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A reinvenção dos modos de ser, pensar e estar: efei- tos de uma crise sanitária global
The reinvention of ways of being, thinking and mode of presence: effects of a global health crisis
La reinvención de formas de ser, pensar y estar: efectos de una crisis sanitaria mundial
Revista Educação em Questão, vol. 58, núm. 55, pp. 1-4, 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Resenha


ŽIŽEK Slavoj. ŽIŽEK, Slavoj. Pandemia: COVID-19 e a reinvenção do comunismo. São Paulo: Boitempo, 2020. 2020. São Paulo. Boitempo

Recepción: 27 Mayo 2020

Aprobación: 05 Junio 2020

DOI: https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n55ID21099

O profícuo e polêmico filósofo esloveno Slavoj Žižek, no livro Pandemia: COVID-19 e a reinvenção do comunismo, elabora uma análise político-sociológica dos efeitos da pandemia provocada pelo novo coronavírus. Como o subtítulo sugere, discute logo no início questões teórico-conceituais atreladas ao comunismo, não apenas como um regime político historicamente datado, com regras rígidas de disciplina, mas como um conjunto de ideias e propostas que ressurgem ante as fragilidades do sistema capitalista expostas pela doença de escala global.

Como se trata de um texto de intervenção, o livro é curto porque foi escrito no decorrer dos fatos, enquanto as nações e seus líderes ainda lidam com o problema munidos de poucos dados acerca de como o vírus age e ainda pode agir. Os treze capítulos, marcados pela originalidade peculiar ao autor, perpassam um amplo leque de temas que vão de conceitos oriundos da filosofia política – tais como ideologia, biopolítica, situação de refugiados, barbárie e preceitos do próprio comunismo – até a cultura pop do cinema passando por questões psicanalíticas-lacanianas.

De início, Žižek descontrói os preconceitos, e consequentes calúnias, que circundam a origem e suposta responsabilidade moral pelo alastramento da COVID-19 atribuídas à China, em geral, e à cidade de Wuhan, em particular. A ideologização do vírus, que opera oportunisticamente no sentido de encontrar culpados em um momento de urgências vitais, constrói caricaturas acerca do povo chinês e seus costumes. Além disso, serve muito mais a interesses geopolíticos e econômicos do que de fato para encontrar caminhos solidários de saídas para tamanha tragédia que acomete indistintamente a todos e a cada um.

Para o filósofo, todas essas construções desdenham de uma nação que também padece dos mesmos males que os países afetados, cujo desdém acrescenta, sem nenhuma necessidade, culpa e estigma ao sofrimento. Dado o momento delicado comum a todos, o povo chinês não tem do que se envergonhar. Quem de fato deve se envergonhar são todos aqueles que, a despeito da nacionalidade e ideário, ignoraram a epidemia, enquanto, paradoxalmente, tomavam medidas para se precaver. De modo que, se insistirmos na discussão sobre responsabilidades ou negligências, somos todos nós que deveremos sentir vergonha em colocar a China, um país inteiro, com seus defeitos e particularidades sociais como todos outros, em quarentena.

Pode-se perceber que o que está em discussão ao longo de todo o livro não é a implantação de um regime político do passado alinhado às esquerdas tradicionais. O que está em discussão são os pressupostos e ações que, sim, fundamentam e são feições do comunismo clássico, escolhido pelo autor apenas como um nome para designar o que está ocorrendo e ainda poderá ocorrer com maior radicalidade no desenrolar da crise sanit ria. Um exemplo é o protagonismo do Estado como agente provedor dos insumos, das condições básicas e infraestrutura indispensáveis no enfrentamento da crise, além do engajamento de comunidades locais no auxílio do sistema de saúde e na adesão às medidas até agora conhecidas como métodos de contenção de uma tragédia ainda maior.

Embora o autor admita que a situação é profundamente política e exige escolhas radicais, não são somente temas de ordem sociológica ou político-partidária que estão em evidência na pandemia. Dadas as controvérsias, a complexidade da situação e um número considerável de variáveis, há desafios para as ciências, para os modos de pensar e construir o conhecimento até então hegemônicos, acerca de como responder em tempo a demandas terrivelmente insurgentes que, tal como a COVID-19, solapam inclusive as condições básicas de existência de todo o espectro partidário, já que se trata de uma questão de vida ou morte.

O autor leva esse debate até as últimas consequências e assevera que é necessário tomar decisões duras que não dependem apenas do conhecimento científico clássico, posto que envolvem aspectos da vida social cujos saberes biocientíficos, por definição, não têm respostas. De todo modo, o texto do filósofo é enfático ao assegurar que, independente do sistema político, uma questão é certa: as vidas não podem ser abandonadas a lógicas de mercado ou estímulos pontuais que não hesitam em descartar pessoas. Conforme a própria compreensão de custo-benefício capitalista essas vidas podem ser salvas se os valores que conduzem as ações forem outros.

Ao pôr em perspectiva o pânico excessivo de alguns líderes, Slavoj Žižek esclarece que o afeto tomou conta com tamanha potência da comunidade internacional porque lá, de onde deveria ter surgido, esteve ausente mesmo depois de vários alertas acerca de possíveis e piores epidemias daquelas provocadas pelo Ebola e pela Sars. Sua ausência foi responsável por uma total desatenção às condições sanitárias mundiais, que só tínhamos conhecimento ou visto em filmes apocalípticos da indústria cinematográfica, tais como Contágio, dirigido por Steven Soderbergh.

A proposta é muito mais ampla do que a mera reimplantação do comunismo como uma leitura displicente ou mal-intencionada poderia propagar. Trata-se de um projeto mais denso e diversificado, cuja implementação exige um pensamento em constante atualização, que se exponha à crítica, à reformulação, à contradição e à reflexão para realizar construções de modos consensuais de convivência. Com essa natureza, o pensamento deve levar em consideração a mais ampla solidariedade, cooperação internacional, uma radical consciência planetária, valores de fundo humanitário e de caráter essencial, dadas as circunstâncias as quais a globalização nos remete.

Por tudo que o livro apresenta, conclui-se que o horizonte de luta e militância não se constitui meramente nas discussões partidárias ou ideológicas, mas também nas epistemológicas de matriz transdisciplinar. Se não for assim, como decidir quais dos mundos surgirão, e qual será o melhor para se viver depois da pandemia se as disputas conceituais não forem muito bem elaboradas em tempos de pós-verdade?

Sem o devido engajamento de disciplinas, programas de formação e ação dos atores sociais voltados à construção de um projeto de país duradouro e radicalmente transformador, o risco de crises como a atual não será remoto. Afinal são as limitações das ordens políticas, econômicas, sociais e conceituais que estão em evidência.



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