Resumo: No artigo, explora-se a problemática da internacionalização do currículo com atenção especial à ideia de cosmopolitismo, um conceito que vem, com frequência, compondo o conjunto de argumentos de pesquisadores na explicitação das dinâmicas que constituem esse movimento global que envolve a educação. Analisa-se, particularmente, como os autores que discutem a referida problemática, situam e compreendem o cosmopolitismo nesse projeto educativo-político em termos de enfoque teórico e, nesse âmbito, destaca-se como essas distintas abordagens epistêmicas e políticas se movem nos contextos do pensamento pedagógico e curricular contemporâneos. Finalmente, evidencia-se os principais enfoques ou abordagens atribuídos ao conceito de cosmopolitismo no âmbito da problemática da internacionalização do currículo – expressão de um tema pouco consensual. Trata-se, portanto, de um estudo de natureza teórica que se utiliza de outras categorias conceituais para explorar um objeto específico de conhecimento – neste caso, o de cosmopolitismo.
Palavras-chave:CurrículoCurrículo,CosmopolitismoCosmopolitismo,InternacionalizaçãoInternacionalização.
Abstract: In the paper, we explores the problem of the internationalization of the curriculum, with special attention to the idea of cosmopolitanism, a concept that often has been composing the set of arguments of researchers in the explication of the dynamics that make up this global movement that involves education. We analyze, in particularly, how authors who discuss the problem above situate and understand cosmopolitanism in this educational-political project in terms of theoretical approach and, in this context, it is highlighted how these different epistemic and political appro- aches move in the contexts of contemporary pedagogical and curriculum thinking. Finally, we highlight the main focus or approaches attributed to the concept of cosmopolitanism in the context of the internationalization of the curriculum problem – an expression of a less consensual theme. It is, therefore, a study of a theoretical nature that uses other conceptual categories to explore a specific object of knowledge – in this case, cosmopolitanism.
Keywords: Curriculum, Cosmopolitanism, Internationalization.
Resumen: En el presente artículo, exploramos la problemática de la internacionalización del currículo con atención especial a la idea de cosmopolitismo, un concepto que viene, con frecuencia, componiendo el conjunto de argumentos de investigadores en la explicitación de las dinámicas que constituyen este movimiento global que envuelve la educación. Analizamos, particularmente, como autores que discuten la referida problemática sitúan y comprenden el cosmopolitismo en ese proyecto educativo-político en términos de enfoque teórico y, en ese ámbito, destacamos cómo esos distintos enfoques epistémicos y políticos se mueven en los contextos del pensamiento pedagógico y curricular contemporáneos. Finalmente evidenciamos los principales enfoques atribuidos al concepto de cosmopolitismo en el ámbito de la problemática de la internacionalización del currículo – expresión de un tema poco consensuado. Se trata, pues, de un estudio de naturaleza teórica que se utiliza de otras categorías conceptuales para explorar un objeto específico de conocimiento – en este caso, el cosmopolitismo.
Palabras clave: Currículo, Cosmopolitismo, Internacionalización.
Artigos
Cosmopolitismo como fundamento e utopia nos movimentos pela internacionalização do currículo
Cosmopolitan as a foundation and utopia in the movements for the internationalization of the curriculum
Cosmopolitismo como fundamento y utopía en los movimientos porla internacionalización del currículo
Recepción: 15 Marzo 2018
Aprobación: 24 Agosto 2018
O texto integra a pesquisa que se deu na universidade e que tem por objetivo analisar implicações dos movimentos de internacionalização dos currículos no/do Ensino Superior sobre as atuais políticas e reconfigurações curriculares da Educação Básica, particularmente, nos cenários de Brasil e Portugal. O artigo soma-se a outros já produzidos nesse mesmo âmbito investigativo.
O desafio, no recorte em pauta, é discutir a problemática da internacionalização do currículo com atenção especial à ideia de cosmopolitismo, um conceito que vem, com frequência, compondo o conjunto de argumentos de pesquisadores na explicitação das dinâmicas que constituem esse movimento global envolvendo a educação (ROBERTSON; VERGER, 2012). Um conceito que tem se revelado potente por se apresentar como um dos ideários nos movimentos que se mobilizam em favor da internacionalização e nas expectativas educativas de futuro para os sistemas de ensino conforme aponta Morgado (2016).
A proposta do trabalho é, pois, verificar como autores que discutem a problemática da internacionalização do currículo, situam e compreendem o cosmopolitismo nesse projeto educativo-político, especialmente os enfoques que vêm marcando a apropriação do conceito e, nesse âmbito, destacar as diferentes abordagens epistêmicas e políticas que sustentam a formulação de conceitos para cosmopolitismo, evidenciando, de algum modo, como essas concepções se movem nos contextos do pensamento pedagógico e curricular contemporâneos.
Com esse propósito, o texto foi estruturado em três seções. Na primeira, têm-se currículo como categoria central no contexto da problemática, portanto, como território que conecta internacionalização com cosmopolitismo. Argumenta-se ser o currículo um conceito/prática diretamente associado às trajetórias da formação humana, aspecto que envolve a formulação dos grandes projetos societários, entre os quais, os ideários de constituição de sujeitos e/ ou de um mundo cosmopolita. Na segunda, explora-se, embora sumariamente, conceitos de cosmopolitismo notadamente presentes na literatura que discute o tema por entender que eles servem de referência para o debate que envolve o conceito na problemática da internacionalização do currículo. Na última, apresenta-se os principais enfoques ou abordagens atribuídas, ao conceito de cosmopolitismo no âmbito dessa mesma problemática.
Trata-se, portanto, de um estudo de natureza teórica que recorre a de outras categorias conceituais para explorar um objeto específico de conhecimento – no caso, aqui, o conceito de cosmopolitismo, associado aos movimentos pela internacionalização do currículo.
É importante alertar os leitores que, considerando os limites da pesquisa e os objetivos do texto, abordar-se-á o conceito de cosmopolitismo com densidade suficiente apenas para explicitar, com algum detalhamento, as diferenças conceituais e seus respectivos enfoques, sem retomar, todavia, a ampla gama de elementos teóricos que o conformam e que vêm, desde há muito tempo, marcando a produção teórica, especialmente nos campos da filosofia, da sociologia e da ciência política.
Analisa-se o referido quadro teórico com o pressuposto de que o ideário da formação humana cosmopolita revela-se contemplado em distintos projetos político-educativos, sendo, obviamente, concebido e orientado por diferentes filiações ou perspectivas epistemológicas e que, portanto, trata-se de um conceito marcado na teoria social (BOSCO, 2016) por distintas vertentes de significação, com recortes de análise que privilegiam aspectos, tais como: o econômico, o político, o tecnológico, o (inter)cultural, o de classe, o ambiental, o normativo-jurídico, além de outros. Nesse sentido, já não é interessante falar de ‘um ideário cosmopolita’, mas de ‘ideários’, conforme indicam as compre- ensões e os projetos que, nesse âmbito, se colocam.
Outro pressuposto é que, independentemente da concepção e dos enfoques que sustentam a construção dos conceitos de cosmopolitismo, a educação e os percursos curriculares se colocam como lugares centrais, especialmente por representar, pela via da escolarização, a institucionalidade da formação humana, atuando, assim, como estratégia fundamental no conjunto das formulações em projetos de natureza societária. Entende-se que a participação do pensamento educacional e curricular é inextricavelmente importante seja aderindo, (re)formulando, criticando ou mesmo resistindo a esses e outros ideários da formação humana tanto no plano individual quanto no coletivo. Assim, para qualquer horizonte que aponte um determinado projeto social, necessariamente é na educação, pelo território curricular nas trajetórias de formação, onde se colocam as principais energias, estratégias e expectativas.
Para Popkewitz (2011), embora a palavra cosmopolitismo, em si, seja raramente usada nas reformas educacionais atuais, seus pressupostos fundacionais estão enraizados na pedagogia escolar, no currículo e na formação de professores. O autor ilustra a afirmação destacando, entre outros aspectos, que a escola pública secundária americana moderna, em sua formação, no início do século XX, era chamada de escola secundária cosmopolita; que as teses cosmopolitas circulam como pressupostos de base nas reformas europeias sobre a educação intercultural e o aprendente por toda a vida e que as reformas escolares e a formação de professores nos Estados Unidos ainda incorporam mutações das noções iluministas de razão e racionalidade.
No âmbito do que constitui a chamada tradição ocidental moderna, o curriculum, em sentido amplo, é trajetória que dá sentido, forma e conteúdo à formação humana. Compondo o fenômeno da escolarização, constitui atividade educativa estruturante da prática social, tanto em termos da vida individual quanto coletiva. Joga um papel fundamental na formulação de projetos societários em, pelo menos, dois âmbitos: como expectativa de aperfeiçoamento da condição humana e no plano da singularidade dos sujeitos e de aperfeiçoamento das condições de vida coletiva em sociedade. Apresenta-se, pois, como alternativa institucional para um projeto civilizatório ou mesmo uma possibilidade no horizonte de constituição de uma Cosmópole (ZANELLA, 2009). Na Europa de hoje, educação e currículo cosmopolitas formam parte da agenda em diversos projetos, especialmente os de origem transnacional.
Nesse sentido, o currículo pode ser entendido como conceito e como prática associada, ou fazendo parte, do que historicamente vem marcando as metanarrativas que defendem a possibilidade do aperfeiçoamento tanto da vida singular das pessoas quanto da construção de uma sociedade idealmente melhor. Associação que pode ser feita, inclusive, com as várias utopias construídas ao longo da história. O currículo é, pois, considerado atividade de alcance teleológico e traduz-se, nessa perspectiva, como opção educativa de um determinado projeto seja ele individual ou coletivo. O cosmopolitismo pode ser colocado nesse horizonte, ou seja, de um vir a ser singular e social como entende Popkewitz (2011).
Vale lembrar que outras utopias serviram-se da ciência, da educação e do currículo para formular seus modelos ideais de sociedade. Em certo sentido, todas apostavam no valor do conhecimento, matéria-prima do currículo. O comunismo de Marx (1818-1883), por exemplo, apostou numa formação humana omnilateral que associa escola conhecimento e trabalho; os libertários, por sua vez, investiram na ideia de uma formação integral e, portanto, livre das imposições do Estado. Em A utopia, Thomas Morus (1478-1535) idealizou uma educação política que permitisse às pessoas a liberdade de pensamento. Em Campanella (1568-1639), na Cidade do Sol, há inclusive um currículo que dá destaque a língua e o alfabeto, exercícios físicos, diferentes ofícios, matemática, ciências naturais, agricultura e pecuária. Por meio desse currículo, a educação abriria o conhecimento para todos os membros da sociedade, conhecimento esse a ser dirigido para fins sociais que incorporassem as esperanças cosmopolitas de agenciamento, liberdade e progresso (GANHO, 2010).
É, pois, consensual, no campo dos estudos curriculares, o entendimento de que o currículo escolar ocupa território central na atividade educativo-política de formação humana. E que, por se evidenciar potente, em suas múltiplas dimensões, vem sendo cada vez mais transformado em estratégia pelas redes de governança transnacional visando colocá-lo na convergência com as racionalidades da chamada internacionalização da educação – projetos de uma agenda estruturada (DALE, 2004) que se movem em escala global e que colocam o cosmopolitismo como um de seus principais ideários.
A referência feita, em textos anteriores, sobre essa mesma problemática, estudos que analisam o fenômeno da internacionalização da educação apontam ser consensual o entendimento de que o currículo constitui espaço de interesse estratégico no conjunto das iniciativas adotadas por instituições educacionais visando a uma adaptação aos requerimentos e às demandas desse movimento. Não é por acaso que pesquisadores reconhecidos, como Leask (2009; 2015) e Knight (2004; 2008), preferem analisar a internacionalização ‘a partir’ ou ‘nos espaços’ do currículo. A expressão IoC (Internationalisation of the Curriculum), amplamente utilizada em trabalhos que discutem essa temática, sinaliza a relevância desse recorte no conjunto da produção teórica sobre internacionalização da educação. É possível dizer que não há como operar qualquer estratégia de internacionalização no campo educacional sem que haja mobilização de ações no território curricular.
De fato, o cosmopolitismo tem sido pensado, definido e proposto desde a antiguidade com distintos sentidos e significados. Assim como outros conceitos estruturantes do pensamento filosófico e sociológico, tais como utopia, democracia, razão, liberdade e poder, a ideia de cosmopolitismo nunca saiu de cena. Desde os estóicos, passando por Kant e mais recentemente em Habermas e Beck (apenas para citar alguns), esse ideário foi deixando de constituir apenas um propósito ou uma utopia para se tornar também um conceito (BOSCO, 2016).
Ao liderar um projeto que incluía pensar a possibilidade de inscrição do universal em política, pelas finalidades das leis morais, jurídicas e da ética, Kant elabora uma teoria para o cosmopolitismo (BRANCO, 2017), referência que se mantém viva até hoje. Cosmopolitismo que, para Kant, em síntese, constitui a própria possibilidade de pensar o universalismo moral na política a partir da história. Branco (2017) sintetiza o conceito de cosmopolitismo do filósofo iluminista na seguinte formulação:
Sendo também parte de sua teoria moral (prática), Kant entende o cosmopolitismo, a partir de uma compreensão teleológica da história universal, como uma tendência à moralização da sociedade. Kant desenvolve em sua reflexão sobre o cosmopolitismo perspectivas institucionais, jurídicas e políticas que possam assegurar esse processo histórico de moralidade social. O que o cosmopolitismo visa é, enfim, a possibilidade de uma justiça global, lidando diretamente com indivíduos, de modo independente de seu pertencimento a um Estado particular. Essa justiça se instituiria na possibilidade de criar mediações jurídicas (uma constituição mundial) para a relação entre Estados, do mesmo modo como o Contrato Social criou mediações legais entre os indivíduos no interior de cada Estado. (...) A ideia de uma constituição nacional deve se completar por uma Federação mundial (Völkerbund) regida por uma constituição cosmopolita. O que significa dizer que, do ponto de vista da história, o projeto da constituição de Estados não se esgota em si mesmo, mas caminha para seu desdobramento internacional, no cosmopolitismo. É precisamente neste ponto que cosmopolitismo e história se conectam (BRANCO, 2017, 188-189).
Nas teses da teleologia de Kant com vistas à construção de uma sociedade cosmopolita, encontram-se proposições objetivas como a ampliação do direito cosmopolita, o estabelecimento de um tratado para a paz perpétua, a criação de uma federação dos povos no modelo do republicanismo e, inclusive, a instituição de uma lei mundial cosmopolita. Todas as proposições foram pensadas por Kant num ideal de construção da paz cosmopolita e as principais escritas por ele no seu célebre opúsculo Rumo a Paz Perpétua. Ramírez (2013, p. 258) avalia que “[...] si algunos consideran el kantiano el prototipo de cosmopolitismo imperialista1, creo que, no tanto su obra internacionalista, como su universalismo ético constituye más bien el nervio teórico del cosmopolitismo racionalista de hoy”.
A concepção de Habermas sobre cosmopolitismo, associada, de algum modo, ao pensamento de Kant, também é apresentada por Branco (2017). O autor faz isso, exatamente para marcar as aproximações e diferenças entre esses dois filósofos cuja produção teórica ocorre em tempos e contextos distintos. entre as várias relações em termos de continuidade e ruptura, destaca, por exemplo, que Habermas não nega a necessidade salutar de limitar a soberania de Estado em um panorama pós-nacional, mas, segundo ele, é preciso reconhecer que a forma do Estado nação obteve bastante sucesso em criar uma solidariedade coesa entre pessoas estranhas que se entendem como membros de uma comunidade estatal, com base em uma integração social abstrata que toma a forma de uma comunidade nacional. Nesse sentido, alega que Kant ignorou a força explosiva no nacionalismo, modelo que, especialmente no século XX, promoveu sentimentos de pertencimento, de consciência nacional, de unidade cultural e de política partilhada.
Distintamente de Kant, Habermas aposta na aprendizagem e formação de instâncias pós-nacionais que se equiparam, em termos de valor, aos Estados nacionais. Não se trata de alteração de poder do nacional ao transnacional, mas de mediações. É o que já ocorre hoje, a exemplo da União Europeia e de outros acordos transnacionais que se colocam como verdadeiras constituições. Sobre o exemplo da União Europeia, Habermas (2001, p. 125) assinala que “[...] a condição de cidadão europeu se faz palpável mediante práticas de entrada e saída de países estrangeiros europeus ou não europeus”. Para Habermas, a unidade da ordem jurídica global, passa, necessariamente por mediações ou negociação política na relação dos Estados nacionais com a comunidade internacional. Organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, a Organização das Nações Unidas – ONU, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE e a Organização Mundial do Comércio - OMC constituem espaços institucionais, factíveis para efetivar essa relação.
Outra distinção, entre o pensamento dos dois filósofos, é que Kant punha sua energia e apostava na construção de uma constituição internacional cosmopolita com base jurídico-normativa, enquanto Habermas põe suas fichas no ideário de formação de uma democracia cosmopolita, capaz de garantir uma aplicação imparcial dos direitos humanos (DURÃO, 2016). Assim, ainda que Habermas conserve, na base de sua teoria do cosmopolitismo, a ideia de paz universal, constrói seus argumentos em defesa de uma democracia cosmopolita cuja factibilidade esteja representada no aperfeiçoamento das instituições transnacionais como é o caso da ONU e do Tribunal de Haia, na formação de uma cidadania e esfera pública mundial e, ainda, numa política mundial de proteção aos Direitos Humanos – tudo isso aos modos de um Estado democrático de direito juridicamente organizado (DURÃO, 2016).
Ulrich Beck é outra figura central no atual debate sobre o conceito de cosmopolitismo. Dedicado à compreensão da realidade social em tempos de risco e incertezas, ou, às novas configurações da sociedade contemporânea, trabalha na reconceitualização de categorias sociais importantes como globalismo, transnacionalização e cosmopolitismo. Critica os conceitos de cosmopolitismo dos estóicos e de Kant, especialmente a ideia construída por eles de uma sociedade cosmopolita como fraternidade planejada e, portanto, positiva. Defende a ideia de um cosmopolitismo real e banal no qual as interdependências do mundo se incorporam ao cotidiano da vida.
Em entrevista concedida à Alfieri em 2006, Beck sintetiza seu conceito de cosmopolitismo:
He escrito en mi libro2 que la mirada cosmopolita no es «el amanecer de la confraternización general de los pueblos, ni los albores de la república universal, ni una mirada mundial que flotara libremente, ni el amor al otro por decreto». El cosmopolitismo que propugno es profundamente realista, autocrítico, incluso escéptico. No aboga por un nuevo universalismo, como lo hacía el esperanto en su momento. Por ejemplo, y para no salir del ámbito lingüístico, tampoco pretendo que en Europa todo el mundo hable una sola lengua, el inglés. Por el contrario, abogo por el multilingüismo, por la confluencia y simultaneidad de múltiples culturas. Se trata de reconocer la diversidad con todas sus perspectivas, y también los retos y los conflictos que pueda suscitar. Este cosmopolitismo no tiene nada de ingenuo. [...] El cosmopolitismo, a diferencia del internacionalismo, no surge de una teoría política ni de una filosofía sino de los hechos, de la propia experiencia de la gente (ALFIERI,2006, p.114). 93
Ainda que Beck situe seu conceito de cosmopolitismo bem distante das formulações de Kant, em, pelo menos, um aspecto nota-se haver aproximação – quando alimenta um ideário que inclui formulação jurídico-normativa em escala mundial para garantia de direitos humanos. Sobre esse aspecto, na mesma entrevista, assume que
[…] ese sistema que estamos buscando debe basarse en el imperio del derecho a nivel internacional. Hasta la fecha tenemos el problema de que carecemos de una policía y de un ejército a nivel internacional; las fuerzas armadas están gestionadas por los Estados. [...] los derechos humanos sólo pueden ser garantizados de manera sustentable si se crean mecanismos internacionales para impedir que los mismos Estados, que deberían garantizar los derechos de sus propios ciudadanos, los violen. Por eso es necesario el establecimiento de mecanismos de intervención militar que representen verdaderamente a la comunidad mundial (ALFIERI, 2006, p. 116).
Além dos intelectuais destacados aqui, é possível (não fossem os limites do texto) incluir outros nomes importantes que, no âmbito de seus objetos de análise, incluem o conceito de cosmopolitismo, entre os quais, figuras como Delanty3, Derridá4, Brunkhorst5, Benhabib6, Appiah7, além de tantos outros. São nomes frequentemente citados em textos que discutem as dinâmicas da vida e das sociedades contemporâneas, incluindo-se, obviamente, o conceito de cosmopolitismo.
Currículo, internacionalização8 e cosmopolitismo são conceitos que, no contemporâneo, tornam-se ainda mais interdependentes por variadas razões de natureza cultural e política, mas, sobretudo, porque se entrecruzam no desdobramento de temas ou de problemas de profundo interesse educacional, como são, por exemplo, as pautas que incluem direitos humanos, diversidade cultural, democracia, justiça social e cognitiva, questões ambientais, emancipação humana, etc.
O conceito de cosmopolitismo, particularmente, tem se mostrado potente não somente no debate sobre internacionalização do currículo nas/ das instituições de Educação Superior (Higher Education) – uma temática com larga produção científica, mas também em dois outros espaços: na internacionalização do próprio campo dos estudos curriculares (MOREIRA, 2009; 2012) e na internacionalização da formação de professores (SOUZA; MORGADO, 2014; SOUZA, 2016) – aspectos considerados importantes mas que não serão tratados aqui. Essa forte presença vem, todavia, teoricamente marcada por abordagens ou enfoques distintos, indicando, claramente, a inexistência de consensos em termos conceituais e, portanto, revelando que a produção de sentidos resulta de disputas e negociações no conjunto dos interesses de múltiplas ordens.
Uma leitura atenta aos fundamentos e finalidades que os autores assumem nos textos consultados sobre a problemática indicou que o conceito de cosmopolitismo pode ser agrupado em três perspectivas teóricas: uma que identifico como sendo de concepção liberal9 e que se expressa num cosmopolitismo de mercado assentado nos imperativos da moral, da razão e do progresso. Outra, notadamente de matriz cultural/hermenêutica, que se expressa marcando as diferenças que constituem o humano e a consequente impossibilidade de qualquer universalismo no que se refere a esse gênero como algo abstrato e descontextualizado e uma terceira de matriz sóciocrítica que defende cosmopolitismos alternativos e, portanto, contra-hegemônicos que sejam capazes de romper com a racionalidade utilitarista e excludente que erigiu a sociedade ocidental moderna. Verifica-se, ainda, que pesquisadores tratam do conceito de cosmopolitismo considerando dois outros marcos de análise: um que privilegia aspectos sobre formação singular de sujeitos ou cidadãos cosmopolitas, e outro centrado na possibilidade de constituição coletiva de um mundo ou de uma sociedade cosmopolita. Serão pontuados, sucintamente, aspectos sobre os três enfoques10.
No primeiro grupo, conforme já assinalado, estão os que afirmam o cosmopolitismo como projeto liberal de sociedade. Projeto esse que visa alcançar novos padrões de governabilidade global e de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, sem que se alterem as racionalidades do liberalismo - pilares do modelo sócioeconômico vigente. É, pois, um conceito de cosmopolitismo indiscutivelmente associado às ideias de globalização econômica, de universalismo cultural e de regulação transnacional em diversos âmbitos da vida social. Um racionalismo abstrato, na concepção de Ramirez (2013).
No referido projeto, a educação e por extensão o currículo, desempenham papel fundamental, especialmente em dois aspectos: o de formar cidadãos com as competências globais em termos interculturais, linguísticos e tecnológicas; e de promover as condições para ampliação das redes de mobilidade, de trocas científicas e tecnológicas e, ainda, de elevar os padrões de conhecimento e da cultura considerados relevantes pelos grupos e instituições de governabilidade transnacional. Nesse âmbito a educação deixa de ser um bem público de direito subjetivo, para se tornar um serviço com métricas de avaliação como qualquer outra atividade da sociedade capitalista e o currículo um território privilegiado para formação do cidadão cosmopolita pela via da aquisição das chamadas competências globais. Em síntese, a educação é vista como imperativo social e econômico na construção de um mundo cosmopolita.
Tomaz Popkewitz contribui, significativamente, no debate atual que envolve o conceito de cosmopolitismo, sobretudo a relação desse conceito com formação escolar e currículo. Para o autor, o cosmopolitismo [moderno] dá corpo a uma tese histórica radical sobre o poder da razão humana e da ciência. A aspiração do cosmopolitismo era um modo de vida em que a liberdade individual e a autonomia produzissem progresso humano universal e felicidade individual e que se traduz no contemporâneo como um cosmopolitismo inacabado de matriz liberal.
Afirma que a chave para a razão cosmopolita foi a ciência. O cosmopolitismo iluminista portava uma crença milenar no conhecimento racional enquanto força positiva para a ação. A ciência deveria diagnosticar os impedimentos ao progresso a fim de empurrar as fronteiras da escuridão e da barbárie, e espalhar a luz e o conhecimento. A esperança das ciências era descobrir os corretos padrões para produzir o cidadão cosmopolita esclarecido da nação. Do século XVIII até o presente, o cosmopolitismo funciona como conjunto de valores sagrados sobre a razão e a ciência no projeto emancipatório do progresso em direção a uma humanidade unificada, delimitada pela liberdade, autonomia e felicidade. Explicita-se, assim, em alguma medida, a presença da racionalidade científica que, hegemonicamente, sustentou os modelos curriculares de formação escolar e a própria concepção de escola na modernidade ocidental.
No âmbito desse enfoque, é pertinente situar os atuais movimentos de internacionalização da educação e do currículo como formando parte dos chamados globalismos contemporâneos, contextos nos quais se retoma o ideário de um cosmopolitismo de agenciamento do tipo inacabado (POPKEWITZ, 2011), abstraindo-se dois ideários liberais importantes: uma formação escolar que promova aos sujeitos tornarem-se cidadãos do mundo ao mesmo tempo que contribuem para o alcance de uma sociedade globalizada ou cosmopolita.
As atuais ciências da reforma escolar remontam os aparatos da engenharia social do início do século XX na fabricação do cidadão. As tarefas de planejamento dizem respeito, em certo nível, ao cosmopolita inacabado. Trata-se de produzir uma vida de escolha e inovação, referida, ironicamente, como engenharia, através da replicação; isto é, identificando programas bem-sucedidos (e as pessoas que neles operam) como modelos universalmente transportáveis para o universo das escolas (POPKEWITZ, 2011, p. 382-383).
Nessa mesma linha de pensamento, Estevão (2009) identifica dois modelos de cosmopolitismo, associados ao contexto do globalismo contemporâneo, denominando-os de cosmopolitismo de mercado e cosmopoliticidade democrática. Para ele, o cosmopolitismo mercantilizado apropria uma dimensão sedutora do conceito, omitindo, entre outras coisas, a fratura interna que secciona a cidadania, dando o estatuto de cidadãos cosmopolitas, sobretudo àqueles que são vencedores nas condições do atual mercado e arredando os outros como incompetentes ou irrelevantes. Destaca que, mesmo a diversidade e o respeito pela diferença, quando são defendidas, não passam de um meio ao serviço da estratégia de mercado, ao serviço, enfim, da governança mundial levada a cabo por agências poderosas como o Banco Mundial o Fundo Monetário Internacional – FMI e a Organização Mundial do Comércio – OMC. Simultaneamente, o cosmopolitismo mercantilizado vende mediante os seus meios poderosos, não apenas os seus produtos, mas também a ordem existente como inevitável.
A definição de Estevão é ilustrativa porque nos ajuda a situar o referido projeto no âmbito das proposições curriculares em contextos de internacionalização. Notadamente, as atuais demandas, expectativas e orientações curriculares, tanto na Educação Superior quanto na Básica, especialmente as que emanam dos organismos multilaterais e dos próprios Estados nacionais, recomendam arquiteturas curriculares baseadas na aquisição de competências globais, na avaliação por resultados e na meritocracia. Nesse âmbito, as diferenças e as singularidades culturais são tratadas no plano da tolerância e da respeitabilidade, contanto que não se abra mão de trajetórias de formação escolar que as conduzam para padrões estabelecidos como universais pelos grupos hegemônicos.
Pertinente a esse mesmo aspecto, Ramírez (2013) destaca as três teses de Anderson (1998) sobre cosmopolitismo, quais sejam: um distanciamento reflexivo no que diz respeito às próprias filiações culturais; uma ampla compreensão de outros costumes e culturas e uma crença na humanidade universal, para sustentar que, no caso do modelo racionalista-liberal, se põe toda carga na terceira. Quanto à primeira, diz ele que o distanciamento reflexivo funciona mediante uma visão racionalista que percebe ‘nos outros’ somente uma humanidade comum, portanto, universal, centrada na igualdade e no genérico e não na abertura para as identidades e particularidades dos outros concretos e situados, aspecto este que Benhabib (2006) denomina perspectiva do outro generalizado. Para Ramírez (2013, p. 265), o cosmopolitismo liberal parte “[…] de una dicotomía radical inaceptable entre lo universal y lo particular, entre la humanidad y la comunidad, entre la razón y el sentimiento, entre la obligación y la lealtad. El cosmopolitismo racionalista confía demasiado en la capacidad de la razón para proporcionar a los individuos pautas de comportamiento y motivos para ser morales”.
Portanto, pensar o cosmopolitismo, à luz da racionalidade homogeneizadora, parcial e elitista, significa, em alguma medida, restringir a possibilidade de uma formação humana assentada na alteridade, no reconhecimento social e singular das diferenças, na diversidade cultural que conecta os sujeitos ao mundo, o local ao global e o racional aos sentimentos. Significa pensar a escola e o currículo como espaços instrumentais de formação ou como aparatos sociais a serviço de interesses que não os dos próprios sujeitos que os integram.
No segundo grupo, situam-se os conceitos que definem cosmopolitismo desde uma perspectiva cultural com seus respectivos desdobramentos em termos conceituais. William Pinar é, sem dúvida, importante intelectual que se identifica com essa abordagem. Reconhecido pesquisador do campo dos estudos curriculares, tem se dedicado a aprofundar seus estudos neste âmbito, com especial atenção a uma abordagem claramente subjetivista que denomina autobiográfica – conceito que vem operando em diversos trabalhos para explicitar outras categorias que interessam ao campo curricular, entre as quais o cosmopolitismo.
Na crítica que faz ao racionalismo universalista que move os projetos cosmopolitas contemporâneos, Pinar (2009) defende o que chama de cosmopolitismo honesto e afirma que um envolvimento honesto com o mundo amplia nossas concepções do cosmopolitismo do legal até incluir o vivido. Entende que, através de uma experiência educativa autobiográfica do mundo material, deveria emergir o mundano. Que no universalismo racionalista, em sua preferência pelo abstrato sobre o concreto, a política de identidade afirma que cosmopolitismo torna-se um acidente do currículo, não sua possível consequência.
Associando-se ao pensamento de outros autores que discutem o conceito de cosmopolitismo, a exemplo de Seyla Benhabib e Kwame Appiah, Pinar reafirma sua crença na possibilidade de uma mundialidade, outra, cuja base da relação humana seja a alteridade, o diálogo solidário, a capacidade subjetiva de reconhecimento do sofrimento e das experiências dos outros, das identidades que (re)constroem nosso ser-no-mundo, enfim, em dinâmicas próprias do concreto/vivido que se contradizem ao cosmopolitismo universalista pensado por Kant e traduzido no contemporâneo pelas lentes da racionalidade liberal dos grupos hegemônicos.
Nessa abordagem, o currículo é, para Pinar (2007), uma conversação complicada que se constrói pelo diálogo honesto em relações nas quais o mundo é aberto e a formação é constituinte dos percursos das experiências de conversação permanente em contextos que integram o escolar com o social e cultural – um currículo autobiográfico do encontro com o outro, consigo mesmo e com o mundo. Currículo e cosmopolitismo se encontram, entre outras possibilidades, em contextos como o descrito por Süssekind (2015, p. 616), que recorre a Certeau (1994) e ao próprio Pinar (2007) para assinalar que “[...] a conversa é local e global, pessoal e coletiva, íntima e altamente impessoal é ambivalente, é afiada, não pode ser prevista nem controlada, é anti-hierárquica e não-linear, e precisa ser entendida em sua historicidade, subjetividades e alegorias”.
Antônio Flávio Barbosa Moreira é outro estudioso do currículo que vem trabalhando esse conceito e que se aproxima da abordagem cultura- lista/subjetivista. Amparando-se em nomes como Ulrich Beck, Gerard Delanty, William Pinar e Kwame A. Appiah, Moreira (2009; 2012) entende cosmopolitismo como sendo um movimento de trocas que integra o particular ao universal e local ao global. A concepção de cosmopolitismo, segundo ele, implica a aceitação de uma humanidade comum a todos, que se evidencia a despeito às diferenças, bem como em função dessas mesmas diferenças. É, pois, um conceito normativo que defende a regulação de relações entre Estados por normas que não se pautam na força, mas nos direitos humanos e em uma mais justa distribuição de recursos materiais. Moreira inclui outros elementos ao conceito, mas o sintetiza com a seguinte formulação:
Cosmopolitismo é uma política – um movimento internacional para transformar o mundo. É um compromisso moral com a paz mundial, com os direitos humanos e com a governança global. Trata-se de uma questão pública e prática. Deve ser visto como o meio cultural da transformação social que se baseia no princípio da abertura do mundo. Tais momentos de abertura derivam do encontro do local com o global (MOREIRA, 2012, p. 219-220).
No que se refere à educação, ao currículo e ao próprio campo dos estudos curriculares, Moreira, associando-se ao pensamento de Pinar, coloca-se em defesa de projetos cosmopolitas, contanto que neles estejam contempladas a cultura democrática, a interculturalidade e a valorização da diversidade pela promoção da política da diferença. Defende, ainda, a construção de uma rede transnacional de pesquisadores do campo do currículo que compartilhem essa visão de solidariedade e de reconhecimento e que estejam dispostos a expressá-la nos seus estudos, sem que haja qualquer homogeneização, seja do campo, das teorias ou das práticas curriculares.
No terceiro grupo, conforme mencionado, estão os que defendem projetos cosmopolitas pela via contra-hegemônica, espaço conceitualmente amplo onde transitam posicionamentos que vão desde uma crítica moderada ao cosmopolitismo liberal, até os mais radicais cuja defesa é centrada na queda do próprio modelo capitalista. Em geral, são intelectuais que analisam as dinâmicas sociais em perspectivas histórico-políticas e, nesse âmbito, defendem concepções de sociedade, educação e currículo que se associem às tendências de transformação social e emancipação humana.
Como são vários os intelectuais que se identificam nesse enfoque, convém destacar aspectos conceituais de apenas dois, cujos trabalhos possuem forte repercussão sobre questões curriculares, especialmente por atribuírem centralidade à chamada geopolítica do conhecimento (BALLESTRIN, 2013). São eles: Boaventura Souza Santos, que denuncia a razão arrogante e indolente do cosmopolitismo eurocêntrico (ou do Norte) e propõe outras sociologias e epistemologias para pensar/compreender o mundo, e Walter Mignolo, que, no âmbito do chamado giro-decolonal11 trabalha a possibilidade de outra cosmologia para a América Latina onde a diversidade aparece como única possibilidade de projeto universal (MIGNOLO, 2003).
Para Santos (1997), o cosmopolitismo forma parte de três tensionamentos que se manifestaram, na modernidade ocidental, notadamente: uma tensão entre regulação social e emancipação social; entre Estado e sociedade civil e entre Estado nação e Globalização. Para ele, em termos teleológicos, o cosmopolitismo passa pela constituição de alternativas que rompam com a histórica divisão Norte-Sul, ou seja, supõe outra racionalidade que se ocupe, em perspectiva contra-hegemônica, com aquilo que denomina patrimônio comum do planeta. Portanto, cosmopolitismo e patrimônio comum da humanidade são globalizações de baixo para cima. Desse modo, na sociedade cosmopolita,
[...] as formas predominantes de dominação não excluem aos Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais subordinados a oportunidade de se organizarem transnacionalmente na defesa de interesses percebidos como comuns, e de usarem em seu benefício as possibilidades de interacção transnacional criadas pelo sistema mundial. As actividades cosmopolitas incluem, entre outras, diálogos e organizações Sul-Sul, organizações mundiais de trabalhadores (a Federação Mundial de Sindicatos e a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizações não governamentais (ONG's) transnacionais de militância anticapitalista, redes de movimentos e associações ecológicas e de desenvolvimento alternativo, movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas, etc (SANTOS, 1997, p. 17).
Portanto, a racionalidade contra-hegemônica representa resistência à lógica da classificação social moderna que hierarquizou culturas, epistemologias, raças, pessoas, povos e cosmologias, atribuindo caráter natural a tal classificação e impossibilitando, qualquer contestação. Contraditoriamente à lógica instituída, propõe uma nova hermenêutica, diatópica, capaz de conduzir a universalismos regionais ou setoriais, construídos a partir de baixo, algo como esferas públicas globais contra-hegemônicas, chamadas ainda de cosmopolitismo subalterno (SANTOS, 2004).
O trabalho de Boaventura e, particularmente sua defesa de uma razão cosmopolita subalterna, alcança forte inscrição no campo curricular, especialmente em meio às abordagens culturalistas, algumas das quais, veem em conceitos contra-hegemônicas como sociologia das ausências, das emergências e tradução12, pistas para pensar e defender currículos mais inclusivos, de superação das históricas invisibilidades identitárias e de maior justiça cognitiva. Trata-se de uma hermenêutica que se aproxima de concepções que defendem movimentos de internacionalização da educação e do currículo pela via da ampliação de trocas culturais, de reconhecimento das diferenças e de saberes plurais.
Em direção convergente, situa-se o trabalho de Walter Mignolo, intelectual argentino que compõe o grupo Modernidade/Colonialidade13 e que vem apresentando ao mundo uma ‘outra cosmovisão’ pensada desde a perspectiva latino-americana. Os estudos de Mignolo, concomitantemente aos demais membros do grupo, entre os quais está Boaventura Souza Santos, tem se apresentado com força nos debates do campo curricular, especialmente nos temas sobre interculturalidade crítica, relações étnico-raciais e diversidade, (CANDAU; OLIVEIRA, 2010). A aderência dessa abordagem com os debates nos campos do currículo, da internacionalização e do cosmopolitismo revela-se, sobretudo, pelo encontro de objetos de análise que o grupo faz para compreender a relação modernidade-colonialidade com objetos de conhecimento que, também, interessam aos referidos campos, como assinalado no texto. Nesse entroncamento, estão questões de fundo tais como colonialidade/ universalidade do poder e do saber; divisão racial, econômica e política; produção e reconhecimento cultural; imperialismo epistêmico; hegemonia; subalternidade; diferença, além de outras.
Assim como Boaventura, Mignolo também se dedica a analisar a geopolítica do conhecimento – uma estratégia epistêmica sustentada na ideia de superioridade europeia, que se estendeu para uma geopolítica linguística, uma geopolítica racial e, inclusive, para a hegemonização da ideia de Europa como ponto de referência para o gênero humano, ou colonialidade do ser nas palavras de Mignolo (2003). “A colonialidade do ser é pensada, por- tanto, como a negação de um estatuto humano para africanos e indígenas, por exemplo, na história da modernidade colonial. Essa negação, segundo Walsh (2006), implanta problemas reais em torno da liberdade, do ser e da história do indivíduo subalternizado por uma violência epistêmica” (CANDAU; OLIVEIRA, 2010, p. 22). Sobre esse mesmo aspecto, Ramon Grosfoguel (2008), membro do grupo M/C, afirma que o monologismo e o desenho monotópico global do Ocidente relacionam-se com outras culturas e povos a partir de uma posição de superioridade e são surdos às cosmologias e epistemologias do mundo não-ocidental. O grupo, que tem Mignolo como uma das figuras principais, pretende, portanto, um projeto mundial de emancipação humana (traduzido como um conceito de cosmopolitismo), que tem, na emancipação epistêmica, seu fundamento maior. Com base nessa referência, propõe outra racionalidade marcada pelo pensamento crítico que conecta epistemes de outros lugares do mundo, inclusive da América Indo-Afro-Latina, na perspectiva da decolonialidade da existência, do saber e do poder (MIGNOLO, 2003).
Com esse ideário fortemente vinculado à noção de outro cosmopolitismo, o grupo trabalha o conceito de pensamento crítico de fronteira que implica, antes de tudo, o reconhecimento da diferença colonial das perspectivas subalternas (MIGNOLO, 2012). Para Grosfoguel (2008), o pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade. Em vez de rejeitarem a modernidade para se recolher num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/ redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. É, pois, uma redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das relações econômicas além das definições impostas pela modernidade europeia. Uma resposta transmoderna descolonial14 do subalterno perante a modernidade eurocêntrica.
Os propósitos, tanto de Boaventura, quanto dos demais intelectuais do grupo Modernidade/Colonialidade, de algum modo, se conectam com concepções da chamada internacionalização educacional e curricular alternativas, as quais também defendem propostas de internacionalização, porém, com racionalidades distintas das formulações (neo)liberais hegemônicas, elaboradas pelas redes políticas transnacionais ligadas aos organismos multilaterais com sede na Europa e nos Estados Unidos.
Entre os que se colocam em defesa dos movimentos pela internacionalização alternativa, estão figuras como Lima e Contel (2009), Balesttrin (2013), Amorim (2012), Leal e Moraes (2017), os quais denunciam as contradições do movimento, especialmente os impactos sociais e educativos para os países do Sul, a invisibilidade dos países periféricos e semiperiféricos em termos de voz e tomada de decisão, as possibilidades de reforçamento da relação vertical Norte-Sul em termos de poder, saber e ser, portanto, o reforçamento das relações de dependência e inferioridade, a manutenção das relações desiguais no âmbito da produção-consumo, a ampliação das desigualdades nos campos cultural e cognitivo, a concentração da pesquisa e desenvolvimento (P&D) em países considerados centrais, etc.
Para eles, o fenômeno da internacionalização, no modelo hegemônico, forma parte da mesma matriz cultural e epistêmica do poder colonial. Em geral, os trabalhos que se colocam em defesa de movimentos pela internacionalização alternativa ou decolonial (SAUERBRONN; AYRES; LOURENÇO, 2016), apontam o decolonialismo como perspectiva epistemológica viável para os estudos críticos sobre internacionalização no contexto do Sul (LEAL; MORAES, 2017).
O conjunto dos argumentos, apresentado nas seções que compõem o texto, permite concluí-lo afirmando que é possível capturar, em termos conceituais e de enfoque teórico, alguns elementos que conectam internacionalização (do) currículo e cosmopolitismo e que essas interfaces podem ser lidas nos discursos das distintas abordagens que pesquisadores vêm produzindo em seus respectivos trabalhos.
Além das evidências dessa relação, também é possível afirmar a existência de certo consenso em, pelo menos, dois aspectos importantes: i) no acatamento à ideia da existência de ideários cosmopolitas, ainda que suas formulações revelem-se notadamente distintas em termos de racionalidade e teleologia e, ii) na adesão à ideia de internacionalização da educação – concepção igualmente apresentada em perspectivas visivelmente diferentes. Em ambos os aspectos, fica evidente que, além dos modelos construídos no âmbito da razão iluminista-liberal, mostram-se outros, seja expressando-se como movimentos contra-hegemônicos ou então propondo alternativas outras, com ancoragem em formulações predominantemente subjetivistas.
Esse quadro teórico revela, portanto, que é possível pensar a noção de um currículo cosmopolita (MORGADO, 2016) em contextos de internacionalização da educação. Conceito esse que, em meu ponto de vista, implica pensar uma formação escolar por meio da qual seus protagonistas estimulem a produção e a ampla circulação de saberes e conhecimentos o mais plural- mente possível, concebendo-os como bens culturais de acumulação histórica, portanto, públicos e direito de todos/as. Ou seja, que compreendam e considerem as diferenças do gênero humano e operem para que elas se manifestem em suas distintas dimensões – como princípio de alteridade. Que combatam qualquer tentativa de restrição dessa autonomia promovida por mecanismos de regulação externa, especialmente os de interesse privado.
Um currículo cosmopolita é, pois, aquele que se ancora em projetos de formação que reconhece o poder da linguagem e atua para reduzir as históricas desigualdades sócioculturais em termos linguísticos. Projetos que considerem a importância e a necessidade contemporânea da internacionalização, porém a conceba como alternativa social de ampliação do direito de acesso, pelos sujeitos, às riquezas cultuais, ambientais, materiais e espirituais historicamente produzidas. Propostas de trajetórias educativas que combatam qualquer tipo de preconceito e/ou discriminação de origem ou motivação geográfica, religiosa, histórica, política, cultural, ambiental, econômica ou acadêmica. Projetos que optem por abordagens interdisciplinares, de uma ciência dialógica, multirreferenciada, sem as amarras dos cânones acadêmicos que tão profundamente colocaram essa essencial atividade humana a serviço de poucos, acentuando, portanto, as desigualdades sociais e cognitivas.
Currículos cosmopolitas demandam desenhos que devem ser formula- dos menos prescritivamente em relação à definição sobre o que conta como conhecimento escolar universalmente relevante – tentativas de fuga ao padrão ocidental centralista que vem contribuindo para o aprofundamento das diferenças socioculturais e invisibilizando parte significativa das sociedades em termos cognitivos. Nesse sentido, um currículo que combata qualquer forma de avaliação que pretenda reduzir o ser humano a um número, um dado, um padrão, um escalão.
Um currículo cosmopolita não pode submeter-se às forças de grupos que avaliam a qualidade da formação humana por resultados performativos que pouco ou nada dizem sobre a vida em sua integralidade. Pelo contrário, deve promover a autonomia das escolas e de seus projetos pedagógicos, de modo que os conhecimentos resultem de escolhas coletivas, especialmente dos professores que desenvolvem cotidianamente os percursos de formação dos estudantes. A internacionalização do currículo em perspectiva cosmopolita precisa ser uma opção mais que uma condição social ou imposição de grupos.