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Problematizando identidades e diferenças: conformações pós-modernas, “(pós)críticas” e pós-estruturalistas da escola e do currículo
Problematizing identities and differences: notes post-modern, “(pos)critical” and post-structuralist the school and the curriculum
Problematizando identidades y diferenciais: conformaciones post modernas, “(pos)críticas” y postestructuralistas sobre la escuela y el currículo
Problematizando identidades e diferenças: conformações pós-modernas, “(pós)críticas” e pós-estruturalistas da escola e do currículo
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 15, núm. 34, e16491, 2022
Universidade Federal de Sergipe
Recepción: 24 Diciembre 2021
Aprobación: 12 Febrero 2022
Publicación: 03 Abril 2022
Resumo: Este trabalho organiza-se na correlação de fontes bibliográficas sob uma abordagem qualitativa, influenciado pelas discussões pós-modernas de sociedade e pós-estruturalistas do conhecimento em suas descrições e análises. Problematizam-se conceitos e efeitos de identidades e diferenças, bem como suas possíveis conformações na escola pós-moderna e no currículo “(pós)crítico” e pós-estruturalista. Conclui-se que, na pós-modernidade, o sujeito assume identidades diversas a partir de influências diversas, sendo a escola um espaço importante para a problematização e para a construção desse movimento, inclusive nas relações de poder com a diferença. Defende-se um currículo “(pós)crítico”, que não oponha pedagogias críticas e pedagogias pós-críticas e nem constranja suas possíveis aproximações e potencialidades contra hegemônicas, combativas às injustiças sociais e fomentadoras das (trans)formações e/ou pluralização de identidades. O estudo ainda pressupõe que, nesse currículo, além de serem consideradas amplamente as questões pós-modernas, considerem-se também as questões pós-estruturalistas, especialmente no que dizem respeito às escolas e ao próprio currículo como práticas de significação e de representação.
Palavras-chave: Currículo, Escola, Pós-estruturalismo, Pós-modernidade.
Abstract: This article is based on a correlation of bibliographic sources under a qualitative approach, influenced by postmodern society and poststructuralist discussions of knowledge in their descriptions and analyses. Concepts and effects of identities and differences are discussed, as well as their possible conformations in the postmodern school and in the “(post)critical” and poststructuralist curriculum. It is concluded that in post-modernity, the subject assumes different identities from different influences, and the school is an important place for the problematization and construction of this movement, including inside the power relations towards difference. A "(post)critical" curriculum is defended, which does not oppose critical pedagogies and post-critical pedagogies, nor constrain their possible approaches and potential against hegemonic, fighting against social injustices and fostering (trans)formations and/or pluralization of identities . Furthermore, in this curriculum, in addition to broadly considering postmodern issues, post-structuralist issues are also considered, especially with regard to schools and the curriculum itself as practices of meaning and representation.
Keywords: Curriculum, Post-structuralism, Postmodernities, School.
Resumen: Se organiza una correlación de fuentes bibliográficas sobre un aborgaje cualitativa, influenciada por las discusiones postmodernidad de sociedad y postestructuralistas del conocimiento en sus descripciones y análisis. Problematiza conceptos y efectos de identidades y diferencias, bien como sus posibles conformaciones en relación a la escuela postmoderna y al currículum “(poscrítico)” y postestructuralista. Además se concluye que en la postmodernidad, el sujeto tiene identidades distintas, donde la escuela es un sitio importante para la problematización y construcción de este movimiento, incluso en las relaciones de poder con la diferencia. Hay que defender un currículum “(post)crítico”, que no se oponga a pedagogías críticas y pedagogías postcríticas, tampoco constreñir sus posibles cercanías y potencialidades contra la hegemonía a combatir las injusticias sociales y fomentadoras de las (trans)formaciones y/o pluralización de las identidades. Mientras, en ese currículum además de considerar la amplitud de las cuestiones postmodernas, hay que considerarse también las cuestiones postestructuralistas, en especial lo que dicen a respecto de las escuelas y al própio currículum como prácticas de significación y de representación.
Palabras clave: Currículum, Escuela, Post estructuralismo, Postmodernidad.
INTRODUÇÃO
O currículo pode ser compreendido como um território de identidades em disputa, diretamente e indiretamente ligado à formação de sujeitos, ou do que se almeja como sujeito (SILVA, 2013; ARROYO, 2013). A escola, por sua vez, configura-se como um campo “prático” e vivo das identidades, bem como das diferenças. É considerada espaço privilegiado de promoção dos mais diversos saberes e das mais diversas vivências/trocas culturais. Essas compreensões evidenciam que as relações sociais e culturais estabelecidas nesses “espaços” promovem e assumem papeis importantes na formação e na transformação das identidades, tanto dos/as discentes, quanto dos/as docentes (Hall, 2016).
Nessa linha, este ensaio tem como objetivo problematizar alguns conceitos e os efeitos de identidades e diferenças, bem como suas formações e conformações na escola pós-moderna e no currículo “(pós)crítico” e pós-estruturalista. Para nós, faz-se importante que essas problematizações sejam compreendidas como resultados das tensões de poderes intraescolares, intracurriculares e, fundamentalmente, da complexa relação escola-sociedade. Segundo Arroyo (2013), pensar que as tensões vêm apenas “de dentro” tem sido um reducionismo que empobrece as políticas, as diretrizes curriculares e suas análises.
Ancora-se na correlação de fontes bibliográficas sob uma abordagem qualitativa de pesquisa, entendida como “[...] um processo permanente de produção de conhecimento, em que os resultados são momentos parciais que se integram constantemente com novas perguntas e abrem novos caminhos à produção de conhecimento.” (González Rey, 2002, p. 72). Desse modo, o trabalho situa-se em uma perspectiva descritiva e analítica fortemente afetada pelas problematizações pós-modernas de sociedade e pós-estruturalistas do conhecimento, em especial, por causa de seu viés de contestação da noção de sujeito moderno que delineou e ainda delineia princípios hegemônicos estruturantes da sociedade e suas instituições – a escola, por exemplo. (Hall, 2015).
Assim, este texto se organiza em três tópicos, seguidos das considerações finais e das referências. O primeiro tópico problematiza a escola e as identidades culturais na pós-modernidade. O segundo tópico toma como referência as relações entre as teorias do currículo e suas contribuições para a (des)construção das identidades em um viés que denominamos de (pós)crítico. O terceiro tópico sistematiza a discussão entre currículo e cultura escolar, dando centralidade às implicações de significações e representações do pós-estruturalismo. Nas considerações finais retoma-se o objetivo proposto demonstrando como ele foi discutido ao longo do texto e evidenciam-se possíveis limitações.
REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA E AS IDENTIDADES CULTURAIS NA PÓS-MODERNIDADE
Compreendemos a pós-modernidade – dentre a falta de consenso para o seu significado – como um movimento que revisita a modernidade e a ela opera críticas em direção a um conjunto de condições sociais. A pós-modernidade, em síntese, é a própria modernidade se pensando, produzindo autocríticas e se colocando em movimento (Giroux, 1993). A escola e o currículo não se encontram alheios a essas influências “post”. Nesse contexto, destaca-se a importância da valorização da cultura dos oprimidos, dos subjugados historicamente, dos dominados, das minorias, de suas realidades e de seus interesses, estabelecendo relação entre o trabalho educativo, a pós-modernidade e as identidades/diferenças (Neira, 2019).
Diversos elementos presentes em nossa dinâmica social têm contribuído para reconfigurar as identidades e impactar a cultura escolar na pós-modernidade. Dentre eles destacam-se: os movimentos feministas e LGBTQIA+, que avançam na luta por igualdade de direitos na diversidade de territórios sociais, políticos e culturais; o movimento negro, que luta por espaços negados nos padrões históricos de poder, de justiça, de conhecimento e cultura; bem como o movimento indígena, quilombola, do campo, que afirma direitos à terra, aos territórios, à igualdade, às diferenças, inclusive às suas memórias, culturas e identidades (Arroyo, 2013).
Almeja-se que esses grupos subjugados se insiram no todo social, saindo das margens em direção ao centro, garantindo status de acesso, de representatividade e de importância. Mexe-se, dessa forma, com a estabilidade do hegemônico, da cultura global normativa; valorizam-se as culturas periféricas, as identidades locais e os anseios comunitários em prol de transformações amplas. Consequentemente, é perceptível que as grandes narrativas de transformações sociais genéricas, típicas da modernidade, vão cada vez mais cedendo espaço para as questões comunitárias, de grupos específicos que, ao mesmo tempo, possuem o poder de se organizar em prol de lutas coletivas mais amplas e contam com instâncias sociais como a escola para isso.
Paulo Freire foi um dos autores que estabeleceu aproximações entre a escola, o currículo e a pós-modernidade. Disse o autor que esse movimento progressista não apenas reconhece o papel da subjetividade na história, mas atua político-pedagogicamente no sentido de fortalecer essa importância. Isso é feito, segundo Freire (2020), por meio de programas em que a leitura crítica do mundo se funda em uma prática educativa crescente “desocultadora” de verdades, essas que, quando ocultas, interessam às classes dominantes da sociedade. Finaliza Freire (Freire, 2020, p. 17-18) dizendo que, diante disso, “me sinto, obviamente, numa posição pós-modernamente progressista e é como tal que discutirei a educação”.
Na pós-modernidade, a escola assume, portanto, um importante papel na formação e na problematização das identidades e das diferenças. Têm-se como preocupações nesses espaços – ou dever-se-ia ter – as trocas culturais entre os mais diversos grupos que a compõem, bem como com a seleção dos conteúdos curriculares. Essas trocas sociais e essas escolhas de conteúdo, se negligenciadas, contribuem para que determinadas identidades culturais, já hegemônicas, sejam privilegiadas em detrimento de outras, periféricas, que estão distantes do centro ou da centralidade social. Trata-se, portanto, de desnaturalizar as relações escolares e seus direcionamentos, atribuindo-lhes a complexidade que merecem em busca de justiça social (Ghanem & Neira, 2014). Estudantes e docentes possuem a oportunidade de participar de reflexões individuais e coletivas, de serem provocados e, consequentemente, de repensarem suas posturas e suas ações consigo mesmo, com os outros e com a sociedade em que estão inseridos (Costa, 2013).
Vale destacar, portanto, que a compreensão de identidade(s) em tela – pós-moderna – é demasiadamente complexa no entendimento de Hall (2015). Talvez a principal característica desse conceito esteja na consideração das mudanças das identidades individuais provocadas pelas fragmentações das paisagens culturais (classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade), abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados e estáveis. Essa perda de um “sentido de si” é chamada por Hall (2015) de deslocamento ou descentração do sujeito. Somos, em uma leitura pós-moderna, “pós” a qualquer concepção essencialista de identidade.
Hall (2015) trabalha, em síntese, com a perspectiva de que na pós-modernidade os sujeitos possuem várias identidades e essas, por sua vez, são móveis, cambiantes, múltiplas, fragmentadas e estão sempre em disputa. A afirmação das identidades e a enunciação das diferenças traduzem o desejo de diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir ou de buscar acessos a recursos simbólicos e materiais da sociedade. A identidade e a diferença além de dependentes, estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e demarcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. As identidades e as diferenças não são, nunca, inocentes, inclusive no espaço escolar (Silva, 2014).
Essas identidades têm a possibilidade de se articularem conjuntamente, todavia de forma sempre parcial, deixando abertas suas estruturas, o que nos oferece, no espaço escolar, um possível diálogo com o “outro”, principalmente no que diz respeito às equidades e às construções de lutas sociais coletivas, “coronazadas” (Santos, 2019),1 contrapositivas às injustiças sociais. Sem essa articulação, segundo Laclau (1990) e Hall (2015, 2016), não existiria nenhuma história. Assim, percebe-se que, na concepção adotada, as identidades devem ser pensadas a partir das relações culturais e de poder, perpassando pelas vivências, pelas trocas e pelas relações dos sujeitos, e não de forma fixa ou estática como se pretendeu na modernidade
Para justificar essa pluralização, Hall (2015) defende que, na pós-modernidade, o sujeito assume identidades diferentes sob influências diversas. Essas identidades, em última instância, constroem as relações do sujeito com o meio externo, bem como são construídas por esse meio. Logo, não podemos adotar a referência a um sujeito que nasce com uma identidade fixada, desenvolve-a e finda sua passagem no mundo com ela, como se fosse algo dele próprio, afastado do mundo e das relações com as pessoas. As identidades são produções simbólicas e discursivas, elas não são simplesmente definidas, elas são impostas; elas não convivem harmoniosamente lado a lado em um campo sem hierarquias, elas são disputadas.
Segundo Laclau (1990) e Hall (2015, 2016), as sociedades pós-modernas também são caracterizadas pela diferença, são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de posições/identidades para os indivíduos. Ou seja, a diferença não é simplesmente um resultado de um processo, ela é o processo pelo qual tanto as identidades quanto as diferenças são produzidas. Em geral, afirma Silva (2014), a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada é a da diversidade. Nesse debate, recomenda-se respeito e tolerância para com a diversidade/diferença, não se questiona como elas são produzidas, nem as relações de poder que as perpassam e nem a compreensão de que o diferente sempre é, no senso comum e em algumas discussões científicas, o “outro”, o periférico e suas culturas. Nessa ótica da diversidade, ao contrário do que se pensa, são produzidas mais desigualdades.
É emergente, pois, a importância da compreensão das concepções conceituais entre a diferença e a diversidade nos espaços escolares, uma vez que esse debate tem conquistado mais espaço nos discursos pedagógicos. Para Abramowicz, Rodrigues e Cruz (2011), certa “glamourização” do conceito de diversidade tem contribuído para o seu “esvaziamento político e social”. A diferença, por sua vez, possui profunda relação com a identidade, e ambas resultam de um processo de produção simbólica e discursiva que se sujeita às relações de poder (Silva, 2014). Não há, pois, convivência harmoniosa, mas sim um processo de disputas em um ambiente culturalmente construído a partir das relações, dos momentos históricos e dos espaços de vivência e de convivência.
O espaço escolar possui, portanto, identidades diversas que são construídas historicamente a partir das relações de poder, em especial, durante suas relações cotidianas com as diferenças, sendo, portanto, local privilegiado para problematizar construções e desconstruções, significações e representações. As relações estabelecidas no contexto escolar são importantes fontes de debate, não só sob uma perspectiva de formação dos discentes, mas também sob a ótica, a vivência e a formação didático-pedagógica dos docentes. Nessa linha, será apresentado no próximo tópico um paralelo entre as reflexões abordadas aqui e as teorias educacionais (pós)críticas do currículo.
AS TEORIAS DO CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA AS IDENTIDADES CULTURAIS EM UM VIÉS (PÓS)CRÍTICO
Faz-se relevante que, desde o início deste tópico sejam problematizadas as teorias do currículo e como elas, segundo Silva (2013), estão intimamente ligadas às questões de identidades:
No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de ‘identidade’ ou de ‘subjetividade’. Se quisermos recorrer a etimologia da palavra “currículo”, que vem do latim “curriculum”, ‘pista de corrida’, podemos dizer que no curso dessa ‘corrida’ que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também, uma questão de identidade. É sobre essa questão, pois, que se concentram também, as teorias do currículo (Silva, 2013, p. 15).
Em seus estudos, Silva (2013) apresenta três teorias do currículo, as tradicionais, as críticas e as pós-críticas. Nessa esteira, percebe-se que as teorias tradicionais aceitam mais facilmente o status quo e os conhecimentos e os saberes dos dominantes como aqueles a serem ensinados, concentrando-se em questões técnicas. Justificam-se por um processo de racionalização em busca de resultados educacionais, de forma cuidadosa e rigorosamente especificada e medida, como se estivessem em processo fabril. Almejam que as identidades dos professores e, especialmente, dos alunos sejam configuradas como eficientes, em uma espécie de capacitação dos últimos para exercerem as ocupações profissionais da vida adulta. São teorias claramente conservadoras que, em última instância, visam a “ajustar” as crianças e os jovens à sociedade tal como ela é (Silva, 2013).
As teorias críticas e pós-críticas, por sua vez, questionam por que algumas identidades são privilegiadas e outras não. Os conhecimentos e os saberes a serem ensinados estão preocupados com as conexões entre saber, identidade e poder. Justificam-se pela necessidade de deslocamentos na maneira de conceber o currículo e seus conhecimentos, indo além do status quo. Assim, tais teorias almejam que os professores e, especialmente, os alunos se contraponham às injustiças sociais – tanto no quesito diferença, quando no quesito igualdade social, com possibilidade de transformar a sociedade (Silva, 2013).
Nesse primeiro momento, Silva (2013) aproxima as teorias educacionais críticas das teorias educacionais pós-críticas. O autor estabelece um paralelo de preocupações no que diz respeito à construção de conhecimentos contra-hegemônicos. Todavia, em outros momentos do livro citado, o autor não evidencia possibilidades para o que se pode ser chamado de hibridismo conceitual, ou transversalidade conceitual (Hall, 2016) entre as pedagogias críticas e pós-críticas. Isso pode ser percebido, especialmente, quando o autor permite que sejam compreendidas as teorias do currículo pelos conceitos que utilizam para conceber a “realidade” e para fomentar as identidades.
Os conceitos enfatizados dirigem a atenção do leitor para certas questões que, segundo Silva (2013), sem eles, não as “veríamos”. Silva (2013) demonstra que as diferentes teorias dos currículos e seus efeitos discursivos estão associados às ideias de: (1) saber qual conhecimento deve ser ensinado; (2) justificá-lo; e (3) questionar o que “eles” ou “elas” devem se tornar. É nesse sentido que o autor assume que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade ou de subjetividade.
Teorias do currículo | ||
Teorias tradicionais | Teorias críticas | Teorias pós-críticas |
Ensino;Aprendizagem;Avaliação;Metodologia;Didática;Organização;Planejamento;Eficiência;Objetivos; | Ideologia;Reprodução cultural e social;Poder;Classe social;Capitalismo;Relações sociais de produção;Conscientização;Emancipação e libertação;Currículo oculto;Resistência; | Identidade, alteridade, diferença;Subjetividade;Significação e discurso;Saber-poder;Representação;Cultura;Gênero, raça, etnia, sexualidade;Multiculturalismo; |
Ao contrário do que pensava no livro Identidades terminais (Silva, 1996), Silva (2013) não apresenta possibilidades de as teorias educacionais críticas dialogarem com conceitos como identidade, diferença, subjetividade, representação, gênero, raça, etnia, sexualidade, dentre outros, pertencentes as teorias pós-críticas. Por outro lado, ele afirma que outros conceitos – como reprodução cultural e social, classe social e capitalismo – caracterizam as teorias educacionais críticas, não compondo as teorias pós-críticas. Isso leva o leitor a compreender, portanto, ao contrário do que também pontua no início do livro ao aproximar teorias críticas e pós-críticas, que essas teorias se distanciam:
A Teoria Crítica do Currículo é um movimento de constante problematização e questionamento. Nesse processo, novas questões e temas vêm se incorporar àqueles que, desde o seu início, estiveram no centro de sua preocupação. É nisso que constitui sua validade e potencial. Está é uma história que evidentemente ainda não terminou. Na verdade, talvez esteja apenas começando (Silva, 1996, p. 65).
Entendemos que as teorias educacionais críticas, principalmente após os anos de 1990, aproximaram-se das teorias educacionais pós-críticas. O próprio Silva (1993) evidencia essa possibilidade de relação entre teorias educacionais críticas e “novos” conceitos e horizontes em um outro clássico livro que organizou, Teoria Educacional Crítica em tempos pós-modernos. Nesse livro, oito ensaios assinados por autores internacionais renomados – dentre eles Peter Mclaren e Henry Giroux – reúnem um mapeamento de como diferentes questões do contemporâneo afetam o próprio pensamento crítico em educação. Autores como Barthes, Lyotard, Foucault, Derrida e Baudrillard, amplamente considerados no debate “pós”, são citados para problematizar o que no livro convencionou-se chamar de teorias educacionais críticas pós-modernas ou teorias críticas educacionais em tempos pós-modernos.
Na perspectiva de Lopes (2011, 2013), compreende-se que cada vez mais o pensamento crítico é interpelado por reflexões que, por vezes, são consideradas pós-críticas, o que faz suas fronteiras, das teorias críticas e pós-críticas, hibridizadas, pouco distinguíveis, não deixando claras as justificativas de suas distinções. A partir de análise das produções críticas dos anos de 1990, Moreira (1999), por exemplo, também pondera que foram encontradas problematizações (da identidade e da diferença) feministas, estudos de raça, estudos culturais e do pensamento pós-moderno e pós-estruturalista.
Por isso, compreende-se neste artigo que tais problematizações críticas vão além daqueles conceitos apresentados por Silva (2013) como pertencentes às teorias curriculares críticas – classe social, ideologia, reprodução cultural/social, capitalismo, emancipação/libertação e relações sociais de produção. Essas “novas” problematizações desenvolvidas por Sousa (2020) aproximam as teorias curriculares críticas de alguns conceitos destacados por Silva (2013) como pós-críticos – identidade, diferença, subjetividade, significação, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo. Afirma-se, portanto, que as pedagogias críticas, ao longo dos anos, estabeleceram um olhar de profundo interesse pelas tendências e pelos conceitos definidos por Silva (2013) como pós-críticos.
Por isso e inspirados na tese de doutorado defendida por Sousa (2020), opta-se, neste artigo, por defender a não classificação entre teorias pós-críticas e teorias críticas, almejando que um dia, quem sabe, devido às suas aproximações e às potencialidades contra hegemônicas, não seja mais necessário tal termo ou classificações. A classificação que opõe pedagogias críticas e pós-críticas constrange e limita o pluralismo teórico-pedagógico que se mostra combativo às injustiças sociais e limita também as (trans)formações e/ou pluralização de identidades nessa direção.
Assim, demonstra-se como mais coerente que tais perspectivas, críticas e pós, somem-se, dentro do possível e do convergente, abdicando de qualquer vaidade classificatória, em prol da luta contra às mais variadas formas de injustiças sociais nos currículos e nas escolas, no que diz respeito especialmente as problematizações das identidades, visando a garantir, fomentar, compor e ampliar as diferenças. Logo, a concepção de hibridismo cultural adotada por Hall (2013) pode contribuir.
EXCURSOS SOBRE O “(PÓS)CRÍTICO” OU (PREFERENCIALMENTE) PELA NÃO CLASSIFICAÇÃO
Como apontado no tópico anterior, na história recente do debate pedagógico/curricular da Educação, é identificada a influência de Silva (2013) e, com ela, certa despontencialização das teorias educacionais críticas, especialmente no livro Documentos de Identidade: uma introdução as teorias do currículo.2 Isso se deu, naquele momento, em prol da abertura de espaço para que fosse explorada uma ampla gama de questões culturais, como gênero, raça, sexualidade e identidade. Em um primeiro momento, esse movimento pode ser compreendido como justificável, levando em consideração que algumas discussões pedagógicas-críticas da Educação, inspiradas no marxismo ortodoxo,3 encorajaram um modo excessivamente “economicista” de problematização.
O marxismo e outras correntes, que influenciaram parte do debate pedagógico da Educação majoritariamente nos anos de 1970 e 1980, converteram a discussão econômico-capitalista como centro de análise, e isso trouxe questões no que diz respeito à secundarização da diferença, das formas de opressão, de discriminação e de exclusão, como o racismo e o sexismo. Hoje, fazem-se evidenciadas novas tensões culturais (Daolio, 2010), torna-se, cada dia mais, perceptível a realidade pós-moderna, fazem mais sentido as problematizações filosóficas pós-estruturalistas, o que também influencia as pedagogias críticas da Educação a serem autocríticas.
Por essas questões, afirma-se que é chegada a hora de restabelecer ou de continuar estabelecendo um equilíbrio para que não se perca de vista a importância das discussões postas pelas pedagogias críticas e pelas pedagogias pós-críticas no que diz respeito às mais variadas identidades, as mais variadas diferenças e a desigualdade. Para isso, devemos considerar que as críticas das pedagogias críticas têm ganhado novos contornos na Educação (Moreira, 1999; Lopes, 2011, 2013; Sousa, 2020), que consideram influências do capitalismo, por exemplo, nas relações de subjugamento das mulheres e dos negros (Jaeggi & Fraser, 2020). Bem como que as pedagogias pós-críticas têm apresentado também novos contornos, novos referenciais, novos olhares, que contribuem epistemologicamente, pedagogicamente e culturalmente com as pedagogias críticas (SOUSA, 2020).
Percebem-se como possíveis aproximações nessas teorias pedagógicas, especialmente, a contraposição às injustiças sociais e a busca por uma sociedade mais justa. Por isso, parece possível que elas possam se ancorar em um “grande guarda-chuva” – por mais que existirão divergências internas entre as mais variadas vertentes, algo democrático e desejado. Por tudo que foi apresentado e pelos descentramentos almejados, faz-se cristalina a necessidade da discussão da não pertinência da manutenção da classificação que distingue pedagogias críticas das pedagogias pós-críticas e vice-versa.
Entende-se como justa a intenção das pedagogias pós-críticas da área em distanciarem-se das discussões do capitalismo e da economia, como já destacado. Fizeram-se perceptíveis ganhos no modo de lidar com questões de gênero, identidade, raça e sexualidade. De fato, todos esses temas, principalmente nos anos de 1970 e 1980, quando não deixados de lado, eram secundarizados pelas pedagogias críticas “economicistas” da Educação.
As próprias teorias críticas, no sentido mais amplo e filosófico, têm se aproximado das teorias pós-críticas nesse sentido, elas mesmas vêm criticando em sua tradição certo entendimento restrito de economia. No texto Teoria tradicional e teoria críticaHorkheimer (1980. P. 249), por exemplo, faz a seguinte análise: “O economicismo, ao qual a teoria crítica é frequentemente reduzida, não consiste em atribuir excessiva importância a economia, mas em atribuir-lhe um escopo excessivamente restrito”.
As pedagogias críticas ou teorias educacionais críticas, segundo Sousa (2020) e outros autores como Devís-Devís (2012), também vêm considerando a importância de outras formas de injustiças sociais, como aquelas direcionadas a raça, etnia, sexualidade, dentre outras. Nessa linha e acompanhando o raciocínio de Fraser e Jaeggi (2020), pode-se, então, dizer que essas vertentes apresentam um panorama favorável ao entendimento de que a influência da discussão da desigualdade imbrica-se com a da discussão da diferença, e, juntas, dizem respeito ao questionamento de identidades hegemônicas, centralizadoras, e à valorização de outras identidades, subjugadas, periferizadas.
Ganha destaque um importante desafio frente à possibilidade de ampliação da discussão das pedagogias críticas e dos elementos apresentados por certo olhar “inovador” das pedagogias pós-críticas: a construção ou a percepção de currículos cujos temas da desigualdade estejam em diálogo com os da diferença, pensando centralidades e não hierarquias, tensionando significações e representações voltadas para a manutenção do status quo social nas escolas. A impressão que se faz aparente, influenciada por Jaeggi e Fraser (2020), é que parte da tendência em abandonar as pedagogias críticas vem do medo de reaproximação do “economicismo”, teórico e pedagógico, das pedagogias pós-críticas.
Portanto, em busca de contraposição ao status quo “por dentro do currículo”, no contemporâneo e por dentro das escolas, faz-se importante a ampliação da concepção (pós)crítica para algo não classificável, distanciando-a do “economicismo” e também do debate da diferença que negligencia a desigualdade e a economia, e aproximando-a das questões postas pelo debate pós, inclusive pós-estruturalista e suas problematizações no que diz respeito à significação e à representação, até para que possamos melhor compreender a significação econômica da vida social e a formação de identidades nesse cenário. Na esteira do parágrafo anterior, este artigo propõe e apresenta no próximo tópico, como fonte de fundamentação política/epistemológica/pedagógica das pedagogias (pós)críticas ou como um caminho para as pedagogias não classificáveis, a compreensão da importância e da necessidade de que sejam tomadas algumas discussões teóricas que fundamentam o debate pós-estruturalista nas conformações das identidades, uma vez que, neste ensaio, já frisamos a relevância do pós-moderno, importante tal qual nesse cenário.
A ESCOLA PÓS-MODERNA E O CURRÍCULO... (PÓS)CRÍTICO: TENSIONANDO SIGNIFICAÇÕES E REPRESENTAÇÕES PÓS-ESTRUTURALISTAS
No diálogo com a Educação, no livro O Currículo como Fetiche, publicado pela primeira vez no ano de 1999, em busca de renovações e ampliações do projeto crítico, Silva (2010) destaca a importância de que sejam consideradas as problematizações epistemológicas colocadas pelo pós-estruturalismo. Ao contrário do que escreveu também em 1999 em seu livro Documentos de Identidade, no qual Silva apresenta uma teoria pós-crítica de currículo que almeja ir além das pedagogias críticas, o autor opta, no livro O Currículo como Fetiche, por apresentar uma proposição teórica curricular pós-estruturalista, que enfatiza o currículo como prática de significação e amplia a proposta crítica, o que contribui para que seja reafirmada a proposta deste artigo de não classificação “crítica e pós”.
Essa discussão pós-estruturalista, com seu pressuposto da primazia do discurso e das práticas linguísticas, enfatiza radicalmente as concepções de cultura para a visão de um campo de luta em torno da construção e da imposição de significados sobre o mundo social. Em suma, nessa perspectiva, o currículo, tal como a escola, é compreendido como: I) uma prática de significação; 2) uma prática produtiva; 3) uma relação social; 4) uma relação de poder; 5) uma prática que produz identidades socais.
A escola e o currículo, portanto, podem ser vistos como práticas de significação, como produtores de sentidos e identidades, inclusive docentes, como textos, como tramas de significados, podem ser analisados como discursos e como práticas discursivas. Todavia, não se pode conceber a escola e o currículo como práticas de significação sem destacar seu caráter fundamentalmente produtivo, criativo. Essa produtividade advém, dentre outras coisas, do caráter indeterminado, aberto, incerto, incontido da atividade linguística. Além disso, se vistos como práticas de significação e de produção, não podem deixar de ser relações sociais. Essas relações sociais são necessariamente relações de poder, significação e poder estão inextricavelmente conjugados. Por fim, escola e currículo produzem identidades socais por meio da política de identidade e de diferença, estão envolvidos centralmente naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos (Silva, 2010).
Estamos no meio de uma luta decisiva pela definição do que significa uma ‘boa’ sociedade, do que significa uma ‘boa’ educação, do significado da própria identidade social que queremos ver construída. O projeto hegemônico, neste momento, é um projeto social centrado na primazia do mercado, nos valores puramente econômicos, nos interesses dos grandes grupos industriais e financeiros. [...] Nesse projeto, a educação é vista como simplesmente instrumental à obtenção de metas econômicas que sejam compatíveis com esses interesses. Sabemos o que essa educação vai produzir, o que ela quer produzir: de um lado, um grupo de indivíduos privilegiados, selecionados, adaptados ao ambiente supostamente competitivo do cenário ideal imaginado pelos teóricos da excelência dos mecanismos de mercado; de outro, a grande massa de indivíduos dispensáveis, relegados a trabalhos repetitivos e rotineiros ou à fileira, cada vez maior, de desempregados (Silva, 2010, p. 28).
Para Silva (2010), em uma perspectiva pós-estruturalista de currículo e de pedagogia, é importante que seja reafirmado o ideal de uma sociedade que considera como prioridade o cumprimento do direito de que todos os seres humanos têm de ter uma boa vida, de ter uma vida em que sejam plenamente satisfeitas todas as suas necessidades vitais, sociais e históricas. Os significados pós-estruturalistas são: igualdade, direitos sociais, justiça social, cidadania, espaço público. A educação passa a estar estreitamente vinculada à construção de uma sociedade em que a riqueza, os recursos materiais e simbólicos e a “boa” vida sejam mais bem distribuídos. A escola deve ser construída tanto como um espaço público que promova essa possibilidade quanto um espaço público em que se construam identidades sociais coerentes com essa possibilidade. O currículo é um dos espaços centrais para essa construção, um “empreendimento” ético, um “empreendimento” político.
O currículo como representação, nessa proposta de ampliação crítica em direção pós-estruturalista, considera a chamada “virada linguística” e as formas pelos quais a “realidade” se torna “presente” para nós – representada. Conhecer e representar são processos inseparáveis. Perguntas sobre quem está autorizado a conhecer o mundo traduzem-se em perguntas sobre quem está autorizado a representá-lo. É reconhecido, portanto, também um vínculo com as relações de poder. É importante salientar que alguns reivindicam o fim das representações, dizendo que, em uma sociedade pós-moderna, de proliferação incontrolável de signos e imagens, a representação teria chegado ao fim e estaríamos vivendo uma paisagem contemporânea por simulacros: representações das representações. Entretanto, outros reivindicam o direito à representação por não se verem representados nos códigos culturais oficiais. Trata-se de uma revolta das identidades culturais subjugadas contra o regime dominante de representação, ou uma “política de identidade”.
A chamada “política de identidade”, presente na proposta que vem sendo apresenta, reúne duas dimensões centrais do conceito de “representação”, questionando: a representação como “delegação”, e/ou quem tem o direito de representar quem; e a representação como “descrição”, e/ou quem são os grupos sociais e culturais apresentados nas diferentes formas de inscrição cultural. Essas duas dimensões encontram-se ligadas, quem tem o poder de falar e agir em nome do outro (representação como delegação) dirige, de certa forma, o processo de apresentação e de descrição do outro (representação como descrição) e de suas identidades/diferenças. Quem fala pelo outro controla a forma de falar do outro (Silva, 2010).
A representação é um sistema de significação que não é fixo, ambas, representação e significação, na concepção aqui apresentada, sofrem influências de autores como Deleuze, Derrida e Barthes. Ao contrário da perspectiva estruturalista que possui uma significação com caráter mais rígido, fechado, determinado e definitivo, na perspectiva pós-estruturalista, a significação torna-se mais incerta, mais instável e mais aberta. A representação é compreendida sempre como marca material, como inscrição, como traço, não é nunca representação mental. A representação só adquire sentido em uma cadeia diferencial de significantes, ou seja, ela representa algo não por sua “identidade”, mas por sua “diferença” de outras “coisas”.
Assim, por exemplo, as representações que se fazem do ‘negro’ (como grupo “racial”) são inteiramente dependentes, para fazerem ‘sentido’, de sua posição numa cadeia de diferença entre significantes que inclui, entre outros, o significante ‘branco’ (ou seja, as representações de ‘branco’). É precisamente essa dependência de uma cadeia de diferença que confere à representação seu caráter determinado (Silva, 2010, p. 41)
Nessa concepção mais abrangente de representação, o conceito de discurso, tal como desenvolvido por Foucault e especialmente adotado na análise cultural, aparece como importante. Elegem-se como objeto de análise as instâncias e as formas sociais que são construídas discursiva e linguisticamente. Amplia-se a noção de realidade a partir de discursos, e é exatamente essa realidade construída via discurso que se torna o “objeto” das análises culturais centradas na noção de representação. A ideia constante de discurso no pós-estruturalismo, para Silva (2010) e sob influência de Foucault, deve ser a de práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.
Ainda no diálogo com as representações, direcionando-as a uma perspectiva de identidade, diferença e poder, convém destacarmos que a identidade cultural ou social diz respeito ao conjunto daquelas características pelas quais os grupos sociais se definem como aquilo que eles são ou são definidos. Aquilo que eles são é inseparável daquilo que eles não são, das características que os fazem diferentes de outros grupos. Identidades e diferenças, como já brevemente destacado, são, pois, processos inseparáveis e mediados pelas relações de poder. A identidade não existe naturalmente, ela é construída, via representações, pelo próprio grupo e pelos outros grupos. Aquilo que um grupo tem em comum é fruto de um processo de criação de símbolos, de imagens, de memórias, de narrativas... a identidade é uma comunidade imaginada (Silva, 2010).
Por meio da representação travam-se-batalhas decisivas de criação e de imposição de significados particulares: esse é um campo atravessado por relações de poder. A identidade é, pois, ativamente produzida na e por meio de representação: é precisamente o poder que lhe confere seu caráter ativo, produtivo (Silva, 2010, p. 47)
É nessa conexão que adquirem importância na escola e no currículo escolar a chamada “política de identidade” e a necessidade de sua percepção e construção no processo educativo. Compreendendo que representação é política e identidade é política, diferentes grupos sociais e culturais reivindicam seu direito à representação e à identidade. Os grupos subordinados contestam precisamente a normalidade e a hegemonia dessas identidades. Os grupos privilegiados buscam reafirmar e ampliar a normalidade da hegemonia dessas identidades. Além disso, as identidades reprimidas reivindicam também controlar o seu próprio processo de representação, uma vez que ele tende a estar com os grupos hegemônicos que regulam todas as identidades.
Nessa linha de descrição/produção de identidades, especialmente na análise cultural, as noções de imagem e de estereótipo estão ligadas, de uma forma ou de outra, à noção de representação. A noção de estereótipo designa as fórmulas simplificadas pelas quais certos grupos culturais e sociais são descritos, devendo ser essas descontruídas pelo currículo escolar e pelo processo educativo das diferenças. A complexidade do outro é reduzida a um conjunto mínimo de signos sob a lei da minimização do investimento afetivo e psicológico. O estereótipo é ambíguo, reunindo, ao mesmo tempo, um desejo de conhecer o outro e um impulso para contê-lo. Ainda, em uma leitura problematizadora do realismo por meio do pós-estruturalismo e da análise cultural, podemos perceber que se busca um apagamento da produção que gerou a identidade e de seus vestígios, como se fosse essa representação a própria realidade.
Diz Silva (2010) que no realismo somos forçados a ver a representação tão-somente como produto acabado, fixo e imóvel. Cerra-se o jogo de significação, cria-se uma premissa de identidade entre representante e representado, entre significante e significado, que naturaliza o “mundo” e o conforma ordenadamente. Além disso, essencializa-se o “mundo”, como se possível fosse descobri-lo de verdade, sem contradições, de forma homogênea: como se fosse possível “desvelar” o “véu” ideológico que o encobre. O significado torna-se eterno, existiu e existirá para sempre. São, para o pós-estruturalismo, efeitos de realidade (Barthes), efeitos de verdade (Foucault), metafísicas da presença (Derrida)... conformando, todas, em ilusões criadas pelo realismo.
Em uma escola pós-moderna, em um currículo “(pós)crítico” e pós-estruturalista seria, portanto, ingenuidade acreditarmos no discurso de que os currículos escolares cumprem uma função de fortalecimento e consolidação de uma cultura “comum” em prol do bem de todos. Esse entendimento, caso firmado, fortaleceria o hegemônico e o sistema homogeneizador, capaz de silenciar e tornar invisíveis vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades (Candau, 2011).
Não se trata aqui somente de (des)romantizar o espaço escolar e as relações advindas dele, mas de compreender que as relações intraescolares e intracurriculares, fundamentalmente, na complexa relação escola-sociedade, são costumeiramente marcadas pela disputa de poder, tal qual, de maneira ingênua, colocamos as pedagogias críticas e pós-críticas, despotencializando-as. Esses embates tornam mais evidentes as possibilidades e os caminhos assumidos pela escola e pelo currículo: reprodutores das desigualdades sociais e das identidades hegemônicas ou balizadores de relações mais horizontais e valorativos das diferenças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste ensaio, foram problematizados conceitos e efeitos de identidades e diferenças, bem como suas formações e conformações pós-modernas, “(pós)críticas” e pós-estruturalistas da escola e do currículo. O cenário pós-moderno foi apresentado como um movimento que revisita à modernidade e a ela opera críticas em direção a um conjunto de condições sociais. Além disso, enfatizou-se a reconfiguração e a multiplicação das identidades e das diferenças nesse contexto social, bem como a importância da escola valorizar a cultura dos oprimidos, dos subjugados historicamente, no processo pedagógico em prol de representatividade e de que seja rompida a estabilidade do hegemônico, da cultura global normativa.
Ainda no primeiro tópico, apresentou-se o conceito de identidade pós-moderno como algo complexo que, talvez, tenha como principal característica as mudanças das identidades individuais provocadas pelas fragmentações das paisagens culturais (classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade), abalando a ideia hegemônica de sujeitos integrados e estáveis. Ainda, destacou-se a relevância de compreensão de identidade como algo dependente da diferença e vice-versa, enfatizando as relações culturais de poder. Quanto à diferença, entendeu-se que ela é forjada a partir das múltiplas identidades e, ao mesmo tempo, que elas mesmas se forjam. Ou seja, a diferença não é simplesmente um resultado de um processo, ela é o processo pelo qual tanto as identidades quanto as diferenças são produzidas.
O espaço escolar foi pensado, portanto, como aquele que concentra identidades diversas, que, por sua vez são construídas historicamente a partir das relações de poder, em especial, durante as relações cotidianas com as diferenças, sendo local privilegiado para problematizar construções e desconstruções, significações e representações. Além disso, em busca de responder aos objetivos propostos, foi ressaltada a defesa de um currículo “(pós)crítico” como um caminho para um currículo não classificável.
Sobre o currículo “(pós)crítico ou, em última instância, não classificável, valoriza-se que nele há a não oposição entre pedagogias críticas e pedagogias pós-críticas e o não constrangimento às suas possíveis aproximações e potencialidades contra hegemônicas, combativas às injustiças sociais e fomentadoras das (trans)formações e/ou pluralização de identidades. Ainda, foi destacado que esse currículo “(pós)crítico”, além de considerar amplamente as questões pós-modernas, considera também as questões pós-estruturalistas, especialmente no que elas dizem respeito às escolas e ao próprio currículo como práticas de significação e de representação.
Foi apresentado que as teorias educacionais críticas, ou pedagogias críticas, principalmente após os anos de 1990, aproximaram-se das teorias educacionais pós-críticas ou pedagogias pós-críticas. Também se evidenciou que autores como Barthes, Lyotard, Foucault, Derrida e Baudrillard, amplamente considerados no debate “pós”, são citados para problematizar teorias educacionais críticas “pós-modernas” ou teorias críticas educacionais em tempos pós-modernos. Ademais, destacou-se que cada vez mais o pensamento crítico é interpelado por reflexões que, por vezes, são consideradas pós-críticas, o que faz de suas fronteiras, críticas e pós, hibridizadas, pouco distinguíveis, não deixando claras as justificativas de suas distinções.
Defendeu-se, neste trabalho, portanto, a não classificação entre teorias pós-críticas e teorias críticas. O que foi enfatizado como mais coerente é que tais perspectivas, críticas e pós, somem-se, dentro do possível e do convergente, abdicando de qualquer vaidade classificatória, em prol da luta contra as mais variadas formas de injustiças sociais nos currículos e nas escolas, no que diz respeito especialmente às problematizações das identidades, visando a garantir, fomentar, compor e ampliar as diferenças.
Enfatizou-se o pós-estruturalismo na relação/interpretação da escola e do currículo como práticas de significação e de representação, como produtores de sentido. Todavia, não se pode conceber a escola e o currículo como práticas de significação sem destacar seu caráter fundamentalmente produtivo e criativo. Essa produtividade advém, dentre outras coisas, do caráter indeterminado, aberto, incerto, incontido da atividade linguística. Nessa linha, escola e cultura produzem identidades sociais por meio da política de identidade e de diferença, estão envolvidos centralmente naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos (Silva, 2010).
Por uma perspectiva pós-estruturalista de currículo e de pedagogia, afirmou-se a importância de priorizar o cumprimento do direito de que todos os seres humanos têm de ter uma boa vida, de ter uma vida em que sejam plenamente satisfeitas todas as suas necessidades vitais, sociais e históricas. A educação passa a estar estreitamente vinculada à construção de uma sociedade em que a riqueza, os recursos materiais e simbólicos e a “boa” vida sejam mais bem distribuídos. A escola deve ser construída tanto como um espaço público que promova essa possibilidade quanto um espaço público em que se construam identidades sociais coerentes com essa possibilidade. O currículo é um dos espaços centrais para essa construção, um “empreendimento” ético, um “empreendimento” político.
Por fim, mas não finalizando, uma escola e um currículo pós-moderno, “(pós)crítico” e pós-estruturalista contribuem para que seja rompida a ingenuidade que acredita no discurso de que os currículos escolares cumprem uma função de fortalecimento e consolidação de uma cultura “comum” em prol do bem de todos. Não se trata aqui de (des)romantizar o espaço escolar e as relações advindas dele, mas de compreender que as relações intraescolares, intracurriculares e, fundamentalmente, na complexão relação escola-sociedade são costumeiramente marcadas pela disputa de poder. Esses embates tornam mais evidentes as possibilidades e os caminhos a serem assumidos pela escola e pelo currículo: reprodutores das desigualdades sociais e das identidades hegemônicas ou balizadores de relações mais horizontais e valorativos das diferenças. Defendeu-se a última opção neste artigo.
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Notas
Notas de autor
galdinorodrigues@yahoo.com.br
Información adicional
Como citar: Sousa, G. R., & Rossi, M. A. (2022). Problematizing identities and differences: notes post-modern, “(pos)critical” and post-structuralist the school and the curriculum. Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e16491. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.16491
Contribuições dos Autores: Sousa, G. R.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Rossi, M. A.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.