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Caminhos e descaminhos de uma prática curricular numa escola do campo
Paths and misconceptions of a curricular practice at a rural school
Caminos y descaminos de una práctica curricular en una escuela del campo
Caminhos e descaminhos de uma prática curricular numa escola do campo
Revista Educação em Questão, vol. 56, núm. 48, pp. 227-248, 2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Recepción: 04 Mayo 2018
Aprobación: 28 Mayo 2018
Resumo: Artigo que apresenta uma reflexão a partir de investigação realizada numa escola situada na comunidade pesqueira de Barreiras, em Macau, município do Rio Grande do Norte, onde se instituiu um Grupo de Trabalho (GT) para discutir e definir um Projeto Político Pedagógico (PPP). Tem como objetivo analisar as dificuldades do GT em articular os saberes e as experiências emanadas do processo de conquista da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão (RDSEPT), pelas comunidades locais, na proposta curricular da escola. Metodologicamente incorporou elementos da Pesquisa Colaborativa (IBIAPINA, 2008), pactu- ando-se entre os sujeitos entrevistas e sessões reflexivas coletivas, que se constituíram em espaços de reflexão e de autoformação, bem como a observação participante, pela qual percebeu-se dificuldades decorrentes da rotatividade do quadro docente e de seus professores se manterem aferrados a práticas curriculares reféns do livro didático.
Palavras-chave: Educação do campo, Currículo escolar, Saberes e experiências.
Abstract: Article that presents a reflection based on research carried out at a school located in the fishing community of Barreiras, Macau, municipality of Rio Grande do Norte, where a Working Group (WG) was established to discuss and define a Political Pedagogical Project (PPP). Its objective is to analyze the difficulties of the WG in articulating the knowledge and experiences emanating from the process of conquest of the State Sustainable Development Reserve Ponta do Tubarão (SSDRPT), by the local communities, in the curricular proposal of the school. Methodologically, it incorporated elements of the Collaborative Research (IBIAPINA, 2008), where collective interviews and reflexive sessions were organized, reflecting and self-training spaces, as well as participant observation, through which difficulties were perceived as a result of the rotation of the teaching staff and their teachers remain attached to curricular practices hostage to the textbook.
Keywords: Rural education, School curriculum, Knowledge and experience.
Resumen: Artículo que presenta una reflexión a partir de investigación realizada en una escuela situada en la comunidad pesquera de Barreiras, en Macau, municipio de Rio Grande do Norte, donde se instituyó un Grupo de Trabajo (GT) para discutir y definir un Proyecto Político Pedagógico (PPP). Se pretende analizar las dificultades del GT en articular los saberes y las experiencias emanadas del proceso de conquista de la Reserva de Desarrollo Sostenible Estatal Ponta do Tubarão (RDSEPT), por las comunidades locales, en la propuesta curricular de la escuela. En el marco de la investigación colaborativa (IBIAPINA, 2008), se integró entre los sujetos entrevistas y sesiones reflexivas colectivas, que se constituyeron en espacios de reflexión y de autoformación, así como la observación participante, por la cual se percibió dificultades derivadas de la rotación del cuadro docente y de sus profesores se mantengan aferrados a prácticas curriculares rehenes del libro didáctico.
Palabras clave: Educación del campo, Currículo escolar, Saberes y experiencias.
Introdução
A Escola Municipal Alferes Cassiano Martins (EM ACM) é a única a atender as demandas educacionais da comunidade pesqueira do distrito de Barreiras, localizado a 23 quilômetros da sede de Macau, município do Rio Grande do Norte. Barreiras, juntamente com outras duas comunidades – Diogo Lopes e Sertãozinho – integra uma Unidade de Conservação denominada de Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão (RDSEPT).
Nela estudam cerca de trezentos estudantes distribuídos nos turnos matutino e vespertino, com a oferta de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens (limitada ao 3º e 4º períodos, no turno vespertino, numa turma multianual, em virtude da distorção idade-ano dos estudantes do 4° e 5º anos, funcionando de forma sutil como uma sala de correção de fluxo).
Em início de 2015, a direção da escola decidiu iniciar um processo de discussão com a comunidade em torno do seu projeto político-pedagógico (PPP) e para isso constituiu, em assembleia, um Grupo de Trabalho (GT) com- posto de dois professores, duas supervisoras, uma gestora, uma representação dos pais/mães/responsáveis pelos alunos e uma auxiliar de secretaria.
A discussão sobre o PPP da escola que então se iniciava abriu espaços para que fosse proposto ao GT uma investigação, envolvendo os sujeitos da própria escola, sobre o quanto ela – que, durante o período de 1999 a 2003, teve papel importante na mobilização das três comunidades em torno da dis- cussão da constituição da Reserva – estaria conseguindo incorporar os saberes e as experiências de luta das comunidades que integram a RDSEPT em suas prá- ticas curriculares e pedagógicas, assumindo-se como espaço multidimensional de formação e reflexão das referências constituintes daquele território.
O acompanhamento desse processo possibilitou a gestação de uma dissertação de mestrado, da qual, este trabalho é apenas uma fatia, uma dimensão de uma reflexão mais ampla, que visava discutir a articulação dos saberes e das experiências dos sujeitos da RDSEPT, no currículo da escola, pelo GT do PPP e identificar, nos instrumentos teórico-metodológicos utilizados por esse grupo, as concepções que fundamentaram a proposta curricular da escola.
Quando do início da investigação tinha-se claro que a pesquisa se estruturasse em contínuos pactos com o GT, colocando-a como parte do iti- nerário reflexivo dos próprios sujeitos. Com isso, viu-se como úteis os aportes conceituais da pesquisa colaborativa, propostos por Ibiapina (2008), para quem o processo colaborativo, no contexto da investigação científica significa:
Tomada de decisões democráticas, ação comum e comunicação entre investigadores e agentes sociais que levem à construção de um acordo quanto às suas percepções e princípios. Nessa pers- pectiva, a colaboração se efetiva a partir da interação entre pares com diferentes níveis de competência, isto é, colaboração significa a ajuda que um par mais experiente, no caso o pesquisador, dá a um outro menos experiente no momento de realização de determinada atividade, no caso a pesquisa, é também ação formativa desenvolvida conjuntamente que faz o desenvolvimento pessoal e profissional de professores (IBIAPINA, 2008, p. 34).
Assim, um dos procedimentos dessa abordagem, a Sessão Reflexiva, foi assumido como principal, dada a sua capacidade de produzir os dados necessários às perguntas que moviam a investigação. Não obstante, o aprofundamento de questões suscitadas nas sessões reflexivas, se deu através das entrevistas individuais com os participantes do GT, combinadas com a aplicação de questionários junto aos estudantes da escola, no intuito de buscar aproximações com as suas expectativas e o quanto elas poderiam estar sendo percebidas nas discussões produzidas no GT. Além disso, questionários também foram aplicados junto aos membros do GT a fim de se identificar eventuais necessidades formativas que pudessem ser trabalhadas durante as sessões.
A opção por inserir alguns aspectos da pesquisa colaborativa resulta da percepção (e proposição) de que esse processo investigativo poderia se constituir em espaço de reflexão e autoformação, onde os sujeitos envolvidos – reconhecidos como Grupo Colaborador1 – pudessem se perceber como parte de uma investigação que não se pretendia um olhar “externo”, de outrem, às suas práticas, mas como momento de reflexão e auto-observação à própria prática e realidade, traduzidas em temáticas consideradas relevantes pelo grupo, em diálogo permanente com os pesquisadores.
Aqui, tratava-se de desenvolver uma dinâmica reflexiva em que o processo de investigação se desnudasse também como processo formativo, de (re) construção coletiva de saberes docentes a partir das inquietações que fossem suscitadas, no contexto das questões e tramas que perpassassem as discussões propiciadas durante, principalmente, as sessões reflexivas, considerando-as como espaço de três dimensões reflexivas: a reflexão técnica (de discussão das ações cotidianas dos profissionais na lida nas salas de aula); a reflexão teórica (momento em que se aprofunda os laços entre as escolhas de ordem prático-pedagógica e os caminhos teóricos que conscientemente ou não sustentam essas escolhas); e a reflexão ético-política (relativo à análise das relações entre os processos de ensino e aprendizagem postos em movimento e as questões cotidianas vivenciadas pelos moradores da comunidade). Uma trilha que se inspira em Contreras (2002) e Pimenta (2002).
Em segundo lugar, dever-se-ia reconhecer a escola como construção social, como espaço sócio-cultural, isto é,
[...] como um espaço social próprio, ordenado em dupla dimensão. Institucionalmente, por um conjunto de normas e regras que buscam unificar e delimitar a ação dos seus sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa trama de relações sociais entre os sujeitos envolvidos, que incluem alianças e conflitos, imposição de normas e estratégias individuais, ou coletivas, de transgressão e de acordos (DAYRELL, 2006, p. 137).
Com efeito, haveria de se estar consciente, também, de que a construção do currículo, como qualquer processo educativo escolar, está permeada pela trama permanentemente enredada em que a reprodução do velho e a possibilidade do novo se colocam como horizontes, cujo desfecho definitivo não está dado de antemão para nenhum dos polos em disputa. No dizer de SILVA (2010, p. 10) ele, o currículo, corporifica os nexos entre saber, poder e identidade, porque também no seu interior se envolvem e se digladiam os diver- sos significados sobre o social e o político, sobre os sujeitos e o entorno que os cerca, sobre o mundo e a existência humana.
Assim, a possibilidade de construção de um currículo e de práticas curriculares “novas” no contexto daquela escola não se conformava como um objetivo a ser concretizado por aquele coletivo de professores, seja como uma imposição do processo investigativo que estávamos propondo, seja como determinação administrativa, mas como horizonte a ser persecutido, em consonância com a construção de consensos possíveis que dessem organicidade ao que fosse desenvolvido a partir daquela experiência reflexiva.
Ademais, não poderíamos esquecer que o currículo é um fenômeno que em seu “fazer-se” transfigura-se em pelo menos três dimensões (FERNANDES, 2006, p. 23, grifo do autor): “[...] o currículo proposto (normalmente designado por oficial), o currículo ensinado (o que é efetivamente posto em prática pelos professores e pelas escolas) e o currículo aprendido (o que é efetivamente aprendido pelos alunos)”.
Um rápido mergulho na Reserva e suas lutas
Criada através da Lei Estadual n° 8.349, de 17 de julho de 2003, a RDSEPT é o resultado da mobilização de moradores das comunidades de Barreiras, Diogo Lopes e Sertãozinho, à preservação da cultura da pesca artesanal, a garantia do desenvolvimento de atividades baseadas em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidas tradicionalmente ao longo de gerações e adaptadas às condições ecológicas locais e que desempenham papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica, em resistência às investidas da indústria imobiliária e dos projetos de carcinicultura, presentes hegemonicamente na região litorânea potiguar.
Esta Reserva, localizada entre os municípios de Macau e Guamaré-RN, abrange uma área de quase 13.000 hectares, compreendendo uma parte terrestre e outra marítima. Constituída por um ecossistema formado por mar, estuário, manguezal, dunas, restingas e caatinga, possui uma população estimada em um pouco mais de 4.000 (quatro mil) habitantes, cuja maior parte se concentra nas comunidades de Barreiras, Diogo Lopes e Sertãozinho, em Macau, e uma menor quantidade na comunidade de Mangue Seco, em Guamaré.
A luta pela sua constituição enquanto Unidade de Conservação (UC) iniciou-se em 1995, estendendo-se até 2003, envolvendo as populações de Barreiras e Diogo Lopes, contra a ocupação da área de 1.300 hectares, localizada na restinga Ponta do Tubarão, por grupos de carcinicultores e estrangeiros ligados ao ramo imobiliário. A mobilização se iniciou após a disseminação da notícia de que essas terras haviam sido compradas por italianos, os quais já haviam solicitado o aforamento ao Delegado do Patrimônio da União.
Em 1996, os ranchos de pescaria feitos por pescadores para a prática de suas atividades profissionais e de lazer familiar nos finais de semana, foram queimados por ordem de um italiano responsável pelo empreendimento, cuja ação foi denunciada no Jornal de Macau, em maio do mesmo ano, que divulgou uma nota em protesto contra o ato, e em favor da população das comunidades.
A partir daí a população começou a se posicionar mais claramente contra a ocupação da área, das queimadas e da presença de vigias ao longo da restinga, iniciando uma mobilização que redundou na formação de uma comissão de representantes de entidades comunitárias e lideranças locais a fim de denunciar a situação aos órgãos públicos e a imprensa, objetivando frear a ocupação e proteger o patrimônio da comunidade.
Além de ações de intimidação como pichações nas paredes das casas com a inscrição “Fora italianos!” e a disseminação de cartazes hostis à presença dos intrusos, a adesão geral dos pescadores das comunidades de Barreiras e Diogo Lopes à luta se revelou na recusa deles em alugar seus barcos para o transporte dos representantes do empreendimento, através do estuário até a estinga, o que dificultou, mas não impediu, que os estrangeiros fizessem o reconhecimento da área, utilizando-se de automóveis e guias trazi- dos da cidade de Macau.
Novo enfrentamento se deu em 2000, quando a carcinicultura des- pontava na região como empreendimento promissor e gerador de empregos. Em meio à implantação dos criatórios de camarão, novo atentado predatório é promovido pelos empresários, com a devastação e queima de uma área de manguezal de aproximadamente 60.000 m2, na Ilha dos Cavalos.
Tão logo tomaram conhecimento do fato, a comunidade prontamente se mobilizou denunciando o fato à imprensa, à Delegacia do Patrimônio da União, ao IBAMA e ao IDEMA, solicitando, através de abaixo-assinado a trans- formação da região em Área de Preservação Ambiental.
Ano Principais atividades e conquistas 2001 Realização do I Encontro Ecológico de Diogo Lopes e Barreiras, com apro- vação de moção e abaixo-assinado solicitando ao IDEMA a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Ilha do Tubarão. 2002 Realização do II Encontro Ecológico de Diogo Lopes e Barreiras, com elaboração de Projeto de Lei para a criação da Reserva e delimitação de sua área, para encaminhamento ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONEMA). 2003 Realização do III Encontro Ecológico de Diogo Lopes e Barreiras, com assinatura do Projeto de Lei de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão e aprovação de moção à Assembleia Legislativa, solicitando em caráter de urgência a análise e aprovação, na íntegra, do Projeto de Lei, inclusive a participação das comunidades no processo de criação do Conselho Gestor da Reserva. Aprovação pela Assembleia Legislativa e sanção da Lei Estadual nº 8.349, que cria a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão. Desde então, ocorreram várias reuniões para definir os mem- bros do Conselho Gestor da Reserva. |
O quadro abaixo resume todo o processo de luta que se deu a partir daí, em prol da efetivação da Reserva.
Não obstante a criação oficial da Reserva, as iniciativas no sentido de alteração de dispositivos da lei, a fim reduzir ou extinguir os mecanismos de proibição de novos empreendimentos de carcinicultura na área e possibilitar a ampliação dos empreendimentos existentes não cessaram, mas sempre encontraram a resistência organizada das comunidades locais.
Depois de oficialmente criada a RDSEPT, as comunidades continuaram com os encontros ecológicos, agora denominados de Encontros Ecológicos da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão. O VI Encontro, em 2004, resultou na elaboração de uma moção e uma recomendação ao IDEMA e ao Conselho Gestor solicitando que fosse implantada uma agenda ambiental em todas as escolas da RDSEPT, bem como a consolidação da sustentabilidade social e econômica das comunidades, o levantamento fundiário da área da Reserva e a preservação das áreas que integram o patrimônio da União para usufruto da população tradicional, proibindo o repasse dessas áreas para uso em ocupações privadas.
O processo vivenciado pelas populações do entorno da Reserva de resistir à forma de organização da exploração dos potenciais naturais da área revelou-se como uma ampla disputa pela (re)territorialização daquele espaço, mobilizando segmentos cujas relações e inserções (distintas) na dinâmica socio-econômica produziram uma trama de conflitos em torno de projetos igualmente distintos para aquele território.
De um lado, um projeto centrado no turismo e na carcinicultura, cujos desdobramentos apontavam para um padrão predatório das riquezas naturais do lugar, bem como pela gradual e rápida extinção das formas de exploração artesanal e comunitária do pescado, consideradas “primitivas” e obsoletas, em favor de um modelo industrial, organizado conforme os ditames do assalariamento compulsório e, portanto, concentração ampla da renda em circulação. Um projeto tipicamente fundado nas filosofias do progresso, do antropocentrismo que emerge com a modernidade europeia do século XVIII, cuja racionalidade, conforme Brüseke (1997), centra-se no autoaceleramento do tempo, para que os capitais constante e variável permaneçam predominan- temente no âmbito da produção, garantindo, assim, a ampla produtividade do capital. Nessa lógica, o tempo da produção e da circulação do que é produzido não estabelece associação direta com o tempo natural da biosfera.
De outro lado, emergiu a afirmação de um modelo centrado na relação sustentável com os recursos ambientais, implicando em sua conservação, no respeito à dinâmica e a diversidade biológica dos ecossistemas, centrado na atividade pesqueira artesanal. Um projeto permeado pela perspectiva de manutenção da forma de exploração artesanal, ancestralmente disseminada na região entre a população pesqueira, que não apenas funda as relações especificamente econômicas da maioria daquela população, mas estrutura suas relações sociais e humanas, isto é, se materializa como território.
Este projeto agregou diversos segmentos sociais e, não obstante não existir uma tradição de movimento ambiental nas localidades, se configurou como movimento social e pautou publicamente a territorialização daquela área em um sentido oposto ao que se delineava com a ofensiva dos grupos alinhados aos empreendimentos imobiliários e carcinicultores. Em seu conteúdo, trazia um conceito de desenvolvimento bastante identificado com o aquele que Santos (2005) prenuncia, segundo o qual trata-se de um processo concebido a partir de uma inter-relacionalidade e pelos vínculos orgânicos entre as esferas econômicas, políticas, culturais, sociais e ambientais, cuja indissociabilidade entre elas torna-se garantia de qualidade e continuidade de vida.
A força do conteúdo desse projeto, expresso na resistência dos pescadores está em que suas relações sociais socioambientais são regidas pelos conhecimentos tradicionais (mesmo que não sejam os únicos com os quais se relacionam) e por rotinas que não são regidas pelo “relógio” inventado pelo homem urbano-industrial, mas pelos movimentos próprios da natureza – das marés, dos astros, das espécies e da atmosfera – imprevisíveis, cíclicos e móveis. Portanto, trata-se de uma atividade que, mesmo que inserida no contexto das trocas capitalistas, não é regida pela racionalidade capitalista. A natureza lhe impõe limites e sua adaptação a esses limites se constitui como parte de seu ser, de sua identidade e de sua relação com o meio.
A disputa política que redundou na criação da RDSEPT foi um típico conflito em que se digladiaram duas cosmologias: uma, com as tinturas da ciência ocidental, que interpõe uma fronteira entre os ecossistemas naturais e as sociedades humanas, atribuindo àqueles uma externalidade (possível de ser arbitrariamente instrumentalizada) em relação à vida humana. A outra cosmolgia, vivida pelos pescadores (assim como pelos povos tradicionais, indígenas e não indígenas), para quem o humano, o natural e o sobrenatural se relacio- nam sob lógicas interdependentes (SILVA, 2015).
Escola, currículo e os saberes da Reserva em questão: um processo reflexivo em movimento
Notamos que ao longo das mobilizações para a constituição da Reserva, as escolas se tornaram espaços estratégicos de sensibilização e mobilização das comunidades, a partir das estratégias de ação do Conselho Gestor Local, disseminando entre as crianças, jovens e adolescentes, os interesses, a importância e a responsabilidade de todos com a criação e manutenção de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável.
O movimento da vida, rebelde, autônomo, desafiador, expresso na ampla mobilização popular pela Reserva, se fez sujeito e arrastou consigo as escolas. Chamou-as para se integrarem ao furacão de acontecimentos que gestavam senão um novo território, uma nova territorialidade para aquelas plagas, apresentando-as àqueles sujeitos, os pescadores, ciosos do próprio futuro enquanto umbilicalmente ligados ao futuro do território que se destinava a ser Reserva. Convocou-as a se fazerem parte de um processo de gestação de uma promessa de futuro para aquela população, a partir de uma perspectiva garantidora da sustentabilidade social, ambiental e econômica das comunidades, tendo os pescadores residentes do local como protagonistas e principais beneficiários do processo e não empreendimentos preocupados exclusivamente em como expandir a reprodução do seu capital, a partir da exploração das potencialidades do lugar. Como ressalta Caldart:
A luta social educa para a capacidade de pressionar as circunstâncias para que fiquem diferentes do que são. É a experiência de que quem conquista algo com luta não precisa ficar a vida toda agradecendo favor. Que em vez de anunciar a desordem provocada pela exclusão, como a ordem estabelecida, e educar para a domesticação, é possível subverter a desordem e reinventar a ordem, a partir de valores verdadeira e radicalmente humanistas, que tenham a vida como um bem muito mais importante do que qualquer propriedade (CALDART, 2000, p. 30).
Mais do que garantir um espaço natural que já era das comunidades, a luta pela RDSEPT pode ser considerada como uma luta de resistência contra-hegemônica, mesmo que em pequena escala, pois, como já foi discutido anteriormente, se constituiu num movimento de iniciativa comunitária, promo- vida por populares, que foi ganhando força e o apoio de entidades defensoras do meio ambiente, comunidade acadêmica, instituições locais e de trabalha- dores da pesca, no momento em que o processo de globalização econômica apontava em nosso Estado, a ilusão da carcinicultura e da rede hoteleira como progresso para a região.
Em que pese essa realidade se colocar sobre a dinâmica da escola, ocupando-a, literalmente (já que as dependências físicas da escola se tornaram palco da constituição do movimento), até o início do nosso trabalho investigativo, a escola oficialmente não tinha inscrito em seu Projeto Político Pedagógico a tematização de aspectos sócio-ambientais relacionados à Reserva.
Não obstante, a sensibilidade da equipe pedagógica se revela na execução, anual, de projetos de ensino voltados para a abordagem da temática “meio ambiente”, pontuando as questões históricas e ambientais que envolvem a RDSEPT, incluindo em suas atividades as ações que o IDEMA desenvolve nas escolas, no período próximo ao aniversário da Reserva, como nos revela a fala da colaboradora Gavião ao se referir ao currículo da escola e a RDSEPT: práticas curriculares, os saberes e experiências locais dos sujeitos da Reserva, na perspectiva de concebê-los não somente como expressões da cultura e das vivências produzidas na comunidade,
No momento, a gente só tem as informações que tem nos livrinhos do Encontro Ecológico, e a gente foca mais esse tema da Reserva quando a gente trabalha projeto sobre o meio ambiente. Aí a gente direciona ao ambiente no qual estamos inseridos, mas nosso currículo mesmo não tem nada que se refira especificamente à Reserva (GAVIÃO, 2015).
À nossa investigação se impunha, assim, as dificuldades dos docentes da EM ACM em articular, em suas, tematizadas episodicamente, mas como elemento problematizador do cotidiano desses sujeitos, cuja reflexão possibilitasse a identificação de limitações e possibilidades enquanto território, em suas dimensões ecológica, econômica, cultural e política.
A não assunção das problemáticas da Reserva, no contexto das prá- ticas curriculares cotidianas da escola (senão em momentos episódicos), nos aponta para uma determinada compreensão prevalecente acerca do processo formativo dos sujeitos, que se põe como finalidade a absorção individual e subjetiva dos conhecimentos escolares, pensados como abstrações cujo contato com o concreto (da realidade da comunidade de sujeitos) é uma obra deixada à mercê do desenvolvimento cognitivo de cada um.
A direção do processo pedagógico não é problematizar, mas oferecer os elementos informativos que possam, eventualmente, ser objeto desse processo pelos sujeitos e as formas específicas como eles ”tratam” os conhecimentos postos à disposição pela escola. Nesse caminho, não há uma intencionalidade de vínculos efetivos entre a construção de sentidos dos sabe- res e conhecimentos postos em circulação pelo currículo (e mais amplamente pela escola) e os projetos e vivências que mobilizam os sujeitos (concebidos como coletivos) em seus respectivos cotidianos.
Em outras palavras, a lógica curricular levada a efeito no âmbito do currículo ensinado preocupa-se com a difusão de saberes e conhecimentos considerados como “neutros” ou, na melhor das hipóteses, como apreensões racionais de uma realidade não problematizada, porque posta como uma objetividade “externa”, sem relações mais profundas com os processos de (re)produção do conhecimento gestado pela escola. Assim, as questões, os conflitos, os saberes e os problemas que atravessam as tramas vividas concretamente pelos sujeitos e que atravessam seu presente e podem definir os seus respectivos futuros naquele território não é posto como objeto da intencionali- dade curricular e do fazer-se pedagógico.
Em face disso, propusemos uma sistemática de sessões reflexivas e entrevistas em torno de questões que pudessem fazer aflorar o reconhecimento da relevância dos saberes e experiências advindas da constituição da RDSEPT, bem como as possibilidades e as formas de sua incorporação no âmbito das práticas curriculares desenvolvidas pelos profissionais da escola.
A realização dessas sessões possibilitou que se revelassem as potencialidades e as dificuldades do Grupo Colaborador, encarregado de elaboração do PPP da EM ACM, em elaborar e implementar um projeto educativo sintonizado com as demandas e problemáticas vividas pelos sujeitos que vivem na/da Reserva, possibilitando discutirmos acerca dos limites, possibilidades e desafios enfrentados na construção de um Projeto Político Pedagógico pensado pelo e para a população do campo, mais particularmente, dos que vivem na/da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão (RDSEPT).
As discussões revelaram que o espaço de “entrada” da Reserva nas práticas curriculares da escola, encontrava-se mediado – ou filtrado – pela possibilidade de adequação às “disciplinas”, na medida em que, na visão da maioria dos membros do Grupo Colaborador, elas materializavam, demarca- vam e sintetizavam o alcance do currículo. Isto é, o currículo seria a expressão da congregação de seus componentes, as “disciplinas”, como nos indica a fala da colaboradora Tamatião (2015) ao destacar que “Currículo é a disci- plina, com os conteúdos e os dados dos alunos”. Ou o colaborador Dentão, para quem “[...] o currículo seria justamente isso, o que é oferecido aos alunos nas áreas que competem às aprendizagens, com os conteúdos trabalhados”.
Como nos explicita a colaboradora Gavião,
Quando elaboramos os projetos definimos o que é que vai ser trabalhado em cada área. Por exemplo, no projeto meio ambiente o que é que pode ser trabalhado na disciplina de História? É a história da Reserva. Então esse ponto já não é mais com as outras disciplinas, assim... procuramos ver o que combina mais com a disciplina (GAVIÃO, 2015).
O que se evidencia na fala de nossos colaboradores é a filiação à uma perspectiva acadêmica de currículo tal como nos expõe Lopes e Macedo (2011, p. 72), segundo as quais, nessa perspectiva, “[...] a resposta à pergunta sobre qual conhecimento deve ser ensinado na escola é encontrada na lógica dos conhecimentos disciplinares acadêmicos [...]”, tendo relevância a ideia de cânone, isto é, o currículo estaria associado a “[...] um corpo de conhecimentos selecionados para garantir a transmissão, às gerações mais novas, da lógica do conhecimento produzido pela humanidade”, cabendo à escola “[...] ser capaz de ensinar os princípios racionais que garantem a com- preensão do cânone e permitem o desenvolvimento da mente do estudante”.
As falas dos colaboradores Tamatião, Dentão e Garça-Branca articuladas, nos mostram que embora a escola reconheça a Reserva como uma “realidade relevante” demandante de uma abordagem nas práticas curriculares da escola, sua incorporação no âmbito do currículo e das práticas curriculares da escola encontra-se distante, resumindo-se aos projetos de ensino com temáticas locais, projetos esses, geralmente elaborados no início do ano letivo, inseridos de forma tópica no conjunto das atividades desenvolvidas na escola, especialmente quando da proximidade do período dos Encontros Ecológicos.
Essa sensibilidade pedagógica apresentada pelos colaboradores revela-se no que Arroyo (2013) aponta como um movimento recente que envolve poucos grupos docentes e escolas, mas que é resultante de uma estreita relação entre trajetórias de vida dos sujeitos (na infância e adolescência) e suas trajetórias escolares, sua frequência escolar, bem como sua dificuldade de articular o tempo de escola, de estudo e aprendizagem e tempos de sobrevivência e trabalho. Como desdobramento dessa sensibilidade, tem-se, segundo o autor, a implementação de projetos pontuais e extracurriculares abordando algum aspecto relevante das vivências dos sujeitos.
Nas entrevistas e sessões reflexivas essa questão tomou a forma de desafio. Os participantes do trabalho investigativo percebiam que mesmo inserindo as temáticas ambientais em seu currículo, a escola não a fazia enquanto ações sistematizadas. Apesar de existir uma preocupação com as questões relacionadas aos aspectos comportamentais tidos como adequados no que tange a relação da comunidade com o meio ambiente, em particular a Reserva – inclusive, com o resgate histórico dos processos políticos e sociais que resultaram em sua constituição – e haver uma integração da escola às ações educativas propostas pelo IDEMA, não existia um projeto educativo orientado a se deixar atravessar pelas múltiplas dimensões do contexto social em que a comunidade está implicada. Tal dedução pode ser observada, pela fala da colaboradora Gavião:
A escola ainda não tinha pensado nesse tema da Reserva dentro do PPP, é um pecado, mas nós não tínhamos pensado. Mas, é um fato importante a ser contemplado no PPP já que aqui é uma Reserva. Acho que podemos pensar em elaborar projetos pedagógicos para serem trabalhados pelo menos uma vez por ano, direcionando-os à Reserva, já que a gente trabalha mais de um projeto por ano, um deles poderia estar relacionado à história da Reserva (GAVIÃO, 2015).
Trata-se de um desafio que implica o reconhecimento não apenas da Reserva como um processo histórico ou uma “realidade relevante”, mas como âmbito mesmo da reprodução da vida das pessoas que vivem num “lugar”, tal como definido por Saquet, para quem
O lugar pode ser compreendido como um contexto, mediação entre o particular e o universal e como componente de nosso sentido de identidade; como território e territorialidade construídos histórica e geograficamente, pela relação efetivada entre os sujeitos e destes com o ambiente de vida cotidiana. Nesse sentido, podemos afirmar que é no lugar que os processos se efetivam, atra- vés do acontecer [...]. Há uma unidade entre as processualidades histórica e multiescalar, nutrindo o pretérito, o ser e o vir-a-ser, em cada lugar, cotidianamente (SAQUET, 2010, p. 109).
O que nossa investigação demonstra é que “o lugar”, leia-se “a Reserva” interpelou a escola. A Reserva e seus sujeitos emergiram diante da escola e a colocaram como parte do processo próprio de sua constituição como realidade, como conquista social que organiza a vida das pessoas da comunidade. Em seu movimento de afirmação, a Reserva convocou a escola a ser componente do processo de constituição identitária, como território, como afirmação de uma “preterieridade” presente e futura – o reconhecimento da pesca artesanal, tida como “tradicional”, como centro da atividade econômica proposta à Reserva.
Porém, é fato que, passados doze anos de sua constituição, a RDSEPT ainda não foi incorporada pelo currículo da escola, como matriz das práticas curriculares escolares em suas múltiplas possibilidades e vetores. A escola não operou uma decodificação da Reserva como dado cultural relevante que se interpõe às práticas curriculares.
Sua presença episódica, como objeto de projetos anuais na escola, acaba sendo uma esperança de diálogo com o que versa as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do Campo, em seus artigos 4º e 5º, em que apontam para que os temas a serem trabalhados nas escolas do campo devem ligar-se ao mundo do trabalho e ao desenvolvimento pró- prios desses territórios, inseridos numa parte específica do currículo, devendo resgatar os conhecimentos que germinam das experiências e das lutas das comunidades, transformando-as num espaço de conhecimento que deve ser investigado e potencializado.
Esperanças e descobertas: um caminho a ser trilhado
Quando iniciamos o processo de investigação numa perspectiva de pesquisa colaborativa, a EM ACM vivia um momento de autorreflexão: havia constituído um grupo com a finalidade de se elaborar o Projeto Político Pedagógico e o currículo da escola. O Grupo colaborador instituído para dar cabo da tarefa representava os diversos segmentos que vivenciam o cotidiano da instituição e as sessões reflexivas e entrevistas que tivemos emergiu como momento de problematização não apenas daquele processo a que se dispunham empreender, mas de algumas das apreensões que tinham da própria escola e da relação que ela tem com a comunidade.
Assim, nesses espaços de colaboração vivenciados durante a pesquisa foi possível uma des/re/construção entre os partícipes, do entendimento acerca das teorias cujo contato remontava à formação inicial, cursos de formação e experiências vividas ao longo de sua prática profissional. Mas, principalmente, foi possibilitado o “encontro” dos professores com a ideia de que a EM ACM, por sua inserção e característica do público que atende é uma “Escola do Campo”, como pudemos identificar na fala da professora Canário do Mangue (2015), em uma de nossas sessões reflexivas, ao dizer, com surpresa: “Eu não sabia que o Alferes era uma Escola do Campo! Fiz o PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), o pessoal de Diogo ficava na outra turma que era com as escolas do campo, mas nunca ninguém disse que a gente também era escola do campo”.
Aquelas sessões reflexivas se constituíram em primeiro espaço formativo a provocar e apresentar que aquelas professoras se pensassem como professoras de uma escola do campo. O fato da EM ACM estar situada em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, numa área pesqueira, de mar, restinga e duna, aos seus olhos, não lhes remetia a uma escola do campo, na medida em que entendiam que uma escola para ser reconhecida como “do campo” teria que estar situada em um território delimitado pela presença da figura clássica do camponês, do trabalhador rural, no contexto de um assentamento de reforma agrária ou comunidade rural tradicional.
Como nos revelou Canário do Mangue:
[...] pra mim é novidade saber que o Alferes é escola do campo. A gente sempre recebeu material urbano, porque é o mesmo material que vem pra Macau. Sempre nos encontros do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), a gente via que, por exemplo, o pessoal da Salete e da Luzia2 já recebia material diferente, que era voltado para o campo, mas a gente não (MANGUE, 2015).
Essa (des)informação presente entre as participantes do Grupo Colaboradores é o reflexo, ainda, de uma confusão que se estabelece entre determinados segmentos do meio educacional que associam a Educação do Campo ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), o que não é de sur- preender, afinal, foram esses os espaços de gênese das políticas públicas que engendraram um conjunto de iniciativas pedagógicas que se colocaram no campo da Educação do Campo.
Mas também, reflete a pouca (ou nenhuma) inserção das Diretrizes Operacionais da Educação do Campo entre determinados segmentos das gestões escolares que, por isso, ignoram que
A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro nãourbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana (BRASIL, 2001, p. 1).
Assim, as sessões reflexivas realizadas no processo de construção dos dados desta pesquisa, para discutir a Educação do Campo no âmbito do município de Macau, mais precisamente no distrito de Barreiras, possibilitou a tematização de algumas questões acerca desta modalidade, no chão da escola, com o Grupo Colaborador que demonstrou que esse procedimento da pesquisa se constituiu no primeiro espaço de vivência formativa a respeito desta temática.
Não obstante, identificamos durante as sessões reflexivas, nas entrevis- tas e falas dos membros do Grupo Colaborador que, a rotatividade do quadro docente da escola produzia um fenômeno de não vinculação dos profissionais com a instituição e mesmo com a comunidade. Durante o período da pesquisa, por exemplo, quase todo o corpo docente da escola era formado de professo- res contratados não por concurso, mas, com contratos provisórios e que foram substituídos após o fim destes, por novos profissionais os quais, por sua vez, não residiam na comunidade.
Tal situação, portanto, criava um empecilho básico no processo de formação e gestação de identidades entre os professores e o território onde emanam as experiências próprias da vida na Reserva, em relação à formação dos sujeitos da comunidade e, mesmo, à própria escola: o não vínculo com o território.
Sem esses vínculos, o caminho para se pensar o currículo e o Projeto Político Pedagógico como lócus do exercício de reflexão sobre o próprio lugar como território educativo torna-se algo distante, facilitador de movimentos que tendem ao não reconhecimento dos saberes e das culturas próprias daquele território.
Por um lado, esse não reconhecimento tem suas bases nos modelos de formação profissional sob os quais foram submetidos, que lhes demandam única ou principalmente
[...] prestar atenção à formulação de objetivos e metodologias, não considerando objeto de sua incumbência a seleção explícita dos conteúdos culturais. Essa tradição contribuiu de forma decisiva para deixar em mãos de outras pessoas (em geral as editoras dos livros didáticos) os conteúdos que devem integrar o currículo e, o que é pior, a sua coisificação. [...] Ao mesmo tempo, se criou uma tradição na qual os conteúdos apresentados nos livros didáticos aparecem como os únicos possíveis, os únicos pensáveis. Como consequência, quando um/a professor/a se pergunta que outros conteúdos poderiam ser incorporados ao trabalho de sala de aula, encontra dificuldade para pensar em conteúdos diferentes dos tradicionais (SANTOMÉ, 1995, p. 161).
Por outro lado, temos a percepção hegemônica de currículo atravessada pela perspectiva urbanocêntrica, isto é, que supõe as relações e sujeitos sociais, valores, comportamentos, manifestações culturais, formas e saberes de (re)produção da vida, em sua configuração histórica, especificamente urbana (em seu viés industrial moderno), como sendo a base de estruturação dos saberes a serem assumidos por todas as escolas, inclusive aquelas que não se situam em territórios urbanos. Assim, temos uma compreensão de currículo enquanto lócus do saber cultamente elaborado que pode conduzir à marginalização dos saberes que os sujeitos do campo elaboram em suas relações, no modo pelo qual, lutam, resistem se afirmam como sujeitos de direitos.
Acerca dessa questão, Ramos, Moreira e Santos ressaltam que:
A educação do campo deve compreender que os sujeitos possuem história, participam de lutas sociais, sonham, têm nomes e rostos, lembranças, gêneros, raças e etnias diferenciadas. Cada sujeito individual e coletivamente se forma na relação de pertença à terra e nas formas de organização solidária. Portanto, os currículos precisam se desenvolver a partir das formas mais variadas de construção e reconstrução do espaço físico e simbólico, do território, dos sujeitos, do meio ambiente. O currículo precisa incorporar essa diversidade, assim como precisa tratar dos antagonismos que envolvem os modelos de agricultura, especialmente no que se refere ao patenteamento das matrizes tecnológicas e à produção de sementes (RAMOS; MOREIRA; SANTOS, 2004, p. 37).
No contexto de lutas e conquistas vivenciadas pela comunidade de Barreiras, compreendemos que para a EM ACM construir uma nova identidade enquanto escola do campo (visão de si em relação a outras instituições, autoconsciência de quem é, a que lugar pertence) faz-se necessário, que desenvolva seu projeto educativo na perspectiva da “Pedagogia do Movimento”, se arrisque ao novo, enfrente uma batalha interna, se reorganize com toda autonomia que possui, deseje ser diferente, desdobre a mudança do seu currículo e do seu PPP, inserindo os saberes e as experiências de lutas da comunidade, forta- lecendo-se enquanto lócus de formação, comprometida com a comunidade, seus sujeitos e com as lutas por eles empreitadas.
Um processo de viagem ao contexto, ao território em que a própria escola já está imersa, reconhecida como espaço fundamental para a (re)pro- dução da vida, abrindo-se a misturar-se organicamente sua pedagogia com os traços, identidades e processos culturais que a própria comunidade vem gestando, desde a conquista da Reserva, fazendo, assim, da escola, lugar em que os educadores e os educandos (e suas famílias) se põem à serviço de suas vidas naquele território.
Referências
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Notas