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Inclusão para quem? A luta de famílias das camadas populares pela escolarização dos estudantes surdos
Inclusion for whom? The struggle of families for schooling deaf students
¿Inclusión para quién? La lucha de las familias de las clases bajas por la escolarización de los estudiantes sordos
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 15, núm. 34, e16890, 2022
Universidade Federal de Sergipe

Publicação Contínua

Revista Tempos e Espaços em Educação 2022

Recepción: 15 Diciembre 2021

Aprobación: 20 Febrero 2022

Publicación: 24 Marzo 2022

DOI: https://doi.org/10.20952/revtee.v15i34.16890

Resumo: As pesquisas sobre família, escola e inclusão revelam que as políticas de inclusão dos surdos mudaram no Brasil a partir da década de 2000. Este estudo teve como objetivo geral analisar como se configura a relação da família e da escola no processo de inclusão de estudantes surdos em uma cidade no interior de Minas Gerais. Sob a perspectiva qualitativa, a pesquisa privilegiou a entrevista compreensiva com duas mães de estudantes surdos de camadas populares e o questionário aplicado com dois diretores e duas professoras de duas escolas públicas. Concluiu-se que, embora leis voltadas para a inclusão destes estudantes já existam, elas não estão sendo cumpridas. Com isso, escolas e famílias vêm tentando incluir esses estudantes dentro de certas possibilidades, porém o processo de escolarização ainda apresenta muitos obstáculos e tem causado frustração e sensação de impotência aos estudantes surdos e às suas famílias.

Palavras-chave: Camadas populares, Estudantes surdos, Inclusão, Relação família-escola.

Abstract: Researchs about family, school and inclusion reveals that deaf inclusion policies have changed in Brazil since the 2000s. This research had as general objective analyzed how the school and family’s relation is configured in the process of inclusion of deaf students in a city in the countryside of Minas Gerais. From a qualitative perspective, the research preferred on the comprehensive interview to two mothers of deaf students from popular layers and the questionnaire applied to two directors and two teachers selected from two schools in the city. It was concluded that, although these students are protected by the laws, they are not being fulfilled. So this, schools and families do their best to include these students within the possibilities available, however, the schooling process still presents many obstacles and has caused frustration and a feeling of powerlessness for deaf students and their families.

Keywords: Deaf students, Family-school relationship, Inclusion, Popular layers.

Resumen: La investigación sobre la familia, la escuela y la inclusión revela que las políticas de inclusión para las personas sordas han cambiado en Brasil desde la década de 2000. Esta investigación tuvo como objetivo analizar cómo se configura la relación entre la familia y la escuela en el proceso de inclusión de estudiantes sordos en una ciudad en el interior de Minas Gerais. Desde una perspectiva cualitativa, la investigación favoreció una entrevista exhaustiva con dos madres de estudiantes sordos de clases bajas y el cuestionario se aplicó a dos directores y dos maestros de dos escuelas públicas. Se concluyó que, aunque estos estudiantes están respaldados por las leyes, no se están haciendo cumplir. Con esto, las escuelas y las familias han tratado de incluir a estos estudiantes dentro de ciertas posibilidades, sin embargo, el proceso de escolarización aún presenta muchos obstáculos y ha causado frustración y un sentimiento de impotencia para los estudiantes sordos y sus familias.

Palabras clave: Capas populares, Estudiantes sordos, Inclusión, Relación familia-escuela.

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa as relações entre família e escola no contexto de estudantes surdos, considerando a importância da perspectiva dos direitos da pessoa com deficiência (McDonnel, 2016; Fernandes & Candau, 2017; Mantoan, 2017) e a sinergia que se tem produzido com as políticas internacionais de direitos humanos (ONU, 1948; UNESCO, 1990). Nesse cenário, destacamos a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), na defesa da educação igualitária dessas pessoas.

No caso específico das crianças surdas, no Brasil, podemos contar com a Lei nº. 10.436/2002 (Brasil, 2002), que oficializou a LIBRAS como língua natural das comunidades surdas brasileiras, e o Decreto nº. 5.626/2005 (Brasil, 2005), documentos relacionados à luta significativa do movimento social da comunidade surda brasileira (Brito, 2013). Essas normativas defendem o currículo com uma proposta bilíngue e a atuação de profissionais capacitados, principalmente, com destaque para instrutores surdos e intérpretes de LIBRAS.

Essas mudanças na compreensão e na atenção à comunidade surda desafiam lógicas societárias de famílias e escolas. Em muitos casos, os professores ignoram condições familiares e depreendem que o mau ou o bom desempenho dos alunos, com ou sem deficiência, se deve à omissão dos pais. Assim, é importante ressaltar os aspectos que contribuem para a longevidade ou o abandono escolar, bem como as lógicas socializadoras dessas famílias, para compreender as práticas educativas familiares que contribuem para a escolarização dos alunos.

Inserida na discussão sobre inclusão escolar e relação entre família e escola, a pesquisa ora apresentada trouxe como proposta principal conhecer o processo educacional de inclusão de dois jovens alunos surdos em duas escolas públicas, em uma cidade do interior de Minas Gerais, a partir do olhar dos diretores, professores e famílias. Sob a perspectiva da Sociologia da Educação, buscamos analisar as nuances do processo, os conflitos e as aproximações, as situações difíceis pelas quais as famílias e as escolas passaram ao longo da trajetória estudantil dos jovens, bem como as conquistas de cada uma delas ao longo do tempo.

Seguindo a abordagem qualitativa, a pesquisa utilizou questionários, com questões semiabertas na escuta dos professores e diretores, e entrevistas semi estruturadas para apreender os depoimentos das mães. Ao todo foram entrevistados seis indivíduos, sendo duas mães, dois diretores e duas professoras dos alunos selecionados. Os estudantes surdos, ou seja, um rapaz de 21 anos que estava cursando o 6º ano na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e uma jovem de 22 anos que cursava o 3º ano do Ensino Médio na ocasião da pesquisa não foram entrevistados. A opção por entrevistar as mães desses jovens se deu porque foram elas quem se dispuseram a dar seus depoimentos e também porque foram as que mais se envolveram na escolarização de seus filhos.

FAMÍLIA E ESCOLA NO PROCESSO DE INCLUSÃO

Os surdos vêm, ao longo dos anos, lutando para que sua cultura seja reconhecida e para serem vistos, sobretudo, como pessoas que possuem sua própria língua e sua forma de ver o mundo, e não como pessoas com deficiência (McDonnel, 2016; Brito, 2013;). Portanto, para se pensar nas políticas de inclusão do aluno surdo, é preciso analisar a história dessas pessoas e suas particularidades, a fim de compreender as modificações e adaptações necessárias para que seus direitos sejam cumpridos. Cabe, então, indagar como essas mudanças promovidas no âmbito institucional e cultural podem impactar na vida desses indivíduos.

Partimos da compreensão de que grupo familiar é a experiência socializadora por excelência e que o papel da comunicação é fundamental nesse contexto. Assim, consideramos que as dificuldades de socialização são maiores nos casos de surdos que são filhos de pais ouvintes, uma vez que a linguagem entre eles difere. Com isso, é compreensível que esses pais e essas crianças surdas vivenciem situações de estresse e sensação de impotência, pois se deparam com obstáculos concretos no dia a dia oriundos da falta de comunicação com a criança. Isso pode causar isolamento e atritos entre a criança e família.

Como acontece no nascimento de crianças com qualquer tipo de deficiência, Rocha, Rodrigues e Silva (2013) afirmam que os pais da criança surda, independentemente de sua classe social, passam por frustrações devido a essa condição de seus filhos. Ainda, conforme esses autores, por vezes, podem desenvolver resistência aos filhos surdos diante do medo da rejeição social. Isso também pode estar sustentando uma perspectiva de normalização e não dos direitos das crianças surdas, considerando que tais perspectivas existem após a Segunda Guerra Mundial (McDonnel, 2016).

Ainda hoje há despreparo da maioria das famílias da pessoa surda para lidar com essa condição. Diante disso, parece não haver muito interesse em aprenderem e utilizarem a língua de sinais com o filho, o que faz com que não ocorra uma comunicação eficaz. Essa falta de interesse, vale lembrar, se configura como uma negação que advém, em muitos casos, do despreparo e do medo. Ou seja, a falta de conhecimento sobre LIBRAS é a causa de maior dificuldade no relacionamento familiar, o que pode gerar uma série de problemas ao surdo, como o isolamento, a agressividade, o desentendimento e a dificuldade em aprender. Devido a maior carga de cuidados das crianças sobre as mães, estas podem sofrer estresse devido à sobrecarga que experimentam.

Hoje, já se sabe que aprender a língua de sinais é fundamental para o aprendizado da criança surda, bem como para sua interação com a família. Portanto, a falta de contato com a língua de sinais compromete o relacionamento entre pais e filhos, assim como sua interação com os pares e a sociedade (Rocha, Rodrigues, & Silva, 2013; Lopes & dos Santos, 2021).

Além de tantos conflitos internos pelos quais a família ouvinte passa com o nascimento de uma criança surda, o processo de escolarização é um desafio a mais. Por força de lei e por pressão social, os estabelecimentos escolares devem se organizar para reconhecer e trabalhar com a diversidade, para valorizar os indivíduos em um ambiente em que todos tenham direitos e deveres assegurados. Entretanto, é preciso analisar como o sistema educacional público e privado vem se adequando à nova realidade e se a escola está realmente preparada para incluir a todos e reconhecer suas diferenças.

As pesquisas sobre o tema têm demonstrado que esse processo ainda não se efetivou no Brasil. Para Mantoan (2017), apesar das conquistas no campo da inclusão, o caráter excludente, segregador e conservador ainda resiste. Quanto à inclusão dos surdos propriamente, a luta das famílias das crianças surdas brasileiras só conseguiu amparo legal mais específico nos anos 2000. Apenas em 2005, no Brasil, foi estipulado, por lei, que os surdos deveriam ser submetidos a uma educação bilíngue. Com o Decreto nº. 5.626/2005 (Brasil, 2005), foi regulamentada a Lei nº. 10.436/2002 (Brasil, 2002), que resultou na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) (Brasil, 2015). Essas normativas pautaram todos os direitos do surdo e o definiram como aquele que interage com o mundo por meio da visão. Portanto, o uso dessa língua é de grande importância para que ele se comunique, o que facilita sua socialização, autoafirmação e aprendizagem (Brito, 2013).

Segundo o art. 28 da LBI (BRASIL, 2015), deve haver um aprimoramento dos sistemas educacionais quanto à garantia de acesso, permanência, participação e aprendizagem, com o oferecimento de serviços e recursos de acessibilidade que suprimam os obstáculos e viabilizem a inclusão, com a inserção de um Projeto Político Pedagógico (PPP) adequado e a oferta de educação bilíngue. Os tradutores e intérpretes de LIBRAS atuantes na educação básica devem, no mínimo, possuir Ensino Médio completo e certificado de proficiência na LIBRAS. Com isso, emergem outras exigências em todas as dimensões do currículo, como a tecnologia assistiva, a oferta de profissionais capazes de atuarem nesse contexto, com o intuito de ampliar habilidades dos alunos e de promover sua participação.

Com os avanços da legislação e a pressão dos movimentos sociais, alunos surdos estão sendo matriculados nas escolas comuns em todo o país. Se, por um lado, isso melhora a socialização desses indivíduos e fomenta a convivência com o diferente, por outro, é necessário analisar se as medidas obrigatórias por lei estão sendo, de fato, tomadas pelas escolas. A elaboração de um PPP precisa contemplar as exigências legais de acolhimento e permanência do estudante com deficiência, considerando desde as estruturas físicas da escola até a formação de seus profissionais. Além disso, é necessário pensar as relações entre o ambiente educacional e o familiar, que também está pouco preparado para lidar com a surdez.

A relação entre família e escola, fundamental no processo socializador de estudantes no cotidiano escolar, é uma das grandes questões discutidas por vários autores, em diferentes lugares no mundo, principalmente a partir dos anos 1960. Com base na obra de Bourdieu & Champagne (2001) entre outras, Lahire (2004) analisa que a escola espera que os estudantes saibam escrever, falar, se comportar e que tenham uma “boa educação”. Disso dependerá coincidirem, nas famílias e nas escolas, os mesmos valores e práticas. Sendo assim, os mais favorecidos social e culturalmente terão mais oportunidades e, consequentemente, os melhores diplomas do que os menos favorecidos. Assim, a escola não só reflete a desigualdade, mas também é sua reprodutora.

A presente pesquisa, realizada com as famílias, os professores e diretores de escolas de dois alunos surdos no interior de Minas Gerais, traz elementos que revelam um pouco das dificuldades e conquistas na relação entre família e escola, bem como das estratégias elaboradas por essas famílias a fim de superarem (ou driblarem) as dificuldades.

AS MÃES DOS ESTUDANTES SURDOS E A RELAÇÃO COM A ESCOLA

Como já mencionado, foram feitas entrevistas com duas mães e aplicados questionários com dois professores e dois diretores de duas escolas públicas localizadas no interior de Minas Gerais, onde estudaram dois estudantes surdos, denominados, na pesquisa, de Laila e João.

A mãe de Laila é viúva e vive com seus dois filhos, Laila e o irmão mais novo, e sustenta todos com um salário mínimo. Os três moram em uma pequena casa localizada em um bairro popular. Por sua vez, a mãe de João é separada, vive com o filho e com seu pai, o avô do estudante. Ela e o avô sustentam a casa com dois salários mínimos. Eles moram na parte central da cidade, em uma pequena casa, localizada em uma rua sem asfaltamento e em precárias condições para a circulação de automóveis. A mãe de Laila tem 55 anos e estudou até a 4ª série (hoje equivalente ao 5º ano). A mãe de João tem 43 anos e, no momento da pesquisa, estava cursando o 2º período do curso de Serviço Social, em uma instituição particular, na modalidade à distância. Ela passou cerca de 21 anos sem estudar e relatou, sem dar detalhes, que parou os estudos aos 18 anos porque se casou. Em 2013, conseguiu o diploma do Ensino Médio por meio da prova do ENEM e, hoje, continua os estudos no Ensino Superior. É importante destacar que a mãe de João voltou a estudar quando o filho já estava com 16 anos. Com isso, boa parte do apoio escolar e das decisões foi tomada quando sua escolaridade ainda era baixa, o que caracteriza a família, assim como a de Laila, como de baixo capital cultural na época (Lahire, 2004).

Os dois estudantes da pesquisa nasceram surdos. A mãe de Laila contou que teve rubéola na gravidez: “foi avisado que ela ia nascer surda, porque eu tive rubéola na gravidez, estava grávida de três meses”. João também nasceu surdo, mas sua mãe só descobriu isso quando ele já tinha três anos, quando iniciou o acompanhamento com especialistas numa cidade no interior de São Paulo.

Depois de descobrir que os filhos nasceram surdos, o primeiro obstáculo das famílias de Laila e de João foi com relação à comunicação. Pelas falas das mães, foi possível constatar que a adaptação à condição de terem filhos surdos em seus lares acarretou muitas dificuldades, pois, com poucos recursos, não podiam contar com uma equipe multidisciplinar para auxiliá-las. Vejamos como se deram as questões relacionadas à comunicação e à adaptação nas casas de Laila e de João.

Ah, menina, difícil a gente dialogar com ela, né? Porque, muitas vezes, ela quer me falar as coisas, fala, mas eu não entendo o que ela fala também, então tem hora que fica até meio difícil. E eu não sabia nada, mas nada mesmo, eu só via ela chorando e, sabe, não falava, só ficava chorando. Coitadinha, eu não entendia nada, era muito difícil (Mãe de Laila).

Foi uma novidade, porque a gente, na família, não tem ninguém deficiente, foi um choque muito grande, tivemos que adaptar para a situação dele, mas não teve nenhuma dificuldade não. Luta... Eu tive que brigar demais para ele poder adquirir o direito dele. Isso aí é normal, qualquer mãe briga pelo seu filho (Mãe de João).

Percebemos que, segundo o relato da mãe de Laila, a comunicação com a filha causava muito sofrimento devido às dificuldades, desde o nascimento da filha. Para a mãe de João, os primeiros desafios foram quanto à adaptação à deficiência do filho, por ser uma surpresa e uma mudança grande de perspectiva. Embora ela tenha dito que não enfrentou dificuldades após o nascimento do filho, pela sua fala, observamos que a mãe de João teve de lutar na justiça para que o filho tivesse tratamento especializado adequado, mas sempre querendo dizer que o esforço fazia parte de suas atribuições como mãe, pois “pelo filho faria qualquer coisa”.

O esforço dessas mulheres foi a tônica das entrevistas. Em seus depoimentos, as duas mães relatam que sempre fizeram tudo o que estava ao alcance para ajudá-los. A dificuldade de comunicação com os filhos surdos trouxe, e ainda traz, frustração para as famílias entrevistadas. Diante dos empecilhos enfrentados pelas mães, das mudanças nos lares, da adequação em lidar com uma criança que precisa de atenção, atendimento médico e de equipe multidisciplinar, buscamos investigar um pouco mais o contato e o conhecimento que elas adquiriram da língua de sinais, pois, segundo Lopes & dos Santos (2021) a aceitação dos pais ouvintes em relação à LIBRAS como primeira língua contribui para a inclusão. Apesar disso, a aceitação da LIBRAS não foi muito fácil na família de João.

Até os nove anos dele, a gente rejeitou a LIBRAS, porque a gente ficou... Mais a minha mãe, né? Eu não questionava muito não. Mas minha mãe tinha uma resistência, porque achava que ele ia ficar com preguiça de falar, ele iria optar só para usar a mão. Hoje, eu vejo que a gente estava errado. Eu acho que ele deveria ter ficado com a LIBRAS, ter aprendido a LIBRAS, porque hoje ele tem rejeição da LIBRAS, mas não só por uma linguagem [sic] nova, mas é vergonha mesmo mais estética mesmo, ele tem uma recusa pela LIBRAS por isso (Mãe de João).

A não aceitação da Língua de Sinais por parte da família de João vai ao encontro do que os autores trazidos neste artigo destacam sobre nem sempre a LIBRAS ser aprendida, seja pelo indivíduo ou pelos familiares, por motivos como preconceito e dificuldade em aceitar a deficiência do filho. Na família de João, essa língua não é aceita até hoje por alguns de seus familiares. Brito (2013) afirma que famílias que acessam o movimento social da comunidade surda têm uma maior aceitação e engajamento na defesa da LIBRAS, algo certamente prejudicado pelo baixo capital cultural das famílias mais empobrecidas.

Contudo, é importante evidenciar que Laila e João nasceram em 1996 e em 1997, respectivamente, alguns anos antes da Lei de Inclusão (Lei nº. 10.436/2002), que oficializou a LIBRAS como primeira língua das comunidades surdas brasileiras (Brasil, 2002). Eles iniciaram os estudos exatamente nessa transição. Com isso, percebemos, pela fala da mãe de João, sua dificuldade e da avó em aceitar que ele aprendesse LIBRAS, por preconceito e pouco conhecimento da importância da língua para a comunicação.

Ele aprendeu a ler lábios no ensino especial. Eles queriam introduzir a LIBRAS, mas eles não tinham esse intérprete lá, que fizesse esse trabalho com eles. Aí ensinaram a leitura labial. Depois, eles foram falando da importância da LIBRAS pra ele, mas aí já estava bem grandinho, foi quando eu já estava querendo tirar ele de lá (Mãe de João).

João, portanto, foi introduzido na LIBRAS quando a mãe passou a aceitar a língua, por meio de orientações na Educação Especial, mas isso só aconteceu quando ele já tinha nove anos, em um ambulatório da prefeitura, onde há o atendimento de jovens de 0 a 18 anos por psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos e fonoaudiólogos. Segundo a mãe, foi a fonoaudióloga desse ambulatório que o introduziu à LIBRAS.

Laila, por sua vez, segundo sua mãe, teve contato com a LIBRAS ainda mais tarde, aos 13 ou 14 anos, com Testemunhas de Jeová que frequentavam a casa deles: “sempre veio intérprete de LIBRAS aqui, as Testemunha de Jeová [sic]”.

A família de Laila é evangélica. Apesar de ser de congregação diferente, ela percebeu a importância do convite e aceitou prontamente a ajuda das Testemunhas de Jeová no ensino de LIBRAS, pois, segundo o relato da mãe, viu, aí, uma possibilidade de melhorar a comunicação dentro de casa. A família de Laila, apesar de ter recebido a orientação do aprendizado de LIBRAS mais tarde do que a família de João, aceitou rapidamente a língua e a mãe também quis aprendê-la para melhorar a comunicação com a filha:

Aí ela veio, aí falei: “se você for ensinar para ela, você ensina para mim também, porque eu preciso saber o que você está falando com ela para mim aprender”. Aí ela vinha, ficava ensinando para nós aí, dava aula de LIBRAS para nós aí (Mãe de Laila).

A LIBRAS foi tão importante para essa família que, além de ter melhorado a comunicação com a filha, a mãe de Laila contou que, hoje, ela tem até intérprete de LIBRAS na igreja, lugar muito frequentado por eles.

Assim, levando em consideração que os estudantes iniciaram os estudos na transição da política educacional dos surdos e o pouco conhecimento das mães sobre a importância de aprender a LIBRAS, o aprendizado dessa língua, nas duas famílias, foi tardio: Laila tinha entre 13 e 14 anos e João tinha 9 anos.

Importante observar que as orientações para o aprendizado da LIBRAS não partiram da escola e ocorreram bem depois do período em que essas crianças já deveriam ser alfabetizadas. No entanto, as duas mães foram reconhecendo a importância da LIBRAS na socialização dos filhos e afirmaram que tentavam aprender melhor a língua sempre que tinham oportunidade.

A INSERÇÃO DA CRIANÇA SURDA NA VIDA ESCOLAR: DA EDUCAÇÃO ESPECIAL À ESCOLA PÚBLICA

Eu tive que brigar demais para ele poder adquirir o direito dele. Isso aí é normal, qualquer mãe briga pelo seu filho (Mãe de João).

Após analisar as dificuldades no ambiente familiar, procuramos observar como se iniciou a socialização na escola. De acordo com Paniagua (2004), as vivências dos pais e a relação entre família e escola variam em função da idade e da etapa educacional em que o filho se encontra, quando a família se depara com decisões acerca da escolarização que não são fáceis de tomar.

Laila estudou na escola especial até 2016, quando iniciou o Ensino Médio, aos 18 anos, na escola pública estadual mais próxima de sua casa. João estudou na escola especial até os nove anos, mas sua mãe o transferiu dessa escola antes de se formar, pois acreditava que o filho não estava aprendendo. Ele foi, então, para uma escola municipal pública que oferecia do 1º ao 5º ano e, depois, para outra escola pública municipal.

Contudo, é importante ressaltar que a mãe de João, que matriculou o filho na escola pública antes da mãe de Laila, precisou ir em busca da garantia dos direitos do filho, embora, nessa época, já houvessem requisitos legais claros (Mantoan, 2017; Brito, 2013; Ribeiro, Barbosa & Martins, 2019) a serem cumpridos pela escola para receberem estudantes com deficiência. Nas duas escolas públicas em que estudou, João enfrentou dificuldades.

Aí eu tive um apoio de uma professora lá do ensino especial, ela me orientou, e eu fui fazendo todos os passos que ela falou: fiz uma carta por escrito, manualmente, aí mandei para o fórum, abri um processo no fórum. Aí, nesse processo, eu consegui... Eu ganhei para poder conseguir contratar a intérprete para ele (Mãe de João).

A mãe entrou com um processo na justiça para que seu filho pudesse ter uma intérprete que o acompanhasse e, segundo ela, o filho foi o primeiro a contar com esse apoio especializado em escola municipal da cidade. Tal ação judicial possibilitou que outras crianças também tivessem o acesso à intérprete de LIBRAS. Diante dos relatos da pesquisa, percebemos que, embora as políticas de inclusão garantissem os direitos dos estudantes surdos nas escolas, eles não estavam sendo praticados.

Os questionários aplicados aos professores e diretores das duas escolas revelaram que nenhum dos diretores e das professoras participantes da pesquisa sabe LIBRAS e que nunca fizeram uma formação continuada na área. Segundo informaram, isso ocorre porque tal oportunidade nunca foi oferecida a eles. As respostas trazidas pelos entrevistados vão ao encontro dos estudos de Silva et al (2018), que revelam a ausência de formação específica dos professores e gestores para atuarem com crianças e jovens surdos. Todos afirmam sentir falta de uma formação continuada sobre o tema. Também convém ressaltar que as escolas, segundo os profissionais entrevistados, não possuem salas de recursos multifuncionais, ainda que garantidas por lei. Essas salas são parte de um programa que propõe oferecer às escolas públicas materiais pedagógicos, equipamentos tecnológicos e mobiliários, bem como materiais de acessibilidade para atendimento educacional especializado (Sousa, Carola, & Martins, 2016). Na sala de recursos multifuncionais, os estudantes surdos poderiam aprimorar o conhecimento sobre LIBRAS e realizar outras atividades que favoreceriam seu aprendizado.

Segundo os relatos das mães de João e de Laila, elas não sabiam desses direitos, que são garantidos por lei aos seus filhos. De modo geral, quando matricularam seus filhos nas escolas públicas, as mães só conheciam sobre o direito à intérprete de LIBRAS. A mãe de Laila soube, pela intérprete da igreja, que a filha tinha direito a uma profissional na escola também: “[q]uem me falou que eu deveria pedir a intérprete foi a intérprete de LIBRAS dela, da igreja. Ela me ajuda muito” (Mãe de Laila). Assim, tão logo matriculou a filha, de 18 anos, no Ensino Médio, já solicitou ao diretor que providenciasse a intérprete.

Para essa mãe, o processo para conseguir a intérprete de LIBRAS não exigiu tanta burocracia, apesar da demora. Segundo ela, foi feito o pedido e, depois de poucos meses, a filha teve a intérprete. Para a mãe de João, por sua vez, como já mencionado anteriormente, as coisas não foram tão fáceis. Ela teve de processar a prefeitura da cidade em 2006, assim que o filho saiu da escola especial e foi para a escola pública municipal da cidade, com orientação de uma professora da educação especial.

As dificuldades das mães entrevistadas revelam o baixo impacto das políticas de direitos humanos no contexto da pesquisa, limitadas a um discurso retórico (Fernandes & Candau, 2017). Isso é algo que podemos também observar no caso específico de comunidade surda, a despeito de toda luta que se trava em nosso país (Brito, 2013).

A relação das mães com a escola pública se iniciou logo que matricularam os filhos, com a solicitação formal da intérprete de LIBRAS. Elas receberam essa informação por terceiros, mas fizeram valer esse direito previsto em lei. Podemos afirmar que elas não tiveram nenhuma orientação institucional e que as escolas não tinham nenhum preparo para receber esses estudantes. No entanto, segundo o diretor da escola de Laila, depois da matrícula da aluna, algumas ações foram providenciadas.

Algumas ações foram realizadas após a matrícula da aluna com deficiência auditiva, há dois anos. Foram realizadas palestras envolvendo a temática. Realizamos comemorações no Dia do Surdo. Neste dia, são planejadas atividades voltadas para a inclusão e conscientização. A mãe da aluna foi convidada para participar, mas não compareceu (Diretor da escola de Laila).

A ausência foi explicada pela mãe: “[p]ara ser sincera, eu sou difícil de ir, mas, sempre quando precisa, eu vou, sabe? Sempre que chama eu vou...”. A fala da mãe de Laila revela que ela se interessa pelos estudos da filha, que fez mais de um curso de LIBRAS e que, apesar de nem sempre poder ir à escola, acompanha seus estudos, o que vai ao encontro da teoria que afirma que, mesmo com o baixo capital cultural, as famílias empreendem esforços para promover a escolarização dos filhos, ainda que nem sempre eles sejam reconhecidos pela escola (Lahire, 2004; Thin, 2010).

Na escola de João, não foi feita nenhuma ação específica com sua família. Segundo o diretor, “devido ao baixo índice de alunos surdos no colégio, a única ação efetiva com esses alunos foram atividades específicas com a intérprete de LIBRAS”.

Pela fala do diretor, constatamos que a escola não garante os direitos de João e justifica isso pelo baixo índice de alunos surdos matriculados. No entanto, segundo Sousa, Carola e Martins (2016), um ambiente inclusivo precisa ser pensado para atender às particularidades de todos os indivíduos, independentemente de sua condição. Dessa forma, mesmo com reduzido número de alunos com deficiência em uma escola, todas devem estar prontas ou, pelo menos, tentar contornar rapidamente a situação para atendê-los, caso contrário, o ambiente torna-se segregador.

Quanto à participação familiar, o diretor da escola de Laila e as professoras de Laila e de João destacaram que as mães não costumavam frequentar a escola. De acordo com o diretor, a mãe de Laila não se envolvia muito e transferia todas as decisões sobre o aprendizado da filha à escola: “[a] preocupação [dela] se resume em garantir o intérprete de LIBRAS e o transporte escolar”. Tal afirmação foi confirmada pela mãe de Laila, que acredita que um intérprete é tudo o que ela precisa: “... o que ela precisa, ela está tendo lá, que é um intérprete de LIBRAS, né? Porque o que ela precisa é de um intérprete de LIBRAS e lá tem um intérprete de LIBRAS, ué”.

No entanto, a fala do diretor traz consigo uma crítica dura à família, sem que perceba o esforço que a mãe da estudante faz para mantê-la na escola. Ancorando em Thin (2010) e Lahire (2004), podemos afirmar que os familiares do estudante com baixos recursos culturais e econômicos não sabem como auxiliar os filhos na escola, e acreditam que oferecer amor, comida, segurança, conforto e abrigo aos seus filhos é de grande valia, o que não deixou de ser constatado durante a pesquisa. A mãe de Laila é dedicada e preocupada com a filha – cuida do seu uniforme, procura aprender LIBRAS, está presente no processo de escolarização e lutou para que a filha tivesse esse direito assegurado também na igreja.

Ao conversar com a mãe de Laila, pudemos perceber que ela não se sentia capaz de intervir diretamente nos assuntos relativos à aprendizagem da filha. Inclusive, embora com boa vontade, ao conceder a entrevista, disse mais de uma vez que achava que não teria capacidade de, segundo suas palavras, “responder direito”, pois acreditava que quem tem mais estudo do que ela é superior, o que vai ao encontro da reflexão de Thin (2010) e Lahire (2004). Assim, a fala do diretor da escola de Laila mostra o distanciamento destas duas instituições – família e escola. Segundo Thin (2010), a escola espera mais das famílias, que possuem um distanciamento da cultura escolar e desconsidera as limitações daquelas que estão em camadas populares, como é o caso de nossa pesquisa.

A mãe de João reconhece que os professores do filho precisam trabalhar com a intérprete, fazer cursos e conhecer a realidade dos estudantes surdos. Em sua fala, ela revela que “mesmo sendo mãe, eu fiz isso”. Por sua vez, se a mãe responsabiliza a escola, a professora de João responsabiliza a família pela falta de conhecimento do estudante no que tange à LIBRAS.

O aluno não recebeu o apoio adequado da família, só foi alfabetizado na linguagem [sic] de sinais com 14, 15 anos. Apesar dos colegas de turma o ajudarem, às vezes, notava que ele não queria, o que causou algumas reprovações no ensino regular. Como estava com idade um pouco avançada, foi transferido para a Educação de Jovens e Adultos, onde as dificuldades permaneceram mesmo com a presença do intérprete (Professora de João).

Pela fala da professora de João, podemos perceber que a escola culpa a família pelas dificuldades do aluno. No entanto, desde os nove anos, João frequentou a escola pública e também foi quando aprendeu a LIBRAS com uma fonoaudióloga, segundo a mãe. Com isso, embora a família tenha rejeitado a LIBRAS no começo, houve um esforço posterior para o aprendizado da língua. Todavia, segundo a professora de João, ele não estava aprendendo, mesmo com o auxílio do intérprete, algo que parece se relacionar ao histórico da rejeição familiar. Sem muitos detalhes, a professora disse que nunca chamou a mãe do jovem para conversarem sobre isso.

Daniel Thin (2010) nos auxilia a compreender o choque entre as lógicas socializadoras escolares e familiares, ou seja, por um lado, as mães ouvidas na pesquisa não entendiam como era o processo de aprendizado ao longo da escolarização dos filhos surdos, por outro, a escola acreditava que cabia a elas aceitar as normas e reforçar o conhecimento escolar.

Embora a mãe de Laila achasse que a filha não precisava de reforço escolar, porque estava aprendendo, ela concordava em tudo com a escola: “se a escola falar, eu concordo com a escola” (Mãe de Laila). Apesar disso, apenas concordar com a escola não é o bastante. Segundo a professora de Laila:

[A] turma era cheia, logo, eu fiquei meio dependente do intérprete. E, isso se prolongou pelo 3º ano. Penso que, se houver um aprendizado básico nos Anos Iniciais, é possível fazer um trabalho melhor no restante da formação básica do aluno surdo (Professora de Laila).

Quanto às dificuldades da aluna, a professora relatou que Laila também era totalmente dependente do intérprete. Considerou que isso era culpa da família, que, segundo ela, precisava ajudá-la a ser independente. “No caso dessa aluna, foi uma relação de total dependência. Ela não foi acostumada a se virar sozinha” (Professora de Laila).

Segundo o diretor da escola de Laila, ele esperava que a mãe participasse mais ativamente das decisões da filha, pois isso facilitaria a socialização e o desempenho cognitivo da aluna. “Espero que eles participem mais diretamente nas decisões importantes para o aprendizado do aluno. O suporte da família é fundamental para a socialização e para o desempenho cognitivo do aluno” (Diretor escola de Laila).

Com a ausência da mãe nas decisões e no apoio para o aprendizado da filha, a escola traçava estratégias, como horários que se adequassem aos dela, segundo o diretor.

A escola procura oferecer, à mãe, horários diversificados para as visitas de modo que eles possam ser adequados à disponibilidade deles. Na ausência dos pais, a equipe pedagógica da escola se esforça para suprir a ausência da família, traçando estratégias para atender aos alunos com a maior proximidade possível (Diretor da escola de Laila).

Em consonância com os achados de Botteon & Dragone (2020) na pesquisa sobre jovens surdos e seu processo de escolarização, observamos que as mães, os diretores e as professoras entrevistados tiveram muitas dificuldades para receber os alunos surdos, e o diálogo era precário e com avaliações pouco compreensivas do contexto familiar. As duas mães ouvidas conquistaram, pelo próprio esforço, os serviços de intérprete e as escolas, por sua vez, embora não tivessem estrutura para receber esses alunos, foram se adaptando de acordo com a legislação. A partir de tais constatações, consideramos importante analisar as práticas educativas familiares e escolares e quais as estratégias que essas instituições utilizaram para ajudar os dois estudantes.

SOCIABILIDADE DE LAILA E JOÃO E SEUS PLANOS PARA O FUTURO

A pesquisa nos mostrou que as famílias e as escolas investigadas passaram por muitas dificuldades ao longo do processo de escolarização de Laila e João, mas, apesar de algumas práticas terem sido fruto de iniciativa individual, foram muito importantes para escolarização desses alunos. Destacamos algumas dessas práticas e a forma como os auxiliaram na trajetória escolar, conforme apontou a professora de Laila sobre a necessidade de ser criativa, “as avaliações eram sempre mais ilustradas, mais básicas” e “buscava atividades mais lúdicas, com mais imagens, para que ela pudesse entender os conceitos básicos de Matemática”. A professora disse que usava desse artifício, pois “ela não conseguia fazer atividades sozinhas, porque ela não tinha compreensão de texto, não conseguia entender o que estava sendo pedido nos exercícios”.

Quanto ao hábito de leitura, a mãe de Laila disse que a filha gosta de ler romances, que costuma pegar livros emprestados na escola e que, quando ela não consegue terminar de ler, vai à escola pedir ao diretor para deixar que a filha fique mais tempo com o livro: “uma vez, ela pegou nas férias, ela não conseguiu terminar de ler todo nas férias, aí eu fui lá e pedi ao diretor, ele deixou ela terminar de ler livro de romance. Ela lê”.

A esse respeito, a mãe disse que, com o outro filho, não precisava fazer intermédio com a escola, pois ele sempre resolveu tudo sozinho. Outra situação comum que pode se configurar em disposições, conforme Lahire (2004), é que, quando a mãe não conseguia se comunicar com a filha, Laila escrevia, seja no papel, seja no smartphone. “Ela lê bem, hoje mesmo o irmãozinho mandou uma mensagem no WhatsApp, em LIBRAS, ela leu em LIBRAS e anotou tudo no caderno para eu ver o que estava escrito em LIBRAS” (Mãe de Laila).

O “irmãozinho” a que a mãe se refere é um frequentador da mesma igreja delas, que conversa com a filha no WhatsApp e está aprendendo LIBRAS para se comunicar com Laila.

Posso te mostrar? Não sei onde pus os óculos. Aqui é esse aqui ó. [Mostra uma imagem com sinais do alfabeto em LIBRAS que ele colocou no status]. Ele manda em LIBRAS. Aí, para eu saber o que as pessoas estão falando com ela, ela anota tudo para mim [ela pega o caderno e me mostra a tradução em português, escrita pela filha, com letra legível: “uma palavra gentil pode mudar o dia inteiro de alguém”] (Mãe de Laila).

Esse hábito de escrever o que a mãe não entende é comum na casa de Laila. A mãe possui baixo capital cultural e auxiliava a filha como podia e, inclusive, disse que não tinha como ajudar nos deveres de escola, pois não tinha escolaridade suficiente para isso: “não auxilio não, porque eu não sei, né? Eu estudei só até a 4ª série. Você fala auxiliar, seria ensinar ela, né? Não, porque é difícil para mim, que não tenho estudo, né?”.

Pudemos constatar que a sociabilidade de João e Laila é bem parecida. No interior, a comunidade de surdos é muito pequena e são poucos os movimentos e organizações sociais específicos de surdos, o que interfere nas relações sociais dos estudantes da pesquisa. Segundo as mães entrevistadas, seus filhos não têm muitas amizades, mas, quando surge alguém interessado neles, principalmente em relacionamentos amorosos, essas pessoas aprendem sua língua e conseguem interagir. Ambos são jovens e a interação social é muito importante nessa fase da vida, mas como nos traz a pesquisa de Capache, Lima & Françozo (2019), a interação dos surdos com outros jovens que desconhecem a língua de sinais não é simples. Segundo as mães ouvidas na pesquisa, muitas vezes, Laila e João se sentem excluídos devido à dificuldade de comunicação. Em uma das entrevistas com a mãe de Laila, a filha estava presente e foi possível perceber sua felicidade ao reconhecer que a entrevistadora sabia um pouco da sua língua. As duas, então, conversaram e ela ensinou mais alguns sinais.

Quanto ao aprendizado, vale destacar que Laila concluiu o Ensino Médio em 2018, mas, segundo sua professora, a jovem foi “empurrada”, pois a única recomendação que recebeu, desde que a aluna foi matriculada, foi a de que ela deveria ser aprovada. A esse respeito, a professora disse que não tinha apoio da família: “eu não tinha retorno. A família não era muito presente”. Ela admitiu, no entanto, que nunca chamou a família para conversar sobre a aprendizagem de Laila e considerou uma falha não reconhecer os limites dessa mãe.

Além disso, a professora de Laila disse algo que expressa a dificuldade de muitos docentes: “... quando estamos na sala de aula, com tantos alunos, não sabemos como agir e, sem apoio externo, a tendência é culpabilizar alguém e é mais fácil culpar as famílias”. Assim, admitiu que poucas são as vezes em que convidam os pais de alunos para conversar e conhecer seu universo e, dessa maneira, saber como podem ajudar.

A professora de Laila afirmou ainda que apenas recebeu o laudo da jovem e que, em função dele, a aluna não poderia ser reprovada, independentemente de ter aprendido ou não. Essa estudante, mesmo com muitas dificuldades, segundo a professora, se formou no Ensino Médio em 2018.

João, por sua vez, interrompeu os estudos antes da conclusão do Ensino Fundamental e sua mãe relatou que não sabia o que pode ter motivado isso:

[...] tinha até desenvolvido bem para passar, mas aí chegou no meado do ano, em julho, ele já quis parar, já estava até pronto para passar, infelizmente, ele não quis voltar mais. Mas eu acredito que aconteceu alguma coisa, mas ele não quer me falar (Mãe de João).

Sua professora, no entanto, acreditava que o aluno estivesse se sentindo excluído:

... para mim, é um aluno que está em um ambiente em que todos falam uma língua que não é dele. E que poucos fazem algum esforço para entender a língua e até mesmo as dificuldades dele (Professora de João).

Embora Laila tenha terminado os estudos, sua trajetória na escola também não foi fácil, pois ela não tinha amigos e as pessoas da comunidade escolar, de um modo geral, não sabiam sua língua. A situação de exclusão pelos pares, professores e sociedade somente reforça o sentimento de impotência e fracasso dos estudantes e de suas famílias.

Diante de tais constatações na pesquisa, a literatura nos auxilia a compreender que, ao receber os estudantes com deficiência, a escola passa a falsa impressão de ser democrática e verdadeiramente inclusiva, mas se mantém, em grande medida, um ambiente segregador, nada receptivo e que continua excluindo, veladamente ou não, quem não se adequa a ela (Bourdieu & Champagne, 2001).

Assim, os dois estudantes estavam em um meio em que se sentiam excluídos, seja em casa, seja na escola. É por isso que, segundo Pedroso (2001), caso não haja uma reconsideração no currículo para a efetiva inclusão do estudante surdo no ensino público, ele se sentirá isolado; e foi exatamente o que aconteceu com os estudantes focados nesta pesquisa.

O projeto de futuro desses estudantes, hoje, segundo suas mães, é arrumarem algum emprego. Para colaborar com isso, ambas estão distribuindo currículos dos filhos no comércio e nas empresas locais. Laila, já com o diploma de Ensino Médio, quer trabalhar como caixa de supermercado. João, por sua vez, quer arrumar emprego “em qualquer lugar”, segundo a mãe, seja em um supermercado, em oficinas de carro ou no serviço braçal. Sem concluir a educação básica, ela reconhece que essas são as expectativas possíveis para ele, no momento.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA

Reconhecemos, neste trabalho, que a relação família e escola é necessária para que o estudante surdo seja efetivamente incluído no ambiente escolar. Essa relação permite conhecer as particularidades do aluno surdo e, sobretudo, para anuir todos os seus direitos para que lhe seja assegurada uma educação de qualidade. No entanto, é reconhecido que famílias das camadas populares e com baixa escolaridade têm grande dificuldade para acessar e efetivar esses direitos.

Embora esta pesquisa traga apenas dois casos, sem a possibilidade de generalização dos resultados, pudemos trazer algumas inferências: os direitos dos estudantes surdos não foram cumpridos nas escolas analisadas, como deliberado pelas leis, e a ação mais pontual realizada foi a contratação do intérprete de LIBRAS. Esse profissional só foi garantido com a luta das mães de Laila e de João, que precisaram fazer o pedido e, até mesmo, entrar com uma ação judicial, como foi o caso da mãe de João. Isso indica tensões entre a realidade e o que defende o projeto de uma escola democrática e orientado pelos direitos das pessoas com deficiência.

As escolas e as famílias não tinham uma relação efetiva, mas isso não ocorria por omissão das mães, pois a pesquisa revelou que elas sempre se esforçaram pela escolarização dos filhos. Embora alguns profissionais da escola relatassem certo distanciamento das famílias, elas participavam de grupo de apoio, ajudavam nos deveres quando sabiam como, aprenderam LIBRAS, lutaram para conseguir um intérprete nas escolas, além dos demais cuidados para que os estudantes tenham boa qualidade de vida e participação social. A atuação dessas mães mobilizou diretores e professores, ainda que não todos, a proporem outras possibilidades didático-pedagógicas no atendimento a Laila e João.

Convém destacar que essas mães foram praticamente abandonadas pelo poder público. Criaram seus filhos sem a ajuda dos pais, têm baixa escolaridade e pouca informação. Elas não encontraram suporte institucional que as auxiliassem na busca dos direitos dos filhos por uma educação de qualidade, mas tiveram apoio de pessoas isoladas, na sua maioria, mulheres que são pessoas ligadas à igreja, uma professora e uma amiga. Cada uma dessas pessoas contribuiu com orientações e informações a respeito de como buscar a melhor educação para seus filhos.

Quanto à inclusão dos estudantes, Laila conseguiu se formar, mesmo com todas as dificuldades, pois não sabia todas as palavras do português, em função de uma alfabetização precária, segundo sua professora. João, infelizmente, desistiu dos estudos no 6º ano. Hoje, os dois procuram empregos e tentam ingressar no mercado de trabalho. Sem dúvida, percebemos que a passagem desses dois estudantes pela escola não os retirou de uma condição educacional precária, ainda que localizemos alguns ganhos nesse período. Parece que isso está em continuidade com processos de segregação também experimentados na família e na escola, dentro de lógicas sociais com baixa assimilação dos direitos que assistem às pessoas da comunidade surda.

Com isso, é necessário que os direitos desses estudantes sejam assegurados, que essas famílias de baixo capital cultural recebam apoio profissional para poderem ajudar seus filhos e que as escolas se preparem para ser acolhedoras, pois uma proposta inclusiva é aquela em que um ambiente é pensado para todos.

Para tanto, é necessário aprimorar nosso conhecimento, pois muito tem de ser feito para que se efetivem as políticas de inclusão. Nesse contexto, que consigamos mudar a nossa visão docente a cada dia, para que tenhamos uma escola que esteja realmente preparada para receber todos. Só assim pessoas como João, Laila e todos os estudantes surdos matriculados nas escolas brasileiras poderão se sentir em um ambiente que é deles também, com seus direitos assegurados e não sendo segregados de todo o exterior que os rodeia.

REFERÊNCIAS

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Notas de autor

1 Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.
1 Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.
1 Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.

rosacoutrim@gmail.com

Información adicional

Como citar: Ferreira, R. L. L., Coutrim, R. M. E., & Torres, M. A. (2022). Inclusion for whom? The struggle of families for schooling deaf students. Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e16890. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.16890

Contribuições dos Autores: Ferreira, R. L. L.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Coutrim, R. M. E.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Torres, M. A.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.



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