Resumo: O caso de ensino apresenta o dilema do Secretário de Saúde ao realizar uma compra emergencial de respiradores em meio à pandemia da COVID-19, na cidade de Águas Escuras. Com os hospitais lotados e o aumento do número de mortos pelo novo coronavírus, o secretário se vê pressionado a achar uma solução rápida para os problemas da cidade. O médico especialista do hospital local apresenta as referências do aparelho necessário. O Ministro da Saúde oferece acesso a uma verba de execução direta para comprar aparelhos respiradores, entretanto eles não correspondem às especificações indicadas pelo especialista. Nesse sentido, o caso abordará as diferentes possibilidades de compra trazidas pela Lei nº 8.666/93, a responsabilidade do gestor em um contexto excepcional como a pandemia e os riscos trazidos pelo processo de compra emergencial.
Palavras-chave: Coronavírus, Lei 8666/93, Dispensa de Licitação, Responsabilidade Administrativa.
Abstract: This teaching case presents the dilemma of the Secretary of Health of the Municipality of Águas Escuras when making an emergency purchase of ventilators amid the COVID-19 pandemic. With hospitals full and the death toll from the new coronavirus rising, the secretary is under pressure and has to find a quick solution to the crisis. The Ministry of Health offers the municipality resources for sole-source procurement to purchase ventilators. However, the specifications of the devices authorized by the ministry are not the same as those requested by the local hospital’s specialist doctor. Against this backdrop, the case addresses the different purchasing possibilities according to Brazilian Federal Law 8666/93, the manager’s responsibility in an exceptional context, such as the pandemic, and the risks related to the emergency purchasing process.
Keywords: Coronavirus, Law 8666/93, Sole-source Procurement, Administrative Responsibility.
Resumen: El caso docente presenta el dilema de la Secretaría de Salud al realizar una compra de emergencia de respiradores en medio de la pandemia de COVID-19, en la ciudad de Águas Escuras. Con los hospitales llenos y el número de muertos por el nuevo coronavirus en aumento, el secretario se encuentra bajo presión para encontrar una solución rápida a los problemas de la ciudad. El médico especialista del hospital local le proporcionará las referencias del dispositivo necesario. El Ministro de Salud ofrece acceso a un presupuesto de ejecución directa para la compra de respiradores, sin embargo, estos no corresponden a las especificaciones indicadas por el especialista. En este sentido, el caso abordará las diferentes posibilidades de compra que proporciona la Ley nº 8.666/93, la responsabilidad del gestor en un contexto excepcional como el de la pandemia y los riesgos que implica el proceso de compra de emergencia
Palabras clave: Coronavirus, Ley 8666/93, Exención de Licitación, Responsabilidad Administrativa.
Caso de ensino
E o vento levou a verba
And the wind took the money away
Y el viento se llevó el presupuesto
Recepção: 27 Dezembro 2023
Aprovação: 08 Janeiro 2024
Águas Escuras é uma cidade de 60 mil habitantes, com vocação para o turismo ecológico por conta das inúmeras cachoeiras e trilhas que atraem brasileiros de todos os cantos, o ano inteiro. A cidade é também berço de muitas lideranças políticas e empresariais que ocupam cargos de destaque no cenário nacional.
Adotando medidas rigorosas de isolamento social, de acordo com as recomendações da OMS, a cidade vinha enfrentando a pandemia com baixos índices de internação e morte.
Em janeiro de 2021, porém, uma nova variante da COVID-19, a Eurotron, chega em Águas Escuras, modificando drasticamente o cenário encontrado. O número de internações aumentou exponencialmente, causando superlotação dos hospitais que não tinham mais leitos nem respiradores suficientes para atender à demanda dos moradores. As filas para internação aumentaram, e imagens de pessoas morrendo na porta do hospital não saíram da TV.
Por conta da situação de calamidade, o prefeito Jarbas Mariano convoca uma reunião emergencial com as principais autoridades da cidade:
Dra. Maria das Dores, médica de carreira há 20 anos, conhece todas as famílias que acessam o sistema de saúde, referência de toda a cidade, diretora do Hospital Municipal Doutor Matinha.
Jarbas Mariano, herdeiro de uma família importante da cidade, fez seus estudos em administração pública fora e voltou para ser prefeito.
Dr. Enzo Tigre, médico especialista em pneumologia, fez faculdade com a dra. Maria das Dores e tinha consultório particular próprio, até ser convidado para trabalhar no Hospital Municipal durante a pandemia. Aceitou o desafio em nome da amizade e da confiança que tem com a doutora.
Clementino de Moraes, amigo de infância do prefeito, estudou nos melhores colégios da cidade e fez faculdade de administração, pensando em entrar para a política. Foi convidado para ser secretário de Saúde pelo seu amigo prefeito.
Realizada por meio de uma plataforma de videochamada, o prefeito inicia a reunião.
- Boa tarde! Como vocês estão vendo nas TVs, a situação está gravíssima, e precisamos fazer alguma coisa pelo povo de Águas Escuras! É importante que a gente encontre uma solução, o mais rápido possível.
De maneira desordenada, todos abrem o áudio ao mesmo tempo e começam a compartilhar suas ideias. O prefeito pede calma e começa a circular a palavra.
- Calma, meus queridos. Vamos ouvir o senhor secretário primeiro.
O secretário de Saúde inicia, então, a sua fala:
- Eu não aguento mais essa pressão! Todo dia alguém da imprensa me liga pedindo explicações e eu não sei mais o que dizer!! Nunca vi esse maldito vírus! Nem médico eu sou!! Como diabos vou saber cuidar disso?!
Em seguida, dra. Maria das Dores, diretora do Hospital Municipal Dr. Matinha, abre o microfone e inicia a sua fala:
- E eu que todo dia chego pra trabalhar e vejo pessoas morrendo ao meu redor! Por conta da minha rotina, eu não tenho visto mais a minha família! Estou morando em um hotel porque tenho medo de pegar COVID-19 e contaminá-la. Meu filho tem asma. Imagina se acontece alguma coisa com ele? Nunca vou me perdoar! Eu não consigo mais dormir! Fecho os olhos e vejo pessoas com falta de ar!
O prefeito retoma a palavra e tenta acalmar o grupo:
- Calma, gente, calma! Sei que estão todos alarmados e preocupados. Vamos ouvir o dr. Enzo Tigre que é especialista no assunto e pode nos ajudar a resolver o problema.
O pneumologista especialista dr. Enzo Tigre, até então em silêncio, inicia a sua apresentação:
- Boa tarde a todos. Precisamos entender a pandemia como algo dinâmico que pode, de fato, ficar pior, com novas variantes, mas temos de nos concentrar em melhorar nossa capacidade com o que é possível. Vou apresentar, aqui, uns números importantes para pensarmos as estratégias possíveis. Temos, hoje, espaço para 15 leitos sob monitorização (onde temos 12 podemos ter 15). Com base nisso, vamos aos dados do município. Temos 60 mil habitantes pelo Censo IBGE de 2010. Entendemos que se queremos ficar na média correta, publicada pelo IBGE 2019 e o DataSUS, na qual o Rio de Janeiro era o segundo com maior relação de leitos de terapia intensiva por habitante (25 para cada 100.000). Logo, se conseguimos ter 15 leitos para 60.000, seguimos a exata proporção. Apesar disso, esses leitos não serão colocados, nos devidos órgãos, como leito de terapia intensiva, são leitos monitorizados. O melhor cenário seria termos uma estrutura de terapia intensiva.
Enquanto o dr. Enzo apresenta os dados, os demais participantes começam a mexer no celular, outras desligam a câmera para fazer outras coisas e quase ninguém presta atenção. Depois de um tempo, o prefeito abre o microfone e diz:
- Está bem, querido!! Muito blá-blá-blá! Precisamos comprar 15 respiradores, é isso?!
Dr. Enzo prossegue com a sua fala:
- Uma vez organizado o setor de 15 leitos, precisaremos de 15 ventiladores mecânicos (1 por leito) e um plano de contingência (caso um ventilador deixe de funcionar, usaremos os ventiladores que temos no hospital, que ainda estão funcionando).
Nesse momento, todos voltam a mexer no celular. A reunião acaba com o prefeito dizendo:
- Então, vamos comprar os respiradores!! Vou dar um jeito de arrumar esse dinheiro!! Custe o que custar!! Tchau! Passar bem! Passe-me por e-mail as especificações dos aparelhos.
Depois que a chamada se encerra, a diretora, dra. Maria das Dores, preocupada com o encaminhamento da reunião, liga para o dr. Enzo:
- Dr. Enzo, você acha que isso vai dar certo?! Precisa de um modelo específico. Como a gente vai fazer isso? Será que temos a estrutura adequada?
Dr. Enzo responde:
- Pois é doutora! Eu também fico muito preocupado com os encaminhamentos. Existem especificações muito claras do que a gente precisa. A gente não pode errar nessas compras, senão teremos de mexer na rede elétrica, e fiquei preocupado com o nível de atenção que eles dedicaram ao fato. Para isso, vamos precisar trabalhar para chamar a atenção deles. Vou mandar um e-mail com todas as especificações para que a gente consiga resolver esse problema.
Tranquilizada pela fala do r. Enzo, a Diretora do Hospital encerra a chamada:
- Muito obrigada, dr. Enzo! Vamos juntos resolver essa questão.
Enquanto isso, prefeito e secretário de Saúde vão atrás do recurso necessário para a compra dos respiradores e fazem uma reunião com Ricardo Mandado, liderança de Águas Escuras, que, hoje, ocupa o cargo de ministro da Saúde e faz parte do mesmo partido.
Além deles, participa da reunião Heloisa Condado Vieira Souto de Melo, grande empresária do ramo de respiradores, que passou parte da infância em Águas Escuras, onde conheceu o secretário de Saúde.
O prefeito inicia a reunião:
- Boa tarde, ministro. Tudo bem? Agradeço, desde já, sua disponibilidade em nos receber. Você é um companheiro de longa data e vem fazendo um trabalho belíssimo no combate à pandemia. Você sabe da nossa situação. Precisamos de 15 respiradores para a cidade e não temos a verba necessária. As pessoas estão morrendo. Águas Escuras tem grande apreço pelo senhor e precisa da sua ajuda.
O ministro responde:
- Claro, prefeito! Estamos aqui para isso! O prazer é todo meu! Comecei a minha trajetória em Águas Escuras e devo minha carreira aos seus cidadão! Queria apresentá-lo à minha amiga, a senhora Heloisa Condado Vieira Souto de Melo, dona da empresa Respira Fácil S/A., que pode nos ajudar com essa questão dos respiradores. Ela tem convênio com o governo federal e, se você comprar com a Respira Fácil, posso liberar essa verba do fundo de combate à Covid-19 para você. São 30 milhões de reais, previamente separados, que podem comprar os respiradores, mas tem de ser com essa empresa que já é conveniada.
Heloisa Vieira Souto de Melo aproveita o gancho e diz:
- Boa tarde, senhor prefeito! É um prazer conhecê-lo e uma honra poder ajudar os cidadãos de Águas Escuras. Estou isolada, na minha ilha particular, desde o primeiro dia da pandemia, mas acompanho tudo pelos jornais e não posso deixar de dar a minha contribuição. Sei pelo que vocês estão passando. Ou melhor, o que todos nós estamos passando, pois estamos no mesmo barco, não é?! Ainda mais sabendo agora que o Clementino é o secretário de Saúde. Ele foi meu grande amigo na infância, estudamos juntos na Escola Santo Riquinho.
O secretário de Saúde, Clementino de Morais responde:
- Pois é, Helô! Você sabe que abri mão de muita coisa para assumir essa missão como secretário de saúde, e, logo agora, que minha carreira estava decolando, veio essa maldita pandemia! Precisamos da sua ajuda!
Heloisa, então, responde:
- Então, vamos lá! Como eu disse, tenho os respiradores que vocês precisam. Se vocês fizerem a compra pelo fundo mencionado pelo ministro, em menos de uma semana os respiradores estarão na cidade. Vou pedir para meus funcionários enviarem as especificações por e-mail para que tudo saia conforme é necessário.
O prefeito finaliza a reunião:
- É isso! Perfeito! Muito obrigado! Vamos fechar logo esse negócio! Secretário, ande com as burocracias da compra. Esse dinheiro caiu do céu! Não podemos esperar!
Na sua salinha, dentro do hospital, o dr. Enzo escreve, há horas, um e-mail minucioso com todas as especificações.
- Bem, fiz todas as recomendações. Botei tudo explicadinho para o secretário com todas as especificações dos equipamentos. Eles não podem ter nenhuma falha de entendimento porque, senão, vai ser uma catástrofe. ENVIAR! Ufa! Agora é só esperar.
Ao telefone, em seu gabinete, o secretário comemora a solução dos problemas com a compra dos respiradores:
- Pode botar o champanhe no gelo e separar o melhor charuto que daqui a pouco eu estou chegando. Noite de comemoração! Vou somente terminar de ler uns e-mails aqui, responder ao dr. Enzo e já chego aí.
Ao abrir o e-mail do dr. Enzo, o secretário leva um susto:
- Ih, rapaz! Como é que é? Os respiradores não são os mesmos? Que confusão que vai dar isso? Mas o que eu faço? Se eu interrompo a compra, a cidade vai ficar sem respirador. Se eu seguir com a compra... talvez a gente possa trocar alguma coisa. É fio, não é? Não vai ter problema, não. Se eu não comprar isso agora... envolvi o ministro na questão...
Sem saber como resolver o dilema, o secretário liga para o prefeito:
- Rapaz, você não vai acreditar. O modelo é diferente. Se eu cancelar, dá problema. Se eu comprar assim mesmo, em cinco dias estará na cidade. Vai ser um golaço para todo mundo! Prefeito, ministro, todo mundo fica bem na fita! Vou ter de ligar para o dr. Enzo para a gente dar um jeito na estrutura. Imagina se a gente compra esses respiradores, gasta uma grana e não funciona. Vai ser um elefante branco! Já estou até vendo a matéria no dia seguinte: E O VENTO LEVOU A VERBA.
O prefeito, certo de sua decisão, dá continuidade à compra, e os ventiladores chegam em cinco dias. Na chegada, ocorre uma comoção para o ato político, foto e entrevistas. Toda a cidade está presente.
Nos bastidores do ato, dr. Enzo se aproxima e vê que os modelos da caixa são F40-2, ventiladores que necessitam de dupla rede de gases (oxigênio e ar comprimido), mas o hospital conta apenas com a rede de oxigênio. Ou seja, eles não irão funcionar, e quando estiverem ligados, podem queimar de imediato.
A foto foi feita. Dr, Enzo, desolado no canto. Prefeito e secretário forçam um sorriso. Quando a imprensa vai embora, o prefeito diz: Vamos guardar isso e ligar para a empresária para trocar. Os ventiladores foram embora na mesma velocidade que chegaram e nunca mais foram vistos.