Artigo
Recepção: 12 Setembro 2020
Aprovação: 04 Março 2022
DOI: https://doi.org/10.12660/rgplp.v21n2.2022.82169
Resumo: O presente ensaio propõe apresentar, de forma sintética, um panorama sobre a constituição e evolução da concepção do trabalho gerencial sob a ótica de duas diferentes linhagens teóricas. A primeira ampara-se nas referências da herança clássica, denominada Escola das Atividades Cotidianas, sob uma perspectiva epistemológica de caráter empiricista e racionalista, em que o trabalho gerencial, no nível intermediário, é determinado por sua posição na estrutura hierárquica e tem o papel de transmitir aos trabalhadores do chamado “âmbito operacional” os objetivos definidos pela direção. A segunda pauta-se no legado de tradição francófona, que congrega a articulação de conteúdos das ciências sociais com a Psicologia do Trabalho Ergonômica e a Ergonomia da Atividade, privilegiando as situações reais de trabalho. É um ensaio que tem como objetivo fornecer subsídios e pistas que fundamentem investigações envolvendo o trabalho gerencial, incluindo o gerenciamento do espaço produtivo e de serviços, assim como a gestão de equipes.
PALAVRAS-CHAVE: Gerenciamento, Trabalho gerencial, Gerente.
Abstract: This essay synthetically presents an overview of the constitution and evolution of the concept of managerial work based on two different theoretical currents. The first is the “School of Daily Activities,” grounded on references from the classic heritage. It is an epistemological perspective of an empiricist and rationalist nature, where the managerial work - at the intermediate level - is determined from its position in the hierarchical structure. Also, the managerial work has the role of transmitting the objectives defined by management to workers of the so-called “operational scope.” The second current is guided by the legacy of the francophone tradition, which brings together the connection of contents of social science and ergonomics and work psychology, and activity ergonomics, privileging real work situations. The essay offers elements to subsidize further research on managerial work, including the management of productive space and services and team management.
keywords: Management, Managerial work, Manager.
Resumen: Este ensayo propone presentar, de forma sintética, un panorama de la constitución y evolución del concepto de trabajo gerencial desde la perspectiva de dos líneas teóricas distintas. La primera se basa en las referencias del patrimonio clásico, denominada Escuela de Actividades Cotidianas, bajo una perspectiva epistemológica de carácter empirista y racionalista, en la que el trabajo gerencial, de nivel intermedio, es determinado por su posición en la estructura jerárquica y tiene el papel de transmitir a los trabajadores del llamado “ámbito operativo” los objetivos definidos por la dirección. La segunda se guía por el legado de la tradición francófona, que aúna la articulación de contenidos de las ciencias sociales con la Psicología Ergonómica del Trabajo y la Ergonomía de la Actividad, privilegiando situaciones laborales reales. Es un ensayo que pretende proporcionar elementos que fundamenten las investigaciones referentes al trabajo de gestión, incluyendo la gestión del espacio productivo y de servicios, así como la gestión de equipos.
Palabras clave: Gestión, Trabajo gerencial, Gerente.
INTRODUÇÃO
Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, a função de administrar e supervisionar de forma direta e contínua os trabalhadores e/ou equipes é delegada pelo capitalista a um trabalhador que compõe um grupo especial, formado por oficiais superiores e suboficiais (MARX, 1988), que vende sua força de trabalho para ser o representante do capital.
A expansão capitalista reforça a inserção na lógica de um nível intermediário na estrutura organizacional, ao gerar novas demandas de organização do trabalho, seja em relação à produção propriamente dita, pelo incremento de técnicas de produção, em sua grande maioria extraída do engendramento do conhecimento dos trabalhadores e do desenvolvimento científico aplicado aos processos produtivos, no sentido de articular o sistema de fragmentação das tarefas para promover produtividade.
O estudo sistemático do cotidiano gerencial é atravessado pelos constituintes históricos, pelas forças produtivas presentes e pelas mudanças que foram ocorrendo nos “mundos do trabalho” (HOBSBAWM, 2015) como consequência das profundas transformações que o capitalismo foi sofrendo, tanto em sua estrutura produtiva, quanto no universo de seus valores e ideários.
As diferentes referências teóricas que se debruçam sobre a temática do gerenciamento estão associadas ao movimento do sistema capitalista, tanto de seus avanços quanto de suas novas configurações. A sistematização das práticas racionais de gestão do trabalho, apesar de a Inglaterra ser a precursora da Revolução Industrial, será efetivada e alargada nos Estados Unidos, considerando a emergência desse país na qualificação de sua força de trabalho industrial, que se expandiu nos anos seguintes após a Guerra de Secessão e se institucionalizou nas associações profissionais de engenharia. O que ficou conhecido como “movimento do works management”. Seguindo o caminho do movimento estadunidense, esse quadro só se institucionaliza na Europa industrial após 1900 (VIZEU, 2010).
O contexto, com o surgimento das grandes empresas norte-americanas e dos grandes trustes, favoreceu a ascensão do administrador como profissional assalariado inserido nesse mercado. Essas condições foram destacadas por Chandler (1998), que, por meio de suas investigações, estrutura a denominada teoria da grande empresa (CHANDLER, 1998), por considerar que a indústria ferroviária, em decorrência das estradas de ferro, tornou-se a primeira das grandes corporações. Este foi o primeiro segmento a desenvolver o modelo de gestão empresarial burocrático; em seguida, as indústrias de bens de consumo passaram também a conceber complexos sistemas gerenciais em virtude desse crescimento (VIZEU, 2010). Na medida em que o desenvolvimento industrial foi se alargando, diversificando produtos e ampliando a capacidade de distribuição das estruturas departamentais e comerciais das empresas, surgem novas divisões para articular as diferentes atribuições, o que vai exigir uma maior necessidade de coordenação das diversas divisões produtivas. No percurso da constituição de um sistema organizacional bastante complexo durante a expansão industrial estadunidense, o administrador - profissional assalariado - é posicionado como o coordenador das respectivas divisões e pela direção geral desses grandes grupos empresariais (VIZEU, 2010).
A função gerencial terá a incumbência de produzir mediações entre uma diversidade de elementos, com vistas a favorecer a integração entre lógicas funcionais mais ou menos contraditórias (GAULEJAC, 2007). Esse é um processo que envolve tensões entre as exigências de lucro e a melhoria nas condições de vida no trabalho. A depender dos movimentos históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais, das transformações nas organizações, os rebatimentos destes no modelo hierárquico e na estrutura da cadeia de comando; o tipo de negócio; a categoria profissional, com suas histórias e formas de representação organizada - dentre tantos outros elementos - podem criar contornos extremamente específicos para o trabalho da hierarquia intermediária (MASCIA, 2007). Portanto a atuação gerencial está na ligação entre o trabalho operacional na indústria e as orientações e exigências decorrentes da direção e/ou da gerência hierárquica superior. Esta é uma função vinculada a planejamento, objetivos, orçamentos e indicadores e relações estruturadas no cotidiano do “fazer-fazer”, atravessada pela variabilidade das situações de trabalho, criando canais de diálogo com a estrutura organizacional superior, com os pares e os profissionais da própria equipe. Trata-se de gerir uma rede de atores, muitas vezes extremamente distinta, com qualificações e demandas diferenciadas, tais como: acionistas, direção, serviços funcionais e clientes, e com uma vasta amplitude de interesses, não necessariamente convergentes.
A denominação dada à hierarquia intermediária vem comportando, historicamente, diferentes vocábulos e sentidos, como resultado de um processo gerencial que foi se configurando e que abarca aspectos econômicos, tecnológicos e sociais, levando a diferentes interpretações de acordo com o referencial adotado. Essa “imprecisão terminológica” também é herança do modelo taylorista de organização do trabalho, caracterizado, dentre outras formas, pela divisão hierárquica do trabalho. No entanto, ao longo do tempo, transformações sócio-organizacionais foram se efetivando, o que gerou, por sua vez, alterações nas fronteiras e nos elementos de contorno associados a esse nível hierárquico. Essa heterogeneidade é significativa conforme o setor da atividade, a categoria profissional, organizacional ou estatutária, o campo da atividade ou o conteúdo do trabalho. À medida que o processo gerencial foi se configurando, o vocábulo foi assumindo diferentes denominações. Em países de língua inglesa são usados os termos supervisors, first-line managers ou midle management, e nos de língua francesa, encadrement de proximité, encadrement de premier niveau, agents de maîtrise, cadres encadrants, contremaîtres e gestionnaires de premier niveau.
Com base em duas correntes teóricas, este ensaio objetiva apresentar algumas investigações que envolvem o trabalho gerencial em relação à hierarquia intermediária, principalmente no que diz respeito aos profissionais que gerenciam cotidianamente os processos produtivos industriais, que incluem o gerenciamento da produção, a aproximação com os serviços de apoio necessários à organização do trabalho, assim como a gestão dos trabalhadores. A primeira corrente teórica estrutura-se em referências clássicas, de tradição empírica, denominada Escola das Atividades Cotidianas, a qual busca romper com o caráter prescritivo dos estudos sobre o trabalho dos gerentes, ao mesmo tempo que tem como suporte uma perspectiva epistemológica racionalista e funcionalista. A segunda, de linhagem fancófona, pauta-se em investigações no âmbito de situações reais de trabalho, em que a dimensão gestionária do trabalho coloca em debate a defasagem entre o trabalho prescrito e a atividade (GUÉRIN et al., 2001). Portanto uma de suas características principais está em não conceber o trabalho como simples execução técnica de uma prescrição (de uma norma, procedimento ou protocolo), mesmo que essa regulamentação seja resultado de um patrimônio científico construído ao longo do tempo. Essa característica sinaliza a existência de um irredutível descompasso entre a tarefa prescrita e a atividade “real”, uma vez que independentemente das condições materiais de existência, os meios de trabalho materiais ou imateriais serão sempre insuficientes para a realização das tarefas, mesmo as classificadas como extremamente operacionais.
ESTUDOS SOBRE O TRABALHO GERENCIAL COM BASE NAS REFERÊNCIAS CLÁSSICAS
A história do estudo da hierarquia intermediária ganha destaque com o movimento de racionalização do trabalho, inspirado pelos princípios tayloristas da Administração Científica (TAYLOR, 1990), ao romper com a estrutura de ofícios para preconizar a divisão entre quem elabora e quem executa o trabalho. O princípio da divisão de tarefas é incorporado às organizações com o objetivo de tornar o trabalho mais eficiente; consequentemente, cria departamentalizações e diferentes níveis intermediários, cujo principal foco é o controle e a coordenação do trabalho.
Nesse rastro, destacam-se: as investigações conduzidas por Fayol (1968), que dão origem à denominada Teoria Geral da Administração, uma das principais referências teóricas para a discussão do trabalho dos gerentes; e as pesquisas do psiquiatra australiano, especialista em relações industriais, Elton Mayo (1977), entre os anos de 1930 e 1940, que mostram a influência das relações sociais no ambiente de trabalho, de modo que a busca pela produtividade almejada, para além das questões econômicas, também está relacionada às recompensas simbólicas e à necessidade de humanizar a administração.
Implantam-se, portanto, paradigmas científicos que excluem o acaso e concebem uma realidade de caráter determinista, estabelecendo um pensamento que representa o mundo de uma maneira mecanicista e completamente previsível.
A Escola das Atividades Cotidianas vem empreendendo esforços no sentido de ultrapassar esse viés de caráter exclusivamente normativo, mas suas investigações sobre as questões que envolvem o gerenciamento ainda comportam uma estreita relação com os referenciais teóricos clássicos.
Dentre os estudiosos dessa Escola, Chester Barnard foi um dos pioneiros a estudar sobre os papéis do executivo nas organizações, especificamente no que se refere aos processos de tomada de decisão, aos tipos de relação entre as organizações formais e informais e às suas funções. Esse autor, ao longo de quarenta anos, como gerente na Companhia de telefones Bell, e com a publicação do livro The Functions of the Executive (1938), exerceu significativa influência em sua época (RAUFFLET, 2005). Barnard considerava que uma das atribuições dos gerentes era a coordenação dos indivíduos, com vistas à obtenção de cooperação a fim de alcançar objetivos comuns em relação às questões sobre liderança, cultura e valores (RAUFFLET, 2005).
Cerca de sete anos depois, vinculado a essa mesma Escola, o economista, psicólogo e docente Hebert Simon (RAUFFLET, 2005) publica o livro Comportamento Administrativo, originário de inúmeros estudos e produções, que trata das relações dos indivíduos com a organização e os processos decisórios, envolvendo os campos da Psicologia Cognitiva, Administração Pública, Economia, Filosofia e Sociologia.
Somando-se a esse grupo de pioneiros, destacam-se também, conforme Raufflet (2005), as contribuições de Sune Carlson (1951), Sayles (1964) e Rosemary Stewart (1967, 1976).
Carlson, ao longo de alguns anos, regularmente reunia-se com dirigentes de empresas, a fim de discutir questões gerais sobre a administração empresarial e a formação gerencial. Esse processo de debate deu origem a um conjunto de observações e também à concepção e à aplicação de um método sobre as atividades cotidianas de presidentes de empresa. Dentre as conclusões, destacam-se a caracterização da jornada de trabalho gerencial fragmentada e a priorização das comunicações verbais em detrimento de outras modalidades (RAUFFLET, 2005).
Sayles (1964) é outro estudioso que explorou o trabalho de gerentes do nível intermediário, especificamente em uma empresa de alta tecnologia americana. Utilizou métodos etnográficos, no qual se destacam observações, conversas e entrevistas, e concluiu que os gerentes, raramente, trabalham sozinhos e sempre estão inseridos em uma rede de relações de dependência mútua que atua como base de sustentação para os mesmos. Com uma abrangência significativamente maior, os estudos de Stewart, envolvendo 160 gerentes britânicos (RAUFFLET, 2005), apresentam resultados da análise da jornada diária, mostrando que o tempo de trabalho é pautado pelas circunstâncias e pela natureza do negócio da empresa, assim como pela forma como cada um individualmente lida com as diferentes variáveis e demandas nas relações interpessoais, uma vez que, sistematicamente, fazem opções e discutem ideias dentro de um determinado contexto de trabalho. Dessa forma, obteve-se um maior conhecimento sobre o fazer gerencial, incluindo o detalhamento prescritivo das atribuições vinculadas a planejamento, organização, motivação e controle. Isso permitiu, também, que as práticas de recrutamento, formação e desenvolvimento dos gerentes nas empresas pudessem suscitar um planejamento de carreira mais eficaz, abrangendo as particularidades dos problemas enfrentados por esses profissionais (RAUFFLET, 2005).
Ainda na década de 1980, surgem as pesquisas conduzidas por Kotter (1982). Reconhecido teórico dessa Escola, denominado como o “guru da liderança”, identificou dois desafios no trabalho dos executivos, quais sejam: referente à diversidade e ao volume significativo de informações potencialmente relevantes; e à dependência que esse profissional tem de uma significativa rede de contatos.
Kotter (1982), ao estudar a realidade de quinze gerentes de quinze empresas, levando em conta todas as diferenças existentes entre estes, ratificou várias conclusões obtidas anteriormente sobre a descontinuidade das tarefas cotidianas e o tempo basicamente dedicado às interações pessoais. Em sua análise, tomou como base a natureza do trabalho gerencial e construiu uma modelagem de desempenho no cargo, com vistas a atender a três focos: a) o primeiro estabelece uma agenda, que inclui a estratégia pessoal para alcançar as metas definidas, buscando mais informações de outros e estruturando programas e projetos de forma mais exitosa; b) o segundo, a construção de rede de relacionamentos cooperativos, internos e externos, de modo a obter um desempenho eficaz; c) e o último, a implementação das agendas, por meio da qual são utilizados os recursos orçamentários e de informações. Acrescenta, ainda, a existência de diferenças entre administração e liderança, pois no processo de mudança, o segundo foco é o prioritário, por estabelecer orientação, desenvolver uma visão de futuro, alinhamento pessoal, motivação e inspiração. Para ele, a administração é formada por atributos associados ao planejamento e orçamento; à organização e recrutamento de pessoal; e ao controle e solução de problemas (KOTTER, 1982).
Outros autores, como Gabarro (1987) e Hill (1992), também ao se debruçarem sobre a evolução das trajetórias individuais e coletivas dos gerentes e os seus respectivos aprendizados, concluem que as discussões de trabalho orientam-se mais para assuntos de âmbito relacional e menos aos estritamente descritivos de tarefas, priorizando-se assim uma via de análise processual das questões rotineiras.
Adiciona-se a esse cabedal uma importante referência: as pesquisas de Mintzberg (1986). Esse autor, apesar de pautar seus estudos na linhagem dos clássicos, busca romper com paradigmas metodológicos adotados tradicionalmente, ao substituir a utilização de agendas e categorias preestabelecidas pela observação direta do cotidiano gerencial. Em 1973, realiza seu primeiro estudo, observando uma semana de trabalho de cinco executivos. Os resultados obtidos ratificam pesquisas empreendidas pelos autores pioneiros nessa Escola, acrescentando apenas que a rotina e o ritmo de trabalho diário são inexoráveis, marcados por atuações breves, fragmentadas e com muitas interrupções. Constata que existe, preferencialmente por parte dos gerentes, uma atuação mais direta e com comunicações verbais do que uma performance mais reflexiva e com material escrito para acessar informações. Há também a exigência de reprogramações permanentes do cotidiano, visto que o tempo gerencial é regulado pelas tarefas a serem cumpridas e pelas obrigações a serem desempenhadas via autoridade formal. Dessa forma, buscou estruturar o cotidiano gerencial pelo agrupamento em três diferentes papéis: interpessoais, aspectos informacionais e de caráter decisional (MINTZBERG, 1986).
Mais tarde, Mintzberg (2010) passa a corroborar conclusões apresentadas por Kotter (1982), por entender que não é possível falar de liderança sem conceber o trabalho gerencial como “[...] uma prática, aprendida principalmente com a experiência e enraizada no contexto”, de modo que o gerenciamento cotidiano depende mais da “arte”, por esta produzir “compreensão e visão baseadas na intuição” (MINTZBERG, 2010, p. 23). “Não existe a melhor maneira de gerenciar; tudo depende da situação” (MINTZBERG, 2010, p. 24). Para este autor, é necessário reconhecer o trabalho do gerente como uma vocação e não como ciência e profissão, contrariando concepções adotadas por outros autores da linhagem clássica, a exemplo de Drucker (1996), para quem o trabalho gerencial baseado na intuição não tinha possibilidades de prosperar.
Mintzberg (2010) chama, ainda, a atenção para o fato de que não deveria haver uma preocupação em se estabelecer diferenciação entre as concepções de gerentes e de líderes e, sim, buscar identificar gerentes como líderes e a liderança como a prática efetiva da gestão. Segundo o autor, o destaque dado à liderança cria posicionamentos de arrogância equivocados, uma vez que o líder é colocado em um pedestal, transformando um processo social em pessoal, o que leva à criação, consequentemente, de uma relação de seguidores que não constituem uma via estimuladora de esforço cooperativo, pois “[...] em vez de apenas liderança, deveríamos estar promovendo comunidades de atores que trabalham a composição conjunta dos conceitos de liderança e de gerência” (MINTZBERG, 2010, p. 23).
Considera, também, que essa é uma questão antiga e atual, pois o líder é quem pode organizar a experiência do grupo em qualquer escalão hierárquico, independentemente de seu tamanho, desde que aproveite a força de todos, pois entende que “o líder faz a equipe” (MINTZBERG, 2010). Em outros estudos, ratificou observações já destacadas nas pesquisas de Sayles (1964) de que os gerentes “novatos” consideram que o controle gerencial é suficiente para que a equipe realize o trabalho prescrito pelos escalões hierárquicos superiores (MINTZBERG, 2010).
Nessa trajetória, Mintzberg (2010) tenta avançar na discussão apresentando uma proposta de um modelo que denominou de “managing” e que, na tradução para o português, passou a ser nominado de “gerenciamento balanceado” (MINTZBERG, 2010). Essa modelagem aborda o trabalho gerencial abrangendo a inclusão simultânea de três níveis: a) plano das informações vinculado à visão clássica do gerenciamento na promoção da comunicação - por meio do fluxo de informações, para todas as direções, incluindo o processamento, a transmissão e o compartilhamento -, bem como de controle, via utilização das informações para motivar comportamentos e levar as pessoas a alcançar objetivos; b) envolvimento das pessoas ao substituir a informação pela influência, apesar de o controle permanecer nas mãos do gerente, dado que o espaço de participação é concedido de acordo com a sua decisão; c) atuação direta do gerente, de forma mais ativa e concreta dentro da sua área, seja coordenando ou participando de projetos com o intuito de aprender, demonstrar ou encorajar outros em relação ao modo de agir, tendo em conta que esse nível está atrelado também - e na maioria das vezes - à apreensão com os resultados.
Assim, ratificando suas próprias conclusões sobre o entendimento de que gerenciar não é profissão, por não ser possível o seu ensino antes da prática e fora do contexto, Mintzberg (2010) compreende que se deve depositar confiança no gerente que nunca pisou em uma sala de aula de Administração, e colocar sob “suspeita” os que passaram dois anos nela. São observações que reforçam a concepção de que o trabalho gerencial está pautado no conhecimento tácito, de difícil acesso, apreendido durante a própria prática, desenvolvido no contexto, na situação em questão. Isso significa que se refere a um processo de aprendizagem que não apresenta facilidades em sua transmissão, seja de uma posição gerencial para outra, entre funções, dentro da mesma organização, e muito menos entre setores diferentes da economia. Para esse autor, o gerente que pensa que sabe mais, acaba atrapalhando a sua própria forma de agir, porque esta consiste principalmente em facilitação. “O gerente precisa ajudar a realizar o potencial de outras pessoas para que elas possam ter conhecimento melhor, tomar decisões melhores e agir melhor” (MINTZBERG, 2010, p. 26).
Ainda hoje, são criadas exigências idealizadas de que os gerentes tenham a expectativa da realização do mito - do folclore do planejamento e da organização, dentre outros - no contexto da realidade diária do trabalho gerencial. No entanto, os estudos mostram que há um esforço de se tentar avançar sobre as questões que envolvem o cotidiano desses profissionais nos mais diferentes segmentos de negócios (MINTZBERG, 2010).
Apesar das diferentes investigações sobre o cotidiano gerencial ao longo das décadas, é possível observar que as ideias apresentadas sustentam-se nas referências clássicas do gerenciamento, fixando-se ainda na descrição de tarefas, normalização de procedimentos e processos, definição de princípios, modelos e papéis e na transmissão de instrumentos e ferramentas.
INVESTIGAÇÕES SOBRE O TRABALHO GERENCIAL A PARTIR DA LINHAGEM FRANCÓFONA
Investigar sobre o trabalho cotidiano gerencial à luz de referências teórico-metodológicas que ultrapassem as abordagens clássicas remete, inicialmente, aos estudos de Faverge (segundo OUVRIER-BONNAZ, 2009), um dos primeiros a identificar “[...] o interesse do método clínico na análise do modo de aquisição da experiência e na análise das competências tácitas ou incorporadas”, de modo a constatar que “nenhuma atividade é parecida com uma outra”. Faverge (1966), assim, propõe uma análise do trabalho com o objetivo de identificar as diferentes formas de regulagens adotadas pelos trabalhadores no enfrentamento das situações reais de trabalho. Dentre essas, destacam-se as realizadas pelos chefes das equipes na divisão das tarefas, no curso das variadas atividades, exigindo alterações ocasionais a fim de garantir o equilíbrio da produção e da segurança. Também, ao mesmo tempo, ressalta a importância do trabalho das chefias no desempenho de um papel de elo entre demandas opostas, derivadas de diferentes níveis hierárquicos ou de grupos organizacionais distintos que operam de forma interdependente, a fim de manter a organização.
Ao contrário de seguir uma alternativa de aprofundamento, os estudos do trabalho gerencial entre os anos de 1960 e de 1970 perderam fôlego principalmente pelo fato de estes profissionais não serem considerados trabalhadores como os demais, posto que sua imagem estava somente associada ao papel de representação e defesa dos interesses organizacionais e também por fazerem parte de uma categoria denominada “cadre”, o que se constituía um princípio identitário que os afastava da condição de trabalhadores.
Somente na década de 1980 Boltanski (1982) passa a resgatar os estudos desses profissionais, por intermédio das pesquisas realizadas por Benguigui, Griset e Monjardet (1977), ao entender que se trata de um trabalho de mediação e enquadramento, levando em consideração o seu caráter intermediário e relacional, com duas dimensões aparentemente contraditórias. De um lado, a categoria “cadre” possui uma identificação pela representação da função pública, por estabelecer relações de confiança fundadas em ideias como as de lealdade e aliança, conferindo-lhes status salarial distinto, segurança no emprego e uma perspectiva de carreira ascendente. De outro lado, remete a um grupo volátil, de fronteiras variáveis, em que a confiança está submetida a uma tensão permanente entre a lógica da subordinação e a lógica da autonomia (BOUFFARTIGUE, 2001). Essa é uma condição de autonomia denominada por Bouffartigue e Bouteiller (2006) como utópica, em virtude de ser algo presumido pelos gerentes, uma vez que está vinculada à idealização de um estatuto gerencial anterior que não mais retrata a realidade passada, por esta pautar-se efetivamente em prescrições, metas e prazos.
Nesse âmbito, os próprios pesquisadores da administração, gradativamente, foram deixando de lado a orientação de que era possível estruturar um modelo pautado em planejamento, instrumentalização e previsibilidade, que possibilitasse predeterminar todas as tarefas gerenciais, porquanto que o trabalho de organização está enraizado na atividade e na interação entre os diferentes atores que produzem novas regras informais para lidar com as lacunas das regras formais (MOISDON, 1994), de forma articulada, construindo novas regras efetivas. Desse modo, induz a “[...] imaginar novas formas de instrumentos que tentam não preencher “os vazios”, mas, ao contrário, deixar vazios, antecipar o espaço “que as ferramentas de gestão” devem ocupar, adaptar-se à necessária incerteza do trabalho” (MOISDON, 1994, p. 18).
Em 1994, Dejours e Jayet, em estudo em uma central nuclear, identificam que os executivos de linha intermediária adotam um posicionamento cambiante, que circula entre dois extremos. De um lado, enfrentamento diante do nível hierárquico superior, total domínio técnico do processo, visando alcançar os índices de produção; de outro, a vivência cotidiana dos necessários ajustes empíricos, adoção de práticas e regulações exigidas diante dos eventos que desequilibram a organização prescrita. Ante as pressões superiores, estes executivos tendem, em relação aos operadores, a adotar a tática do segredo, gerando, consequentemente, desconfiança na própria equipe. Em paralelo, confrontam-se com os discursos do nível hierárquico superior dominado por concepções segundo as quais o sistema está integralmente controlado em virtude da total e bem-sucedida adequação entre o processo produtivo e a realização do trabalho; assim, qualquer eventualidade, acidentes ou incidentes são atribuídos a causas relativas a fatores humanos. Trata-se de uma condição de confronto constante entre o perfeito domínio técnico do processo e os ajustes empíricos necessários para que o trabalho seja realizado, o que confirma a experiência cotidiana do uso das práticas de “quebra-galhos”. O custo dessa condição é a vivência do medo, em razão da possibilidade de ocorrência de um acidente, uma vez que a observância exclusiva à organização prescrita não é possível de ser perfeitamente respeitada.
Estudos ergonômicos vão evidenciar que a diversidade das fontes de prescrição, muitas vezes contraditórias, requisita um trabalho de auto-organização (ROGARD et al., 1997), pois as situações de trabalho constituem-se em lugares de produção de saberes, comuns e inéditos, e os gerentes, enquanto trabalhadores, são os protagonistas dessa construção. Também vão explicitar vários constrangimentos oriundos desse trabalho, tais como duração da jornada, mudanças constantes, incorporação na vida privada e desdobramentos psicológicos (ROGARD et al., 1997).
A partir da década de 1990, principalmente na Sociologia do Trabalho, há a retomada de vários estudos sobre a temática gerencial, contemplando os processos de reestruturação produtiva, as questões implicadas no trabalho, as forças políticas e econômicas que o foram impactando, assim como as contradições entre o âmbito técnico-racional e as intrincadas e complexas questões que envolvem a atividade. Nesse cenário, intensificam-se as jornadas de trabalho, as demissões disfarçadas de acordos, perda de status, entre outros tantos rebatimentos. Expõe uma fratura, um rompimento, pelo fato de que os gerentes não mais se sentem incluídos em uma categoria social de elite, visto que passa a caber apenas aos considerados “executivos de alto potencial” o reconhecido valor e novas perspectivas profissionais (BOUFFARTIGUE, 2001).
Nessa lógica, os estudos de Bouffartigue e Bouteiller (2004, 2006) sobre os impactos na saúde, relacionados ao tempo, à multiplicidade de tarefas exercidas e à precarização do trabalho vão identificar um significativo crescimento numérico referido aos profissionais “gerentes” por meio desse novo enquadramento, pautado por relações ditadas por objetivos bem definidos, procedimentos, metas e prazos, avaliação de resultados e performances (BOUFFARTIGUE e BOUTEILLER, 2004). Ao mesmo tempo, destaca-se a insuficiente precisão na prescrição das tarefas desses profissionais que abrangem mais detidamente objetivos e resultados a serem alcançados (SIX, 2007), uma vez que é realçado o julgamento de seu trabalho via parâmetros subjetivos de desempenho de sua função e quantificáveis em relação aos pressupostos definidos pelo escalão superior. Esse processo avaliativo é individual e implica mobilização de critérios implícitos, ocultos, difusos e mutáveis sobre a ação realizada, assim como sobre si mesmos, incluindo seus comportamentos, aparência, postura e controle sobre suas emoções e saúde (FALCOZ et al., 2006).
Os estudos de Quéruez (2008) também vão analisar o trabalho gerencial tendo como foco a performance voltada a objetivos instituídos, bem como o constrangimento que sentem em ter de disseminar ideias que não avalizam. Diante disso, os autores os situam na condição de vítimas da intensificação do trabalho compelida pelas mudanças administrativas que determinam instrumentos de gerenciamento. Nesse sentido, esses profissionais são submetidos ao exercício cotidiano de articular duas diferentes lógicas: a burocrática e a gerencial. Essa condição traz tensões significativas em decorrência das alterações impostas, das não diferenciações presentes, da elevação dos ritmos de trabalho, da implantação do atributo da “urgência”, da ausência de reconhecimento dos esforços, do estabelecimento de um campo concorrencial entre os pares e da falta de discussões coletivas sobre as questões cotidianas.
Caberá aos gerentes e executivos posicionar-se como o principal suporte e divulgador desse novo discurso, novo ‘espírito’, desse sistema simbólico que reordena as posições e relações sociais (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009). O trabalho gerencial media e traduz os interesses econômicos e financeiros em soluções técnicas, porquanto o seu estatuto não mais corresponde ao exercício estrito de uma função de comando, de revezamento na cadeia de autoridade hierárquica, mas já passa a receber influências das referências anglo-saxãs (BOUFFARTIGUE e BOUTEILLER, 2006).
Mispelblom-Beyer (2004) caracteriza os gerentes como trabalhadores de confiança, cuja atividade consiste na construção de consensos e é resultado de um esforço de construção ou “invenção social”, política e simbólica. Essa confiança encontra-se no âmbito de um domínio particular do poder patronal sobre os assalariados subordinados. A confiança depositada nos gerentes está caracterizada pelo compartilhamento de uma mesma concepção de trabalho e de convergência de interesses da empresa, dado que fazem a mediação entre as diretrizes recebidas pelo escalão superior e as respectivas aplicações destas junto ao grupo a eles subordinado. Sendo assim, a confiança é definidora tanto da posição organizacional como do conteúdo da atividade, pois estes se encontram na posição intermediária (MISPELBLOM-BEYER, 2004). Apesar da heterogeneidade existente nesse grupo, pela diversidade empírica das tarefas, a ênfase no caráter relacional, em todas as suas intervenções é a marca central da atividade, segundo Mispelblom-Beyer (2004).
Tendo em vista que as tarefas de comando, acompanhamento e coordenação foram passando por mudanças, os contornos das prescrições gerenciais também foram se modificando, de acordo com as especificidades dos segmentos de negócios, de mercado e as próprias transformações no mundo do trabalho. Assim sendo, além das questões que envolvem as atividades cotidianas desses profissionais, reestruturações organizacionais também trazem impactos na definição de funções gerenciais, criando muitas vezes um campo de superposição e/ou de interseção em relação a semelhantes funções, como o trabalho gerencial e o de supervisão.
Mascia (2007) observa que, apesar das múltiplas tarefas assumidas pelos profissionais que estão nesse nível intermediário - supervisores e gerentes -, é possível reuni-las em quatro categorias, quais sejam: relacional, de gestão, técnica e comercial.
Na primeira categoria, encontram-se as tarefas relacionais voltadas à atenção e coordenação dos profissionais da equipe que, paulatinamente, foram se tornando mais qualificados, polivalentes e com um maior grau de autonomia. Na segunda estão as tarefas ligadas a planejamento, organização e gestão das operações de uma determinada área, com suporte de sistemas informatizados que nutrem, por sua vez, os de informação. Em muitas empresas, esse nível hierárquico também assume a “gestão dos recursos humanos” da equipe a ele vinculada, tendo ainda como encargos a avaliação desses profissionais, a elaboração de planos de capacitação, a definição de promoções, a propagação de informações relativas às políticas empresariais, dentre outros (MASCIA, 2007).
Na terceira, tem-se as tarefas técnicas que deixam de exigir tanta proximidade, pois gradativamente os gerentes tornaram-se mais afastados da operação. No entanto, a competência técnica ainda é muito presente por ser da alçada gerencial a organização da aquisição e da difusão dos conhecimentos técnicos para a equipe (MASCIA, 2007). E, por fim, as tarefas comerciais, que estão mais evidenciadas no segmento de serviços, pela relação de proximidade com os clientes, considerando que o nível gerencial abrange também serviços (MASCIA, 2007).
Diante dessa multiplicidade de tarefas, os requisitos para o exercício gerencial congregam diferentes necessidades de conhecimentos técnicos e, a depender de cada realidade de trabalho, muitas vezes podem se referir, também, à tecnologia de ponta. A gestão de um sistema complexo implica uma maior proximidade da gerência no nível operacional (MASCIA, 2007), comportando múltiplas relações, tanto desenvolvendo processos de integração e dissociação de elementos heterogêneos, presentes mais na base operacional, estabelecendo-se tanto por meio da elaboração de compromissos e da conjugação de critérios técnicos (eficiência, e confiabilidade da produção, qualidade etc.), humanos (saúde, competências, segurança) e sociais, quanto do desenrolar dessa multiplicidade de dimensões marcadamente influenciadas pelos contextos interno e externo (MASCIA, 2007). É uma realidade extremamente dinâmica, em que a variabilidade apresenta-se permanentemente, comportando ainda certo grau de previsibilidade, pois trata-se de uma gestão associada a múltiplos fatores relativamente conhecidos pelos gerentes, a depender da experiência e do tempo no exercício da atividade.
Somam-se a esse cenário, principalmente, as exigências de caráter relacional, posicionadas como as que mais influenciam a direção das empresas na definição de quem assumirá determinada função gerencial (MASCIA, 2007).
Na medida em que a complexidade e a instabilidade se intensificam, as exigências para esse nível da cadeia hierárquica também se ampliam, pois a gestão da produção, a aproximação com os serviços de apoio à própria produção, a manutenção, as especificações técnicas ligadas ao processo de qualidade, dentre tantos outros, passam a ser de responsabilidade desses profissionais. Ao mesmo tempo, há a expectativa de que estes tenham uma maior disponibilidade para a equipe, que assumam a coordenação de grupos multidisciplinares e espera-se que incentivem a participação dos técnicos em programas que favoreçam a sugestão de melhorias (MASCIA, 2007).
Outro aspecto importante é a relação fronteiriça do trabalho gerencial, uma vez que essa atividade posiciona-se no espaço entre as realidades descendente e emergente, ou seja, na simultaneidade entre distinção e inclusão. Mascia (2007, p. 618) mencionando Morin (2003), afirma que “[...] é na fronteira que se dá a distinção e a ligação, a separação e a articulação com o outro”, pois o gerente trata as informações descendentes como normas de execução, prescrições, propósitos, metas etc., resultantes de uma transposição dos objetivos gerais determinados pela direção da empresa (MASCIA, 2007).
Portanto, a atividade do supervisor e/ou gerente exige a recomposição de elementos diversos e de diferentes naturezas, compatibilizando a heterogeneidade desse conjunto, de modo a torná-lo uma totalidade e, com isso, viabilizar a produção (MASCIA, 2007). É uma atividade que pressupõe a busca de integração, de um ponto de convergência, “[...] de uma procura de regularidade, de um estado constante [...] de tornar o sistema estável no tempo e na sua duração” (MASCIA, 2007, p. 619), e não apenas pela via dos relatórios gerenciais, visto que a “[...] estabilidade é, na realidade, um equilíbrio instável” (MASCIA, 2007, p. 619). A atividade de integração a ser realizada pela gerência em relação à equipe, no nível mais operacional, comporta incertezas e imprevisibilidades das mais diversas naturezas e origens, que podem envolver eventos internos e/ou externos.
Trata-se assim de uma estabilidade determinada, dinâmica e efêmera, porque cada situação é singular e a necessidade de reconstrução não irá conduzi-la ao estado anterior e sim, em um processo evolutivo, remeterá a outra situação que, por sua vez, compreende também incertezas, pois outros eventos poderão surgir e desestabilizar o equilíbrio momentâneo e situacional. A ocorrência de eventos ou imprevistos intensifica as exigências do trabalho gerencial, tanto pelos fatos que desestabilizam o desenrolar cotidiano das equipes, colocando em risco os resultados a serem alcançados, quanto pelo tratamento que precisa ser dado a fim de buscar as soluções adequadas, tendo em conta que o processo em curso é interrompido e, a depender da natureza e da gravidade dos respectivos eventos, podem ocorrer demandas de deslocamentos, comunicações, reuniões submetidas a várias restrições etc. Corresponde a um processo que mobiliza várias arbitragens e regulagens acionadas no curso das relações que se estabelecem com múltiplos interlocutores e nas situações específicas de trabalho (MASCIA, 2007).
Para Carballeda (1997), o gerenciamento pressupõe a elaboração de compromissos provisórios e atualizados para fazer frente às variabilidades do ambiente e às forças internas e externas. Diante da indisponibilidade para uma análise dos problemas cotidianos, impressos pelas características de suas atividades, o que se vislumbra é a não apropriação dos retornos das vivências com as próprias atividades, a capitalização dos resultados e os ensinamentos que poderiam enriquecer a reflexão sobre os objetivos (MASCIA, 2007).
Vannereau (2004) destaca, em seus estudos com gerentes do segmento industrial, de serviços e da área de saúde, a distância crescente entre o discurso e as práticas gerenciais, colocando em pauta o paradoxo do gerenciamento denominado por Le Goff (2003) como a “barbarie douce”. Refere-se a um discurso cada vez mais “macio”, assim como o projeto de um mundo do trabalho puro e perfeito que mascara os métodos de dominação hierárquica e de controle, em que o sofrimento individual e a violência organizacional são um círculo vicioso. Entende que é necessário repensar a atividade gerencial como um campo de debate e que algumas vezes é possível encontrar uma lacuna entre a retórica gerencial e as práticas reais: a primeira tende a ser organizada em torno de temas como progresso, desempenho, adaptação, autonomia, responsabilidade, criatividade e bem-estar; a segunda, por vezes, produz experiências de sofrimento relacionadas às novas relações de trabalho (VANNEREAU, 2004).
A produção de modelos universais é utópica, visto que cada um tem o seu tempo e é imprescindível compreender as singularidades e as situações reais de trabalho. Para esse autor, são os seguintes os quatro grandes objetivos do gerente formados ao longo da história: organizar racionalmente a produção, motivar o indivíduo, adaptar o indivíduo à estrutura e ao seu ambiente e mobilizar em torno de um projeto, ressaltando que não se trata de questões de aplicação universal, mas vinculadas às práticas singulares e às inventividades (VANNEREAU, 2004).
No contexto da pressão gerencial, os indivíduos se dissociam e valorizam a lógica do cada um por si e de uma concorrência feroz. Observa-se um fracionamento dos coletivos de trabalho: o todo é realmente concebido como a justaposição de peças colocadas ponta a ponta, intercambiáveis e ejetáveis, instalando-se posicionamentos de passividade e sentimento de impotência. Os métodos horizontais, participativos e “doces” de gerenciamento são substituídos por métodos verticais, diretivos e duros de comando e acompanhamento, recrudescendo a violência e as experiências relacionais de sofrimento (VANNEREAU, 2004). Assim, esse autor propõe compreender a dialética paradoxal entre o discurso gerencial “doce” e as relações de força, conflitos, práticas de relações violentas e experiências de sofrimento psíquico. A ideia de bem-estar no trabalho, de uma relação harmoniosa entre o trabalhador e a empresa carrega um cenário utópico de “felicidade” e de uma organização do trabalho que excluiria contradições, conflitos e confrontos. Essa concepção “dramática” remete a um mundo do trabalho purificado e perfeito, de uma empresa homogeneizante e de trabalhadores padronizados. Gestão, discursos, modelos e métodos têm a função de tentar compatibilizar as necessidades individuais com os objetivos de negócio, postulando um princípio de não contradição entre os dois níveis (VANNEREAU, 2004).
De modo mais geral, a finalidade dessa concepção gerencial, independentemente das formas de manifestação dos discursos organizacionais, é uma tentativa de homogeneização, de normalização e de controle de indivíduos (LE GOFF, 2003) na empresa. Busca-se a paz social tentando se apagar as contradições que organizam as relações de trabalho e contornando essas contradições pelas formas indiretas e “doces” de poder constituídas pelos modelos participativos e situacionais de gerenciamento. As técnicas de gestão de obtenção do consentimento que constituem a “barbarie douce” mostram dificuldades crescentes na direção de mobilizar e envolver, sem constranger os trabalhadores aos objetivos de rentabilidade, o que amplifica o stress, a depressão e a exaustão profissionais.
Acrescenta-se, aqui, ainda outro estudo (VANNEREAU, 2008) com vistas a identificar estratégias centrais adotadas por gerentes que, confrontados com a complexidade das organizações, desenvolvem invenções gerenciais buscando superar as contradições, os dilemas e conflitos cotidianos dessa atividade.
Nessa tendência, os estudos empreendidos por Detchessahar et al. (2015) só vêm ratificar a necessidade de reforçar a temática sobre os espaços de discussão no trabalho: um dos principais objetivos dos autores na luta contra os riscos psicossociais e por uma qualidade de vida no trabalho. Uma investigação conduzida por esses autores, adotando um processo metodológico de pesquisa-intervenção, ressaltou a busca pela compreensão das condições sob as quais a dinâmica comunicativa se dá, de modo que o processo implantado e as ações decorrentes geradoras de espaços de discussão no trabalho sobrevivam para além da temporalidade de uma intervenção propriamente dita e sejam, por sua vez, incorporadas aos processos de aprendizagem e transformação em um determinado contexto organizacional.
O processo de pesquisa-intervenção, nesse viés, adota uma concepção de organização como um espaço a ser regulado ou mediado (DETCHESSAHAR et al., 2015) valendo-se da compreensão de que há um permanente retrabalho de regulação frente às contradições do trabalho real e da ação coletiva. Portanto a metodologia de pesquisa-intervenção adotada por Detchessahar et al. (2015) tem como propósito que o processo de construção das exigências para a instituição de um novo modo de operação implemente as condições gerenciais para instalação de uma rotina organizacional, uma atenção renovada ao trabalho e ao contexto no qual é realizado. Trata-se de um novo modo de gerenciar, que possibilita um aprendizado por parte dos gerentes e se pauta em uma comunicação baseada no diálogo, em um método de discussão colegiada e no exercício do papel de autoridade estruturada pela “subsidiarité”. Este último princípio tem como finalidade promover e permitir que os trabalhadores possam se manifestar de forma crítica, sem que isso seja considerado uma subversão. É uma alternativa que permite que a discussão não seja apenas mais descentralizada, mas sobretudo delegada tanto de “baixo para cima quanto de cima para baixo” (DETCHESSAHAR et al., 2015). Com isso, ressalta-se a importância de se incluir a discussão sobre o trabalho na linha hierárquica vertical, não somente para impulsionar o diálogo em todos os escalões hieráquicos, mas principalmente para permitir a possibilidade de transformação da organização e de suas regras por meio do debate sobre a atividade.
Portanto toda a complexidade do trabalho gerencial está pautada pela lógica das situações instáveis e imprevisíveis do cotidiano gerencial, que fazem contraponto aos fundamentos da tradição clássica racionalista, vinculados à previsibilidade, estabilidade e segurança, presentes e orientadores desse contexto de trabalho, cujo objetivo é alcançar as metas e os resultados de produtividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realidade empresarial vem reforçando a coexistência de diferentes correntes teóricas, as quais suportam também perspectivas metodológicas variadas, que evidenciam múltiplas formas de apreensão e interpretação dos fenômenos e transitam entre o global e o particular, considerando as instâncias e as diversas dimensões que envolvem as situações reais de trabalho.
A influência do paradigma clássico propagado pelos referenciais da literatura da Administração e das ciências da gestão e que adotam referências cognitivo-comportamentais para abordar as questões relativas ao humano ainda estão muito presentes nas investigações sobre o trabalho gerencial, mas, muitas vezes, não apresentam respostas suficientemente satisfatórias ante o cenário vigente. Paralelamente, os estudos que adotam referências teóricas da linhagem francófona vem se ampliando a fim de buscar uma melhor compreensão sobre o trabalho gerencial, considerando o reconhecimento da complexidade dessa atividade inscrita em uma realidade pautada por múltiplos fatores e condicionantes e pelas novas configurações presentes nos mundos do trabalho.
Existe, portanto, um enorme espaço para a produção de conhecimentos alicerçados em pressupostos ético-epistemológicos desenvolvidos por uma linhagem de pensadores que compreendem a atividade humana, especialmente a atividade de trabalho, como categoria central na produção, (re)produção e transformação da sociedade e dos homens. Aponta para uma potência de debates sobre um terreno temático que precisa ainda ser mais explorado, de modo a colocar em dialética diferentes saberes, sejam os provenientes de um patrimônio investigativo, sejam outros oriundos do exercício profissional.
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