Artigos

As relações de reciprocidade e dívidas morais entre o presídio e a rua: A expansão e transnacionalização do Primeiro Comando da Capital (PCC) na fronteira Brasil-Bolívia

Relations of Reciprocity and Moral Debts Between the Prison and the Street: The Expansion and Transnationalization of the Primeiro Comando da Capital (PCC) in the Brazil-Bolivia Border

Giovanni França Oliveira
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Brazil
Caroline Krüger
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brazil

As relações de reciprocidade e dívidas morais entre o presídio e a rua: A expansão e transnacionalização do Primeiro Comando da Capital (PCC) na fronteira Brasil-Bolívia

Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 11, núm. 1, pp. 28-52, 2018

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Recepção: 02 Maio 2017

Aprovação: 06 Março 2018

RESUMO: O presente artigo busca compreender como se deu a expansão e a transnacionalização do Primeiro Comando da Capital (PCC) na fronteira Brasil-Bolívia, tendo como base geográfica de análise a região de Corumbá, no Brasil, e Puerto Suarez, na Bolívia. A metodologia de pesquisa utilizada foi a etnografia, o que possibilitou entender os fatos a partir dos atores sociais envolvidos. As mudanças ocasionadas com a entrada progressiva do PCC nos presídios da região vêm impactando a dinâmica local de venda de drogas, baseada nas relações pessoais e de vizinhança, inserindo uma nova lógica de lealdade ao PCC e reordenando o tráfico de drogas para além da fronteira.

Palavras-chave: fronteira, tráfico de drogas, transnacionalização, Primeiro Comando da Capital, Corumbá.

ABSTRACT: Relations of Reciprocity and Moral Debts Between the Prison and the Street: The Expansion and Transnationalization of the Primeiro Comando da Capital (PCC) in the Brazil-Bolivia Border tries to understand the Primeiro Comando da Capital (First Capital Command, PCC) expansion and transnationalization in the border between Brazil and Bolivia, considering Corumbá, in Brazil, and Puerto Suarez, in Bolivia its basis of analysis. To do so, ethnography was the methodology chosen as it granted the understanding about the social actors involved. Changes, which were caused by the PCC entry in the prisons from this region, have been impacting the local dynamics for drug sales based on personal and neighborhood relationships and, because of that, these changes have created a PCC loyalty rule and reconfigured the drug trafficking beyond the border.

Keywords: border, drug trafficking, transnationalization, Primeiro Comando da Capital, Corumbá.

Introdução1

O Brasil se constitui como o maior país em extensão territorial da América do Sul, com fronteira com nove dos 11 países do continente, ao longo de 23 mil km. Na faixa de fronteira de 150 km de largura a partir do limite internacional, definida pelo governo federal, estão localizadas quase 600 cidades, onde vivem mais de 10 milhões de pessoas que convivem diariamente em um ambiente com muitos fluxos.

Nesse contexto, está a cidade de Corumbá, localizada no Centro-Oeste brasileiro, às margens do Rio Paraguai, a pouco mais de 400 Km de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, e apenas a 5 Km de Puerto Quijarro, cidade fronteiriça na Bolívia. A via principal que chega à localidade é a BR 262, parte do chamado corredor bioceânico, que liga o porto de Santos, em São Paulo, ao porto de Iquique, no Chile, passando pelo território boliviano. A população corumbaense está estimada em 110 mil habitantes (IBGE, 2016). Sua economia está voltada para os setores de mineração, agropecuária, turismo de pesca e transportes de carga. Dessa forma, constitui-se uma localidade estratégica de articulação dos fluxos de bens, pessoas e informações, com fortes relações econômicas com as cidades lindeiras da Bolívia.

Em levantamento, as Organizações dos Estados Americanos (OEA, 2013) verificaram que a Bolívia é o terceiro maior produtor de cocaína do mundo, perdendo apenas para o Peru e a Colômbia. Em particular, a fronteira com o Brasil, favorecida pela posição geográfica, permite a articulação multiescalar e multimodal para várias partes do mundo. Por isso, tornou-se o corredor de transporte de pasta base de cocaína para o Brasil e outros mercados consumidores da mercadoria boliviana. O fato tem consequências nos aprisionamentos na região.

Historicamente, a estrutura do tráfico de drogas no varejo em Corumbá se formou a partir da década de 1970, justamente pelas relações entre traficantes brasileiros, conhecidos como “boqueiros”, e os “pichicateiros”2 de Puerto Quijarro e Puerto Suarez, na Bolívia. Ou seja, essa estrutura foi forjada a partir das relações criadas sobre a égide de atores sociais transfronteiriços. É importante frisar que essa dinâmica integracional do crime na região toma impulso com o reordenamento do tráfico internacional de drogas do cartel de Medelín, na Colômbia, e o incremento da produção de cocaína boliviana na década de 1980.

Formada por núcleos familiares alicerçadas em relações de vizinhança, parentesco e proximidade, as “bocas familiares” em Corumbá condicionam importantes conexões entre o atacado e o varejo do tráfico de drogas na região e internacionalmente. Apesar de Bolívia e respectivas cidades de fronteira terem conexões importantes no atacado, as remessas de grandes quantidades passam por esquemas menores articulados por atores sociais brasileiros. Assim, “o diferencial fronteiriço como recurso” dá segurança a essas redes (COSTA e OLIVEIRA, 2014, p. 2).

As conexões locais, regionais e internacionais dessas redes são fundamentais para se entender o processo de transnacionalização do Primeiro Comando da Capital (PCC), a partir dos presídios masculino e feminino de Corumbá. Diante desse contexto, a presente pesquisa objetiva compreender como se deu tal expansão do PCC na fronteira entre Brasil e Bolívia, partindo das relações de reciprocidade e dívidas morais entre o presídio e a rua. Nossa base geográfica de análise é o município de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. A metodologia de pesquisa escolhida foi a etnografia, o que possibilitou entender esses processos e práticas a partir da visão dos atores sociais envolvidos com o tráfico de drogas.

O artigo foi organizado da seguinte forma: após a introdução, o trabalho apresenta o encadeamento entre dois grandes eixos, a saber, a prisão e a rua. No primeiro eixo, é feita a apresentação do sistema penitenciário de Corumbá, onde o PCC realizou os primeiros batizados3 e de onde expandiu seu domínio. O segundo grande eixo, cujo foco de abordagem é a rua, tem seu início com a transformação da figura do “gangueiro” (integrante de gangue); posteriormente, aborda o processo de expansão do Comando em Corumbá, desaguando em sua transnacionalização a partir do presídio de fronteira. Finalmente, discutem-se as implicações desse processo.

A prisão

O sistema penitenciário de Corumbá

Em Corumbá, há três unidades prisionais: Estabelecimento Penal de Corumbá, classificado como de segurança média, destinado a presos condenados do sexo masculino que cumprem pena em regime fechado; o Estabelecimento Penal de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência ao Albergado, classificado como de segurança mínima, destinado a presos condenados do sexo masculino que cumprem pena em regime semiaberto e aberto; e o Estabelecimento Penal Feminino Carlos Alberto Jonas Giordano (EPFCAJG), com classificação de segurança média, destinado a presas condenadas do sexo feminino que cumprem pena em regime fechado e semiaberto.

Além dos estabelecimentos penais, foi criado o Patronato Penitenciário, conforme os artigos 78 e 79 da lei nº 7.210/84, a Lei de Execução Penal (LEP). Patronatos, públicos ou particulares, se destinam a prestar assistência aos albergados e aos egressos (BRASIL, 1984).

O presídio masculino de Corumbá foi inaugurado em 9 de dezembro de 1997; já o feminino, em fevereiro de 1998 - ambos na época do governador de Mato Grosso do Sul Wilson Barbosa Martins. A construção do presídio masculino se fez necessária por conta da demanda de prisões na região, principalmente com os aprisionamentos decorrentes do transporte e da comercialização de drogas.

Nesse período, 40 presas custodiadas estiveram alocadas no presídio masculino até a inauguração do feminino. Em sua maioria, essas mulheres respondiam a processos relativos ao tráfico de drogas, ou, na fala da assistente social do EPFCAJG em entrevista sobre os aprisionamentos femininos na região, por “motivos recorrentes da fronteira”. Como veremos a seguir, no decorrer dos anos houve um aumento gradativo do número de prisões de nacionais e estrangeiros devido ao tráfico na região. O motivo pode estar correlacionado ao aumento da população na cidade lindeira de Puerto Quijarro, na fronteira com Corumbá, cuja fundação data da década de 1940, potencializando a movimentação transfronteiriça (OLIVEIRA, 2009).

A expansão do PCC no sistema penitenciário de Corumbá4

A formação do Primeiro Comando da Capital (PCC) teve início em 1993, no presídio de Taubaté, no estado de São Paulo. Para se defender dos abusos de funcionários no centro de detenção, um grupo de presos se organizou e redigiu um estatuto, com a pretensão de regular as ações de violência entre os próprios presos, assim como para tentar lutar por melhores condições no sistema penitenciário (BIONDI e MARQUES, 2010; DIAS e DARKE, 2016). A expansão do PCC nas prisões paulistas ocorreu entre 1995 e 2006, período em que a organização se consolidou em mais de 90% das prisões do estado. Daí, expandiu-se para outros sistemas prisionais do país, a partir da mega rebelião de 2006 (DIAS e DARKE, 2016).

A pulverização do PCC ganhou percepção nacional, pois ataques a agentes de segurança estatais e à população civil culminaram na eclosão de rebeliões em diversos presídios (ADORNO e SALLA, 2007). A rapidez dos ataques contribuiu para a demonstração da disseminação do PCC, inclusive no Mato Grosso do Sul.

De acordo com entrevistas realizadas5 com ex-presidiários, havia no presídio masculino de Corumbá, em 2006, dois paulistas presos que faziam parte do PCC. Ambos, ao serem acionados por meio da sintonia6 pelos irmãos7 que estavam no presídio de Campo Grande, tiveram a função de maximizar a visibilidade da rebelião e, assim, da ação que o Primeiro Comando da Capital estava alcançando no estado do Mato Grosso do Sul.

Percebe-se, portanto, a territorialidade do PCC, que, utilizando-se de engendramentos em outros presídios, disseminou uma nova ética carcerária. Segundo os relatos, as transferências de presos de uma penitenciária para outra são usadas como estratégia para ampliar o número de integrantes da facção (BIONDI e MARQUES, 2010). Em 2006, houve no Mato Grosso do Sul rebeliões nos presídios de Corumbá, Campo Grande, Dourados e Três Lagoas, desencadeando uma transição na vivência intramuros, como pode se perceber na entrevista com Felix.

- Em 2006, tinham apenas dois irmãos dentro do presídio (...). Aí o que aconteceu: tinha dois irmãos que estavam no corro, só que eles não falavam para ninguém que eles eram “irmão”, então, quer dizer, a população do prédio ouvia falar do Comando, ouvia falar que, na máxima [Presídio de Segurança Máxima situado em Campo Grande], existia. Então, ali, tinha Três Lagoas, tinha Aquidauana, tinha Dourados, tinha Ponta Porã (...). Tinham esses presídios do estado que ninguém sabia também. Foi a hora que os manos que estavam todos escondidos começaram a fazer a sintonia. A máxima falou porque, por exemplo, ele chegou a Corumbá, que não era estendida a bandeira do Comando. Aí o irmão chega preso no presídio, ele não vai se apresentar, ele tem que ver se está na cadeia do Comando, porque se ele chegar à cadeia do Comando, ele tem a disciplina de cela,8 entre outros representantes (...). Mesmo que não tenha, ele vai e tem o telefone; aí ele vai chegar ou nos padrinhos,9 ou na sintonia que fecha com ele; aí ele vai falar: “Ó, tô preso em tal lugar, não me rebelei ainda porque não tenho certeza se é facção contrária (...) .” “E quem está lá em Corumbá? Fulano e fulano, só os dois.” “Só os dois, então coloquem na linha.” Rastrearam eles porque já estava na mega aqui no Mato Grosso do Sul, e só tinha na máxima em Três Lagoas e Dourados, mas ainda não tinha em Corumbá. Aí acharam os dois irmãos; aí os dois se rebelaram na cadeia. Quando aconteceu a mega em Corumbá, os caras mais velhos é que mandavam. Ainda existia o velho sistema de extorsão e outras coisas ruins.

A data escolhida pelo PCC para a mega rebelião foi o Dia das Mães. Não por acaso, pois, em muitos presídios masculinos do Brasil, a presença de mães, esposas e filhos era substancial nesse dia. No presídio masculino de Corumbá, estavam não somente as visitas, mas as internas do feminino. Naquela época, nas datas comemorativas, as presas que tivessem marido em confinamento podiam ir visitá-los.

- Estava lá na rebelião de 2006. Teve tropa de choque, teve gente que apanhou, teve agente que bateu, pegamos a maior represália, pois era Dia das Mães, e as mulheres do feminino puderam ver os maridos; então estávamos lá dentro do masculino. A cadeia caiu, fechou; quem estava nas celas da frente conseguiu escapar (...). Só que tinha umas seis ou oito que estavam no fundo; aí não conseguimos sair; ficamos na mesma cela que os nossos maridos até o outro dia. Dali fomos para a inclusão; eles achavam que estávamos de complô com nossos maridos; bateram na gente! Passamos por psicólogo, assistente social, tudo, porque ficamos lá (...). Mas foi tudo liderado pelo PCC. (Sara, detenta do presídio feminino em visita ao masculino no Dia das Mães de 2006)

A mega rebelião, a rebelião do Dia das Mães, tem fundamental importância na rearticulação da criminalidade na localidade a partir da tomada do presídio. Desde a inauguração do presídio de Corumbá, observam-se estrangeiros presos originários das cidades limítrofes de Puerto Quijarro e Puerto Suarez, além de brasileiros de outros estados do Brasil. Isso se deve não somente à caracterização de Corumbá como um entreposto comercial, com alto fluxo de imigrações, o que a tornou uma “cidade cosmopolita” (OLIVEIRA, 1998), como também à relação de pessoas de “passagem” por esse local, com consequências na condensação das redes ilegais e nas prisões efetuadas na região.

É preciso evidenciar o fluxo de pessoas a partir do caso dos paulistas presos. O processo de articulação partiu dos paulistas que buscaram apoio no resto da população carcerária, colocando em jogo a implantação da nova ética dentro do sistema, segundo Felix “onde ainda reinava a lei do mais forte”.

Segundo os relatos, o enorme apoio à rebelião surgiu na tentativa de mudar a antiga ética em vigor, impulsionando um redesenho do sistema prisional e acabando com o velho sistema de extorsões, estupros e violência dos agentes. De acordo com Felix, no seu relato a seguir, o novo sistema de relações “paz, justiça, igualdade e liberdade” propiciou paz, introduzindo novas formas de comportamento e de convivência dentro do presídio.

- Acontece que qualquer sistema penitenciário aprova a ética do Comando, entendeu? Porque não admite a extorsão, nada que venha ao contrário, entendeu? É pregada a paz, a justiça, a liberdade e igualdade. O irmão do PCC se torna um soldado da paz dentro do sistema, porque dentro do sistema você tem que viver em paz em primeiro lugar. Então, dentro do sistema, ele se torna um pastor, ele se torna um admirador da paz, onde tudo ele resolve da melhor forma, faz acontecer e deixa todo mundo feliz. (Felix)

A pacificação do presídio por meio do novo sistema de relações que pôs fim ao antigo sistema de extorsões dá-se pela propagação de novos valores. O fato de o termo “pastor” ser citado aponta justamente para o novo espírito ou novos ares que o sistema estava começando a experimentar, ou seja, “a paz entre ladrões” (MARQUES, 2010, p.319). Ela transbordara para a rua por meio de alianças entre o velho sistema, a organização familiar das bocas de fumo e as redes criadas da venda de drogas e receptação de mercadorias, e o novo sistema, vindo de fora da cidade mas instalado por dentro: do presídio.10

O “soldado da paz” - aquele que não mede esforços para acabar com os conflitos internos da vida social - expõe a partir de uma nova dinâmica de discussões que a quebra de alguma regra comportamental está sujeita à sanção pelo meio (DIAS e DARKE, 2016). O “pastor”, assim chamado porque prega a paz dentro da prisão (BIONDI e MARQUES, 2010), apregoa para todos os que entram ou saem que levem consigo os “ensinamentos da família”, ou seja, o “proceder” (MARQUES, 2010), para difundi-los na rua.

- Aí nessa, os dois irmãos viram que a população aqui de Corumbá tinha esse mesmo pensamento, porque todo mundo ouvia falar na televisão. E sempre no sistema tem aqueles que já andaram em São Paulo, já foram presos em tal lugar - esses são os primos que conhecem a ética toda. Aí, quando viram que esses dois irmãos eram do PCC (...) e perguntaram a todos em que os apoiavam, e os correrias,11 a maioria eram primos conhecedores da ética do comando, né, cara? Logo já disseram que apoiariam no que precisasse e foi nessa que aconteceu a rebelião, iniciando pelo corró, já que os dois irmãos estavam ali. (Felix)

Novamente é colocado em questão o fluxo de pessoas no presídio de vários estados e países, principalmente uma parcela da população carcerária que já conhecia a ética do PCC, pois teriam passado pelo sistema carcerário de São Paulo onde a organização havia iniciado sua expansão, impulsionando o movimento de deflagração da rebelião. O apoio da população carcerária nativa, como a dos “correrias”, foi fundamental, pois se não houvesse aprovação da maioria, certamente aquela rebelião não teria acontecido e haveria consequências posteriormente, como o fim da lei dos mais fortes. Como pontuado por Dias e Darke (2016), essas transições no seio do sistema partem de disputas acirradas pelo poder, gerando diversas vertentes internas até a ascensão - ou não - de uma nova estrutura organizacional.

O processo desencadeado pelo levantamento de informações inerentes ao grupo colocou em evidencia os “caguetas” assim como os “maludos”,12 que foram os primeiros a sofrer as consequências da rebelião, mandados posteriormente para o seguro. Dessa maneira, deu-se o início das resoluções dos conflitos por meio dos primeiros debates, ocorridos após a rebelião de 2006. Como observaremos na entrevista abaixo, a rebelião já nasceu organizada nos “padrões do Comando”:

- Pô, aí para você vê: para quebrar uma cadeia o cara pode pegar qualquer agente ali e soltar faca nele, mas não, para quebrar a cadeia sabe como o Comando faz? Sai avisando os agentes: “o senhor larga essa chave e sai correndo porque se não...”. Aí os caras fazem e saem correndo, entendeu? Aí que eles inventam a história que os caras quase grudaram ele, mas é mentira. A cadeia do Comando quando é quebrada é assim: “o senhor larga essa chave aí e corre”. Porque os caras não querem maldade, então foi dessa forma que funcionou. Quando aconteceu a rebelião os dois irmãos estavam justamente no corró.

- Onde é o corró?

- É justamente um dos primeiros pavilhões, entendeu? Tipo assim, eles quebraram ali! Se eles quisessem, eles pegavam os agentes que estavam no fundo, só que não, eles fizeram um corredor e mandaram eles passarem, aí já saíram gritando para ninguém matar ninguém. Ninguém vai fazer nada até esperar a ordem. Putz! Os safados que estavam no meio já ficaram pulando de medo, aí você já começa a ver as facas aparecerem, mas pra quê? Pra que faca? Isso é instinto do preso. Hoje em dia é papel e caneta, é inteligência, é diálogo. Se acontecer algo, nós já perguntamos: mas por que isso, senhor? Se a resposta é negativa, perguntamos: por que, não? É assim que funciona hoje em dia; não tem mais faca, colchão amarrado e queimado (...). (Entrevista com Felix)

Percebe-se a racionalidade das mudanças nas estratégias e sua capacidade de planejamento a partir dessa rebelião. Nas falas dos entrevistados, “agora é tudo conforme a lei, usar o sistema a seu favor e a nova tática, sem queimar colchões, sem mortes e motins desordenados”. Ou seja, uma nova ordem se instituía, regulando as situações dentro do sistema para o máximo de proveito para si próprio. Nos dizeres dos interlocutores, “a inteligência acima de tudo”.

No relato acima, fica evidente o início da expansão do PCC com prestígio e respeito - “a nova ética”. Nesse ínterim, o feito também teve repercussão no presídio feminino de Corumbá, onde as mulheres tiveram o primeiro contato com o Comando sendo alcançadas por uma retaliação que não corroboraram, pois a direção do presídio feminino limitou o contato das mulheres com os seus companheiros que estavam no presídio masculino, e os dias de visita dos seus familiares, iniciando um processo de interdição em relação à sociedade, tornando a vivência no cárcere ainda mais martirizante.

A partir desse momento, acontecem as primeiras filiações ao PCC dentro do presídio masculino, instaurando uma nova gestão local, reterritorializando o espaço e dando início a um processo de expansão no sistema prisional de Corumbá (OLIVEIRA, 2013). Alguns dos homens presos tinham companheiras no feminino. Com a filiação masculina, elas acabaram, de forma indesejada se tornando “cunhadas”, ou seja, esposa de integrante do PCC. A interlocutora Dafini, uma das “cunhadas”, conta como se davam as transferências do marido de uma cadeia para outra, a partir de 2006, por ele ser integrante do Comando:

- Meu marido foi para federal no Paraná, ficou um ano e dois meses, agora tá em Campo Grande. Quando a polícia faz a geral, quando ela pula, ela já tem o caderno, quando invadem eles têm um código (...). Eles gritam, aí o pessoal já sabe que a polícia tá entrando pra dentro! Eles ficam na redondeza, eles escutam os celulares, descobriram e nessa já estavam com o nome do meu marido para ir para federal (...) O que interessa eles levam [pessoas], o que não, eles deixam. (Dafini, mulher de integrante do PCC)

Assim, com o passar do tempo, apesar de algumas serem “cunhadas”, poucas realmente serem “irmãs”13 e um número maior, “laranjas”,14 todas elas passaram a ser obrigadas a respeitar a ética do Comando dentro do sistema prisional, como se verifica na fala de Ana, que esteve presa por duas vezes entre os anos de 2009 a 2012:

- Na época que eu tirei, tinha muita laranja, no caso que queria se aparecer, que tava ali para trabalhar para o Comando. O Comando em si não queria prejudicar ninguém; se você era uma interna e estava me devendo, ele fazia você pagar. Ele te dá prazo, “tudinho”, e se você não pagava, ele interditava você. Ninguém mais poderia vender fiado para você. (Ana, ex-detenta)

A realização de benfeitorias e a promoção de festas dentro do sistema prisional se apresentam como uma estratégia para o estabelecimento do poder de coerção da facção, sendo característico dos presídios onde a organização se territorializou (DIAS e DARKE, 2016). Como é evidenciado no comentário da interlocutora Amanda, “tinham quatro mulheres que eram do PCC; elas traziam melhorias para o presídio, faziam festas, Dia das crianças, Natal, Ano novo”.

Observa-se também uma transformação na dinâmica do território prisional sobre a teia social a partir da qual emerge o PCC, com novas formas do exercício do poder constituídas a partir de uma complexa rede de interdependência e um código comportamental (“proceder”). Todavia, as entrevistas relatam a existência de integrantes que não cumprem com a ética:

- Assim como tem no masculino, tem no feminino: eles são chamados de irmãos e as mulheres dos irmãos são as cunhadas. Melhora em parte: eles pregam a comunicação; eles não são pau no gato, de matar, sabe? Eles gostam da conversa, de entrar em um acordo. Mas de dez, você tira um que corre pelo certo, o resto quer só “putaria”, brincar... Vamos supor que a fulana entra e é irmã e eu também; ela corre pelo certo, ela quer corrigir a cadeia, quer que parem as brigas e eu não. Eu aceito vender a base, também passo, aceito a roçação,15 também roço. O PCC é contra isso! Por isso eu falo, que de dez tira um. (Maria Eduarda)

A arbitragem dos conflitos locais não se constitui uma experiência inédita, já que é próprio desse agrupamento atuar de forma a evitar a interdição dos agentes nos territórios e, com esse propósito, desenvolvem mecanismos de resolução das contendas (DIAS e DARKE, 2016). A interlocutora Ana conta que, no período em que esteve presa, a “disciplina” da facção era os “olhos do Comando dentro do presídio” para que fosse mantida a ética do PCC. Em muitos casos, a “disciplina” passava o telefone celular daquela que estava descumprindo as normas estabelecidas, para que um “irmão” realizasse uma “interdição”.

- Eu recebia minha visita com blusa decotada, minissaia e tinha umas lá que queriam arranjar confusão, e diziam que tinha uma disciplina. E é tudo coisa do Comando, né? Diziam “Ah, você tem que melhorar, se não a gente vai levar você pra linha!”. Pro telefone, né? Falei “Ixi! Manda quem você quiser falar comigo!”. Aí de noite, tava deitada lá na minha cama e chegou no telefone: “Boa noite pra nós”, disse ele. Eu disse: “Pra nós, quem? Se só tá eu aqui...” Aí ele falou assim: “A senhora está usando trajes inadequados?” Respondi: “Primeiramente, do jeito que recebo minha visita, ele adora que eu receba ele, segundo: eu não vou mudar meu jeito de ser por causa de você e nem por causa de ninguém, porque eu nem sei de onde você saiu!” Ele falou: “Você vai querer debater comigo?”

Eu disse: “Tô querendo não, já estou.” Ele disse: “Você vai descer para o semiaberto?”Ele me ameaçou! Eu disse: “Você vai querer saber o dia? Vai me matar? Lembre-se que eu não sou sozinha!”. Passou... E continuaram mandando, estes tal de irmãos. Aí veio de novo. Eu falei que não ia mudar meu jeito de ser por causa dele e por causa de ninguém. Eu disse pra ele: “Primeiro, eu não ando com droga de Comando, eu corro com as minhas perna; e, outra, se vocês prestassem, não deixariam seus irmãos, como vocês fala, passar necessidade dentro da cadeia. Quem entra para esta facção é tudo um bando de besta”. Eu não tinha medo mesmo deles! Aí passou... Daí três meses, não é que me chamaram para ser disciplina no prédio? Eu falei: “Não tô resolvendo nem o meu problema; vou resolver o problema dos outros?” Eles ficaram muito loco! Tinha a disciplina que dava os números para eles, para não haver abusos. (Ana)

A expansão do poder do PCC fez com que fosse disseminado o conhecimento do seu código comportamental no universo prisional, de forma a garantir sua hegemonia e a estabilidade da “ordem social”. Ao mesmo tempo, desencadeou uma resposta repressiva do Estado, que criou o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) (DIAS e DARKE, 2016). O regime teve efeitos em diversos presídios, inclusive no EPFCAJG, com a construção de um muro no meio do pátio onde as presas costumavam tomar sol e a implantação de celas individuais, símbolos do poder do Estado e manifestação de uma transformação em andamento.

As entrevistas mostram que a instauração do RDD também objetivou o aprisionamento em Corumbá de mulheres de maior periculosidade, principalmente as pertencentes ao PCC.

- O muro de Berlim! Nós participamos deste muro de Berlim. Foi construído para ser o RDD, o castigo. É igual ao que tem na cadeia de homem, né? Fica em cela disciplinar, né? Você não tem nada, só o esporro! Porque não tão aguentando as cobra lá, né? Porque aqui fala que Corumbá é modelo. Agora a nossa é igual à máxima do masculino. Se você entra lá, você vai chorar! Tem um monte agora de mulher batizada mesmo! As “tranquera” trouxeram o PCC pra cá. (Dafini)

- Nem quero conhecer este muro. É porque tão pegando as “tranquera” de outros presídios e tão colocando tudo aqui nesse! Aí tem que fazer muro. É a última da última! É feio, viu? A cela é toda fechada, só tem uma boqueta pequenininha onde passa a marmita e uma ventana de grade lá em cima. (Camila)

- Antes tinha só as “disciplina” do PCC; é que veio um monte de bonde16 pra cá. (Renata)

- Realmente começou a chegar em 2013 a mulherada do PCC. (Ludmila)

Segundo Dias e Darke (2016), o RDD foi criado para desarticular o PCC, mas nunca logrou esse objetivo. Antes, ele se constitui como elemento de balizamento das acomodações da relação entre o PCC e o poder público. Com relação às detentas, há duas reflexões fundamentais: para a primeira, é importante o apontamento de King e McDermont (1990), que esclarece que o fato de as remoções de presos para unidades de castigo serem consideradas atos administrativos, e não punitivos, possibilita a não explicitação dos procedimentos ou regras para essas medidas. Mesmo que denominado de ato administrativo, há um viés claramente punitivo. As mulheres presas na região e naturais de outras localidades já sofrem por estar longe de suas famílias e por todos os resultados adjacentes das circunstâncias; as que são transferidas pelo Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) então, sofrerão um peso ainda maior, de dupla punição, um claro aumento de pena. Internamente, elas são estigmatizadas, consideradas responsáveis pelo reordenamento do estabelecimento penal; externamente, estão longe de suas casas e famílias, presas em Corumbá, terra distante, em um presídio de fronteira, em uma espécie de Alcatraz17.

A segunda reflexão é fruto da primeira: com o possível crescimento exponencial do número de integrantes do PCC, e tendo o EPFCAJG a taxa de estrangeiras de mais de 40%, sem calcular o número de presas que são de regiões longínquas a Corumbá, tem-se um fator de risco para o aumento da criminalização. Entendendo ainda, que o que ocorre nos presídios é o contrário do que propõe a LEP, que objetiva proporcionar condições para a harmônica integração social, mas que na realidade prisional tem sua aplicabilidade limitada, pois os presídios apresentam uma realidade caótica - o aumento do poder social do PCC traz um controle maior sobre a cadeia. Assim, a já conhecida assistência18 do Comando repercutiu em uma reintegração criminal e não social, visto que, ao cumprirem as penas e saírem da prisão, os ex-detentos terão uma dívida com o Estado e outra com a facção.

Passar o cadastro e 'sumarear': os primeiros batizados

Corumbá foi uma das primeiras cidades do estado a receber a Força Nacional, que permanece até os dias atuais no município. O fato de ser uma localidade de fronteira e parte da mega rebelião de 2006, fez com que o aparato de combate à criminalidade passasse a estar de prontidão, com policiamento ostensivo nas ruas da cidade e agentes com fuzis na mão - o que, até então, era algo impensável para uma cidade pacata. Na região, a fiscalização nas estradas foi ampliada em nível máximo no período citado.19

- Aí veio o seguinte: depois dessa rebelião que teve, passou uns dias e a Força Nacional foi montada... Putz! Aí abalou a cidade, como já havia hasteado a bandeira no presídio e mostrado a potência da família, eles [Força Nacional] não iriam vir de qualquer jeito. Aí o que eles fizeram, eles dividiram os esquadrão para pegar as partes mais principais [os articuladores da rebelião] porque um dos paulistas era um da “geral do sistema” desse estado, então ele estava aqui, então a maioria das coisas se resolviam daqui e da máxima de Campo Grande. (Felix)

Segundo Felix, o “geral do estado” (líder do PCC no Mato Grosso do Sul) se encontrava no presídio masculino na cidade de Corumbá. Isso remete à importância da cidade na estratégia da organização, pois era dessa localidade que saíam as ordens de “partidas” para outras partes do país. E uma organização como essa, situada em uma fronteira conhecida como uma das principais portas de entradas de pasta base de cocaína para o Brasil, levou a um aumento da fiscalização do estado na região.

Nesse contexto de insegurança pública, situa-se a gênese do PCC, a partir da fundação de sua célula na localidade, como veremos abaixo:

- Aí esse paulista chegou lá e começou a lançar cadastro.

- O que é cadastro?

- Cadastro é onde vem escrito o nome completo, o vulgo de rua, o número da matrícula, tudo isso relativo à avaliação das possíveis entradas de parte da população no comando. Nesse cadastro é que você entra em avaliação ou se você é primo leal ou se você futuramente pretende ser avaliado.

- O que seria ser futuramente avaliado?

- É quando já houve o convite, mas há pessoas que já recusou a primeira oferta. Aí, a situação estava tensa porque na lista estava muita gente sumareado, para ir direto para o seguro e o coro comendo solto lá dentro (...), os caras que davam uma de maludo e iam contra a ordem apanhavam muito e mandavam para o seguro (...), daí já começou a ter as funções mais bem estabelecidas lá dentro, como piloto, disciplina da sela, o disciplina do solar (...), isso ainda em 2006. (Entrevista com Felix)

Nesse momento, a expansão do Comando na cadeia se dá por meio da força. Força essa da maioria da população carcerária, que concordava com as novas ideias provindas do lema do Comando. Os que não concordavam (os “maludos”) eram tratados com violência. O levantamento de informações (“sumarear”) de cada detento tinha por objetivo o conhecimento sobre quem eram os homens (“proceder”). O “sumareio” visava “separar o joio do trigo”, como esclarecido nas conversações.

A expansão interna do PCC nos presídios paulistas se inicia a partir de 1995 e vai até 2006, quando se consolida o domínio da facção na maioria dos presídios paulistas (DIAS e DARKE, 2016; MARQUES, 2010). Em Corumbá não foi diferente. A expressão o “coro comendo” está justamente ligada ao enfrentamento aos contrários (“maludos”). Segundo os interlocutores, a célula já estava montada na capital desde 200120. Assim, para essa expansão do Comando na região, os batismos no presídio tiveram grande representatividade.

- Para você ver como os caras eram inteligentes, aqui eram só dois [em Corumbá] e para cima21 já eram mais de 30. Aí na questão dos batismos, para quem eles deram preferência foi para os de São Paulo. Passou o cadastro para saber quem mora em São Paulo. Eu lembro mais ou menos que tinham 43 paulistas no cadastro, desses 43 paulistas tinham 7 ou 8 que não queriam batizar, outros que ficaram indecisos, eu sei que o primeiro batismo foi só batismo de paulista (...). Foram 14 caras que batizaram. Batizou hoje, no outro dia de madrugada cantou um bonde. A Força Nacional estava aí, né? Aí já levou 8 e aí ficou 6 só, os 2 primeiros que estavam aqui. Foi só eles batizarem os caras e foram embora nesse bonde (...) então batizou catorze e nesse bonde subiu eles e mais 8, aí ficou 6 irmãos batizados novos, “cruzão” paulistas, aí na marra começaram a agilizar as coisas (Felix)

Depreende-se que o PCC em Corumbá começa a se articular a partir de presos oriundos de São Paulo. Nota-se também que, a partir desse período, se dá o início da convivência de duas lógicas na cidade: a do Comando, proveniente de dentro da cadeia, e a da ordem local, proveniente das ruas de Corumbá. Percebe-se que a preferência por batizar os paulistas primeiro se deveu à falta de conhecimento da criminalidade local, ou mesmo pela maior viabilidade em batizar quem já havia vivenciado a ética em outros presídios e, por isso, teria uma maior amplitude de ação na hora de “pregar” as novas regras de conduta dentro da cadeia. É impossível comprovar isso até o momento, mas é fato que esses primeiros batizados a partir dos paulistas “deram frutos”, multiplicaram as “ovelhas dos pastores”. Após o “bonde”, que levou mais da metade dos irmãos, iniciaram-se os batismos com os primeiros corumbaenses dentro do sistema.

- No contexto da rebelião é que os caras se mostram na hora: “se você vai, nós também vamos juntos, pode contar com nós!”. Na rebelião, quem estava no comando da situação eram os paulistas que estavam ali, a partir daí é que eles começaram a ver que em Corumbá também tinha bandido. (Felix)

Mas quem foram os primeiros batizados? Quais as circunstâncias que fizeram com que as pessoas entrassem para a organização? Seria uma lógica externa se sobrepondo à lógica interna da criminalidade? Quem eram as pessoas que estavam presas naquele momento? Tais aspectos serão aprofundados no próximo tópico.

A rua

O 'gangueiro'

Percebe-se que os primeiros batizados tinham um alvo: o “gangueiro”. É necessário contextualizar em poucas linhas a questão das gangues em Corumbá, embora não seja esse o objetivo principal deste trabalho.

Desde a metade da década de 1970, iniciou-se o processo de territorialização das galeras de bairro, originando posteriormente as chamadas gangues em Corumbá. É fato que as gangues foram umas das maiores preocupações da segurança pública na localidade até meados de 2000,22 quando se iniciou o processo de extinção desses grupos. Atualmente, não se percebe mais a movimentação de jovens, outrora motivo de confusões, como acirramentos, trocas de tiros e outras.

- Qual que é o sonho do corumbaense gangueiro que entra na facção? É encontrar uma quadrilha para assaltar banco nessas cidadezinhas, aí aparecer na televisão mascarado, com um fuzilzão, esse é o sonho do corumbaense gangueiro (...), porque o gangueiro de Corumbá começa roubando bicicleta, corrente, celular... Daí o tempo vai e o pensamento deles vai evoluindo, depois já pensam em roubar banco, carro forte. (Felix)

É nesse depoimento que se inserem os atores sociais da entrevista, que estavam naquele momento na rebelião no presídio, principalmente os “gangueiros”, presos por porte de arma ou por homicídio devido às rixas entre as gangues. Um dos interlocutores da entrevista demonstra a passagem do “instinto de gangueiro” para a “ética” do Comando a partir de seu sumareio, em que foi acusado de “cagueta” por outro detento. É notória também, na ocasião, a interferência de um irmão que o conhecia da rua.

- Aí o que aconteceu? Chegou um paulista da rua que já morava em Corumbá, conhecia a ladrãozada toda de Corumbá, há muito tempo conhecido nosso, e ninguém sabia que o cara era do Comando. Quando ele chegou lá dentro, já chegou como piloto do prédio. Eu o via trocando ideias com os outros irmãos. Aí ele veio e me convidou para entrar no comando, dizendo que eu iria ser seu primeiro afilhado. Mas como eu tinha sido sumareado por uma possível caguetagem quando eu entrei no prédio, coisa que não se confirmou,23 o outro irmão o repreendeu colocando meu caráter em jogo. Aí eu cresci para cima dele dizendo que já tinham provado que eu não tinha caguetado ninguém (...). Cresci mesmo para cima dele e o acusei de estar me chamando de cagueta. (Felix)

Nesse momento, são perceptíveis a força e a coesão da nova lógica, na qual cada irmão observa o outro, sendo um os “olhos do outro”. Caso uma informação não chegue a um dos irmãos que deveria se interpor à situação, como aconteceu na desavença descrita, outro irmão teria o dever de alertá-lo sobre o erro. De acordo com essa ética, a humildade é um fator importante, que cada irmão deve ter como conduta e valor (BIONDI e MARQUES, 2010).

Há de se notar por que há preocupação do irmão em alertar sobre a situação do convite feito ao interlocutor, já que, como apontado por Biondi e Marques (2010), cada padrinho é responsável por seus afilhados. Para que o convite seja feito, o candidato a irmão deve mostrar que “corre lado a lado com o crime” (BIONDI e MARQUES, 2010), ou, nos termos locais, “o moleque tem que ser apetitoso”. É importante ressaltar que a nova lógica não se sobrepõe à lógica local do crime, mas são mescladas, formando um novo padrão da criminalidade local, como vemos na fala a seguir.

- Aí você já vê a união que os caras têm... É um defendendo o outro. Qualquer coisa que um irmão não está vendo, o outro irmão já é informado. É um cuidando o outro para ver se ele tá tapado, se tá acontecendo coisa e ele não tá vendo... E é assim que funciona! Bom, daí você viu o que aconteceu... O cara chegou e fez o convite para mim, porque ele me conhecia da rua, dizendo que botava fé em mim (...). Mas aí o outro irmão o informou do que havia ocorrido comigo, que fui sumariado (...), logo disse que a responsabilidade sobre mim era desse que havia me convidado, e tudo que eu fizesse de errado cairia sobre ele. Aí, eu fui aprendendo esse tipo de união e principalmente a ética. (Felix)

O reordenamento do crime tem início a partir da interação entre PCC e uma parcela de pessoas que integravam as gangues, como também os “boqueiros” que estavam presos naquele momento. Isso é reforçado na continuação do relato de Felix.

- Olha, retornando àquilo que eu dizia sobre as gangues, eu tenho muitos irmãos que antigamente era meu inimigo por causa das gangues, por exemplo: tem um cara que dormia do meu lado na cela, que eu tinha matado o irmão dele. No começo, eu não dormia tranquilo para te dizer a verdade, mas com o passar do tempo e o dia a dia com a ética do Comando, e a própria fidelidade que ele mostrou e eu mostrei para ele, a desavença cessou. Mas lá dentro, você sempre tem que ficar ligado, porque pode rolar trairagem. Você tem que escalar quem vai ficar do seu lado. Eu por exemplo: se eu chegar lá de novo, já me dão o piloto do prédio ou do solar de onde eu estiver. E se tiver outro irmão mais experiente do que eu lá, eu posso assumir outras funções. Então, quando você cresce dentro do crime, você chega a um lugar e já arruma um cargo, e o cargo tem que ser valorizado porque qualquer decisão você pode pagar por ela. (Felix)

A pessoa entra no presídio como “gangueiro”, “ladrão de galinha”, “comédia”. Porém, dentro do sistema ganha um novo status não só entre a “família”, “bandidagem”, mas entre a polícia. Recebe uma posição na “hierarquia”,24 como descreveu o interlocutor. Conquista uma carreira no crime por conta de seu proceder dentro e fora do presídio. Nesse momento, é nítida a transição da gangue para o crime.

- Na hora que ele saiu, ele esqueceu tudinho o que ele viveu e aprendeu e o que sofreu lá dentro, mas ele se lembra de tudinho da disciplina, hierarquia... Ele se lembra do que foi falado lá dentro. Aí quando ele sai, a primeira coisa que ele faz é falar na gangue dele (...). Aí é onde ele pulou da gangue para o crime e os gangueiros continuaram lá. Aí eles vão para cadeia e conhecem a ética e assim continua... Às vezes, podem até dizer: “Não, eu não entrei para o Comando”. Aí tá bebendo, vem alguém que já deu uma cruzada nele, aí já vai lá e sapeca. Mas não é aquele gangueirão que era, então volta de novo para lá [cadeia], ou então se envolve com os irmãos na rua que já estão roubando (...), aí a mente dele já vai mudando. (Felix)

Novamente, é perceptível a passagem pelo encarceramento como um dos principais indutores dos batizados e da disseminação da nova ética nas ruas de Corumbá, em primeira instância, e em novas localidades posteriormente. Tal conjuntura repercute em um processo de mudança no pensamento do “gangueiro”: se antes estava em comprovar qual era a gangue mais temida, arrumando confusão ou rolo com pessoas de outros bairros, a partir desses fatos, o mesmo passa a ter envolvimento com o comércio ilícito de drogas. Facilitando, portanto, a entrada dessa ética ou nova lógica em tal comércio pelas ruas da cidade, como será pormenorizado a seguir.

O processo de expansão do Comando em Corumbá

O processo de expansão do PCC na fronteira se deu a partir da busca da implantação de uma nova ética do crime, baseada em modelos de comportamento, vigilância e controle. O impacto do primeiro cadastramento é de suma importância para o entendimento da forma com que se desenvolveu a expansão, fruto de um processo de urgência, de uma força que pudesse regular as extorsões. Pretendeu-se reordenar, assim, as relações com o aparato local de enfrentamento da criminalidade e das próprias relações de vizinhança.25

- Mas me diz aí, quantas pessoas você conhece da época das gangues que se batizaram?

- Todos em Corumbá que são irmãos foram gangueiros. Depois dos batizados e os paulistas irem de bonde, a cidade inteira começou a ouvir falar da ética do Comando. Aí é a expansão: você batizou, você tem que expandir, dar fruto (...). Foi o que os paulistas fizeram aqui na cidade, foi quando eles passaram o cadastro dos primos leal, entendeu? E isso deu mais de 200 primos cara, só aqui em Corumbá: gangueiro, traficante, todos que apoiavam a ética.

- O que é um primo?

- O primo é aquele que corre junto com o comando, está lado a lado com o irmão para o que der e vier, sempre respeitando as decisões do irmão, mesmo se ele estiver errado, ele vira as costas e vai embora, mas ele vai cobrar depois do irmão a decisão. Mas se o irmão falou ele tem que acatar, porque o irmão é o espelho. O primo leal às vezes tem muito mais autonomia, autoridade e visão do que um irmão. Para você ver, eu mesmo aprendi toda ética do comando com um primo, o cara é mais novo do que eu, e até hoje o cara continua primo, e é assim cara. (Entrevista com Felix)

Nota-se a importância do primo leal nas relações de alianças e de disseminação da ética. E, como a função do primo leal não é de total submissão à família, diferente do irmão batizado, que tem uma série de compromissos com sua posição, a função se torna mais atraente para a entrada do “gangueiro”, remetendo ao movimento do Comando na rua. Dessa forma, observa-se a lógica comportamental do “gangueiro” em contraste com a nova lógica do mundo do crime, ou seja, a passagem da delinquência para o crime.

- Inclusive, tem alguns afilhados nossos aí que nós fomos fazer loucura de batizar eles com 18, 19 anos - é que quando você é batizado, você tem que expandir, dar fruto... Porque esse é o pique do auge, o cara tá bombando. Aí nem bem sai da cadeia após conhecer a ética, aí sai para a rua sem experiência né, cara... E chega no meio da gangue dele lá, aí já começa a pagar de Comando, aí toma cachaça, tá andando com outro gangueiro do lado, aí sai um tiro, aí já quer envolver a família (...). Por exemplo: eu quando saí da cadeia, tinha três afilhados; chegou um dia os caras me ligaram de madrugada, pedindo um aval para matar um cara que tinha dado uma latada no rosto de um deles, e esse cara era conhecido meu... Pô! Para eu dar um aval! Aí eu falei: “Calma aí! Não é assim!”.

Sabe por quê? Porque eu não posso dar um aval assim do nada; eu tenho que checar a outra sintonia que fecha comigo, tenho que saber a opinião de outros caras primeiro, tenho que ver a sintonia que fecha comigo antes de tomar atitude assim... Dei uma ordem para eles irem para casa deles, que eu no outro dia estaria lá pela manhã. No outro dia fui à casa deles e os excluí.

Pô, o cara me liga de madrugada pedindo um aval... Por que o cara tomou uma latada na cara? Perguntei pra ele: “Por que o cara deu uma latada em sua cara? Alguma coisa você fez ou com quem você estava? Porque se for para ele te prejudicar, ele vai te dar um tiro e não uma latada na cara”. Então, quer dizer, nós não somos mais gangueiro! Nós somos uma facção! Aí o outro achou ruim, começou a reclamar: gangueiro também! Mesmo instinto! Quer dizer, se os dois tivessem junto, eles fariam merda! (Felix)

O comportamento explícito de gangueiro, com amostras de masculinidade e violência, começa a entrar em conflito com o comportamento mais implícito e “profissional” exigido pelo Comando. A visibilidade, o reconhecimento pelo seu rival como o maioral, para seu grupo e para as mulheres como o mais forte, ou seja, o ethos masculino que o gangueiro prezava, cai por terra diante da nova responsabilidade que assume com a família após o batismo, não mais com seu grupo de bairro. Suas ações serão mais pontuais e relevantes para o crime e quase ninguém poderá ficar sabendo, já que o irmão deve ser sempre o mais humilde. Postura que não ocorreria na lógica do gangueiro.

- Este foi o início da disciplina nas gangues, sabe por quê? Olha só, o gangueiro tá lá... 18 anos dando tiro em outro gangueiro, de repente, putz! O pegaram com um revolver! Então ele vai lá pra cima, então quer dizer, ele só foi preso com uma arma, ele não matou ninguém para roubar, então ele vai direto para o convívio e é tratado com maior respeito por todos, então ele fica ali só olhando o que acontece, ele fica ali uns 45 dias ou 6 meses, por porte de arma, né? Agora, nem vai mais preso! Aí ele fica ali... E pá! Saiu! Já teve muitos que a partir disso já chegaram a mim falando que queria “morrer rolo” em tal lugar, aí eu disse para ele que nós iríamos lá pra ajudar nisso... Mas fiz uma ressalva para ele, disse para ele: “Se os moleques da outra gangue disserem que você voltou a cassar rolo com eles de novo, você já era!”. Ele concordou. E muitos gangueiros param com rolos assim, com a ajuda da família. Ce vê, hoje não tem mais gangues. O que tem, é só uma gurizadinha, porque essa gurizadinha já tem uma ideia que é o Comando que tá lá, e já pensam: “Vou ser gangueiro? Vô sair dando tiro nos outros? Não, pô!”. Não pode mais isso! E nesses embalos aí, a mente dos caras vai crescendo e vai tendo outra visão. (Felix)

O “morrer rolo”, imprescindível em outras horas para que o gangueiro pudesse transitar em regiões restritas, era feito por meio de brigas marcadas ou uma retaliação que soasse suficientemente válida entre ambas as partes, ou até mesmo por meio de uma possível união entre gangues. Essas questões foram transferidas em algum momento para a “família”,26 a ponto de haver concordância entre gangues para que “morresse o rolo” antigo. Essa situação foi de suma importância para o Comando, já que a organização estava crescendo rapidamente e precisava de livre acesso aos bairros, dificultado pelos “rolos” entre gangues. “Morrendo um rolo” aqui e outro ali, foi sendo difundida a ética e se iniciou a disciplina entre as gangues.

Nesse processo, tem significância a seguinte frase expressa por um ex-gangueiro: “Cara, a gurizada hoje não quer mais brigar, dar tiro um no outro, ela quer mais é se adiantar, ganhar dinheiro pra sair, gastar com mulher ou comprar seu pó”. O diferencial do gangueiro e do ladrão é aprofundado na fala a seguir.

- O gangueiro não liga para porra nenhuma! O gangueiro vai ali e rouba uma corrente e já acha que ele é o criminoso! Aí a primeira coisa que ele faz se ele cheira: ele compra pó e cachaça. Aí de vez em quando ele se lembra de um kennerzinho [chinelo da moda], uma bermudinha... Agora, o ladrão já não, né? Ele quer se adiantar. Ele não sai para fazer cena, para ganhar menos de mil reais, não! Também, ele dá uma na semana ou uma no mês, às vezes dá uma cacetada ali e ganha dois mil reais. O assalariado fica com dois mil reais por quatro meses; ladrão no outro dia já não tem quase nada. Mas você vai ver a casa do cara, ele tem tudo o que ele quer. Por que o gangueiro se preocupa com a visão? Porque ele quer ter fama, ele quer que todo mundo fale assim dele: “Putz, você viu fulano? Ele chegou no meio de todo mundo e arrancou o revolver e largo bala”. Aí o cara fica até rindo, alegre quando fala. Agora, o ladrão não, ele gosta de falar assim, ele chega a você e diz: “Me empresta cinco reais para eu comprar uma carne ali”. Mas se você olhar no bolso dele, tá cheio de dinheiro, a geladeira dele tá cheia, mas ele não gosta da visão, ele quer que todo mundo tire o olho dele. Mas esse pensamento que eu tenho é depois de muito sofrimento, agora imagina se um guri de 18 anos adquire esse pensamento, ele vai ser o melhor dos bandidos! Chega à minha idade, o cara já até abriu uma firma própria para lavar dinheiro. (Felix)

A frase exemplifica a visão de que entrar para o Comando constitui uma espécie de profissionalização do criminoso, um rito de passagem do gangueiro para o bandido, ilustrado na ideia da lavagem de dinheiro por meio da abertura de uma firma própria, a criminalidade “empreendedora”. Enquanto o gangueiro se limita a circunstâncias presentes, o bandido tem seus olhos no futuro. A mudança dessa visão por parte de muitos gangueiros se deu a partir da entrada do Comando na região, norteada pela expansão do conhecimento da ética no meio das “galeras” dos bairros de Corumbá. Nesse ínterim, o Comando iniciou um processo de estruturação da organização nos bairros e a transnacionalização para o país vizinho, a Bolívia.

A transnacionalização do PCC a partir do presídio de fronteira

Juan, ex-detento preso em dois períodos entre 2007 e 2011 no presídio Carceleta Bahia, em Puerto Suarez, cidade boliviana limítrofe do Brasil, explicou as mudanças ocorridas nesse lapso de tempo no presídio. A conversa, informal, trouxe uma surpresa: as transformações se deram por meio da presença do PCC no presídio boliviano, principalmente entre a primeira e a segunda vez em que havia estado preso. Juan exemplificou com um episódio ocorrido durante sua segunda permanência na prisão:

- Certa vez houve uma discussão entre um homem e uma mulher, e o PCC julgou, ouviu a cela e o homem foi culpado pelas testemunhas. Ele foi cobrado (...). Quando há desentendimentos, o PCC chama para ouvir as partes, fazendo o papel de juiz, sabe?. (Juan, ex-detendo em Carceleta Bahia)

O termo “cobrado” é outro fator da fala de Juan que ilustra as atividades do PCC na cadeia. A expressão, segundo Biondi e Marques (2010), difere de punição, dizendo respeito a uma das possíveis consequências dos atos de alguém. O termo retrata o compromisso de agir de acordo com a disciplina do Comando.

Muitas mulheres na Carceleta Bahia foram presas juntamente com seus maridos.27 Dessa forma, se, por um desentendimento, um homem acaba desrespeitando a mulher de outro preso, pode ser “cobrado”. O PCC chama o desrespeito à mulher de outro preso de “talaricagem”, e o autor do ato, “talarico”. Por desrespeito entende-se uma ampla e variada gama de atitudes, que inclui formas de se dirigir à mulher, olhares, proximidade, encontros, esbarrões e outros (DIAS e DARKE, 2016).

Juan, ao discorrer sobre a Carceleta Bahia e a estrutura hierárquica prisional, descreve as influências do PCC na disciplina da cela, que, na conjuntura organizacional do presídio boliviano, tem exatamente a mesma função da estabelecida nas cadeias brasileiras onde há a presença do Comando. Ou seja, mantêm o controle e a disciplina.

O interlocutor relatou ainda que, na época da sua segunda prisão, havia dois integrantes do PCC na Carceleta Bahia. Um deles era brasileiro e havia estado preso no Presídio Masculino de Corumbá, mas, quando foragido em território boliviano, acabou preso novamente. Já o outro Juan denominou de chefe do PCC na Bolívia. Disse que os dois tinham a admiração da cadeia e que, frequentemente, o Comando dava drogas para todos, contratava advogados e até “pagava a polícia para deixar a droga entrar, como também o celular”.

Dias e Darke transcorrem sobre as estratégias do PCC para alcançar o domínio e o poder no sistema prisional: tal reordenamento só é possível com a colaboração de lideranças da população carcerária, obtida em negociações e, “portanto, com a repartição do poder entre administradores e presos e de um reconhecimento informal de estruturas de poder arbitrárias que emergem no seio da população encarcerada a partir de múltiplas disputas de poder”. (DIAS e DARKE, 2016, p. 217)

A questão do poder se apresenta fundamental. Foi o que atraiu Juan: “O que me atraiu no PCC foi o poder (...) pois sempre que chegava alguém que era do PCC, ouvia dizer: 'é do PCC!'. Aí, os irmãos tinham prioridade com droga, com o espaço”. Segundo Saquet, a expressão geográfica do poder social é a territorialidade, usada para influenciar ou controlar recursos, fenômenos, relações e pessoas (2007, p. 83). Nesse contexto, as territorialidades do PCC na Carceleta Bahia tinham dois grandes objetivos: o primeiro era reorganizar o espaço por meio do domínio, o que o entrevistado chama de “pacificar”. O segundo grande objetivo é percebido na frase de Juan: “Eles procuravam soldados, homens que apoiassem eles”. Explicou que a intenção era que os soldados no presídio, após o período prisional, “apoiassem as ações que eles [o PCC] fazem na Bolívia”.

A procura de soldados consiste na análise de cada preso feita por alguém do Comando.28 Com a escolha e aceite do novo membro, é realizada a indicação para o início do processo de filiação e batismo, em que o novo integrante deve jurar fidelidade ao PCC. São um código comportamental e uma ética próprios, que devem ser seguidos pelos integrantes. Caso haja transgressão a essas normas, os outros irmão fazem a cobrança e, dependendo da gravidade, a punição pode ser a expulsão da organização e, em casos extremos, a execução (DIAS e DARKE, 2016).

Os batismos transnacionais aparecem em pesquisas recentes com bolivianos, peruanos e colombianos que se filiaram ao PCC. As formas de organização e vivência no cárcere em Puerto Suarez mostra, no mínimo, uma influência do PCC na Carceleta Bahia. Mas é provável que a organização tenha exercido controle direto sobre as ações do tráfico dentro e fora das prisões na Bolívia.

Conclusão

A presente pesquisa objetivou compreender como se deu a expansão e a transnacionalização do PCC na fronteira entre Brasil e Bolívia. O PCC teve início nos presídios paulistas e sofreu rápida disseminação, devido aos inúmeros problemas prisionais e consequentes rebeliões - com ênfase, neste estudo, para a mega rebelião de 2006. O ethos da organização alcançou vertiginosa expansão nos presídios de Corumbá e, progressivamente, passou a instaurar uma nova ordem intramuros, trazendo aparente resolução para problemas como extorsões, estupros e violência.

As ações do PCC instauraram, como mostram os relatos, um novo modo de resolução de conflitos nos presídios de Corumbá e de Puerto Suarez, baseado no debate: reuniões com data e hora marcada visando decidir a culpa e a forma de penalização. Introduziu-se, assim, uma nova forma de convivência nas prisões.

O estudo também apontou que as mudanças ocorridas a partir de 2006, com a entrada progressiva da facção a partir dos presídios da região, corroboraram a transformação da dinâmica local de venda de drogas, antes baseada nas relações pessoais e de vizinhança, inserindo uma nova lógica de lealdade ao Comando. Foram verificadas importantes mudanças na estruturação do comércio ilícito na cidade e nos relacionamentos e lealdades que se forjaram a partir da nova ética introduzida pela organização, primeiramente no presídio e, posteriormente, em seu transbordamento para as ruas e para a fronteira.

Assim, o reordenamento territorial do crime por meio do PCC obteve uma expansão para além dos presídios no Brasil. A ampliação do controle sobre a distribuição de drogas para o varejo - não só no estado de São Paulo, onde se deu seu nascimento, mas por diversas regiões do Brasil, inclusive Corumbá - trouxe fortalecimento financeiro e político à organização, na medida em que passou a exercer controle, direto ou indireto, sobre as bocas. Pode-se afirmar que, hoje, o PCC exerce domínio sobre o “mundo do crime” em Corumbá e, em expansão, na Bolívia. Esse domínio se materializa por meio de novas redes de sociabilidade que emergem das relações de poder e se apresentam como demarcações de território que vão além das fronteiras.

Por fim, é importante ressaltar que, no decorrer desta pesquisa, naturalmente, os atores sociais envolvidos com o objeto de estudo falavam sobre a temática com a espontaneidade de quem vivenciara as consequências dos atos da organização nos contextos intra e extramuros. Nas conversações na Bolívia, compreendeu-se a capacidade que a fronteira tem de transnacionalizar não só organizações legais, mas também ilegais. A dinâmica da estrutura organizacional do PCC consolidada no Brasil levou a um reordenamento do tráfico de drogas, por meio dos presídios, para além das fronteiras, adentrando possivelmente não só a Bolívia, mas também outros países limítrofes.

Referências

ADORNO, Sérgio [e] SALLA, Fernando. (2007), “Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC”. Estudos Avançados, Vol. 21, nº 61, pp. 7-29.

BIONDI, Karina [e] MARQUES, Adalton. (2010), “Memória e historicidade em dois 'comandos' prisionais”. Lua Nova, nº 79, pp. 39-70.

BRASIL. (1984), Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Seção 1, Brasília, DF. Disponível (on-line) em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm

COSTA, Gustavo [e] OLIVEIRA, Giovanni. (2014), “Esquemas de fronteira em Corumbá (MS): Negócios além do legal e do ilegal”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Vol. 7, nº 2, pp. 207-232.

DIAS, Camila Caldeira Nunes. (2011), Da pulverização ao monopólio da violência: Expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese (doutorado), PPGS, USP.

________ [e] DARKE, Sacha. (2016), “From Dispersed to Monopolized Violence: Expansion and Consolidation of the Primeiro Comando da Capital’s Hegemony in São Paulo’s Prisons”. Crime Law and Social Change, Vol. 65, pp. 213-225.

GUIMARÃES, Caroline Krüger. (2014), Presídio de fronteira: Reintegração social das detentas no sistema carcerário em Corumbá-MS. Dissertação (mestrado), PPGEF, UFMS.

IBGE. (2016), Informações sobres os municípios brasileiros. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível (on-line) em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ms/corumba/panorama

KING, Roy [e] MCDERMOTT, Kathleen. (1990), “My Geranium is Subversive: Some Notes on the Management of Trouble in Prisons”. British Journal of Sociology, Vol. 41, nº 4, pp. 445-471.

MARQUES, Adalton. (2010), “Liderança, proceder e igualdade: Uma etnografia das relações políticas no Primeiro Comando da Capital”. Etnográfica, Vol. 14, nº 2, pp. 311-335.

OEA. (2013), The Drug Problem in the Americas. Organização dos Estados Americanos, Washington, DC, OAS. Disponível (on-line) em: https://www.oas.org/documents/eng/press/introduction_and_analytical_report.pdf

OLIVEIRA, Giovanni França. (2013), Nas bocas da cidade de Corumbá-MS: O comércio de drogas na fronteira Brasil/Bolívia. Dissertação (mestrado), PPGEF, UFMS.

OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de. (1998), Uma fronteira para o pôr-do-sol: Um estudo geoeconômico sobre uma região de fronteira. Campo Grande, UFMS.

________. (2009), “Os elos da integração: O exemplo da fronteira Brasil-Bolívia”. Em: COSTA, Edgar Aparecido da [e] OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado (orgs.). Seminário de Estudos Fronteiriços, Campo Grande, UFMS, pp. 45-60.

SAQUET, Marco Aurélio. (2007), Abordagens e concepções de território. São Paulo, Expressão Popular.

Notas

1 Os dados apresentados neste trabalho são resultado de duas dissertações de mestrado (OLIVEIRA, 2013; KRÜGER, 2014). Tais estudos tiveram como lócus de pesquisa as chamadas “bocas de fumo” e o sistema prisional de Corumbá. As pesquisas ocorreram entre os anos de 2010 a 2014 na região fronteiriça de Corumbá-Ladário, no Brasil, e Puerto Suarez-Puerto Quijarro, na Bolívia.
2 Categoria usada na Bolívia como referência a pessoa envolvida no “mundo do crime”.
3 Ritual em que é marcada a passagem de “primo” para “irmão”, caracterizando a entrada na facção.
4 Optamos por usar pseudônimos nos nomes dos interlocutores presentes neste artigo, para preservação da identidade dos mesmos.
5 As entrevistas foram realizadas entre 2010 a 2013. Os principais interlocutores da pesquisa foram chefes de pontos de venda de drogas na cidade de Corumbá, integrantes ou não do PCC.
6 Regime de relações que permite que uma iniciativa, ideia, ato ou enunciado de alguém acione uma cadeia imitativa que ressoe, não sem resistência e adaptações, entre os que estão “na mesma caminhada”.
7 “Irmãos” são as pessoas que são filiadas ou “batizadas” no PCC.
8 “Disciplina”, “piloto” ou “palavra” são postos de liderança locais dentro do PCC, seja em determinada unidade prisional ou determinado bairro ou comunidade dominados pela organização. Tem função de manter o controle e a disciplina, de acordo com as regras da organização (DIAS e DARKE, 2016).
9 “Irmão” batiza outro “irmão”, e carrega a responsabilidade de trazer este novo membro ao PCC. Ver Biondi e Marques (2010).
10 O “novo sistema” ou a “ética” é o discurso de “paz, justiça, liberdade, igualdade e união” proveniente das prisões de São Paulo, que se expande a partir do presídio local.
11 São indivíduos que possuem prestígio dentro do “mundo do crime”.
12 Metido a ser forte e valente, que não teme a ninguém.
13 Mulheres integrantes do PCC.
14 Pessoas que trabalham para o PCC, mas não são filiadas à facção. No caso de funções puramente técnicas, que não demandam grande conhecimento da estrutura e da dinâmica da organização, não há a obrigação de se integrar ao PCC por meio do batismo, que implica um compromisso com a organização (DIAS e DARKE, 2016).
15 Termo utilizado para se referir ao lesbianismo na cadeia.
16 Transferência de uma cadeia (ou presídio) para outra.
17 Termos utilizados pelos presos ao se referir ao presídio de Corumbá, fazendo alusão à ilha localizada no meio da Baía de São Francisco na Califórnia, EUA, que inicialmente foi utilizada como base militar e, mais tarde, convertida em uma prisão de segurança máxima.
18 Embora não se peça nada em troca diretamente, espera-se lealdade da pessoa auxiliada, retribuição do favor - o que pode ocorrer na forma e na hora que convier ao comando. Por conta dessa vinculação indireta e obrigatória do beneficiado, muitos presos cujas famílias estão em extrema necessidade, sem condições de efetuar visitas e sem acesso a uma alimentação minimante decente, recusam-se a recorrer ao PCC.
19 Somente foi observado uma postura dessa magnitude, do aparato de segurança do estado na localidade, em 2011, a partir da ocupação da polícia e das Forças Armadas no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, onde houve um aumento considerável da fiscalização na fronteira. Como consequência, a população local se revoltou, devido às arbitrariedades cometidas por parte dos agentes de segurança.
20 Isso é uma hipótese que necessita de mais estudos.
21 Presídio de segurança máxima de Campo Grande.
22 Dados coletados por meio de pesquisas recentes sobre as referidas gangues em Corumbá. Ainda é difícil precisar o contexto do surgimento e os motivos, mas, ao que parece, um dos marcos seria os anos da década de 1980.
23 Após o “sumareio”, foi constatado que o acusador foi a pessoa que tinha “caguetado”, e não o interlocutor.
24 Para um debate mais aprofundado sobre essas relações conflitantes entre hierarquia e sua negação, ver Biondi e Marques (2010).
25 As relações de vizinhança são os acordos tácitos e relações morais estabelecidos cotidianamente na cidade de Corumbá, principalmente entre bocas, policiais, moradores sem ligação com o mundo do crime e o PCC. Ver Oliveira (2013).
26 Sobre esse aspecto, são necessárias mais pesquisas para entender como a transição se deu em detalhes.
27 Nos presídios bolivianos, as mulheres ficam em celas separadas dos homens. Porém, compartilham o mesmo pátio, o que pode ocasionar acirramento de ânimos. Ver Guimarães (2014).
28 A preocupação em não se convidar qualquer um para a organização se deve à responsabilidade. Quem faz o convite se torna padrinho do convidado (afilhado) e corresponsável por suas ações. Para ser soldado, “o candidato a irmão deve mostrar que corre lado a lado com o crime” (BIONDI e MARQUES, 2010).

Autor notes

GIOVANNI FRANÇA OLIVEIRA (gi_oliveira@outlook.com) é pesquisador do Observatório de Violência e Sistema Prisional da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS Campo Grande, Brasil) e pesquisador colaborador do Núcleo de Pesquisas Urbanas (NaMargem) do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar, Brasil). É mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Fronteiriços(PPGEF) da UFMS e graduado em história pela mesma universidade.
CAROLINE KRÜGER (kruger@usp.br) é assistente de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, Brasília, Brasil) e pesquisadora do Centro de Estudos em Gestão e Políticas Públicas Contemporâneas (GPublic, Ribeirão Preto, Brasil) e do Golden for Sustainability Brazil (Ribeirão Preto, Brasil). É doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Administração de Organizações (PPGAO) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil), mestre pelo PPGEF da UFMS e graduada em administração pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL, Brasil).
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por