Resumo: O século XVIII, na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, com sede episcopal na cidade de Natal, é o período para refletir sobre o estatuto da educação da criança enjeitada (e da criança súdita em geral) fora da escola e por meio da escola. O trabalho, na análise do corpus documental circunscrito ao século XVIII, alicerça-se no entendimento de Norbert Elias (1980; 2006) relativo aos processos de dependências e interdependências que ligam as pessoas e no conceito de figuração. Em termos de conclusão, a análise histórica a que se procedeu evidencia que o estatuto da educação dos bons costumes fora da escola sobrepujou, nesse século XVIII, a conservação da ordem sociorreligiosa vigente. A exceção deveu-se à criação das cadeiras públicas de Gramática Latina (1731) e de Primeiras Letras (1793), devido à insistência dos Oficiais do Senado da Câmara de Natal em recíproca interdependência com os pais de crianças e de jovens.
Palavras-chave:Criança enjeitadaCriança enjeitada, Criança súdita Criança súdita, Educação Educação, Século XVIII Século XVIII.
Abstract: The 18th century, in the Parish of Our Lady of the Presentation, with episcopal headquarters in the city of Natal, is the period to reflect on the statute of the education of the refused child (and the underdog child in general) outside the school and through the school. The work, in the analysis of the documentary corpus circumscribed to the 18th century, is based on Norbert Elias's (1980; 2006) understanding of the processes of dependencies and interdependencies that bind people and the concept of figuration. In terms of conclusion, the historical analysis that has been operated evident that the statute of education of good customs outside of school overcame, in the 18th century, the preservation of the current socio-religious order. The exception was the creation of the public chairs of Latin Grammar (1731) and of First Letters (1793), due to the insistence of the Officers of the Municipal Council of Natal in reciprocal interdependence with the parents of children and young people.
Keywords: Refused child, Underdog child, Education, 18th century.
Resumen: El siglo XVIII, en la Feligresía de Nuestra Señora de la Presentación, con sede episcopal en la ciudad de Natal, es el período para reflexionar sobre el estatuto de la educación del niño rechazado (y del niño desfavorecido en general) fuera de la escuela y por medio de la escuela. El trabajo, en el análisis del corpus documental circunscrito al siglo XVIII, se fundamenta en el entendimiento de Norbert Elias (1980; 2006) relativo a los procesos de dependencias e interdependencias que unen a las personas y al concepto de figuración. En términos de conclusión, el análisis histórico a que se ha procedido evidencia que el estatuto de la educación de las buenas costumbres fuera de la escuela sobrepujó en ese siglo XVIII la conservación del orden socio-religioso vigente. La excepción se debió a la creación de las asignaturas públicas de Gramática Latina (1731) y de Primeras Letras (1793), debido a la insistencia de los Oficiales del Senado de la Cámara de Natal en una recíproca interdependencia con los padres de niños y jóvenes.
Palabras clave: Niño rechazado, Niño desfavorecido, Educación, Siglo XVIII.
A educação da criança enjeitada e da súdita na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (Natal, século XVIII)
The education of the refused and underdog child in the Parish of Our Lady of the Presentation (Christmas, XVIII century)
La educación del niño rechazado y desfavorecido en la Feligresía de Nuestra Señora de la Presentación (Natal, siglo XVIII)
Recepção: 19 Fevereiro 2018
Aprovação: 06 Março 2018
Ao começar o século XVIII, o Rio Grande do Norte constituía uma Capitania subordinada ao governo de Pernambuco (Carta Régia de 11 de janeiro de 1701), tendo sido anteriormente subordianada ao governo e ao bispado da Bahia. Nos termos dessa Carta Régia, conforme o historiador Tavares de Lyra (1998, p. 159), a Capitania deixou de ser diretamente submissa ao governo da Bahia “[...] para ficar sujeita ao governo de Pernambuco, que estava mais próximo, e ser assim conveniente à boa administração da justiça e bem dos vassalos”. Para fazer cumprir as determinações do “governo” da Igreja Católica Apostólica Romana, a Capitania, desde meados do século XVII (1676), estava eclesiasticamente subordinada ao Bispado de Pernambuco.
Especialmente na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação − entre os anos de 1598 a 1614 −, os dogmas católicos, articuladamente com os procedimentos da Religião Católica, Apostólica e Romana, estariam lentamente sendo transmitidos mediante as atividades religiosas da pequena e rústica capelinha assistida pelo vigário Gaspar Gonçalves Rocha (desde 1598) e pela capelinha do Forte do Reis Magos, com a celebração da primeira missa pelo padre Gaspar de Sampéres (jesuíta que traçou a planta da construção do Forte). Também nesse período, registra-se a elevação da cidade à Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.
A Igreja da Matriz de Natal (sob a invocação de Nossa Senhora da Apresentação, Santa Padroeira da Freguesia) esteve sempre aberta às orações e aos cultos católicos de seus pouquíssimos fiéis moradores, quer fossem de cor branca, negra, mestiça, crioula (em sua maioria gente pobre), quer fossem indígenas ou escravos que se situavam nos estratos inferiores daquela formação social. Nos estratos superiores (senhores de terras e de escravos) encontravam-se homens e mulheres geralmente de cor branca.
Conforme Macêdo e Araújo (2013, p. 603), uns e outros estratos sociais eram definidores do certificado jurídico de gente livre, escrava, indígena e forra. Mas “[...] a cor (negra, mestiça e crioula) excluía e inferiorizava em qualquer lugar da sociedade escravista”. Quando acrescentada às crianças súditas, sobressai o certificado jurídico de criança legítima, ilegítima, enjeitada ou exposta, órfã, indigente e de criança livre do cativeiro.
Por tudo isso, e para além disso, o texto de Cascudo (1980) traduz o atraso cultural e o acanhamento da sede administrativa, política e eclesiástica da Capitania (cidade de Natal) nos primeiros trinta e quatro anos de existência. O historiador, implacável com o governo dos monarcas portugueses, era rigoroso em sua avaliação:
Os trinta e quatro anos de cidade, 1599-1633, foram lentos, difíceis, paupérrimos. Interessava ao Rei o Forte, a situação estratégica, o ponto militar de defensão territorial. [...] Cidade apenas no nome. Uma capelinha de taipa forrada de palha e os moradores viviam espalhados nos sítios, e ao redor [...]. Os senhores de terra, dominadores de centos de braças, com alagados, currais de gado, pescarias, negros da Guiné, viviam na labuta, vindo raramente à cidade (CASCUDO, 1980, p. 37 e 32).
Em meados do século XVIII, a Capitania do Rio Grande do Norte reunia, pelo menos, dez Freguesias situadas nos núcleos de população onde mais rapidamente se desenvolviam, sendo, por conseguinte, escolhidas como sede episcopal de irradiação da fé, da unidade religiosa e, ainda, para Cascudo (1955, p. 8), “[...] do poder centralizante de união coletiva e católica da comunidade religiosa e civil”.
Assim viria o ritual de criação das Freguesias por ato político dos monarcas portugueses: Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (cidade de Natal −1601); Freguesia de São João Batista (povoação do Açu − 1726); Freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Ana (povoação de Caicó – 1748); Freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres (povoação de Goianinha − 1749); Freguesia de Nossa Senhora da Conceição (povoação de Pau dos Ferros – 1756); Freguesia de São João Batista (vila de Arez − 1760); Freguesia de São Miguel (vila de Extremoz – 1762); Freguesia de Nossa Senhora da Conceição (vila de Portalegre − 1764); Freguesia de Nossa Senhora do Ó (vila de São José − 1762) e a Freguesia de São João Batista (vila do Apodi – 1766).
Por sua vez, a Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, provida pela Matriz de Nossa Senhora da Apresentação (ladeada pelas capelas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Senhora Sant’Ana, Senhor Bom Jesus das Dores, Nossa Senhora da Conceição, São Gonçalo, Santo Antonio, São Miguel e outras) responderia pela jurisdição eclesiástica consagradora de uma formação religiosa e social uniforme. Pelas pesquisas de Vicente de Lemos e Tarcísio Medeiros (1980), por essa época, a Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação estava provida de 1 Matriz, 9 Capelas e em torno de 12 párocos. No ano de 1759, o Corregedor Domingos Monteiro da Rocha estimou a cidade sede da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação com cento e dezoito fogos (famílias).
Nesse século XVIII, e mais ainda no século XIX, pelas pesquisas de Cascudo (1955) e de Lyra (1998), as Freguesias multiplicaram-se pelo território do Rio Grande do Norte, comumente ladeadas por pequenas igrejas e capelas, com a invocação a santas e santos bíblicos.
As Freguesias (Paróquias) eram assistidas por um vigário (por vezes também um pároco), com o dever de cumprir, com regularidade, as celebrações religiosas (missas, novenas, procissões, desobrigas), além de exercitar os Sacramentos do Batismo e do Matrimônio, principalmente, como inamovível maneira de promover uma educação dos bons costumes. Além do mais, Cascudo esclarece:
O vigário era o elemento letrado, ensinador das ‘primeiras letras’ e das iniciais declinações latinas, orientador íntimo de casamentos e pacificador das discórdias familiares, padrinho de uma parte da população e compadre da metade restante (CASCUDO, 1955, p. 11, grifo do autor).
De modo geral, a história das obrigatoriedades das Freguesias, mediante o trabalho religioso e profissional dos vigários párocos, estaria deveras harmonizada com a própria história da complexa gerência administrativa, política, eclesiástica, econômica e cultural da Capitania do Rio Grande do Norte naquilo que se pode entrever como relações sociais de dependências e interdependências ao sistema político do Estado Português e ao “governo” eclesiástico da Igreja Católica Apostólica Romana.
Para Cascudo (1955, p. 12), o município era a segunda etapa da instância administrativa e política. A primeira etapa “[...] era a Paróquia, a Freguesia consagradora do esforço cristão e uno [...] de uma família onde todos os membros estavam ligados pelo liame poderoso da unidade religiosa”. Um e outro, para Cascudo (1955a, p. 52), estariam representados “[...] no plantio da cidade com seus elementos essenciais e primitivos”.
Por seu turno, o plantio da cidade de Natal com seus elementos essenciais e primitivos decorreu da “conquista” da Capitania do Rio Grande do Norte (25 de dezembro de 1597); do início da construção do Forte no dia dos Santos Reis Magos (6 de janeiro de 1598), por determinação do El-Rei Dom Felipe II da Espanha (1580-1598) e da reconstrução da Casa do Senado da Câmara de Natal na rua fronteira à Igreja da Matriz (1675-1676). Tudo isso conjugado com o lento povoamento da “Cidade dos Reis”, da “Cidade de Santiago” ou ainda da “Cidade do Rio Grande”, que, posteriormente, receberia a denominação de “Cidade de Natal”, com a celebração da primeira missa, no dia de Natal, 25 de dezembro de 1599.
O presente trabalho é um dos produtos de uma pesquisa em desenvolvimento, voltada para uma história social da criança no Rio Grande do Norte nos séculos XVIII e XIX, propiciada por um corpus documental (assentos de batismo de crianças enjeitadas ou expostas na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, Cartas dos Oficiais − Vereadores −, do Senador da Câmara de Natal, pareceres dos membros do Conselho Ultramarino do Estado Português, além dos decretos do Concílio Ecumênico de Trento 1545-1563 e das resoluções das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707), para o entendimento do estatuto de uma educação de bons costumes fora da escola e igualmente no âmbito da escola, observando a forma escolar de educar coletivamente.
A educação da criança fora da escola, por seu caráter de socialização de bons costumes cristãos, deveria obedecer regras e prescrições gerais interdependentes, uniformes e universalizadas por intermédio dos documentos eclesiásticos, principalmente. Para esse trabalho, objetiva-se refletir acerca do estatuto da educação dos bons costumes da criança enjeitada ou exposta (como primeiro plano) que se estenderia às crianças súditas em geral, bem como os expedientes ordinários dirigidos à transição da educação dos bons costumes das crianças em geral fora da escola, em proveito da institucionalização da forma escolar de educar coletivamente pela escola.
O trabalho, no que se refere à análise do corpus documental circunscrito ao século XVIII, por um lado, alicerça-se metologicamente no entendimento de Norbert Elias (1980, p. 109) quanto aos processos de “[...] dependências e interdependências que ligam as pessoas e que se situam entre os aspectos mais elementares da vida humana”. Por outro lado, alicerça-se no conceito de figuração do próprio Norbert Elias (2006), por referir-se expressamente aos seres humanos numa dada formação social. Para evidenciar os aspectos das peculiaridades e das singularidades estruturais do que nomeia por figuração entre os seres humanos, o autor assim define:
Há figurações de estrelas, assim como de plantas e de animais. Mas apenas os seres humanos formam figurações uns com os outros. O modo de sua vida conjunta em grupos grandes e pequenos é, de certa maneira, singular e sempre co-determinado pela transmissão de conhecimento de uma geração a outra [...]. Os seres humanos, em virtude de sua interdependência fundamental uns dos outros, agrupam-se sempre na forma de figurações especificas (ELIAS, 2006, p. 25 e 26).
Por conseguinte, refletir acerca da educação da criança enjeitada, e por extensão da criança súdita de uma maneira geral, visando a uma história social da criança no Rio Grande do Norte no século XVIII é, inclusive, meditar sobre os modos de viver em situações de permanências versus mudanças, além de relancionar-se inter e entre os segmentos políticos, sociais e culturais, no estrito limite dos aspectos mais elementares da vida humana.
No século XVI, a Igreja Católica, mediante as deliberações do Concílio Ecumênico de Trento (1545-1563), ordenava aos párocos que, para o “governo do povo cristão”, houvesse livros cuidadosamente guardados para o devido assento do Sacramento do Batismo dos recém-nascidos. Para a eficácia do assento do Sacramento do Batismo, em suas dependências e interdependências que ligavam procedimentos, instituições e indivíduos, seria indispensável que o páraco,
[...] antes de conferir o Batismo,[se informesse] minuciosamente das pessoas [às quais] pertença o batizado, e das pessoas eleitas para padrinhos, e somente a estes [admitisse] para a cerimônia, escrevendo seus nomes no LIVRO, e declarando-lhes o parentesco que contraíram, para que não [pudessem] alegar ignorância alguma (CONCÍLIO ECUMÊNICO DE TRENTO, s/d. p. 162, grifo nosso).
A partir das deliberações do Concílio Ecumênico de Trento, o 5° Arcebispo do Brasil, Dom Sebastião Monteiro da Vide (assessorado por uma equipe de peritos católicos), dirigiu a elaboração das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, propostas e aceitas em Sínodo Diocesano de 12 de junho do ano de 1707. Segundo Casimiro (2005), nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, figurou um conjunto de resoluções que perdurou por mais de dois séculos como um verdadeiro tratado jurídico, pedagógico e evangelizador da Religião Católica. Para a eficácia do assento do Sacramento do Batismo, assim prescrevia minuciosamente o processo a se seguir:
Para que em todo o tempo possa constar do parentesco espiritual que se contraiu no Sacramento do Baptismo, e da idade dos batizados, ordena o Sagrado Concilio Tridentino, que em um LIVRO se escrevam seus nomes, e de seus pais, e mais e dos padrinhos. Pelo que conformando-nos com a sua disposição, mandamos que em cada Igreja do nosso Arcebispado haja um LIVRO encadernado feito à custa da fábrica da Igreja, ou de quem direito for, o qual LIVRO será numerado, e assignado no alto de cada folha por nosso Provisor, Vigário Geral, ou Visitadores, e na primeira folha se declarará a Igreja d'onde é, e para o que há de servir; e na última se fará termo por quem o numerar, em que se declare as folhas que tem, e estará sempre fechado na arca, ou caixões da Igreja debaixo de chave [...]. E ao pé de cada assento se assignará o Pároco, ou Sacerdote, que fizer o Batismo, de seu sinal costumado (CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1707; 2007, p. 28-29, grifo nosso).
Em 10 de dezembro de 1730, o Reverendo Pároco da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, Manoel Correia Gomes, escreveu uma carta ao Rei de Portugal, Dom João V, suplicando um pedido de ajuda para prover e paramentar a referida Matriz com objetos tidos como necessários para as celebrações e os atos religiosos católicos, como duas pias colaterais de batizar.
Dois anos depois (8 de agosto de 1732), o Provedor da Fazenda Real do Rio Grande do Norte, Domingos da Silveira, foi notificado por despacho do Conselho Ultramarino sobre a carta do Reverendo Pároco que dizia o seguinte:
Dom João por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves d’aquém e d’além mar em África senhor de Guiné. Faço saber a vós Provedor da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande, que o pároco da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, dessa mesma Capitania, Manoel Correia Gomes, me representou em carta de dez de dezembro do ano de mil setecentos e trinta a necessidade que aquela Igreja tinha de uma custódia e de uma âmbula para o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, de uma ajuda de custo para se forrar o Altar-mor, que está indecente e de um sacrário, como também de um túmulo para aferia sexta [ímpares] de castiçais de prata, jarras para ramalhetes, grade para a sagrada comunhão, cruz para o altar, e como forma de consagração duas pias colaterais de batizar, um lavatório para a sacristia, de roupas para os altares e celebrantes, de um todo rico de cor vermelha e branca para o festivo das solenidades e outro verde para os domingos; outro vermelho para os mártires, tanto para a Capela-mor como para os dois colaterais, para o púlpito e pavilhões do sacrário. Como também me pede acrescentamento da ordinária da fábrica daquela Igreja, pois tem somente oito mil réis por ano; e para as referidas despesas não pode concorrer aquele povo, pela sua grande inópia. Pareceu-me ordenar-vos informeis como vosso parecer. Lisboa, 8 de agosto de 1732 (DESPACHO DO CONSELHO ULTRAMARINO AO PROVEDOR DA FAZENDA REAL DO RIO GRANDE DO NORTE DOMINGOS DA SILVEIRA, 1732, fl. 1, grifo nosso).
Em 14 de dezembro de 1732, o Provedor da Fazenda Real do Rio Grande do Norte, também por carta, respondeu ao Rei Dom João V acerca do pedido de ajuda do Reverendo Pároco para prover e paramentar a Matriz de Nossa Senhora da Apresentação. Nesse processo de subordinação e de interdependência da Capitania do Rio Grande do Norte ao Estado Português e igualmente do Reverendo Pároco ao Provedor da Fazenda Real, este advogou como justo o pedido de ajuda a saber:
Senhor, a súplica que o pároco da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação desta cidade, Manoel Correia Gomes, fez a Vossa Majestade é justa, pois se acha a dita Matriz na maior indecência para se exercitarem as funções do culto divino e os fregueses dela reduzidos a estreita pobreza [...]. E também me parece limitada a porção de oito mil reis que somente há de ordinária da fábrica, pois com eles não é possível acudir ao que necessariamente é preciso, conforme a sua aplicação. Deus a Vossa Majestade guarde muitos anos. Rio Grande do Norte, 14 de dezembro de 1732 Domingos da Silveira (CARTA DO PROVEDOR DA FAZENDA REAL DO RIO GRANDE DO NORTE AO REI DOM JOÃO V..., 1732, fl. 1).
Em 4 de setembro de 1761, passando-se trinta e um anos do envio da carta do Reverendo Pároco Manoel Correia Gomes (datada de 10 de dezembro de 1730) ao Rei de Portugal, Dom João V, suplicando o pedido de ajuda referido (em parte pode ter sido atendido), a criança recém-nascida, de nome Tereza, certificada como exposta no Assento de Batismo, recebeu o Sacramento de Batismo do Reverendo Padre Manuel Antônio de Oliveira, na Capela de Santo Antonio do Potengi. Todavia, o Reverendo Padre Manuel Antônio de Oliveira cumpriu, apenas em parte, as deliberações do Concílio Ecumênico de Trento e as resoluções das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia referentes à escrituração do Assento do Batismo no Livro para essa destinação.
Tereza exposta em casa de Dona Tereza de Jesus da Rocha mulher solteira natural e moradora nesta Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande do Norte, cuja criança dizem ser filha natural do Licenciado João José Ferreira cirurgião desta cidade do Rio Grande do Norte natural da cidade do Porto, e de Maria José viúva que ficou de Antonio Soares natural desta Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação: neta pela parte paterna de pais incógnitos, digo avós incógnitos e pela materna de José de Melo da Costa natural das partes de Portugal, e sua mulher Dona Maria natural da cidade de Olinda foi batizada com os santos óleos aos quatro de maio de mil setecentos e sessenta e um anos na capela do senhor santo Antônio do Potengi desta dita Freguesia pelo Reverendo padre Manuel Antônio de Oliveira de licença minha: foram padrinhos o Capitão Antônio Vaz de Oliveira, homem casado, a pobre dita Dona Tereza de Jesus da Rocha, fregueses e moradores desta dita Freguesia, e não se continha mais na certidão que veio do dito Reverendo padre pela qual [...] em legitimamente impedido por causa de moléstia fiz e mandei lançar este assento, em que por verdade me assinei. João Freire de Amorim. Vigário da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (ASSENTO DE BATISMO, 1761, fl. 10, grifos nossos).
No Assento de Batismo de Tereza (exposta), escriturado pelo Reverendo Padre Manuel Antônio de Oliveira, põe-se à vista um desacordo entre aquilo que deveria ser (Tereza, recém-nascida exposta de pais incógnitos) e aquilo que figuraria como verdadeiro (Tereza, recém-nascida exposta filha natural do cirurgião João José Ferreira com Maria José, viúva de Antonio Soares). Por esse admissível desacordo, pode-se pelo menos conhecer a cultura moralista vigente numa sociedade colonialista. O historiador Paula (2006) levanta três hipóteses para esse admissível desacordo da exposta Tereza.
A primeira é que a pequena Tereza, possivelmente, foi fruto de relações sexuais extraconjugais, consideradas para a sociedade da época um ato ilícito. [...] A segunda hipótese refere-se ao apadrinhamento da enjeitada que não fugiu da realidade vivida pela pequena população de expostos da Freguesia, na qual 48,6% dos enjeitados recebiam algum membro do domicilio receptor como padrinho. Por último, a viúva não abandonou sua criança recém-nascida no domicílio de Tereza de Jesus da Rocha, por um simples acaso. Mesmo sendo considerada uma mulher pobre na comunidade em que vivia, o domicílio da colona tinha plenas condições de possibilitar a sobrevivência da enjeitada, pois lá existia leite materno (PAULA, 2006, p. 200-201).
Em 10 de setembro de 1777, a criança recém-nascida de nome Gorgonio, certificada como exposta no Assento de Batismo, teve o Sacramento de Batismo do mesmo Reverendo Padre Manuel Antonio de Oliveira, na dita capela de São Gonçalo do Potengi, preenchendo as deliberações do Concílio Ecumênico de Trento e as resoluções das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, com o seguinte registro no Livro designado.
Gorgonio exposto em casa de Antonio da Rocha foi batizado com os santos óleos de licença minha na Capela de São Gonçalo do Potengi, pelo padre Manuel Antonio de Oliveira aos dez de setembro do ano de mil setecentos e setenta, foram seus padrinhos Domingos Rodrigues de Silveira e Adriana Rodrigues da Silveira, solteiros e nada mais declarava o dito padre no assento, que mandou, do que mandei fazer este em que assinei.Pantaleão da Costa Araújo. Vigário da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (ASSENTO DE BATISMO, 1777, fl. 10).
Em 3 de setembro de 1788, a criança recém-nascida de nome Caetana, certificada como exposta no Assento de Batismo, teve o Sacramento de Batismo das mãos do Reverendo Pantaleão da Costa Araújo, Vigário da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, na capela da Senhora Sant’Ana, no Arraial de Ferreiro Torto, parcialmente em observância ás deliberações do Concílio Ecumênico de Trento e às resoluções das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Isso porque no Assento de Batismo há apenas o registro do padrinho, homem e solteiro, conforme se apresenta a seguir.
Caetana exposta em casa de Florência, solteira, moradora em o sítio de Santo Antonio do Potengi foi exposta de madrugada, às cinco para às seis da manhã do dia três de setembro de mil setecentos e oitenta e oito. Sem escrito foi batizada sob condições na Capela da Senhora Sant’Ana do Ferreiro Torto com os santos óleos ao quinze do dito mês e ano foram padrinhos Lino da Cunha Marques, solteiro e natural desta Freguesia e não se continha mais em dito assento de que mandei fazer este em que por verdade me assino. Pantaleão da Costa Araújo. Vigário da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande (ASSENTO DE BATISMO, 1788, fl. 23).
Em 7 de setembro de 1791, a criança recém-nascida de nome Manoel, certificada como exposta no Assento de Batismo, submeteu-se ao Sacramento de Batismo, ministrado pelo Reverendo Padre Manuel Antônio de Oliveira na capela da Nossa Senhora da Conceição de Jundiaí, análogo às deliberações do Concílio Ecumênico de Trento e às resoluções das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. O Sacramento do Batismo foi assim inscrito no Livro de Assento:
Manoel exposto em casa de David da Rocha, aos sete de setembro de mil setecentos e noventa e um foi batizado aos dezessete do mesmo mês e ano com santos óleos de licença minha, pelo padre Manoel Antonio de Oliveira, na capela de Nossa Senhora da Conceição, foram padrinhos David da Rocha e sua mulher Maria da Apresentação moradores nesta Freguesia, e não se continha mais no assento, que me veio, de qual mandei fazer este termo, em que por verdade assinei. Pantaleão da Costa Araújo. Vigário da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação (ASSENTO DE BATISMO, 1791, fl. 24v).
Em 16 de agosto de 1794, a criança recém-nascida de nome José, certificada como exposta no Assento de Batismo, “ganhou” o Sacramento de Batismo do Vigário Encomendado Ignacio Pinto de Almeida e Castro (irmão de Padre Miguelinho) na capela do Rosário dos Pretos de Natal. Pelo Livro do Assento do Batismo, o padrinho foi o licenciado Francisco Pinheiro Teixeira, solteiro; a madrinha foi dona Bonifácio Nolasco de Almeida, mulher do professor régio Francisco Xavier Garcia. Desse modo, em obediência às deliberações do Concílio Ecumênico de Trento e às resoluções das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, assim foi lavrada sua inscrição:
José exposto em casa da viúva Francisca Antônia Xavier a seis de agosto de mil setecentos e noventa e quatro foi batizado aos dezessete do mesmo mês e ano com santos óleos por mim na capela do Rosário dos Pretos desta cidade de licença do Emérito Reverendo vigário que foi desta Freguesia Pantaleão da Costa de Araújo aos quatro de setembro do dito ano, e foram padrinhos o licenciado Francisco Pinheiro Teixeira, solteiro e dona Bonifácio Nolasco de Almeida, mulher do professor régio Francisco Xavier Garcia, de que para constar fiz este assento em que assino. Ignacio Pinto de Almeida e Castro. Vigário Encomendado no Rio Grande (ASSENTO DE BATISMO, 1794, fl. 44).
A despeito dos Assentos de Batismo de crianças recém-nascidas, certificadas como expostas, exibirem algumas incompletudes (inexistência do padrinho ou da madrinha) e até desacordos (Tereza, recém-nascida exposta, por exemplo), os ritos formais da cerimônia do Batismo da criança enjeitada e da criança súdita em geral, com todos os elementos simbólicos intermediários (padrinhos, santos óleos, Livro de Assento) circunscreviam-se como procedimentos pedagógicos apregoados pela Igreja Católica como sendo de inamovível educação dos bons costumes.
Naquele século XVIII, na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, e por extensão na Capitania do Rio Grande do Norte, é admissível que os “pais de criação” das crianças enjeitadas e os pais legítimos não possuíssem uma instrução condizente com uma educação dos bons costumes que ligasse as pessoas de diferentes segumentos sociais nos aspectos mais elementares da vida humana.
Outrossim, é possível que os ensinamentos constantes na obra do sacerdote ilustrado da Ordem dos Agostinianos, Erasmo de Rotterdam (com subtítulo “A civilidade pueril”), houvessem auxiliado, mediante a pregação dos párocos, para instruir os pais e padrinhos na educação dos bons costumes, incluindo o Sacramento do Batismo. Não por menos, advertia o sacerdote ilustrado e educador Erasmo (s/d., p. 37): “Não é de pouca monta nem de acidental infâmia a mácula que tisna, que descura a educação dos pequenos”.
Seria possível, com Erasmo de Rotterdam, indagar-se por onde principiar a educação dos pequenos aceita e prescrita como uma educação dos bons costumes? O sacerdote ilustrado e educador, Erasmo de Rotterdam, ensinava que a arte de instruir e educar a criança nos bons costumes constaria de quatro etapas constitutivas em reciprocidade mútua com o desenvolvimento da criança, quais sejam:
A primeira e a principal consiste em fazer com que o espírito ainda tenro receba as sementes de piedade; a segunda que tome amor pelas belas artes e aprenda bem; a terceira, que seja iniciada nos deveres da vida; a quarta, que se habitue, desde cedo, com regras de civilidade. [...] É de todo conveniente que o ser humano seja bem composto nas atitudes, nos gestos e no modo de trajar-se (ERASMO, s/d., p. 123-124).
Na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, devido à ausência das instituições protetoras, como uma Santa Casa de Misericórdia ou mesmo uma Roda dos Expostos, criadas no século XVIII, que propiciariam, para Del Priore (2000), uma legitimidade à pratica de abandonar crianças até devido à pobreza da maioria das mulheres, foram os próprios moradores que assumiram, para si, a incumbência do acolhimento e da proteção da criança enjeitada (geralmente nas soleiras das portas das moradias) como “filhos de criação”, com o dever cristão de efetivarem o Sacramento do Batismo como parte da educação dos bons costumes.
Pelos Assentos de Batismo das crianças recém-nascidas enjeitadas na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, com os nomes de Tereza (4 de setembro de 1761), Gorgonio (10 de setembro de 1777), Caetana (3 de setembro de 1788), Manoel (7 de setembro de 1791) e de José (16 de agosto de 1794), além de outras crianças de nomes Lauteria (26 de setembro de 1760), Balehios (7 de outubro de 1760) e Bernarda (26 de janeiro de 1766), percebe-se uma interdependência entre os estratos sociais inferiores e a peculiar figuração do fenômeno social do abandono de crianças recém-nascidas, com suas variações particulares.
Nesse sentido, ao ter em mãos a documentação concernente aos Assentos de Batismo, especialmente os da segunda metade do século XVIII, Paula (2007) estimou que aproximadamente 2.100 crianças recém-nascidas foram batizadas na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação: 82 seriam crianças recém-nascidas enjeitadas, sendo mais meninos do que meninas. O período com o maior número de abandono de crianças-recém nascidas e batizadas corresponde aos anos de 1768-1777 (717) e de 1788-1795 (679), geralmente em capelas da área rural, o que mostra onde estava situada a moradia da maior parte da população da Freguesia. Por isso mesmo, na segunda metade do século XVIII, teria havido uma regulação demográfica relativa ao abandono de criança recém-nascida nessa jurisdição eclesiástica da Capitania.
Por sua vez, os domicílios chefiados por homens foram preferidos por aqueles que enjeitaram (69,3%). Já os domicílios chefiados por mulheres tiveram a preferência de 28% dentre estes. Nesse particular, chama atenção o fato de que as mulheres que viviam na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, geralmente eram solteiras ou viúvas; algumas delas proprietárias de sítios e de escravos.
É comumente sabido que a população da Capitania do Rio Grande do Norte, no decurso do século XVIII, era predominantemente sem escolarização; o analfabetismo era a regra. Admitindo que toda regra é passível de exceção, vários foram os casos na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, segundo Paula (2007), de criança recém-nascida enjeitada na soleira da porta de uma moradia, trazendo consigo um bilhete informando se tinha recebido ou não o primeiro Sacramento do Batismo.
De todo modo, como atesta Venâncio (2017), o abandono de crianças recém-nascidas nas soleiras da porta de uma moradia, com bilhete ou sem bilhete, seria uma maneira, até certo ponto paradoxal, de proteger a criança; mas também revela diversos aspectos da condição humana feminina no passado colonial do Brasil. No século XVIII, pelas leis do Estado Português, segundo Venâncio, assim se interpretava o ato de “abandono” de recém-nascido:
Enjeitar o filho não constituía crime, tampouco – e isso é bastante importante – implicava a perda do pátrio poder: as mães, caso quisessem, podiam recuperar o rebento deixado na Roda ou entregue a outra família (VENÂNCIO, 2017, p. 204).
Sem dúvida alguma, reforça Faria (1998, p. 85), o expediente de enjeitar uma criança recém-nascida foi “[...] uma das formas socialmente aceitas para os que se viam impossibilitados de reconhecer ou criar filhos gerados em momentos de fragilidade humana [...]”. Por sua vez, ser uma pessoa de educação de bons costumes era socialmente condizente com o sistema normativo político e católico da sociedade colonial, embora, simultaneamente, solidária e violenta. Na percepção de Faria (1998, p. 95), “[...] reflete, portanto, a importância da família, da procriação legítima e dos bons costumes virtuosos que, justamente por serem raros, tornavam-se extremamente valorizados”.
A historiadora Del Priore (2000, p. 74 e 76), tratando sobre o modo como viviam, ou melhor, sobreviviam, principalmnte as mulheres negras, mulatas e índias no passado colonial do Brasil, constata que o abandono de crianças recém-nascidas era bastante significante. Na fronteira entre a ordem socioespiritual e o nascimento de crianças fora do matrimônio, que era consagrado pela Igreja Católica, colocavam-se as condições de pobreza “[...] das mães [que] encorajavam [esses] abandonos que poderiam significar melhor oportunidade de vida para os filhos”.
Para o historiador da educação Rogério Fernandes (1978), o ideário pedagógico dos iluministas portugueses do século XVIII, Martinho de Mendonça de Pina e de Proença (Apontamentos para a educação de um menino nobre, 1734), Luís António Verney (Verdadeiro método de estudar, 1746) e António Nunes Riberio Sanches (Cartas sobre a educação da mocidade, 1760), contempla a educação da criança pela escola, preparadora para as autorregulações da vida civil adulta em suas interdependências com a vida religiosa e social, mas de acordo com a classe social.
Com base nesse postulado, conforme Fernandes (1978, p. 71), o médico iluminista António Nunes Riberio Sanches defendeu a educação da criança e do jovem em todos os domínios do Estado português para que fosse de exclusiva competência do poder público, ou seja, “[...] do monarca e não do poder dos eclesiásticos, exceto quanto à doutrina cristã”. No entanto, entre o que se preconizava para a educação escolar da criança e do jovem e o que, de fato, era a cultura política portuguesa, Fernandes assevera:
O desenvolvimento do capitalismo português, na sua unidade fundamental e na diversidade das suas orientações, não determinou entre nós um alto desenvolvimento das forças produtivas. O sistema escolar português não ultrapassou, por isso mesmo, os limites dos estreitos interesses econômicos e culturais da burguesia (FERNANDES, 1978, p. 93).
Na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, por extensão na Capitania do Rio Grande do Norte, a afirmação do historiador da educação, Rogério Fernandes (1978), quanto aos limites estreitos do sistema escolar português em face dos pequenos interesses econômicos e culturais de sua burguesia (incluindo o clero), foi deveras confirmada como pode ser constatado adiante.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), para Del Priore (2000), um sucedâneo para a colônia dos decretos promulgados pelo Concílio de Trento para a cristandade moderna, por conseguinte a primeira idade da criança batizada constituía a principal etapa para iniciá-la na doutrina cristã (por meio dela as sementes de piedade, como ensinava Erasmo de Rotterdam), por extensão socializar a educação dos bons costumes, intermediada pelos pais e pelos padrinhos, principalmente. Sem dúvida, a idade seguinte, e dependendo do estrato social da criança, seria a de aprender bem alguns saberes elementares (leitura, escrita e lições de bem viver no tempo). A esse respeito, assim prescreviam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:
Porque não só importa muito, que a Doutrina Cristã e os bons costumes se plantem na primeira idade, e puerícia dos pequenos, mas também se conservem na mais crescida dos adultos, aprendendo uns juntamente com as lições de ler, e escrever, as do bem viver no tempo, em que a nossa natureza logo se inclina para os vícios e continuando, e os outros a cultura da Fé, em que foram instruídos, e crendo nos seus mistérios (CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1707; 2007, p. 2, grifo nosso).
Para Ariès (1981, p. 182), tratava-se de despertar gradualmente, na criança, responsabilidades inerentes à sua idade de vida, análoga ao estrato social a que pertencia. Para os adultos em torno da criança de estrato superior, exigiam-se “[...] cuidados e etapas e uma formação [...]” metódica tanto moral quanto social em instituições específicas. Valia recordar, para Ariès (1981, p. 233), naquela altura do século XVIII, que a nossa civilização moderna de base escolar estava sendo paulatinamente estabelecida. “O tempo a consolidaria, prolongando e estendendo a escolaridade”. Portanto, os adultos se preocupariam com a educação de escola para a criança em razão do seu futuro.
Já na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, em razão das disparidades sociais da maioria dos seus moradores, com seus filhos legítimos e ilegítimos, filhos de pais incógnitos e filhos de criação, aquela civilização moderna de base escolar, de acordo com Araújo (2009), passou a ser reclamada pelas autoridades públicas locais junto com as famílias, para ser instaurada pelo trabalho docente de clérigos seculares ou regulares europeus.
Melhor dizendo: a forma escolar de educar coletivamente, tal como qualificada por Vincent, Lahire e Thin (2001, p. 28), estaria sendo insistentemente reclamada pelos súditos aos monarcas portugueses, devendo ser efetuada, concomitantemente, pelos poderes públicos e pelos poderes eclesiásticos. No parecer daqueles historiadores, a estruturação da forma escolar de educar coletivamente era, pois, indissociável das regras que são constitutivas de uma ordem escolar que se impunha aos professores e aos alunos “[...] concernentes tanto ao que [era] ensinado quanto à maneira de ensinar, tanto às práticas dos alunos quanto à prática dos mestres”.
É possivelmente datada a reclamação pela forma escolar de educar coletivamente, a princípio no governo de Domingos de Moraes Navarro (1728-1731), pelos Oficiais do Senador da Câmara de Natal (criado em 1622), para a sede administrativa, política e eclesiástica da Capitania, a cidade de Natal. Quiçá, “sinal dos tempos” de uma figuração característica da forma escolar de educar coletivamente?
Em carta de 26 de janeiro de 1728, dirigida ao Rei Dom João V, os Oficiais do Senado da Câmara fizeram um apelo, considerando muito que se fazia para o serviço de Deus e de Sua Majestade na Capitania, no sentido de que se erigisse na cidade de Natal um Hospício ou Convento onde residissem religiosos da Companhia de Jesus ou da Ordem de São Francisco, para ensinarem Gramática Latina aos filhos dos moradores, para assim poderem ordenar sacerdotes que pudessem orientar e guiar a formação religiosa do povo, incluindo a educação dos bons costumes.
Passados três anos do envio daquela carta, o Conselho Ultramarino, em consulta ao Rei Dom João V (datada de 5 de junho de 1731) sobre o pedido dos Oficiais do Senado da Câmara de Natal, esclareceu que o governador da Capitania de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira, havia-se manifestado pelo estabelecimento do Hospício (Convento) reclamado. Mas cabia ao Rei ajudar com esmolas e com clérigos de bons costumes e bons gramáticos para ensinarem Gramática Latina aos moços que quisessem aprender, dando fé do zelo do Reverendo Bispo de Pernambuco para escolher os mestres. Isso posto, os membros do Conselho Ultramarino lavraram o seguinte parecer:
Ao Conselho parece, vista a informação do Bispo de Pernambuco do quanto se faz preciso que aqueles povos não vivam na aflição de não terem quem ensinasse, e doutrinasse seus filhos que Vossa Majestade seja servido ordenar que na cidade do Natal da Capitania do Rio Grande se possa erigir um Hospício em que assistam três, ou quatro religiosos da Companhia de Jesus, mandando-lhe Vossa Majestade dar anualmente duzentos mil reis pagos pelos dízimos da dita Capitania de Pernambuco, em que se lhes dão também uma Sesmaria na forma costumada para o dito Hospício, e que Vossa Majestade seja servido mandar responder a estes oficiais da Câmara que lhes faz a dita mercê, em que eles e os mais moradores concorram para o mais que for necessário o estabelecimento do dito Hospício. Lisboa Ocidental, cinco de junho de 1731. Antonio Roriz da Costa, José do Carmo Abreu, Gonçalo Miguel Galvão de Lacerda e José Marcelo de Souza Menezes (CONSULTA DO CONSELHO ULTRAMARINO AO REI DOM JOÃO V..., 1731, fl. 2).
No intervalo entre a carta dos Oficiais do Senador da Câmara (26 de janeiro de 1728) e a consulta do Conselho Ultramarino ao Rei Dom João V (5 de junho de 1731), aqueles homens públicos em vereação escreveram mais uma carta ao Rei (1º de junho de 1733) para ratificarem da imprescindível necessidade de uma assistência religiosa e escolar aos moradores jovens e igualmente aos índios dessa Freguesia, para tanto insistiam para vir religiosos educadores capuchinhos italianos de Pernambuco, da Ordem de São Francisco, para erguerem o Hospício já rogado, por seus feitos de civilidade dos bons costumes.
Senhor, é esta Capitania das mais antigas da América, e nela tem a melhor Fortaleza dela pelo bem desígnio com que esta feitoria fez sempre ademais merecimento, pelo incógnito de seu acento por ter sido das mais acunhadas do gentio bárbaro, por cuja causa ficaram seus moradores impossibilitados, sem poder ter a dita de erigirem um Hospício de Religiosos, pela grande falta que há nesta cidade de sacerdotes, porque só nela assiste o vigário com seu coadjutor, e o mestre da Gramática, que a Real Dignidade e clemência da Vossa Majestade, faz servido ordenar concessões, enquanto se não achavam meios de estabelecer um Hospício [...]. Recorrermos a real proteção e clemência de Vossa Majestade para que se incline com o seu pio zelo, por ordenar aos Religiosos Capuchinhos Italianos de Pernambuco, venham a esta cidade, e nela farão seu Hospício, onde podiam acolher dois ou três, religiosos [...]. Para a sustentação destes Religiosos lhe podia Vossa Majestade arbitrar de porção, o mesmo que se dar ao Capelão da Fortaleza desta Barra [...]. E operário da Real clemência de Vossa Majestade, atender desta súplica fazendo-nos a mercê de tão grande bem para nossas almas [...]. A Católica e Real pessoa da Vossa Majestade e de Deus muitos anos. Cidade do Natal da Capitania do Rio Grande, escrita em Senado da Câmara pelo Escrivão dela Dionizio da Costa Soares ao 1º de junho de 1733 (CARTA DOS OFICIAIS DA CÂMARA DE NATAL AO REI DOM JOÃO V..., 1733, fl. 1-2).
Nessa carta
Nessa carta a Dom João V, que é anterior à difusão do ideário pedagógico dos iluministas portugueses setecentistas, mais uma vez, os Oficiais do Senador da Câmara aventariam para os encargos com esses religiosos e educadores capuchinhos italianos serem do domínio do Estado português. “E operário da Real clemência de Vossa Majestade, atender desta súplica fazendo-nos a mercê de tão grande bem para nossas almas.”
Por sua vez, o Hospício ou o Convento não foi erigido haja vista o Rei Dom João V não se haver pronunciado em relação à competência do Estado Português no seu estabelecimento e no seu sustento. Todavia, durante o governo do Capitão Mor João de Barros Braga (1731-1734), a 28 de julho de 1731, foi instituído o primeiro cargo público de professor, em Natal, para a cadeira de Gramática Latina.
A persistência das autoridades públicas junto com os pais de família por um professor de Gramática Latina levou ao Bispo da Diocese de Olinda, Dom Frei José Fialho (1725-1738), o cumprimento de nomear um professor (clérigo) de Gramática Latina para a Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Entretanto, o clérigo nomeado pouco tempo permaneceu em Natal, por considerar irrisório o salário de 50$000 (cinquenta mil réis anuais), para o trabalho de ensinar e educar os seus alunos.
Por conseguinte, os Oficiais do Senador da Câmara, em atendimento a uma petição dos pais dos alunos daquela cadeira de Gramática Latina que o professor abandonou, fizeram uma reclamação ao então Bispo da Diocese de Olinda, Dom Frei Luiz de Santa Tereza (1739-1753), para imediatamente nomear um substituto para a cadeira de Gramática Latina, para os jovens estudantes sem professor. Sem muita pressa, Dom Frei Luiz de Santa Tereza nomeou outro clérigo, o minorista Mateus Duarte, com as garantias do vencimento de 60$000 (sessenta mil réis anuais). O protocolo epistolar do Bispo Diocesano de Olinda, datado de 9 de fevereiro de 1740, trazido em mãos pelo próprio minorista Mateus Duarte, assim se apresentava:
O portador desta é o minorista Mateus Duarte, clérigo de boa vida, com suficiência para Mestre de gramática, suponho que satisfará as obrigações e se dará a V.V. Mercês por bem servidos o que muito estimaremos. Pela petição que nos fazem os moradores consta que o outro Mestre que antecedentemente se elegeu se despediu por achar-se que no partido de cinquenta mil réis como pela cópia da provisão inclusa de Sua Majestade consta ordenar ao dito senhor que nós lhe fizéssemos salário, nos pareceu assinar-lhe sessenta mil réis; e não temos respondido a mais tempo a Vossas Mercês por querer que o mesmo clérigo fosse o portador da carta e ele se não pode expedir mais cedo. Guarde Deus a Vossas Mercês. 9 de fevereiro de 1740. Venerador de Vossas Mercês. Bispo (CARTA DO BISPO DOM FREI LUIZ DE SANTA TEREZA, 1740, fl. 1, grifo nosso).
Em 17 de maio de 1740, os Oficiais do Senador da Câmara escreveram mais uma carta para aquela autoridade eclesiástica da Diocese de Olinda, pelas palavras de Cascudo (1980), desfazendo algumas abreviaturas e pondo alguns pontos e vírgulas no que devidamente precisaria.
O Mestre de Gramática, o minorista Mateus Duarte, nos entregou a carta de V. Excia. Reverendíssima de que lhe mandamos as graças que esperamos em Deus se bem logrem as esperanças provenientemente conseguirem estudarem os filhos desta Capitania para que assim se possam aproveitar da magnanimidade da Real Grandeza de Sua Majestade e do Zelo de Vossa Excelência Reverendíssima que com tanta bondade atende aos serviços de Deus e ao bem comum dos vassalos. Por agora parece conveniente o partido que Vossa Excelência Reverendíssima lhe assinou por serem ainda poucos os moços que aprendem a gramática por não estarem os mais instruídos no ler e escrever que também se aplica ao dito mestre; em tudo estamos a obediência de V. Excia. Reverendíssima a qual lhe tributamos muito obsequiosos e reverentes. Deus guarde a V. Excia. Reverendíssima fielmente muitos anos para a glória de suas ovelhas; escrita em vereação da Cidade de Natal, Capitania do Rio Grande, pelo escrivão da Câmara [Manuel Álvares Bastos de Oliveira], aos dezessete de maio de mil setecentos e quarenta. Aos pés de V. Excia. Reverendíssima, seus reverentes criados e vereadores – Teodósio Freire Amorim, Dionísio da Costa Soares, Inácio Marinho de Carvalho, Luís Teixeira da Silva (CARTA DOS VEREADORES DO SENADO DA CÂMARA DE NATAL PARA O BISPO DOM FREI LUIZ DE SANTA TEREZA, 1740, fl. 1, grifo nosso).
Sucede que, pelas pesquisas de Cascudo (1980), de Araújo (1982), de Lyra (1998) e de Araújo (2009), poucas foram as escolas criadas para ensinar e educar as crianças e os jovens na circunscrição da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Numa relação de despesas de 1749, o clérigo Mateus Duarte permanecia ensinando a ler, a escrever e as declinações da gramática Latina, para os meninos estudantes da Capitania com o mesmo ordenado anual de 60$000. Em uma Capitania submetida à imobilidade dos estratos sociais pelo poder político do Estado Português, invariavelmente, como assinalou Lyra (1998, p. 204), quase nada “[...] entrava nas cogitações do poder público [português] difundir a instrução popular”.
Na figuração de Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, por preponderar uma cultura de vida colonial co-determinada, dependente e interdependente dos mecanismos políticos e jurídicos dos poderes públicos e dos poderes eclesiásticos com suas travas de impedimentos, somente no dia 21 de julho de 1731 é que foi oficialmente criada, na cidade de Natal, a Cadeira de Gramática Latina.
Na base daqueles mecanismos políticos e jurídicos dos poderes públicos e dos poderes eclesiásticos com suas travas de impedimentos, sessenta e dois anos depois da criação da Cadeira de Gramática Latina, exatamente em 18 de março de 1793, foi oficializada uma cadeira pública de Primeiras Letras para a cidade de Natal, porventura a cargo do professor régio (público) Francisco Xavier Garcia, que era casado com a irmã de Padre Miguelinho, o qual presidiu o Governo Provisário no período de 7 de fevereiro a 18 de março de 1822. Possivelmente, muito mais devido à insistência dos Oficiais do Senador da Câmara, em recíproca interdependência com os pais de crianças e de jovens, do que em função das reformas educacionais no Reino Português e nos Domínios Ultramarinos (Alvará de 25 de junho de 1759 e a Lei de 6 de novembro de 1772) levadas a cabo por Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal.
Nos primeiros anos do século XVIII, na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, com suas misturas éticas (gente branca, negra, mestiça e crioula) e também culturais (gente indígena, nativa, escrava) distintas e distantes dos formalismos habituas europeus, a educação dos bons costumes de crianças súditas (enjeitadas, legítimas, ilegítimas, órfãs, indigentes, livres do cativeiro), a começar pelo Sacramento do Batismo, para as autoridades políticas (representantes do poder monárquico português) e para as autoridades religiosas (representantes do poder eclesiástico da Igreja Católica Apostólica Romana), figurava-lhes como padrão de formação social para o exercício da cristandade, com particular atenção para a criança recém-nascida enjeitada.
Na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação – precisamente no ano de 1728 – atribuíram-se os Oficiais do Senado da Câmara de Natal por meio de expedientes ordinários da atividade de vereação, a recorrerem pela transição do padrão de educação dos bons costumes predominantemente centrado na efetivação do Sacramento do Batismo da criança recém-nascida, com particular atenção para a criança enjeitada, para outro padrão de caráter institucional: a educação escolar coletiva ministrada pelo trabalho docente de clérigos europeus de bons costumes. Como assinalava Elias (1994, p. 109), para outras situações análogas no século XVIII, “[...] as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de conformidade com o padrão observado na sociedade) [permaneciam] em movimento quase ininterrupto”.
A educação escolar coletiva, como elemento da formação social da civilização moderna com normas morais e códigos comportamentais, compartilhariam, na sua unidade, para outro padrão de dependências e interdependências recíprocas. Ademais, favoreceria, em alguma medida, aos “filhos de criação” de nomes Tereza, Gorgonio, Caetana, Manoel, José, Lauteria, Balehios e Bernarda ingressarem na escola pública de primeiras letras. Como indica Julia (2001, p. 22), a própria acepção de educação escolar moderna figuraria como uma “[...] formação do caráter e das almas [...] e de direção das consciências”.
Na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, e por extensão no Rio Grande do Norte, a transição para a forma escolar de educar coletiva, em articulação com o expediente demográfico dos lugares de criação das escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, em que se fizesse necessário, teria sido em razão da aprovação da Lei Imperial, de 15 de outubro de 1827, celebrada como a legislação que regulamentou a escolarização primária para meninos e meninas em bases de uma Educação Nacional para uma civilização notavelmente moderna.
Em face da aprovação da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, segundo Lima (1927), o Conselho-Geral da Província, por razões que intercediam processos de dependências e interdependências no plano nacional, provincial, autorizou a criação de 18 escolas de primeiras letras, consoante a forma de educar coletivamente, sendo 16 para meninos e 3 para meninas, no período de 1829 a 1835, demograficamente distribuídas pelos lugares mais populosos da nascente Província do Rio Grande do Norte. Não obstante, já havia transcorrido um pouco mais de cem anos daquela carta dos Oficiais do Senado da Câmara da Capitania do Rio Grande do Norte (datada de 26 de janeiro de 1728), dirigida ao Rei Dom João V, de Portugal e Domínios Ultramarinos.