Resumo: O caso de ensino apresenta como dilema a tensão num órgão executivo da administração pública diante da pressão midiática em torno de um crime de grande comoção social, em que se faz necessária a aquisição de um software essencial para o trabalho da investigação pericial e a consequente elucidação do caso. Ocorre que a alta administração do órgão pouco se envolve com as atividades-meio, pois está mais preocupada com a imagem da instituição perante a sociedade, que critica o produto da atividade-fim da instituição, ignorando a importância dos servidores técnicos responsáveis pelas atividades administrativas, da estrutura dos fluxos processuais e do trabalho realizado para dar suporte aos trabalhos da ponta, da atividade-fim do órgão. Contudo, apesar de o gestor máximo do órgão não ter se envolvido ou mesmo se preocupar com as ações necessárias à aquisição do software, não se eximiu de colher para si os louros da ação sem dar o devido reconhecimento ou o crédito do trabalho à equipe responsável pelo sucesso da operação.
Palavras-chave: Hierarquia administrativa, Servidor público, Burocracia, Controle interno, Gestão pública, Desvio de função.
Abstract: The teaching case presents the internal tension within an executive agency of the public administration in the face of media pressure surrounding a crime of great social commotion. The resolution of this crime hinged on the intricate process of acquiring software for conducting forensic investigations, a typical support activity managed by the agency’s mid-level bureaucracy. In contrast, the agency’s top management remained minimally involved and ignored the importance of the processes, organizational structure, and technical staff responsible for these supporting activities. Their primary focus was directed toward the agency’s core activities and addressing the criticism of society regarding the services delivered. Despite the customary lack of attention to the efforts of mid-level bureaucrats, top managers took credit for the software acquisition operation and the subsequent crime resolution without duly acknowledging or crediting the team responsible for this crucial support activity.
Keywords: Administrative hierarchy, Public servant, Bureaucracy, Internal control, Public management, Misuse of function.
Resumen: El caso de enseñanza presenta como dilema la tensión surgida en un órgano ejecutivo de la administración pública ante la presión mediática en torno a un delito de gran conmoción social, en el que se hace necesaria la adquisición de un programa informático esencial para el trabajo de investigación pericial y la consiguiente aclaración del caso. Lo que ocurre es que la alta dirección del órgano tiene una implicación escasa en las actividades-medio, ya que se ocupa más de la imagen de la institución frente a la sociedad, que critica el producto de la actividad-fin de la institución, y obvia lo importante que son los funcionarios técnicos encargados de las actividades administrativas, la estructura de los flujos procesales y la labor realizada para dar soporte a los trabajos de primera línea, de la actividad-fin del órgano. Empero, aunque la autoridad máxima del órgano no se haya involucrado o hasta preocupado por las acciones necesarias a la adquisición del programa informático, no se eximió de llevarse los méritos de la acción sin reconocer debidamente o dar crédito por el trabajo al equipo responsable del éxito de la operación.
Palabras clave: Jerarquía administrativa, Empleado público, Burocracia, Control interno, Gestión pública, Desviación de función.
Caso de Ensino
Esse cara sou eu (?)
Am I really that guy(?)
Ese soy yo (?)
Recepção: 19 Setembro 2023
Aprovação: 30 Setembro 2023
A Secretaria de Estado de Segurança de Águas de Março (SESAM) passou muitos anos com dificuldades no Departamento de Administração e Finanças (DAF). No fim de 2018, o Dr. Willisson Gabriel foi convidado pelo Secretário de Segurança, Dr. Wallace Swarowski, para assumir o DAF. Sua missão como diretor era corrigir as falhas nos fluxos processuais e reestruturar administrativamente aquela área da Secretaria, a qual, por se tratar de uma atividade-meio, era menosprezada pela Alta Direção da pasta, que não a considerava uma função estratégica pra a gestão do órgão. Além disso, dificilmente alguém quereria assumir a cadeira do DAF, visto que a ocupante anterior do cargo havia sido exonerada respondendo por improbidade.
Como novo diretor do DAF, Dr. Willisson Gabriel montou uma equipe técnica e especializada, determinando que todos os processos de contratação, planejamento de orçamento e execução das despesas fossem revistos. Também promoveu uma reestruturação administrativa no departamento. Para comandar a Divisão de Planejamento Orçamentário (DPO), convidou o gestor Ferdinando Salvieira, especialista em gestão pública, que mapeou todas as receitas e despesas do órgão, apresentando-lhe um relatório contendo o diagnóstico do orçamento daquele exercício financeiro, com recomendações de ações a serem realizadas pela Alta Direção, a fim de cobrir o déficit de aproximadamente 150 milhões de reais.

Ao receber o relatório enviado por Ferdinando, Dr. Willisson Gabriel o encaminhou à Subsecretaria Administrativa, com vistas ao Secretário de Segurança, Dr. Wallace Swarowski, que, sem entender nada, o enviou ao Controle Interno, que, por sua vez, o enviou à Assessoria de Planejamento e Gestão, a qual, mais uma vez, o encaminhou de volta ao DAF “para providências”.
Percebendo que não poderia contar com os órgãos estratégicos da Alta Direção da SESAM, que não sabiam cumprir suas atribuições específicas, e por ser sempre muito proativo e preocupado com a eficiência e a entrega do serviço público, Dr. Willisson Gabriel passou a absorver diversas atribuições dos outros setores no DAF. Ele sabia que, se não fizesse assim, nada sairia do papel.
Quando Dr. Willisson Gabriel assumiu o DAF, a SESAM tinha em torno de 55 milhões de reais disponibilizados na Lei de Orçamento Anual (LOA), com cerca de 180 milhões de despesas em contratos para pagar naquele exercício. Com o apoio técnico de Ferdinando, criou protocolos internos para a gestão dos recursos, por meio de processos transparentes e auditáveis, com verificação de compliance que permitiram à SESAM alcançar 100% de eficiência de execução dos recursos ao final do exercício financeiro.
Com a melhoria dos processos, o orçamento na LOA quintuplicou em apenas dois anos e meio de gestão. Isso foi resultado de um planejamento detalhado e alinhado com os processos de contratação e de uma execução financeira diligente, em parceria com a Assessoria de Contabilidade.
A perita Clícia Porreta, responsável pela Diretoria de Perícias, era uma servidora muito diligente e comprometida com suas funções, sempre buscando exercer suas atribuições com profissionalismo, entregando mais do que lhe era pedido pela posição que ocupava na SESAM. Há dois anos, ela perambulava pelos corredores do órgão, com um processo de solicitação da aquisição da nova versão do software Cellebrare Blaster debaixo do braço. Suas tentativas, porém, não logravam êxito.
Ela não conseguia fazer o processo de compra do software andar, pois o diretor Biroliro, do Departamento de Informática, não concordava com a aquisição e se recusava a participar do Estudo Técnico Preliminar, colocando sempre muitos questionamentos sem fundamento técnico, o que impossibilitava o prosseguimento do processo de contratação, que dependia da manifestação daquele departamento. Esse impasse parecia não ter fim, em razão de tantas tramitações infrutíferas.
Em 8 de março de 2021, porém, tudo mudou. Todos na cidade de Águas de Março ficaram chocados com a notícia da morte do menino Enrico Salgueiro, de 4 anos, que deu entrada no hospital Casa D’Ouro após, supostamente, ter sofrido um acidente doméstico. O delegado da investigação, Dr. Bernardo Mecenas, apreendeu os aparelhos de telefone celular da mãe do menino, Sr.ª Monstrique Medeia; do namorado dela, o deputado Dr. Gasparzinho; e de Tatá Antunes, babá do menino. Ele os enviou ao laboratório da perícia, subordinado à Diretoria de Perícias. Somente o software Cellebrare Blaster seria capaz de desbloquear e recuperar as mensagens que haviam sido apagadas dos aparelhos celulares, provavelmente desvendando as dúvidas ainda existentes sobre o caso.
Foi nesse cenário que Clícia Porreta procurou o Dr. Willisson Gabriel para tentar, mais uma vez, demandar a aquisição da versão atualizada do software israelense Cellebrare Blaster. De uso restrito das autoridades policiais, o recurso já fora usado pela Polícia Federal em investigações importantes como a operação Lava Prato, bem como pelo Ministério Público da Cidade de Águas de Março, na investigação do assassinato da deputada Madriele Mango.
Dr. Willisson Gabriel, após várias tentativas de contato frustradas com o Secretário Wallace Swarowski para tratar do tema, precisou fazer as vezes da Alta Direção. Ele convocou sua equipe de contratações, o Gestor Ferdinando, a perita Clícia Porreta e o Diretor Biroliro para que chegassem a um consenso sobre a aquisição do software com a maior celeridade possível. Além disso, seria necessário analisar os controles do planejamento orçamentário para identificar de onde poderia sair o recurso para a referida aquisição, que deveria seguir o trâmite de inexigibilidade de licitação, fundamentada no artigo 25, da Lei nº 8.666/93.
Era importante que o Departamento de Perícias pudesse ter a versão atualizada do software, de modo a concluir as análises das mensagens apagadas nos celulares apreendidos, dando materialidade ao fechamento da investigação. A mídia estava o tempo todo falando no crime e cobrando da SESAM a elucidação.
Desde o dia 8 de março não se falava de outra coisa na cidade de Águas de Março, a não ser da morte do pequeno Enrico. Como era a vida dele com a mãe e o padrasto? Estariam eles envolvidos na morte do menino? Muitas questões ainda estavam sem resposta, ainda mais porque o caso envolvia um político renomado. Com todos esses ingredientes, a opinião pública e a imprensa em geral acompanhavam e cobravam a resolução do caso.
Nádia de Bonn, uma das principais repórteres da TV AM, estava, desde o início, acompanhando os desdobramentos da investigação do crime. Ela conseguiu uma entrevista ao vivo com o delegado Bernardo Mecenas, responsável pelo caso.
- Boa tarde a todos! Estamos aqui na 8ª DP e falamos há pouco com o delegado responsável pelo caso do menino Enrico. O pequeno Enrico Salgueiro, de 4 anos, faleceu no início do mês, aqui na cidade de Águas de Março. Segundo Mecenas, a polícia já conseguiu mais informações sobre o que ocorreu. A mãe, Monstrique Medeia, e o padrasto dele, o deputado Dr. Gasparzinho, afirmaram, em depoimento, que houve uma queda no quarto. Segundo eles, o menino estaria sozinho. O caso foi tratado pela polícia, inicialmente, como um acidente, mas a necropsia do Instituto Médico Legal (IML) constatou que as lesões são incompatíveis com um acidente doméstico.
“A polícia ouve agora novas testemunhas, como Tatá, que era a babá de Enrico, e aguarda uma perícia nos celulares da mãe e do padrasto, a fim de desbloquear os aparelhos e recuperar as mensagens apagadas.”
“Vamos continuar acompanhando este caso, para que não fique sem solução, como tantos outros. Nádia de Bonn para o AM-TV.”
Sem conseguir concluir a perícia nos aparelhos em razão das limitações impostas pelo obsoleto software Cellebrare Turttle, a perita Clícia Porreta decidiu retomar o processo de aquisição da versão Cellebrare Blaster. Procurou novamente o Dr. Willisson Gabriel para que a ajudasse a fazer o processo de contratação andar. Só assim a SESAM poderia dar uma resposta da investigação à sociedade.
- Boa tarde, Dr. Willisson, tudo bem? O senhor tem acompanhado a repercussão do caso do menino Enrico, correto?
- Sim, Clícia, e só esse software israelense consegue recuperar as mensagens apagadas mesmo?
- Pois é. E o senhor sabe há quanto tempo tenho insistido na compra dessa versão do Cellebrare Blaster? Já faz mais de 2 anos que estou andando de cima para baixo, e a diretoria de Informática sempre atrasa, atrapalha e coloca empecilho.
- O Biroliro sempre tem uma argumentação contrária. Não dá para entender.
- Então, mas acho que agora é hora de a gente conseguir, Dr. Willisson. E a gente já tem a verba do Fundo Nacional de Segurança Pública. Já está liberada. A verba do Governo Federal já está liberada para a gente. É só a gente colocar o processo para andar e resolver logo isso. É um caso de grande repercussão, e a gente precisa resolver alguma coisa, Dr. Willisson!
- Ótimo, Clícia. Vou encaminhar essa demanda agora mesmo para o Secretário. Quem sabe, finalmente, conseguimos resolver essa questão?
Clícia estava antenada nos recursos que estavam sendo disponibilizados pelo Governo Federal para o Fundo Nacional de Segurança Pública, com repasse para o Estado de Águas de Março, por meio do Fundo de Segurança Pública do EAM, e foi a Brasanga, capital federal, para se informar sobre como poderia incluir a aquisição do software no Plano de Ação para utilização desses recursos.
Vários dias se passaram e ninguém da cúpula da Secretaria se manifestou. Era importante que o Departamento de Perícias pudesse concluir as análises das mensagens apagadas nos celulares apreendidos, dando materialidade para o fechamento da investigação. A mídia estava falando sobre o crime e cobrando da SESAM a elucidação.
Como era necessária a concordância do Departamento de Informática, Dr. Willisson decidiu ligar para o Diretor Biroliro:
- Alô? Como vai, Dr. Willisson? Em que posso ajudá-lo?
- Sabe o que é, Biroliro? Você tem acompanhado o caso do menino Enrico, correto?
- Sim. Quem não está? É uma comoção, não é mesmo?
- Pois é, mas desta vez a imprensa está cobrando a recuperação das mensagens de celular, que só conseguiremos com aquele software israelense. Precisamos de sua aprovação. A Clícia já tem um processo pronto. É só se manifestar. O que acha?
Biroliro parou por alguns instantes. Ele não queria ficar com a responsabilidade de ser o agente prejudicador da investigação. Pensou: “Com a repercussão que este caso está tendo, é melhor eu autorizar a compra desse software. Mas vai ser do meu jeito.”
Voltou a falar ao telefone:
- Verdade, Dr. Willisson. Desta vez concordo que é necessário. Mas vou fazer melhor. Para ter a certeza de que não vai faltar nenhum detalhe, vou abrir um novo processo de aquisição direto aqui do meu Departamento e colocar um estudo técnico preliminar, um parecer técnico primoroso e favorável à contratação. Assim que estiver pronto, mando te entregar sem demora.
Assim, Biroliro decidiu ignorar todos os trâmites do processo antigo e não se manifestar no processo que já havia sido aberto pela perita Clícia Porreta, iniciando um novo processo para demandar a mesma coisa: a aquisição do software Cellebrare Blaster, agora com seu Estudo Técnico Preliminar e um parecer técnico favorável à contratação. Ele o entregou ao Dr. Willisson Gabriel, que iniciou os trâmites administrativos para dar andamento ao processo de aquisição aberto e cumprir as exigências formais para utilização do recurso enviado pelo Governo Federal por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública.
Em 31 de março de 2021, foi assinado o contrato de aquisição do software Cellebrare Blaster. Poucos dias depois, foi divulgado na mídia que o software fora essencial para a elucidação do caso Enrico Salgueiro.
Durante as investigações, a repórter Nádia de Bonn não saía da porta da delegacia. Ela queria ser a primeira a anunciar o resultado das investigações. Seria um furo de reportagem.
O Cellebrare Blaster, de fato, cumpriu o prometido e permitiu que os peritos recuperassem os dados apagados nos celulares apreendidos. Apesar de Dr. Gasparzinho e Monstrique seguirem negando o envolvimento na morte de Enrico, as mensagens recuperadas comprovaram que o menino era agredido frequentemente pelo padrasto e que a mãe tinha pleno conhecimento das agressões. Concluído o inquérito pela SESAM, mãe e padrasto tiveram a prisão preventiva decretada, sendo indiciados por homicídio duplamente qualificado.
Ao receberem a notícia da prisão da mãe e do padrasto, todos os servidores da Secretaria de Segurança de Águas de Março envolvidos nos trâmites para a aquisição do software puderam compartilhar da mesma sensação de dever cumprido.
Com toda a repercussão que o caso estava tendo e a eleição chegando, o Governador se deu conta de que precisava aproveitar a onda favorável ao seu Governo. Assim, tratou de ligar para o Secretário de Segurança:
- Bom dia, Secretário.
- Bom dia, Governador. Em que posso ajudá-lo?
- Swarowski, gostaria de saber como foi a compra desse programa que solucionou o caso do garoto? Como a eleição já está chegando, precisamos associar o Governo a casos de sucesso assim.
- Entendo perfeitamente, Governador. Vou verificar com meu pessoal da Secretaria e já dou retorno, ok?
- Ok, Secretário. Que seja breve!
O Secretário de Segurança, que até então só acompanhava as investigações do caso Enrico de longe e só soube da aquisição da nova versão do software Cellebrare pela televisão, rapidamente ligou para o Dr. Willisson a fim de obter mais detalhes:
- Como vai, Willisson? Como foi a compra daquele software israelense? Parece que ele foi fundamental para a elucidação do caso, não é mesmo?
- Sim, Secretário. Minha equipe trabalhou duro, e só assim conseguimos. E com a verba federal do Fundo Nacional de Segurança Pública, é claro.
- Verdade? Então o Governo do Estado não precisou colocar nenhum centavo?
- Não, senhor.
- Bom saber. Tenha um ótimo dia.
- Igualmente, Secretário.
Swarowski, então, retornou para o Governador:
- Olá, Governador. Acabei de falar com minha equipe. Temos um problema.
- E qual é o problema, Secretário?
- O problema, Governador, é que as mensagens apagadas só foram recuperadas com a ajuda daquele software israelense, mas só conseguimos comprá-lo com o dinheiro enviado pelo Governo Federal.
- Por quem, Secretário?
- Governo fede...
O Secretário nem acabou de falar quando foi interrompido pelo Governador:
- Governo Estadual, o senhor quer dizer, não é mesmo, Secretário? Governo Estadual! O dinheiro para a compra, seja lá do que for, saiu dos cofres do Governo do Estado. Pois dê entrevistas e diga que fui eu quem enviou o dinheiro, Secretário! Eu, Governador, enviei o dinheiro.
- Mas, Governador, e se a imprensa descobrir?
- Descobre nada, Secretário. Descobre nada. Eles estão preocupados em mostrar quem matou o menino. De onde saiu o dinheiro para a compra desse software é o que menos importa.
- E se o Presidente assistir à entrevista, Governador? Ele vai ver que a informação não procede.
- Ora, ora, Secretário... O Presidente da República lá tem tempo de assistir à televisão? Para todos os efeitos, o dinheiro foi mandado por mim. É isso que você vai falar, e ponto-final. Estamos entendidos?
- Sim, senhor.
A entrevista estava marcada para dali a duas horas. Nádia já estava a postos aguardando o pronunciamento do Secretário. Ao posicionar-se diante das câmeras, Dr. Wallace Swarowski iniciou seu discurso agradecendo ao Governador Gagáudio Carlos:
- A investigação foi um sucesso. Quero deixar aqui meu agradecimento ao nosso ilustre Governador Gagáudio Carlos, que acompanhou o caso do menino Enrico e atendeu prontamente à minha solicitação, enviando o dinheiro necessário para a compra do software israelense, imprescindível à elucidação do crime. Sem esse trabalho conjunto entre Secretaria de Segurança e o Governo do Estado, esse caso não poderia ter sido elucidado.
Ao assistir à entrevista pela televisão, todos os servidores da Secretaria de Segurança de Águas de Março envolvidos no trabalho de aquisição ficaram atônitos: se nem o Secretário de Segurança nem o Governador tiveram envolvimento na resolução do caso, como poderiam afirmar, diante das câmeras, que foram eles os responsáveis pela compra da nova versão do Cellebrare Blaster e pelo sucesso da investigação?
O mérito do caso não foi direcionado à equipe de perícia técnica; foi assumido pelo SESAM e pelo Governador, mesmo sem terem participado do processo nem dispendido recursos. No entanto, a SESAM é um órgão estratégico para a governabilidade do Estado e uma das prioridades do Governador.
Em ano eleitoral, Gagáudio Carlos não poderia ficar de fora de toda essa repercussão. Era necessário associar o sucesso do caso à imagem do governo. E assim foi feito. O Secretário Swarowski passou a conceder entrevistas e palestras dizendo que ordenou a compra do Cellebrare Blaster, sempre agradecendo ao Governador pelo empenho e pela disponibilização de recursos.
A aquisição de um software para elucidação de um caso de grande repercussão nacional demonstrou os vários vieses da burocracia presentes na Secretaria de Estado de Segurança de Águas de Março. Da gestão dos processos em busca da eficiência à disfunção da necessidade de diversos níveis de tomadas de decisões, verificam-se lentidão e engessamento da gestão. Em paralelo, ainda nos faz refletir sobre a dicotomia da gestão por resultados versus observância à legalidade estrita. Dessa forma, com este caso, poderemos verificar vários dilemas enfrentados pelos gestores na administração pública.
Há quase dois anos, foi aberto pela diretora da Diretoria de Perícias um processo para a aquisição da versão atualizada do software, mas ela esbarrou na burocracia morosa dos procedimentos, aliada à falta de conhecimento técnico acerca das possibilidades de recebimento de recursos públicos e de ausência de envolvimento da cúpula do órgão. Entretanto, com a insistência e a determinação da diretora, além da pressão midiática em torno do crime, apesar da omissão das autoridades superiores no processo de decisão da aquisição, o diretor do DAF, da SESAM, assumiu para si a responsabilidade da decisão estratégica do órgão.
Com a pressão da mídia sobre o caso, o diretor do Departamento de Informática, que não concordava inicialmente com a aquisição do software e se recusava a participar do Estudo Técnico Preliminar (ETP), impossibilitando o prosseguimento do processo, mudou de ideia. No entanto, decidiu não acolher o processo já iniciado e mais adiantado; ao contrário preferiu iniciar um novo processo, pelo seu departamento, só que agora recomendando a aquisição.
Finalizada a conclusão da aquisição, a perícia conseguiu recuperar as mensagens apagadas e elucidar o caso. O que parecia ter sido concluído teve mais um capítulo. O Secretário da SESAM surgiu em entrevistas e palestras informando que partiu dele a determinação para a compra do referido software e agradeceu ao Governador de Águas de Março pelo empenho e pela liberação da verba estadual, quando, na verdade, a origem foi do governo federal.
Detalhe da contratação: relatório da contratação disponível no site de transparência do governo (documento adaptado - sem valor legal).
Vídeo principal - caso de ensino.
Vídeo escolha final 1 - apresentação opcional de acordo com a dinâmica do docente.
Vídeo escolha final 2 - apresentação opcional de acordo com a dinâmica do docente.
Sugere-se a aplicação do caso de ensino em cursos de graduação e pós-graduação em ciências sociais aplicadas, nas disciplinas de administração pública e políticas públicas.
Para isso, o docente deve disponibilizar material teórico que forneça conhecimento aos discentes sobre a temática a ser estudada e fazer uma leitura prévia do caso com a resolução das questões, entregues no início da aula, tornando possível uma análise do progresso do discente ao longo da discussão.
Poderá também ser aplicado na modalidade híbrida, conforme sugestão de plano de aula a seguir:
) Realiza a estratégia sniper cognitivo: transmissão do vídeo pitch do caso. Formação dos grupos remotos (neurônios espelho) e duplas presenciais (DNAs andragógicos e vírus angragógicos). Tempo estimado de 20 minutos.
) Propõe leitura do caso para resolução em grupos. Discente remoto - neurônios espelho responderão às questões do caso. Discente presencial - DNA andragógicos serão responsáveis pela identificação do que foi aprendido (identificar alvos cognitivos) com as ações recomendadas pelos grupos remotos, a fim de resolver o problema. Vírus andragógicos serão responsáveis pela definição de como o aprendizado pode ser reproduzido nas organizações (identificar alvos cognitivos) em contextos semelhantes. Tempo estimado de 40 minutos.
) Discussão do caso: discente remoto: os neurônios espelhos, individualmente e de forma verbal e voluntária, apresentam suas conclusões sobre a atividade proposta. O docente também participa da solução, dando sugestões de ações anotadas em slides previamente preparados. Faz-se um pingue-pongue. Docente apresenta uma ideia e um neurônio espelho apresenta outra, até esgotar a participação. Discente presencial: relata suas contribuições: DNAs andragógicos - apontam os aprendizados, com participação individual e de forma verbal e voluntária; vírus andragógicos - apontam como aplicar o conhecimento nas organizações com participação individual e de forma verbal e voluntária. Tempo estimado de 30 minutos.
) Docente faz o fechamento do caso dando feedbacks, reforçando os aprendizados e as melhores formas de replicar as soluções apresentadas para o problema, bem como exemplifica, sempre que possível, organizações públicas que utilizam tais soluções e quais são ganhos ou melhorias reais alcançadas. Tempo estimado de 10 minutos.
Após a leitura e a discussão do caso, o discente deverá ser capaz de:
) Reconhecer como funciona o modelo de governança para uma política que envolve entes federativos de características tão distintas.
) Compreender como incluir nesse modelo outros órgãos, como o que responde pelas tomadas de decisões.
) Avaliar como permitir que os gestores possam definir a matriz de responsabilidades dos fluxos processuais.
) Desenhar como evitar o engessamento do serviço público devido à ausência de definições de responsabilidades.
) Fornecer reflexões críticas sobre as falhas institucionais apontadas no texto e, na qualidade de gestor, tentar resolvê-las.
Os autores agradecem a Dr.ª Aline Menezes, Coordenadora do Mestrado Profissional em Administração Pública da FGV EBAPE. E a Ju Gonzaga, tradutora do par Espanhol-Português.
