Resumo: O objetivo deste ensaio é discutir os principais desafios da gestão regionalizada no Sistema Único de Saúde (SUS). Realizou-se uma revisão integrativa da literatura nas bases de dados da BVS, Lilacs e SciELO, com base nos seguintes descritores: “regionalização/regionalization”, “Sistema Único de Saúde/Unified Health System”, “Brasil/Brazil” e “federalismo/federalism”. Incluíram-se 54 artigos, cinco teses de doutorado, doze capítulos de livros e uma dissertação de mestrado, publicados entre 2006 e 2018, que tratavam da política de regionalização do SUS. Entre os principais desafios da regionalização da saúde, destacaram-se a organização federativa tripartite do sistema que dificulta institucionalizar acordos e cooperações interfederativas; as limitações fiscais em cenários de crise financeira de municípios e estados, bem como as desigualdades regionais, que influenciam a distribuição de serviços de saúde, pessoal e tecnologias; os equívocos de demarcação regional, que limitam a coordenação estadual dos municípios; as relações entre atores sociais e entes federativos que conformam uma trama social com poderes desigualmente distribuídos; as mudanças político-administrativas, que tendem a fragilizar as pactuações e o planejamento regional; e as relações público-privadas, muito influentes nas decisões regionais, que colaboram para a organização de um sistema de saúde centrado nos interesses de mercado. A política de regionalização do SUS opera num ciclo político instável e impredizível. Os estudos da revisão indicam desafios para institucionalizar uma política regional que atenda à diversidade das regiões de saúde. Sugerem-se novas investigações sobre a política de regionalização do SUS, especialmente em cenários de fronteiras entre países e estados.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema Único de SaúdeSistema Único de Saúde,RegionalizaçãoRegionalização,Política de saúdePolítica de saúde.
ABSTRACT: This essay discusses the main challenges of regionalized management in the Brazilian Unified Health System (SUS). An integrative literature review was carried out in the VHL, Lilacs, and SciELO databases, based on the following descriptors: “regionalização/regionalization,” “Sistema Único de Saúde/Unified Health System,” “Brasil/Brazil,” and “federalismo/federalism.” The search resulted in 54 articles, five doctoral theses, twelve book chapters and a master’s thesis, published between 2006 and 2018, which dealt with the SUS regionalization policy. Among the main challenges of health regionalization, the tripartite federative organization of the system stood out, which makes it difficult to institutionalize inter-federative agreements and cooperation; fiscal limitations in scenarios of financial crisis in municipalities and states, and regional inequalities, which influence the distribution of health services, personnel, and technologies; mistakes in regional demarcation, which limit state coordination of municipalities; the relationships between social actors and federative entities that make up a social fabric with unequally distributed powers; political-administrative changes, which tend to weaken agreements and regional planning; and public-private relationships, very influential in regional decisions, which collaborate to organize a health system centered on market interests. The SUS regionalization policy operates in an unstable and unpredictable political cycle. The literature indicates challenges to institutionalizing a regional policy that addresses the diversity of health regions. Further research on the SUS regionalization policy is suggested, especially in states that share a border and regions bordering with other countries.
Keywords: Unified Health System, Regional health planning, Health policy.
Resumen: El objetivo de este ensayo es discutir los principales desafíos de la gestión regionalizada en el Sistema Único de Salud (SUS). Se realizó una revisión integradora de la literatura en las bases de datos BVS, Lilacs y SciELO, con base en los siguientes descriptores: regionalização/regionalization, Sistema Único de Saúde/Unified Health System, Brasil/Brazil y federalismo/federalism. Se incluyeron 54 artículos, cinco tesis doctorales, doce capítulos de libros y una tesis de maestría, publicados entre 2006 y 2018, sobre la política de regionalización del SUS. Entre los principales desafíos de la regionalización de la salud se destacaron la organización tripartita federativa del sistema, que dificulta la institucionalización de los acuerdos y la cooperación inter-federativa; limitaciones fiscales en escenarios de crisis financiera en municipios y estados, así como desigualdades regionales, que influyen en la distribución de servicios, personal y tecnologías de salud; errores en la demarcación regional, que limitan la coordinación estatal de los municipios; relaciones entre actores sociales y entidades federativas, que conforman un tejido social con poderes desigualmente distribuidos; cambios político-administrativos, que tienden a debilitar los acuerdos y la planificación regional; y relaciones público-privadas, muy influyentes en las decisiones regionales, que colaboran para organizar un sistema de salud centrado en los intereses del mercado. La política de regionalización del SUS opera en un ciclo político inestable e impredecible. Los estudios de revisión señalan desafíos para institucionalizar una política regional que aborde la diversidad de las regiones de salud. Se sugieren más investigaciones sobre la política de regionalización del SUS, especialmente en escenarios de países y estados limítrofes.
PALABRAS CLAVE: Sistema Único de Salud, Regionalización, Política de salud.
Artigo
Desafios da gestão regionalizada no Sistema Único de Saúde
Challenges of regionalized management in the Brazilian Unified Health System (SUS)
Desafíos de la gestión regionalizada en el Sistema Único de Salud (SUS)
Recepção: 03 Maio 2021
Aprovação: 22 Dezembro 2021
As proposições sobre a gestão regionalizada de sistemas de saúde não são recentes. Há correntes que apontam que as primeiras experiências internacionais surgiram na década de 1970, nos Estados Unidos (SILVA, 2011). Outras citam experiências desde 1920, com a publicação do Relatório Dawson, na Grã-Bretanha (SHIMIZU, 2013). Países europeus como Itália e Espanha foram pioneiros na implantação de sistemas de saúde regionalizados. Na América Latina, as primeiras iniciativas de gestão regionalizada ocorreram na década de 1970 (VIANNA e LIMA, 2011). No Brasil, esse debate, ainda que incipiente, se iniciou nos anos 1980, mas o modelo de regionalização em saúde somente foi incorporado à política nacional de saúde com a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988, quando se tornou uma das principais diretrizes do Sistema Único de Saúde (DOURADO e ELIAS, 2011).
Nesse contexto, apesar da gestão regionalizada em saúde ter se tornado um debate importante em diferentes continentes do mundo, nos países europeus, a descentralização e a regionalização nessa área ocorreram articuladas. Já nos países latino-americanos, o foco foi centrado na descentralização em detrimento da regionalização (VIANA, LIMA e FERREIRA, 2010). O Brasil, por exemplo, por mais de uma década tangenciou a política de regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), que só ganhou destaque nos anos 2000, quase 12 anos após a criação do sistema público de saúde (REIS et al., 2017). Isso trouxe implicações importantes para a gestão nas regiões de saúde, ao privilegiar o componente municipal e desconsiderar a importância do papel estadual no sistema de saúde pública (VIANNA e LIMA, 2011).
A gestão regionalizada no SUS ocorre em territórios denominados regiões de saúde, cenários constituídos por municípios limítrofes, agregados por características que variam da oferta de ações e serviços às responsabilidades federativas (BRASIL, 2011). O Brasil tem 440 regiões de saúde (SILVA e MOTA, 2017) organizadas em 26 unidades federativas, um Distrito Federal, e 5.570 municípios (DUARTE et al., 2015). No entanto, estudos assinalam que a forte persistência da gestão municipalizada se configura como um obstáculo à gestão regional no SUS (DOURADO e ELIAS, 2011; LIMA, ALBUQUERQUE e SCATENA, 2017). Ademais, há uma complexa organização federativa brasileira com três entes autônomos - união, estados e municípios - e poder político-administrativo compartilhado (AIKES e RIZZOTTO, 2018; BARKER e CHURCH, 2017), diferente de países como França, Dinamarca, Reino Unido e Japão, que adotaram uma organização federativa com poder centralizado nacionalmente (SANTOS, 2013), e, outros como Espanha, Itália e Canadá, que descentralizaram as políticas de saúde para entes regionais (BARKER e CHURCH, 2017).
Assim, a coexistência de autonomia entre três entes federativos desiguais cria uma mútua dependência de poder político, decisório e administrativo entre eles, num país com regiões de saúde díspares (REIS et al., 2017) e sem autoridades sanitárias regionais para coordenar essa relação (LIMA, ALBUQUERQUE e SCATENA, 2017). Isso tem se refletido em dificuldades para implementação do planejamento regional integrado (VIANA et al., 2017), que muitas vezes se distancia das necessidades regionais de saúde (PINAFO, CARVALHO e NUNES, 2016) e torna obsoleta a perspectiva dos documentos normativos federais, que defendem, no plano normativo, uma gestão regionalizada centrada em acordos e cooperações interfederativas (PEIXOTO, COELHO e PEIXOTO, 2016), negligenciando a dinâmica de poder regional e das relações políticas que se estabelecem nas regiões de saúde (SILVA e GOMES, 2014a).
O Brasil instituiu os colegiados deliberativos com o intuito de organizar espaços de negociação intergestores regionais (CARNEIRO, FORSTER e FERREIRA, 2014), mas sua implantação foi heterogênea pelo país, e coloca-se em questionamento: em que medida eles foram suficientes para estabelecer mecanismos de gestão interfederativa integrados (MENICUCCI, COSTA e MACHADO, 2018). O perfil e a composição dos espaços deliberativos têm sido decisivos para estabelecer consensos e pactuações (MENDES et al., 2015), e nem todos os colegiados intergestores têm apresentado institucionalidade satisfatória (KUSCHNIR e CHORNY, 2010), sobretudo nas regiões mais desiguais, como o Norte e o Nordeste (MACHADO et al., 2014). Nos colegiados intergestores, as decisões podem ser pulverizadas (ALMEIDA et al., 2016; SANTOS e GIOVANELLA, 2014) e a construção de mecanismos para a articulação interfederativa no SUS tem se mostrado um desafio ainda não superado no Brasil, desde que a política de regionalização ganhou destaque no país (OUVERNEY, RIBEIRO e MOREIRA, 2017; CASANOVA et al., 2017; MENICUCCI, COSTA e MACHADO, 2018).
Ademais, a viabilidade política da gestão regional no SUS está condicionada por diferentes variáveis, como a diversidade de tipologias e desigualdades socioespaciais das regiões de saúde (VIANA et al., 2018); as assimetrias políticas, fiscais, administrativas e de oferta de serviços de saúde entre os entes federados (GEREMIA e DAIN, 2018), num contexto de subfinanciamento do SUS e de políticas de austeridade fiscal (SANTOS e GIOVANELLA, 2014; MOREIRA, FERRE e ANDRADE, 2017); as alocações financeiras impositivas para os entes subnacionais, atreladas a programas e políticas específicas (CARNEIRO, FORSTER e FERREIRA, 2014; VIANA et al., 2017), ordenando critérios de repasses em desacordo com as necessidades regionais (TELES, COELHO e FERREIRA, 2016); os equívocos de demarcações entre limites administrativos das regiões de saúde (GARBELO, SOUSA e SILVA, 2017); a arquitetura política regional com presença de diferentes atores sociais em ação e com poder distribuídos assimetricamente (LIMA, ALBUQUERQUE e SCATENA, 2017); e, por fim, os interesses heterogêneos (BRETAS JUNIOR e SHIMIZU, 2017), gerando um arranjo decisório complexo e multifacetado (SILVA, 2013).
Diante da problemática, possivelmente as proposições normativas sobre a gestão regionalizada no SUS atingem baixa institucionalidade nos espaços cogestores regionais, por se distanciarem da dinâmica política das regiões de saúde, o que implica condições insuficientes para estabelecer relações cooperativas e solidárias, expressas no marco jurídico-legal do Ministério da Saúde brasileiro.
Esse ensaio é parte da tese de doutorado intitulada Análise política de uma região interestadual de saúde: do desenho político à dinâmica de poder e tem como objetivo discutir os principais desafios da gestão regionalizada no SUS.
Realizou-se uma revisão integrativa da literatura nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), da Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e da Scientific Electronic Liberary Online (SciELO). Utilizaram-se os seguintes descritores em português e inglês, respectivamente: “regionalização/regionalization”; “Sistema Único de Saúde/Unified Health System”; “Brasil/Brazil” e “federalismo/federalism”. Incluíram-se artigos originais em português, inglês e espanhol, além de teses, dissertações e capítulos de livros com resultados de estudos empíricos que tratassem da política de regionalização do SUS e fossem publicados entre 2006, ano em que o Brasil instituiu o Pacto Pela Saúde, e 2018. Inicialmente, foram selecionados 90 artigos, sendo que 20 foram excluídos pelo título; 12, pelo resumo; e 7, pela leitura do texto completo, restando 54 incluídos na presente revisão, além de 5 teses de doutorado, 12 capítulos de livros e uma dissertação de mestrado. Os textos selecionados foram lidos na íntegra, e seus respectivos conteúdos, sumarizados numa planilha de sistematização dos resultados com a seguinte categorização: autor/ano, objetivo geral, tipo de estudo, metodologia, principais resultados e observações do pesquisador. Com base na sistematização dos dados, organizaram-se os resultados dessa revisão numa seção sobre as decisões nacionais acerca da política de regionalização do SUS e outra a respeito dos desafios da gestão regionalizada no sistema.
Apesar de ser uma diretriz do SUS reafirmada tanto na Constituição Federal quanto nas Leis Orgânicas da Saúde (LIMA et al., 2012), por mais de uma década, a regionalização foi negligenciada na política nacional de saúde (REIS et al., 2107; VIANA e LIMA, 2011). Ao ganhar destaque no cenário nacional, diferentes movimentos institucionais tentaram constituir arranjos para articular os entes federativos em sistemas regionalizados.
O destaque tardio da regionalização na agenda nacional ocorreu nos anos 2000, com a edição das Normas Operacionais de Assistência à Saúde (SILVA e GOMES, 2014; ALBUQUERQUE e VIANA, 2015). Suas principais contribuições estiveram voltadas a proposições de instrumentos de planejamento regional (LIMA e VIANA, 2011; KEHRIG, SOUZA e SCATENA, 2015), introdução de debates sobre a organização de redes hierarquizadas de serviços de saúde (DOURADO e ELIAS, 2011) e tentativas de resgate do papel estadual nesse processo (VIANA et al., 2008).
Por outro lado, a forte persistência de uma estrutura política municipalizada colaborou para a competição entre estados e municípios (DOURADO e ELIAS, 2011) e para uma excessiva normatividade dos instrumentos de planejamento, que se distanciaram do contexto político-institucional das relações interfederativas (VIANA, LIMA e FERREIRA, 2010; DOURADO e ELIAS, 2011; LIMA, ALBUQUERQUE e SCATENA, 2017).
Em 2006, foi publicado o Pacto Pela Saúde, que tentou resgatar de forma mais incisiva a diretriz da regionalização do SUS (DOURADO e ELIAS, 2011). Suas principais contribuições corresponderam à introdução de discussões sobre desigualdades regionais e sobre um estímulo maior ao protagonismo de estados e municípios na condução da política de saúde regional (KEHRIG, SOUZA e SCATENA, 2015; CARNEIRO, FORSTER e FERREIRA, 2014; MENICUCCI, COSTA e MACHADO, 2018), bem como à criação de colegiados deliberativos regionais (VIANA, LIMA e FERREIRA, 2010) e à definição de formas de alocação de recursos para custeio de ações e serviços de saúde (LIMA e VIANNA, 2011).
Mesmo com as alternativas trazidas pelo pacto, persistia a baixa institucionalidade dos instrumentos de planejamento e ambiguidades nas propostas de celebração de acordos entre os entes federados (LIMA e VIANNA, 2011). A criação dos colegiados regionais não contou com estrutura e recursos suficientes, tendo havido uma pulverização no processo de implantação (VIANA, LIMA e FERREIRA, 2010), de modo que o pacto assumiu uma conotação regional essencialmente burocrática (MENICUCCI, COSTA e MACHADO, 2018) e as regiões de saúde não adquiriram a centralidade política necessária (SANTOS, 2013).
Em 2010, o Brasil estabeleceu diretrizes para a organização de Redes de Atenção à Saúde (RAS) no âmbito do SUS, por meio da Portaria nº 4.279 (BRASIL, 2010), na tentativa de retomar o debate sobre a organização do sistema de forma regionalizada, entre as três esferas de governo (SHIMIZU, 2013). Em 2011, foi publicado o Decreto nº 7.508 (BRASIL, 2011), com o propósito de aprimorar mecanismos de articulação interfederativa (RIBEIRO e TANAKA., 2017). A principal proposta desse decreto era a implantação do Contrato Organizativo de Ação Pública (Coap) para a celebração de acordos entre os entes federativos (RIBEIRO e TANAKA., 2017), mas que apresentou baixa institucionalidade na maioria das regiões de saúde do país.
Assim, apenas regiões de saúde do Mato Grosso e do Ceará assinaram o Coap, que não teve continuidade de aditamentos (OUVERNEY, RIBEIRO e MOREIRA, 2017). Os principais obstáculos à sua implantação corresponderam à dificuldade de qualificação das responsabilidades entre os entes, de monitoramento e avaliação dos contratos (OUVERNEY, RIBEIRO e MOREIRA, 2017); a conflitos de rateio de recursos entre os gestores, para garantir sustentabilidade decisória (CASANOVA et al., 2017); a resistências político-partidárias e ausência dos estados nas articulações políticas necessárias à sua assinatura (MOREIRA, RIBEIRO e OUVERNEY, 2017; GOYA et al., 2017). Outros estudos apontaram que o Coap indicava pouca clareza sobre quais serviços municípios de diferentes portes populacionais deveriam e teriam condições de ofertar (SANTOS, 2013), sendo, portanto, um problema correspondente a marcos jurídico-normativos destoantes da autonomia de cada esfera administrativa no SUS (SANTOS e ANDRADE, 2011).
Em síntese, as decisões nacionais pró-regionalização do SUS operaram num ciclo de obstáculos importantes para tornar a gestão regionalizada institucionalizada. Esses obstáculos são diversos e variam pela organização federativa brasileira e as múltiplas problemáticas envolvendo espaços deliberativos, do âmbito regional ao nacional.
A organização federativa dos países determina o grau de compartilhamento de poder político, decisório e administrativo entre estruturas centrais e subnacionais na política de regionalização da saúde. Países como França, Dinamarca, Reino Unido, Japão, entre outros, adotaram o Estado Unitário, com poder centralizado. Na Espanha e na Itália, por exemplo, há um Estado Regional com forte descentralização em regiões e comunidades autônomas. No Brasil, adotou-se o Estado Federativo, com poder compartilhado entre três esferas administrativas interdependentes e forte viés descentralizador para o âmbito municipal (SANTOS, 2013).
Na literatura, há certa unanimidade sobre a complexidade da estrutura federativa brasileira, pela combinação da diversidade e da autonomia de cada esfera de governo, com poder e atribuições compartilhadas (SANTOS, 2013). Entretanto, a autonomia de poder sobre o âmbito local é um ponto de crítica nos estudos, que assinalam a combinação de autogoverno com governo compartilhado em regiões de saúde, sem autoridades sanitárias regionais e com marcantes desigualdades sociais, políticas e econômicas entre os municípios (DOURADO e ELIAS, 2011; LIMA, ALBUQUERQUE e SCATENA, 2017; REIS et al., 2017; SANTOS e ANDRADE, 2011).
O Brasil foi o único país que adotou os municípios como ente federado com autonomia compartilhada com a União e estados, tendo a maioria (mais de 4 mil) menos de 20 mil habitantes e sendo considerada de pequeno porte, com configuração socioeconômica e administrativa heterogênea (FRANZESE e ABRUCIO, 2013; MIRANDA, MENDES e SILVA., 2017). Alguns autores ressaltam que essa diversidade foi desconsiderada na política de descentralização, que deu poder político-administrativo a cidades que nem sequer tinham condições de implantar um sistema de saúde propriamente dito, em razão da incapacidade fiscal e institucional (MIRANDA et al., 2017; REIS et al., 2017).
Alguns estudos ratificam a incapacidade fiscal dos entes federativos subnacionais, sobretudo os municípios. Há consenso nos artigos sobre a dependência financeira, principalmente daqueles de pequeno porte. Segundo os autores, o comprometimento fiscal dos entes subnacionais limita a capacidade administrativa das secretarias de saúde e a prestação dos serviços (WILL et al., 2015; LIMA, ALBUQUERQUE e SCATENA, 2017; MOTA, VIANA e BOUSQUAT, 2016). Muitos municípios já alcançaram ou até ultrapassaram seu limite constitucional de aplicação de recursos em ações e serviços de saúde. Esses, sobretudo, se tornaram dependentes fiscais da gestão estadual e federal (MIRANDA et al., 2017). Esse cenário de dependência fiscal estimula relações políticas intermunicipais predatórias e com difícil constituição de uma política regional de saúde solidária (ALMEIDA et al., 2016; CARNEIRO, FORSTER e FERREIRA, 2014; GEREMIA e DAIN, 2018).
Além do comprometimento do orçamento municipal para além do piso obrigatório, estudos destacam a diminuição da participação federal nos gastos em saúde e a pulverização na distribuição de recursos com a criação de municípios de pequeno porte sem critérios rigorosos e que aprofundam a dependência financeira local (FRANZESE e ABRUCIO, 2013; TELES, COELHO e FERREIRA, 2016). Diversas pesquisas também indicam uma insuficiência de recursos federais para viabilizar o cumprimento de pactuações intergestoras regionais, o que resulta em maiores gastos com saúde por municípios periféricos e estados que já apresentam comprometimento fiscal (SOARES et al., 2016; ARAUJO, GONCALVES e MACHADO, 2017; SANTOS e GIOVANELLA, 2014; MIRANDA et al., 2017; CARVALHO e MEDEIROS, 2013).
Um desafio mais recente relativo ao desfinanciamento do SUS tem sido apontado como ponto crítico importante nos estudos. Entre eles, destacaram-se propostas de desvinculação total dos repasses federais nas políticas e nos programas de saúde, assim como a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, que limita por 20 anos os investimentos públicos em políticas sociais, inclusive de saúde (JACCOUD e VIEIRA, 2018). Alguns estudos assinalaram que regimes de austeridade fiscal recém-instituídos no Brasil representam um grande desafio e podem inviabilizar a participação federal de forma suficiente no financiamento da política de regionalização do SUS (COSTA, 2017; MOREIRA, FERRE e ANDRADE, 2017).
Os critérios de repasses financeiros também são questões importantes para a gestão regionalizada no SUS. No Brasil, os repasses são descentralizados para os âmbitos municipal e estadual, e, recentemente, esses critérios foram alterados, com a extinção dos blocos de financiamento, inclusive da gestão do sistema (JACCOUD e VIEIRA, 2018). Desse modo, os recursos financeiros passaram a ser transferidos em apenas blocos de custeio e capital, o que pode representar possibilidades de um hiato entre a alocação e a aplicação deles. Essa mudança permitiu o uso mais livre dos recursos, em cenário de escassez e limitação de novos investimentos sociais por 20 anos, aumentando as chances de gestores negligenciarem as necessidades locais e regionais para custeio e investimento em ações e serviços de saúde (JACCOUD e VIEIRA, 2018; AIKES e RIZZOTTO, 2018).
Estudos ressaltam que os critérios nacionais de repasses não são vinculados, necessariamente, às necessidades regionais. Isso porque as alocações estaduais e federais obedecem a critérios mais normativos e pouco discutidos com os entes locais (CARNEIRO, FORSTER e FERREIRA, 2014; UGÁ, PORTO e PIOLA, 2012). Há dificuldade na definição de critérios claros para repasses aos municípios em função da capacidade de oferta de serviços (VIANA et al., 2017; GUIMARÃES, 2011) e por não contemplarem nos orçamentos as migrações intermunicipais, condicionando os repasses à adesão municipal a políticas e programas federais específicos (TELES, COELHO e FERREIRA, 2016; SIQUEIRA, 2011; MOREIRA, FERRE e ANDRADE, 2017).
Diante disso, diversos autores criticam alocações financeiras impositivas, atreladas a programas e políticas federais, que desconsideram desigualdades e singularidades regionais. Os estudos ressaltam a necessidade de enfrentar essa herança que padroniza os repasses financeiros num país heterogêneo, em que o poder econômico da gestão federal determina o desenvolvimento de políticas e programas em municípios e estados, distanciando o planejamento regional das necessidades da população (CARVALHO, JESUS e SENRA, 2017; REIS et al., 2017; PREUSS e NOGUEIRA, 2012).
As tipologias e as desigualdades das regiões de saúde são determinantes importantes na gestão regionalizada do SUS (ALBUQUERQUE, 2013; VIANA et al., 2015). Aquelas localizadas em estados do Norte e do Nordeste, por exemplo, apresentaram contextos históricos, culturais e políticos mais desfavoráveis ao processo de regionalização e estão situadas em territórios de baixo desenvolvimento econômico e baixa oferta de serviços de saúde, quando comparadas com as regiões Sul e Sudeste (VIANA et al., 2015; DUARTE et al., 2015). Essas desigualdades regionais também incluem a distribuição de serviços de saúde, de pessoal e de tecnologia (VIANA et al., 2015; LIMA et al., 2012; VIANA et al., 2018; GEREMIA e DAIN, 2018; ALBUQUERQUE et al., 2017).
Configurações dos limites administrativos das regiões de saúde também são fatores desafiantes para a gestão regional no SUS. Em muitos casos, os estudos apontaram que processos de regionalização carecem de critérios claros para a demarcação dos limites administrativos territoriais entre os municípios. Isso colabora para impasses entre compatibilizar as divisões territoriais e a capacidade de coordenação regional dos estados (PEREIRA, 2009; GARBELO, SOUSA e SILVA, 2017). As imprecisões na divisão territorial das regiões de saúde também podem limitar a definição de fluxos assistenciais entre os municípios, a definição de atribuições claras entre o que é papel do gestor municipal e estadual, bem como a provisão equânime de serviços de saúde entre regiões de saúde (SILVA e GOMES, 2014; DOURADOe ELIAS, 2011; WILL et al., 2015).
Não obstante, a gestão regionalizada no SUS é influenciada por dimensões políticas das relações entre os atores sociais. São relações que agregam sujeitos com poderes desigualmente distribuídos e controles distintos de variáveis políticas, administrativas e fiscais (SANTOS e ASSIS, 2017; VIANA e LIMA, 2011; LIMA et al., 2015). A dimensão política da gestão regional pressupõe a ação de atores com interesses heterogêneos num arranjo decisório imprevisível (BRETAS JUNIOR e SHIMIZU, 2017; SILVA, 2013). As evidências sobre a dimensão política da gestão regional destacam que as decisões regionais são afetadas por mudanças político-administrativas bianuais entre os cenários municipal, estadual e nacional, que tendem a fragilizar pactuações intergestoras (REIS et al., 2017). Essa alternância de atores incentiva disputas e conflitos de projetos de governo (SHIMZU, 2013; LIMA et al., 2015).
Além dos projetos de governo divergentes, as influências político-partidárias nas regiões de saúde tendem a alterar o grau de cooperação entre os atores sociais e limitar a capacidade deliberativa das instâncias estaduais e regionais (WILL et al., 2015; CASANOVA et al., 2017; CARVALHO et al., 2017; VIANA e LIMA, 2013). O cenário político das regiões de saúde impõe disputas e desequilíbrios de poder, refletindo num ambiente institucional de incertezas, com baixa autonomia decisória dos gestores para articular ações regionais, de modo que os estudos apontam relações interfederativas predominantemente políticas em detrimento das técnicas (SILVA e GOMES, 2014; HENRIKSSON et al., 2017; BRETAS JUNIOR e SHIMIZU, 2017; SANTOS e ANDRADE, 2011).
Referente ao planejamento regional, mesmo após todos os movimentos nacionais da política de regionalização, os estudos revelam que ele pouco avançou (VIANA et al., 2017). As práticas de planejamento são predominantemente normativas e influenciadas por agendas decisórias estaduais e federais (KEHRIG, SOUZA e SCATENA, 2015; BRETAS JUNIOR, SILVA e MAGALHÃES JUNIOR, 2013), ao passo que os instrumentos de planejamento são pouco coerentes com a trama das relações políticas nas regiões de saúde (PINAFO, CARVALHO e NUNES, 2016; ALMEIDA e LIMA, 2015).
Ademais, diversos estudos têm assinalado importantes impasses nas pactuações interfederativas. Destaca-se que os pactos regionais não conseguem organizar serviços em redes, com garantia de acesso a todos os pontos de atenção, ou são apenas adesões formais aos instrumentos de planejamento (PEIXOTO, COELHO e PEIXOTO, 2016; MOREIRA e TAMAKI, 2017). Diante disso, as pactuações regionais cedem lugar a acordos políticos informais, nos quais predominam a competição em detrimento de consensos e cooperações (IANNI et al., 2012; SILVA e GOMES, 2014; REIS et al., 2017).
Além do exposto, as influências do setor privado nas regiões de saúde representam uma dupla contradição entre organizar serviços sob a óptica da universalidade ou reduzir essa organização a um sistema competitivo e centrado nos interesses de mercado (CAMPOS, 2010; BAHIA, 2010; LIMA et al., 2015; PAIM, 2012). Para alguns estudos, o setor privado tende a ser mais influente em regiões com capacidade regulatória estatal incipiente e onde há uma dependência pública de serviços em relação ao empresariado da saúde (VIANA et al., 2015; SANTOS e GIOVANELLA, 2014; SHIMIZU et al., 2017; ALMEIDA e LIMA, 2015). Destaca-se um crescente número de contratos dos entes públicos com serviços privados e organizações da administração indireta (LIMA et al., 2015), conformando novos arranjos entre as esferas pública e privada (instituições e sujeitos) em pontos de insuficiência da rede própria do SUS (SILVEIRA FILHO et al., 2016).
Alguns artigos sinalizam que, diante do crescimento na celebração de contratualizações regionais, deve-se atentar para a possiblidade de alianças entre empresários e grupos políticos numa composição híbrida e patrimonialista, que implica um padrão relacional público-privado regressivo e voltado a privilégios concedidos a interesses de mercado em detrimento do SUS (SANTOS e GIOVANELLA, 2014). Esse risco se torna mais real quando há uma incipiente ou ausente capacidade de regulação estadual dos prestadores privados, o que colabora para um mercado de serviços de saúde mal regulado e com motivações à revelia das necessidades regionais (REIS et al., 2017; GEREMIA e DAIN, 2018; VIANA et al., 2017; COSTA, 2017).
Um aspecto fundamental se refere ao arcabouço jurídico-normativo do SUS, que, segundo alguns autores, é complexo, ambíguo e de difícil compreensão pelos gestores públicos, colaborando para impasses na conciliação de objetivos entre entes federativos, cercados de incertezas e conflitos de projetos de governo (SANCHO et al., 2017; CARVALHO, JESUS e SENRA, 2017). Assinalam-se ainda lacunas expressivas nas normativas da política de regionalização para territórios de fronteira entre países, que não contemplam aspectos orçamentários de planejamento e pactuação interfronteiriça (CASANOVA et al., 2017).
O perfil e a composição dos espaços da gestão interfederativa também são variáveis importantes na gestão regional do SUS. Vários estudos evidenciaram que a atuação dos colegiados deliberativos depende de sua trajetória histórica e institucional, da filiação partidária dos gestores representantes, da governabilidade dos agentes em cumprir os compromissos pactuados e da capacidade do governo para se apropriar de todo o instrumental da gestão local-regional (CURY, 2015; RIBEIRO, 2015; SILVA e GOMES, 2014, 2013; MENDES et al., 2015). A capacidade deliberativa das comissões intergestoras - em âmbito nacional, estadual ou regional - é um ponto muito debatido pelos estudos, sendo conclusiva quanto à polarização das decisões, geralmente focadas no aspecto financeiro e subordinadas a agendas nacionais (MACHADO et al., 2014).
Alguns estudos evidenciaram baixa capacidade institucional de comissões intergestores em regiões pouco desenvolvidas economicamente e com baixa oferta de serviços de saúde (Norte e Nordeste). Isso prejudica o planejamento regional e a regulação de prestadores públicos e privados, flexibilizando os espaços decisórios para a introdução de diversos interesses destoantes da política regional de saúde (KUSCHNIR e CHORNY, 2010; KEHRIG, SOUZA e SCATENA, 2015; PEREIRA, 2009). Destaca-se ainda que as comissões intergestores são influenciadas por outras instâncias de cunho estadual, a exemplo das Comissões Intergestores Bipartite (CIB) e do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems) (ALMEIDA et al., 2016), bem como pela predominância de conflitos no âmbito município-município e estado-município (VIANA e LIMA, 2013; MARTINELLI, VIANA e SCATENA, 2015) e pela rotatividade de secretários de saúde e baixa autonomia decisória (SANTOS e GIOVANELLA, 2014). Em suma, os estudos apontam que as comissões intergestoras regionais têm sido espaços meramente homologatórios e que os consensos são estabelecidos de modo informal (IANNI et al., 2012; GALINDO et al., 2014; CARNEIRO, FORSTER e FERREIRA, 2014; MENDES et al., 2015).
Em síntese, pode-se destacar que o Brasil imprimiu diversas decisões pró-gestão regionalizada do SUS, mesmo que tardias. Todavia, ainda que o instrumental jurídico-normativo do sistema tenha alcançado importante notoriedade para os gestores, a política de regionalização do SUS operou em dois momentos. O primeiro, do Pacto Pela Saúde (BRASIL, 2006) ao estabelecimento do Decreto nº 7.508 (BRASIL, 2011), com importantes discussões sobre a regionalização; o segundo, com significativo vazio institucional, estagnação econômica e crise fiscal, com ausentes iniciativas pró-regionalização. Portanto, as evidências da literatura sumarizada neste ensaio ratificam e ilustram a complexidade de estruturar a gestão interfederativa regional num país heterogêneo e com uma tripla dependência entre os cenários nacional, estadual e municipal. Em suma, a política de regionalização do SUS opera num ciclo político instável e impredizível, e os estudos são conclusivos sobre a predominância de desafios para institucionalizar uma política regional que atenda à diversidade política, econômica e social das regiões de saúde. Destaca-se, como limitação deste estudo, a escassez de publicações sobre a gestão regional do SUS em territórios fronteiriços entre países e estados, sendo, assim, um objeto de investigação necessário para melhor elucidar a viabilidade da política de regionalização em regiões de saúde com configurações políticas singulares.