultos), psicológica (divulgação de calúnias ou fatos que produzam vergonha ou humilhação) e física (Idem, p. 16).
2 As onze entrevistas fazem parte de um conjunto maior composto por catorze entrevistas realizadas para esta pesquisa. Todas as entrevistas foram feitas ao longo de 2017.
3 A equipe foi composta por Johana Pardo (estágio de pós-doutorado), Davi de Oliveira (bolsista Pibic/CNPq), Luíza Muniz, Karoline Cruz e Valéria Reis (estudantes da graduação em ciências sociais da Uerj e participantes da pesquisa por meio do Programa de Estágio Voluntário). As entrevistas aqui utilizadas foram realizadas por Pardo, Muniz e Cruz.
4 Farache (2013) adota perspectiva semelhante para discutir o papel da timidez em experiências de bullying em trabalho apresentado como monografia de conclusão da graduação em ciências sociais da Uerj.
5 Esteves (2015, pp. 4-5) também encontra em seus dados esse entendimento do bullying como “coisa de criança”, entendimento esse proveniente tanto dos pais como das autoridades escolares, destacando que “o mal cometido é visto como algo corriqueiro, banal, cotidiano”. Conforme já comentado na revisão bibliográfica, a autora recorre à tese de Arendt sobre a banalidade do mal para analisar essa percepção da violência como algo normal que não suscita maiores reflexões.
6 Esteves (2015, p. 16) registra também esse percurso do raciocínio, embora atribuindo-o aos praticantes de bullying, e não às vítimas: “O estudante que agride seu par, quando interrogado sobre sua atitude, não consegue compreender a gravidade de sua ação, entende seu comportamento como algo normal e, geralmente culpabiliza a vítima, atribuindo a ela algum defeito que supostamente justificaria a ação”.
7 Bazzo (2017, p. 64) registra fenômeno semelhante em sua pesquisa: “E, em vez de falar em meios de reparação, os testemunhos de vitimados por bullying têm focalizado a vendeta como forma de justiça, ao situarem, no presente, o sucesso dos agredidos perante o fracasso dos agressores, na vida pessoal e/ou profissional”.
8 No original: “Esos oligarcas hijue’putas que se roban la plata de los pobres/Esos burgueses malnascidos los vamos a acabar, los vamos a acabar”.
9 Essa mesma lógica está presente no uso feito por Esteves (2015) da tese da banalidade do mal, suscitada pelo julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, para refletir sobre a indiferença diante do sofrimento causado pelo bullying.

Autor notes

MARIA CLAUDIA COELHO (maria.claudia.coelho1000@gmail.com) é professora titular do Departamento de Antropologia do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj, Brasil). É doutora em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj, Brasil), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil) e bacharel e licenciada em história pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, Brasil).
JOHANA PARDO (johanitapardog@gmail.com) realiza estágio pós-doutoral no ICS da Uerj. É doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da mesma universidade e bacharel em antropologia pela Universidad Nacional de Colombia (Unal, Bogotá, Colômbia).
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