Publicação Contínua
Recepción: 31 Enero 2022
Aprobación: 07 Abril 2022
Publicación: 14 Mayo 2022
DOI: https://doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17369
Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar resultados parciais da pesquisa qualitativa de mestrado em educação, de viés narrativo, com ênfase no debate de gênero e decolonialidade. Participam da pesquisa três jovens egressas da rede básica de ensino da cidade de Santana-AP, com faixa etária entre 20 e 23 anos. As participantes foram convidadas a partir do interesse e envolvimento com as temáticas feministas, demonstrados na vivência escolar e nas relações pessoais. A partir das compreensões do ser mulher das colaboradoras, buscou-se compreender como a violência colonial de gênero se expressa e opera sobre as mulheres de cor de Abya Yala1. O gênero, desse modo, é debatido como violência colonial onde, em intersecção com as dimensões de raça, sexualidade e classe, configura opressões e subalternidades que significam de modo específico as mulheres racializadas do sul global. As concepções críticas das jovens egressas do ensino básico sobre o ser mulher indicam elementos que trazem consistência para a análise social dos feminismos decoloniais e corrobora para a superação da imposição patriarcal, moderna e colonial de gênero nos territórios de Abya Yala, possibilitando reflexões sobre os caminhos para a superação da violência de gênero.
Palavras-chave: Decolonialidade, Educação Pública, Gênero, Narrativas de jovens egressas, Santana-AP.
Abstract: This article aims to present partial results of qualitative research for a master's degree in education, with a narrative bias, with an emphasis on the debate on gender and decoloniality. Three young graduates from the basic education network in the city of Santana-AP, aged between 20 and 23 years old, participated in the research. The participants were invited based on their interest and involvement with feminist themes, demonstrated in their school experience and personal relationships. Based on the collaborators' understanding of being a woman, we sought to understand how colonial gender violence is expressed and operated on women of color in Abya Yala . Gender, in this way, is debated as colonial violence where, in intersection with the dimensions of race, sexuality and class, it configures oppressions and subalternities that specifically signify the racialized women of the global south. The critical conceptions of young people who graduated from elementary school about being a woman indicate elements that bring consistency to the social analysis of decolonial feminisms and corroborate the overcoming of the patriarchal, modern and colonial imposition of gender in the territories of Abya Yala, allowing reflections on the paths for overcoming gender violence.
Keywords: Decoloniality, Gender, Narratives of young graduates, Public education, Santana-AP.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar resultados parciales de una investigación cualitativa para una maestría en educación, con sesgo narrativo, con énfasis en el debate sobre género y decolonialidad. Participaron de la investigación tres jóvenes egresados de la red de educación básica de la ciudad de Santana-AP, con edades entre 20 y 23 años. Las participantes fueron invitadas en base a su interés e involucramiento con temas feministas, demostrado en su experiencia escolar y relaciones personales. A partir de la comprensión de los colaboradores sobre el ser mujer, buscamos comprender cómo se expresa y opera la violencia de género colonial sobre las mujeres de color en Abya Yala. El género, de esta forma, se debate como violencia colonial donde, en intersección con las dimensiones de raza, sexualidad y clase, configura opresiones y subalternidades que significan específicamente a las mujeres racializadas del sur global. Las concepciones críticas de jóvenes egresadas de primaria sobre el ser mujer señalan elementos que dan consistencia al análisis social de los feminismos decoloniales y corroboran la superación de la imposición patriarcal, moderna y colonial del género en los territorios de Abya Yala, permitiendo reflexiones en los caminos para la superación de la violencia de género.
Palabras clave: Decolonialidad, Educacion publica, Género, Narrativas de jóvenes egresados, Santana-AP.
INTRODUÇÃO
Partindo de resultados parciais de uma pesquisa de Mestrado em Educação que se encontra em andamento na linha de pesquisa Educação, Culturas e Diversidades, o presente artigo traz reflexões teóricas em torno das relações entre a violência colonial de gênero e a construção social do ser mulher, considerando a lente analítica dos feminismos decoloniais. O objetivo do estudo é localizar, a partir das percepções sobre o ser mulher presentes nas narrativas de jovens egressas da rede básica de ensino, elementos que dialoguem com a compreensão decolonial do sistema gênero, o que implica considerar o gênero produto e meio da violência colonial, moderna, capitalista e patriarcal que afeta os territórios de Abya Yala.
A pesquisa é qualitativa, do tipo narrativa e considera a genealogia da experiência, proposta por Miñoso (2019) como percurso para a ruptura dos processos coloniais. Assim, os saberes e concepções das jovens egressas da rede básica de ensino são consideradas centrais para a construção do debate feminista e decolonial aqui apresentado.
A decolonialidade nos mostra que a força motriz da colonialidade é a violência, uma engrenagem que funciona de modo oculto e aparente intervindo na eliminação de existências, saberes e culturas. Entendendo que sua estruturação impacta dinâmicas locais e globais que nos distanciam da conexão com nossas ancestralidades e nos empurram para práticas de vida e relações cada vez mais desumanizadoras, consideramos a necessidade de pensar, construir e defender práticas insurgentes oriundas do chão das experiências (Miñoso, 2019). Portanto, não há como libertarmos as comunidades de Abya Yala dos efeitos da colonialidade capitalista patriarcal sem discutirmos e considerarmos seu regime de atuação na sociedade e nas instituições, incluindo as educacionais.
Lima (2019), explica que a história da educação precisa ser melhor investigada e por isso propõe pensar a educação como um instrumento de descolonização, um recurso de autodeterminação dos povos locais e suas autonomias. Lima (2019) pondera que ouvindo e aprendendo com o lugar de fala e com o pensamento de resistência das mulheres de Abya Yala podemos construir “uma maneira de resistir a um só tempo, ao patriarcado e à colonialidade” (Lima, 2019, p. 202). Nessa direção, Walsh (2017) defende uma luta que pensa e um pensamento que luta e nos convoca a articular uma dimensão pedagógica decolonial, o que significa inscrever um processo sociopolítico produtivo, indispensável e fundamentado na realidade de pessoas, suas subjetividades, histórias e lutas.
As concepções epistemológicas basilares no estudo parte dos feminismos decoloniais e sua busca de debater as violências e opressões impostas pela colonialidade de gênero. Na perspectiva decolonial as sociedades colonizadas não experimentaram o mesmo efeito colonial, pois os impactos coloniais não são os mesmos e nem sentidos da mesma forma entres as sociedades colonizadas (Curiel, 2020). Tendo em vista os efeitos coloniais na história dos territórios de Abya Yala e que muitas das interpretações do campo teórico foram conduzidos por pensadores homens, os feminismos decoloniais, a partir do pensamento das mulheres racializadas de Abya Yala, passaram a revisitar essas teorias para entender mais a fundo que relação a experiência colonial estabelece com as opressões e violências configuradas pelo gênero e raça, especialmente no que concerne ao lugar destinado às mulheres de cor, criado por uma ideologia colonial patriarcal, moderna e capitalista.
Nesse sentido, apresentamos o campo teórico da decolonialidade definindo a abordagem dos estudos feministas decoloniais e então nos aprofundamos no debate sobre a colonialidade do gênero, enfatizando sua ligação histórica com a colonização e os efeitos de opressão que persistem na atualidade pela ação da colonialidade. Destacamos assim o pensamento de Curiel (2020), Lugones (2014), Oyewùmí (2021) e Segato (2016a; 2016b).
Assim, nos conectamos com os saberes expressos nas narrativas de três jovens egressas da rede básica de ensino, com faixa etária entre 20 e 23 anos, para compreendermos como o sistema colonial de gênero, entendido também como violência colonial de gênero, se expressa sobre as mulheres racializadas de Abya Yala.
Nosso objetivo com a pesquisa consiste ainda em - com a contribuição das percepções críticas das mulheres jovens, situadas em suas experiências de vida - localizarmos elementos de atuação da colonialidade de gênero (entendida também como violência colonial) considerando os significados que este sistema inscreve sobre o ser mulher nos territórios de Abya Yala, nos desafiando a pensar e refletir caminhos possíveis de superação dessas significações, no âmbito social e educacional.
CAMINHO METODOLÓGICO DA PESQUISA
Certa vez, após a saudação de boa tarde (típica de início de aula), o desabafo provocador de uma estudante preencheu o ambiente educativo com uma mensagem clara e direta: a estafa de encontrar pênis desenhados por todos os cantos da escola, algo que para ela não fazia sentido algum e não atendia a nenhuma necessidade dos estudantes. A gota d’água tinha sido encontrar o órgão sexual rabiscado na poeira do basculante de vidro da janela da sala, naquele dia. Esse episódio foi o início de um ciclo longo de diálogos e práticas educativas coletivas que tiveram as questões de gênero como proposta de debate e tema de trabalhos artísticos no decorrer do ano.
Desse cenário resultaram muitos aprendizados, os quais originaram inquietações outras, como por exemplo: seria possível construir um debate sobre gênero e decolonialidade, considerando as narrativas das jovens envolvidas nesse processo de engajamento feminista e socioeducacional? Que contribuições suas concepções trariam para a compreensão dos impactos coloniais de gênero na constituição do ser mulher? Como tais reflexões poderiam apresentar caminhos de enfrentamento à violência de gênero no campo socioeducacional?
Assim, iniciamos um novo ciclo de trocas, mas agora vinculado a um projeto de pesquisa de mestrado e com as mulheres jovens fora da rede básica de ensino, devido a conclusão dessa etapa escolar. Na partilha que destacamos aqui, nos concentramos em socializar as contribuições das jovens egressas sobre a concepção do ser mulher e, então, localizarmos elementos que convergem com o pensamento feminista decolonial sobre gênero e colonialidade.
Também traçamos reflexões introdutórias sobre o campo educacional pois, embora o cenário social contemporâneo esteja em desestabilização, ainda estudamos pouco as contribuições das mulheres nas diversas áreas de conhecimento, inclusive no campo social e educacional. Desse modo, a limitada presença ou ausência das experiências das mulheres nas construções teóricas, nos coloca em questionamento sobre como suas vivências e percepções localizadas nos possibilitaria encontrar caminhos para um giro decolonial, uma mudança transformadora que nos liberte das entranhas coloniais instauradas pela exploração moderna e capitalista.
Mogrovejo (2020, p. 852), explica que as mulheres de Abya Yala, estão participando de “encontros feministas multimidiáticos, nas ruas, nas escolas e nos trabalhos”, essa movimentação prática e reflexiva tem possibilitado questionamentos, enfrentamentos e rupturas para com dimensões ocultas, porém profundas, da violência colonial/patriarcal. Já Miñoso (2019), negra, lésbica e afrodominicana, menciona a importância das interpretações na prescrição do mundo, pois as interpretações movem as ações cotidianas. Para a filósofa, documentar as experiências das mulheres de Abya Yala é uma forma de construir uma “contra memória que nos permita evidenciar os jogos de poder, as relações hierárquicas que ocultam e colaboram com a produção local de subalternidades do Sul Global” (Miñoso, 2019, p. 112).
Ou seja, a documentação das experiências vividas pelas mulheres de Abya Yala, rompem a perspectiva de um sujeito hegemônico no feminismo, emancipa a existência das mulheres de cor, revela seus enfrentamentos sociais e ao mesmo tempo legitima interpretações que podem prescrever o mundo de uma forma outra. Perscrutamos, então, rotas para, a partir dos olhares da juventude, compreender como a violência se expressa em relação ao ser mulher.
Assim, conhecendo e ouvindo as experiências localizadas das mulheres de cor se torna possível identificar as tramas ocultas da colonialidade de gênero e pensar caminhos de superação de seus efeitos, um giro decolonial. Para Minayo (2010) o objeto das Ciências Sociais é histórico e qualitativo envolve a realidade, o dinamismo da vida social e coletiva e suas configurações históricas bem como as temporalidades, as subjetividades conduzindo a compreensão de que a cientificidade “tem que ser pensada como uma ideia reguladora de alta abstração, e não como sinônimo de modelo de normas a serem seguidos” (Minayo, 2010, p. 12).
Entendemos que a concepção de Minayo (2010) possui convergência com a proposta metodológica decolonial de Miñoso (2019), definida pela defesa de construção de uma genealogia da experiência, ou seja, uma metodologia que possibilite romper com a centralidade da razão feminista eurocêntrica por meio da documentação das experiências situadas das mulheres de cor. Essa conduta epistemológica contribui para a elaboração de uma “contra-memória” capaz de evidenciar os jogos de poder e relações hierárquicas que colaboram para produção local de subalternidades (Miñoso, 2019).
Na busca de uma proximidade entre as concepções de Minayo (2010) e de Miñoso (2019) optamos pela abordagem qualitativa na investigação, tendo a pesquisa narrativa como direcionadora do tipo de estudo. Desse modo, os sujeitos, suas histórias de vida, o contexto, a temporalidade e o espaço/territorialidade (Tourinho; Martins, 2017), são elementos de alta relevância para a investigação. Nos estudos de Suárez (2017) expresso no texto “Pesquisa Narrativa: outras formas de conhecer”, percebemos que a pesquisa narrativa possui características que convergem com a intenção de ruptura paradigmática que a decolonialidade e o feminismo decolonial defendem:
o ressurgimento do sujeito, da experiência e do significado como eixos de produção de sentido sobre a vida social, cultural, estética, pedagógica, etc., fazem os itinerários subjetivos e coletivos deslocarem-se em direção ao centro da consideração e problematização dos estudos. Também fazem com que os vínculos de saber e poder com os habitantes e falantes do mundo, da vida, sejam reformulados, se tornem colaborativos, se horizontalizem, e que se perfilem diversos níveis de interlocução, retroalimentação e coparticipação (Suárez, 2017, p.76).
Para a coleta de dados foram selecionados dois instrumentos: círculos de diálogo e entrevista narrativa. O primeiro círculo de diálogo foi realizado em formato online, devido ao contexto de isolamento social decorrente das medidas de proteção sanitária contra a covid-192, nesse período não havia vacina imunizadora para a doença. Participam da pesquisa três jovens egressas da rede básica de ensino da cidade de Santana-AP, com faixa etária entre 20 e 23 anos. As jovens participantes das entrevistas receberam uma codificação de “Bárbara”, “Luiza” e “Natasha”, a fim de garantir o anonimato da pesquisa. Destaca-se que a pesquisa seguiu todos os procedimentos éticos envolvendo seres humanos, conforme postula a Resolução n° 510/2016 - Pesquisas nas áreas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal do Amapá em 2020 sob o CAAE n°: 52053021.1.0000.0003.
O objetivo desse primeiro círculo foi apresentar a proposta de pesquisa para as participantes, comunicando os objetivos, o problema e a relevância do estudo, e ouvi-las para então lançarmos a proposta de colaboração com o estudo. O segundo círculo de diálogo ocorreu em cenário pandêmico já flexibilizado, as participantes já vacinadas e, por isso, optaram por realizar em formato presencial, em ambiente com ventilação natural e uso de máscaras. Neste círculo aprofundamos sobre a temática e objetivos do estudo, tirando dúvidas sobre o campo decolonial, a compreensão decolonial de gênero e sua relação com estudos feministas. Dialogamos também sobre o que seria relevante incluir nos roteiros de entrevista narrativa, de modo que as participantes estivessem envolvidas na definição do que seria fundamental abordar no estudo.
As entrevistas narrativas buscam a não diretividade por meio de roteiros de conversação que vão introduzindo de maneira gradativa o assunto da pesquisa. Para Muylaert, et al. (2014) a entrevista narrativa envolve “o não condicionamento das respostas, o que propicia para o sujeito da pesquisa a construção gradativa de uma história própria, em que conteúdos implícitos e os não ditos possam emergir com maior naturalidade e comprometidos com a realidade cotidiana (Muylaert, et al., 2014, p.197).
Assim, buscamos a partir das entrevistas narrativas, realizadas em formato online, compreender o que as participantes concebiam sobre o ser mulher e violência de gênero, incluindo as dimensões do ser, do saber e do poder. Nessa partilha textual, que expressa parte dos resultados da pesquisa, dividimos as contribuições das colaboradoras no que concerne ao ser mulher, destacando os elementos que possibilitam correlação com a concepção da colonialidade de gênero, debatida e teorizada pelos aportes dos feminismos decoloniais.
OS FEMINISMOS DECOLONIAIS E O DEBATE DE GÊNERO: LOCALIZANDO AS MULHERES DE COR
Os feminismos decoloniais surgem de lutas, movimentos sociais e processos de libertação que resultam em teorias e práticas descolonizadoras. Tem em sua origem duas bases importantes: a ruptura com a razão feminista euronorteamericana, ou seja, o rompimento com o colonialismo dos movimentos feministas hegemônicos e a defesa da proposta decolonial (Curiel, 2020).
Partindo da concepção de que as sociedades colonizadas não experimentaram o mesmo efeito colonial, considerando suas idiossincrasias, resistências e processos contextuais, entende-se que os impactos coloniais não são os mesmos e nem sentidos da mesma forma entres as sociedades que foram colonizadas. Nos territórios de Abya Yala, o fim das políticas invasoras e violadoras dos regimes coloniais não libertaram as sociedades da exploração colonial, uma vez que esses efeitos ganharam reproduções de violência e assimetrias sociais pela ação da colonialidade. Assim compreende-se o conceito de decolonialidade como:
entendimento de que com o fim do colonialismo como constituição geopolítica e geo-histórica da modernidade ocidental europeia, a divisão internacional do trabalho entre centros e periferias, assim como a hierarquização étnico-racial das populações e a formação dos estados-nação na periferia, não se transformou significativamente. O que acontece, ao contrário, é uma transição do colonialismo moderno à colonialidade (Curiel, 2020, p.177-178, grifo nosso).
A decolonialidade é, portanto, importante campo teórico e prático de denúncia e posicionamentos contra a ação colonial moderna e capitalista que atua pelas vias da colonialidade. De acordo com Ballestrin (2017) a descolonização se diferencia da decolonialidade em termos históricos e temporais sendo a descolonização a superação do colonialismo e a decolonialidade a superação da modernidade/colonialidade, padrão de poder mundial que segue operando na atualidade, em múltiplas dimensões.
O outro lugar de onde parte os feminismos decoloniais é a crítica à razão feminista, ou colonialismo discursivo dos feminismos do Norte, uma concepção da necessidade de ruptura com a hegemonia dos feminismos brancos euronorteamericanos. Seria um desligamento com a “prática feminista subalterna que nos mostra o colonialismo internalizado, os dispositivos de controle e as estratégias de produção e conservação do poder de uma minoria dentro do campo feminista da América Latina” (Miñoso, 2019, p.112).
A partir daí vem a busca de tramar as próprias práticas e pensamentos pautados no chão da experiência das comunidades de Abya Yala, uma forma de crítica e proposição da experiência como forma efetiva de construção de saberes, o que Miñoso (2019) chama de “genealogia da experiência”. O feminismo decolonial, como giro decolonial e dos feminismos, pode ser definido nas seguintes palavras de Curiel (2020):
uma perspectiva de análise para entendermos de forma mais complexa as relações e entrelaçamentos de “raça, sexo, sexualidade, classe, geopolítica”. Essas propostas, feitas principalmente por feministas e de origem indígena, afrodescendentes, populares, feministas lésbicas, entre outras que têm questionado as formas como o feminismo hegemônico, branco, branco-mestiço e com privilégios de classe entende a subordinação das mulheres, a partir de suas próprias experiências situadas (Curiel, 2020, p.141).
Partindo das práticas políticas e discursivas, coletivas e particulares, das mulheres de Abya Yala, os feminismos decoloniais tem trazido importantes contribuições para a localização das diferentes faces da colonialidade e para a superação das estruturas de subordinação e violência por ela imposta em articulação com patriarcado moderno capitalista.
Inicialmente cunhado por Quijano (2010), o conceito de colonialidade é explicado nas pesquisas decoloniais como padrão de poder hegemônico, moderno capitalista, global que explora e subjuga as sociedades pela ideia de raça. A divisão racial, portanto, seria eixo central de controle do trabalho, seus recursos e produtos tendo alcance também no campo das subjetividades, da cultura e do conhecimento. Isso significa que a base para a implantação dos regimes coloniais foi a criação da colonialidade, um padrão de poder que dividiu hierarquicamente os territórios colonizados pela ideia de raça.
Santos (2020, p.61) menciona que as teorias da colonialidade num primeiro momento não ponderaram em seus estudos as implicações do gênero na construção das dicotomias de poder e isso torna indispensável arrolar o gênero como categoria de dominação basilar na inauguração da Modernidade/Colonialidade. Feito realizado pela pesquisadora Lugones (2019), que irreversivelmente modificou o conceito de colonialidade.
Orientada pelos estudos interseccionais do feminismo negro, pela política comunal dos movimentos indígenas, e pelos estudos decoloniais, a socióloga chega ao que denomina Sistema Colonial de Gênero, explicando a articulação categorial, interseccional e hierárquica da colonialidade, ou seja, a inexistência de sua fixação em único eixo de opressão.
Lugones (2019) compreende que a colonialidade do poder orquestra uma imposição dual de mundo baseado também baseada nas hierarquizações de sexo e, por consequência, não apenas controla essas relações hierarquizadas e dicotômicas, mas as produz. Partindo da análise do gênero, ela explica que a raça não é o único eixo de divisão do mundo moderno capitalista global, pois não há fixação em um único eixo de opressão, o que existe é uma dinâmica hierárquica movida por uma lógica patriarcal de binarismos que produz também dicotomias de sexualidade e classe. Para a pensadora é necessário olhar os entrecruzamentos das categorias de opressão para que seja possível visualizar tramas ocultas da colonialidade. Desse modo, temos a colonialidade como uma matriz que institui opressões pela violência hierárquica, patriarcal e que atua em dimensão interseccional.
Curiel (2020), antropóloga, negra, lésbica, traz significativos aportes para o debate feminista decolonial, em especial no aprofundamento das intersecções entre gênero, raça, classe e sexualidade, no que se pese os seguintes destaques: a) o gênero tem contribuído para desnaturalizar o que significa ser mulher em relação ao paradigma masculino e explicar o caráter social e histórico de uma ideologia pautada na diferença sexual; b) há uma construção cultural do sexo e da sexualidade que impõe a heterossexualidade como norma obrigatória (regime heteronormativo); c) a ideia de raça surge com o racismo como ideologia e fenômeno social moderno.
Nesse sentido, discutir o gênero como violência colonial, implica reconhecê-lo como um sistema que insere e naturaliza desigualdades em coadunação com as distinções de raça, classe e sexualidade na busca de uma produção sócio-histórica hegemonicamente masculina, heterossexual e branca. Assim, mulheres e homens de cor são produções que decorrem da imposição violenta da colonialidade interseccional que institui significantes práticos e simbólicos específicos, numa dinâmica diversa de realidades.
Quanto à instauração do sistema colonial de gênero, os estudos feministas decoloniais assumem duas posições: uma compreende que ele inexistia em algumas realidades comunais e foi introduzido socialmente pela violência colonial, criando hierarquizações e subalternidades que atingiram de modo mais intenso as fêmeas das comunidades; e outra que considera a existência de hierarquizações de gênero de baixa intensidade nas comunidades pré-intrusão colonial, mas que foram intensificadas e modificadas para uma dicotomia violenta de alta intensidade pós intrusão colonial. Essa posição também destaca a dimensão maior de opressões e violências impostas às mulheres de cor.
Tendo como base estudos e dados documentais históricos e etnográficos, Segato (2016a) destaca a existência de estruturas de diferenciação, com hierarquias nítidas de prestígio entre masculinidades e feminilidades localizadas nas nomenclaturas de gênero e na organização das relações sociais dos povos indígenas e grupos afro-americanos de Abya Yala. Sem esquecer que as transitividades de gênero eram permitidas nessas comunidades, a pesquisadora considera a organização por status nessas comunidades como uma expressão do patriarcado, uma vez que se caracterizam por regras, papéis de prestígio e diferenciação de ordem hierárquica. Esses dados se somam a uma distribuição espacial, ritual e laboral com papéis fixos.
Após o processo de intrusão colonial, uma vinculação entre o patriarcado de baixa intensidade do mundo aldeia e o patriarcado branco, eurocêntrico, moderno e capitalista dão origem a efetivação de um patriarcado de alta intensidade. Com isso, ocorrem modificações significativas nas relações do mundo aldeia como a imposição de um gênero pautado no sexo biológico, o bloqueio da transitividade de gênero, a imposição do regime heteronormativo e a racialização. Tais processos recaem de modo voraz e violento sobre a existência das mulheres de cor de Abya Yala.
Segato (2016b) destaca alguns aspectos que assinalam a mudança do mundo pré-intrusão colonial revelando a incorporação do patriarcado moderno colonial. São elementos que demonstram a vinculação do patriarcado de baixa intensidade (presente na organização do mundo aldeia) ao patriarcado colonial, de alta intensidade: a) a emasculação dos homens de cor – hiperinflação da posição masculina atribuindo a eles uma relativa posição de poder, mesmo que submissos aos colonizadores; b) o sequestro da política - as mulheres de cor são destituídas do poder de decisões sobre o mundo-aldeia; c) a privatização do espaço doméstico - a expropriação das decisões políticas do espaço doméstico e o confinamento feminino; d) a objetificação e sexualização dos corpos das mulheres de cor.
A assimilação desses processos opressivos pautados na diferenciação hierárquica patriarcal, colocou as mulheres de Abya Yala em lugar de alta vulnerabilidade, enfraquecendo sua participação política, seus laços comunitários e tornando-as objetos de exploração e controle sexual. Não se omite nesses estudos o impacto da ação colonial sobre os homens de cor, nem a contribuição das mulheres brancas e europeias na assimilação e reprodução da violência colonial de gênero, o que se enfatiza são as evidências de que o patriarcado colonial configura novas formas de produção da violência que recaem de modo específico sobre as mulheres de Abya Yala. Desse modo, a principal ação interventiva colonial no mundo-aldeia, considerando o sistema de gênero, foi sobre as mulheres de cor, tornando-as socialmente uma questão minoritária:
Os elementos que determinam a minorização das mulheres estão relacionados com a transição da vida comunal para a sociedade moderna e, na América Latina, com a transição dos povos que habitam os territórios nacionais do nosso continente para a modernidade colonial (Segato, 2016a, p.91, tradução nossa).
A expansão da modernidade/colonialidade sobre as sociedades de Abya Yala intervém de modo significativo na representação e posição das mulheres nas relações sociais. Ao serem minorizadas as mulheres tiveram seus problemas empurrados para a esfera íntima, destituídas de qualquer poder econômico, político e social, e como sujeitos de minorias e consequentemente se tornam uma questão social minoritária. Essa seria uma articulação organizada pela violência das relações hierarquizadas de gênero.
Na organização política dos colonizadores o acesso ao poder era baseado no gênero, sendo em maior parte trabalho dos homens. No processo de colonização essa dicotomia se manteve, embora homens e mulheres tenham sido excluídos dos mais altos escalões do gerenciamento colonial, houve reconhecimento da autoridade dos chefes masculinos no nível local, mas quanto as chefes fêmeas, foram tratadas como inexistentes (Oyewùmí, 2021). Por consequência as mulheres de cor foram efetivamente excluídas de todas as estruturas coloniais, sendo a base dessa exclusão sua biologia e raça.
Dessa maneira, temos o surgimento da mulher (de cor) como categoria definida por características biológicas (sexo e raça) e subordinada aos homens em todas as situações, resultado da imposição de um Estado colonial patriarcal (Oyewùmí, 2021).
A construção dicotômica e hierárquica da colonialidade no âmbito do gênero também incluía a colonização da memória e do comportamento, Lugones (2014) nesse sentido afirma que a transformação civilizatória da memória e das intersubjetividades se tornou instrumento poderoso da normatividade de gênero. Nessa configuração as mulheres colonizadas eram minorizadas, controladas e tratadas como categoria social vazia.
A CONCEPÇÃO SOBRE SER MULHER: CONTRIBUIÇÕES DECOLONIAIS PELO OLHAR DAS JOVENS EGRESSAS DA REDE BÁSICA DE ENSINO
Nos estudos feministas decoloniais, a construção sócio-histórica da mulher está relacionada à instauração do sistema colonial de gênero, ou seja, diretamente associada aos efeitos da colonização moderna capitalista e patriarcal nos territórios de Abya Yala, expressa pela colonialidade do gênero.
Diferente de considerar uma concepção homogeneizadora, alimentando uma abordagem essencialista sobre a constituição social das mulheres, esses estudos demonstram que a colonialidade de gênero cria e alimenta significações sociais hierárquicas que se configuram de maneiras específicas de acordo com os contextos culturais em que que estão imersos.
Nos territórios do denominado Sul Global, o sistema colonial de gênero instaurou uma ideologia que subalterniza homens e mulheres pela biologia sexual e racial em intersecção com a classe e a sexualidade, pois “a colonização afetou homens e mulheres de maneiras semelhantes e diferentes” (Oyewùmí, 2021, p.228). Contudo, a ideologia biológica de gênero eurocêntrica diferenciou os corpos masculinos e femininos creditando a homens e mulheres colonizados significantes sociais diferentes. Na perspectiva dos feminismos decoloniais considera-se que os nativos colonizados também sofreram processos de exploração, violência e receberam status social de minorização, mas as nativas colonizadas perderam total prestígio, poder político e tornaram-se seres invisíveis.
Com isso criou-se o significativo das mulheres de cor, subalternizadas pelos colonizadores, pelos colonizados e também pelas mulheres europeias. Assim, no sistema colonial de gênero as mulheres de Abya Yala passam a ser significadas socialmente pela objetificação do corpo, pela destituição do poder político e aprisionamento no espaço doméstico.
Para efetivarmos um giro decolonial, de superação da colonialidade de gênero, em especial sua atuação sobre as mulheres de cor, é necessário identificar suas formas de atuação, bem como questioná-las. Oliveira (2020) menciona que são as indagações lançadas sobre a história que nos permitem compreender as conjunturas que levam ao processo de subalternização “impondo certos padrões e retirando seu direitos de ser e de se desenvolver autônoma e plenamente enquanto pessoa” (Oliveira, 2020, p. 19).
Não universal e não homogênea, as configurações do sistema colonial de gênero se efetivam em miscelânea com as especificidades dos contextos culturais, desse modo, nos parágrafos a seguir, apresentamos as compreensões sobre o ser mulher na percepção das jovens egressas da rede básica de ensino. Contribuem com suas narrativas e vivências sociais Bárbara (2021), Natasha (2021) e Luiza (2021), suas percepções críticas são o alicerce do diálogo que propomos em relação às imposições da colonialidade de gênero considerando o lugar de significação social específica para as mulheres de cor.
Em relação ao perfil social das participantes todas se definem como mulheres e concluíram o ensino médio na mesma instituição pública de ensino. São cis3 e, como grande parte das mulheres amazônidas, possuem carcaterísticas miscigenadas. Bárbara (2021) é estudante de licenciatura em teatro numa instituição pública, se apresenta como filha de uma profissional do ambiente doméstico e em sua narrativa são constantes as menções sobre as opressões de gênero oriundas da imposição familiar religiosa cristã e sua defesa pela diversidade sexual. Natasha (2021) se define como mulher preta e destaca em sua narrativa os processos de opressão advindos pela intersecção gênero e raça. Iniciou estudos em psicologia, mas precisou parar no período pandêmico, atualmente reside na cidade de Curitiba. Luiza (2021) se apresenta como uma mulher miscigenada e que por ser socialmente estereotipada como mulher gorda, enfrentou processos específicos quanto ao gênero. Iniciou estudos na graduação em língua portuguesa e espanhola numa instituição pública, mas parou para conhecer novas áreas. Em sua narrativa se destaca os processos de resistência e questionamento quanto aos lugares impostos à sua vivência pessoal e também coletiva de gênero.
Em seu depoimento, a colaboradora Bárbara (2021) define o ser mulher como “algo muito difícil pelas opressões vividas, sempre tem cobranças demais, pesadas. Tem uma pressão muito grande com os nossos corpos e com a maneira com que a gente se comporta na sociedade”. Sua colocação traz o ser mulher expresso e atrelado a opressões sociais, com ênfase em exigências associadas ao corpo e ao comportamento. Evidencia, portanto, uma imposição social de atender a predeterminações que subalternizam o corpo e a subjetividade, e exigem esforço constante, conforme complementa:
a gente tem sempre que ser muito forte e óbvio que nós somos porque vamos ficando calejadas, aprendendo desde a infância que a gente não pode se comportar de tal jeito, que a gente não pode fazer isso e aquilo (...). Não podemos romantizar o ser mulher, o ser forte, ser guerreira e esquecer o que vem com tudo isso. São muitas cobranças, são coisas que, às vezes, a gente nem dá o direito da pessoa de cobrar da gente e a gente é cobrada por isso (Bárbara, 2021).
Nesse trecho é perceptível o incômodo com uma cobrança social que impele pela cominação de normas de gênero presentes desde a infância. Tais prescrições sociais geram, por consequência, um processo constante e sistemático de força para resistir diante das predeterminações que são colocadas. Outro aspecto que se destaca é o alerta para o estereótipo de guerreira, culturalmente associado à figura social da mulher, uma funcionalidade simbólica que oculta o gesto de opressão com o qual a mulher é demandada a conviver cotidianamente em diferentes dimensões da vida.
Sabemos que a redução e desumanização dos colonizados tinha uma pretensão de imposição classificatória que possibilitasse introduzir o regime colonial/exploratório/moderno/capitalista, bem como mantê-lo. Contudo, pelo caráter patriarcal e hegemônico, essa classificação colocou as mulheres de cor em situação de esvaziamento do ser, em prol da hegemonia masculina que era elemento base da cultura e administração colonial. Em posição de desvantagem, quanto aos homens colonizadores e colonizados, as mulheres racializadas eram tratadas como inexistentes, objetificadas pelo corpo e destituídas de poder racional.
A distinção física e o engendramento dos corpos, conforme apontado por Oyewùmí (2021), buscava organizar de modo androcêntrico e hierárquico em todas as instâncias institucionais e discursivas da modernidade ocidental. Nessa perspectiva, o discurso colonial ocidental era também uma introjeção da oposição binária entre corpo e mente, onde os corpos eram associados ao lado degradado da natureza humana e a mente ao poder.
Na configuração colonial apenas as mulheres de cor eram corporificadas, enquanto aos homens colonizados eram atribuídas capacidades pensantes, ainda que limitadas e mínimas. Essa corporificação tinha como pretensão objetificar os corpos das mulheres reduzindo-as a mero aparato sexual e reprodutivo, além de demarcá-las como seres não pensantes, portanto, destituídos de poder e conhecimento.
A invisibilidade das mulheres de cor, a supressão dos seus desejos e de suas capacidades pensantes estava inclusa no projeto patriarcal/moderno/colonial. Lugones (2017) pontua, nessa direção, que a desumanização era constitutiva do sistema colonial de gênero, onde as mulheres colonizadas eram consideradas uma categoria vazia, o que também enfatiza o anulamento social das mulheres de cor.
Na compreensão da colaboradora Luiza (2021) é perceptível apontamentos que esvaziam o ser mulher de reconhecimento social, apesar da relevância de seu trabalho. Para ela:
ser mulher é ser a base de uma casa, ser a responsável por manter a casa em equilíbrio, mas não é dada a importância que essa mulher tem. Porque mesmo que seja ela a responsável no trabalho, casa, em qualquer lugar social que essa mulher esteja, ela exerce funções nesses lugares, mas não é dado o devido valor do que ela faz. Sempre vão dizer que são os homens que fazem o importante. Na sociedade a mulher tem que ser a delicada, não pode fazer o que tem vontade porque tem que se privar dos seus desejos pra ser agradável aos outros (Luiza, 2021).
Embora inicialmente Luiza (2021) exponha uma percepção da mulher como alicerce do ambiente doméstico, sua colocação se efetua no sentido de exemplificar as responsabilidades e demandas assumidas pela mulher em diversos âmbitos sociais, contudo, submetida a invisibilidade, desvalorização. A compreensão do ser mulher para ela está relacionada a uma responsabilidade basilar, central, mas que socialmente ocupa lugar de desvalia e invisibilidade pelo poderio construído sobre a presença masculina. É, portanto, perceptível uma significação minorizada do ser mulher e de seu trabalho, em contraste com a dimensão da importância que ele ocupa na dinâmica social capitalista/moderna/global.
A imposição de um comportamento delicado e a supressão dos desejos também aparecem como significação do ser mulher na percepção de Luiza (2021), tal colocação infere reflexões sobre a invasão sexual e controle dos corpos e subjetividades das mulheres colonizadas, uma dimensão prática e simbólica correlacionada a territorialidade colonial, corpo-território, posse. O controle da subjetividade demandava a inculcação de condutas morais e sociais subalternas. Natasha (2021) define a o ser mulher atrelada a uma condição de força como elemento compulsório para a sobrevivência:
tenho a visão de que ser mulher é ter que ser forte. Não ser forte, é ter que ser, aprender a ser forte, sabe? Pra enfrentar as várias adversidades que tem na vivência de uma mulher desde o momento do nascimento até o fatídico dia da morte, porque são inúmeras lutas. Tu já nasces sendo colocada numa caixinha e por vários momentos você tenta sair de dentro dessa caixinha e as pessoas tentam te colocar de volta nela (Natasha, 2021).
Tanto na fala de Natasha (2021) como na colocação de Bárbara (2021) a força aparece como condição relacional para a efetivação do ser mulher. Distante de um significado positivo, ambas asseveram a força como uma necessidade compulsória para a sobrevivência, relacionada a um suportar, resistir.
Natasha (2021) destaca também o caráter de imposição comportamental no uso do termo caixinha, a palavra é utilizada para expressar enquadramento social, limitação, ajuste. O termo surge diretamente associado a um gesto de transgressão você tenta sair de dentro, contudo, tensionado pela ação contínua de constrição social.
A resistência à colonialidade do gênero, é colocada por Lugones (2015) como o lugar em que as comunidades afetadas pela colonialidade moderna, capitalista e patriarcal devem residir. Transgredir as imposições de gênero/raça correlacionada à classe e sexualidade é a única maneira de criar rupturas com a violência colonial e produzir novas formar de existência. Nesse sentido destacamos, também, a sistemática menção a vetores de oposição à violência colonial presente na compreensão do ser mulher significado pelas participantes Bárbara (2021), Luiza (2021) e Natasha (2021), jovens egressas da educação básica.
As colocações das entrevistadas nos permitem visualizar dimensões de opressão e violência que se relacionam à imposição de gênero criada pela história colonial, que perdura na atualidade pela colonialidade. Contudo, seus dizeres também sinalizam o ser mulher imbuído de uma força, luta, resistência que expressa um estado de resistência e não subserviência, ou seja, um existir em ruptura com a colonialidade de gênero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na compreensão decolonial o sistema gênero socialmente não se efetiva sozinho, mas em coadunação com outras hierarquizações sociais como a raça, a sexualidade e a classe. Seu desenvolvimento e continuidade na história dos territórios de Abya Yala está diretamente envolvido com a intrusão colonial, violenta, moderna, capitalista, patriarcal, que atua por meio da promoção de subalternidades e segue operando pela colonialidade.
As concepções críticas e situadas das participantes da pesquisa, sobre o ser mulher, possibilitaram uma análise relacional do caráter opressivo e violento incluso na construção colonial de gênero, que delineia prescrições sociais específicas para as mulheres de cor, habitantes dos territórios de Abya Yala. Suas contribuições nos permitiram traçar paralelos com a colonialidade do gênero, definida por Lugones (2014) como dicotomia hierárquica categorial que se efetiva sobre as sociedades do denominado Sul Global por meio da violência e opressão.
O ser mulher na compreensão das jovens egressas da rede básica de ensino expressa um lugar social de subalternidade, permeado de cobranças e difícil de habitar. Nesse sentido, identificar-se como mulher implica socialmente uma posição de luta e força para suportar as imposições, supressões e invisibilidades promovidas compulsoriamente pelo gênero.
Se destacam também as significações das colaboradoras sobre o ser mulher estar relacionado a um trabalho potencial, de basilar importância na dinâmica social, contudo não considerado como tal em detrimento da superioridade masculina. Nesse sentido, articula o pensamento feminista decolonial expresso por Oyewùmí (2021) de que as mulheres de cor são uma invenção social, criada em oposição aos homens colonizados e colonizadores, invisível, corporificada, destituída de razão e conhecimento.
A decolonialidade, como campo teórico, tem sido desestabilizada pelos feminismos decoloniais que buscam revisitar os principais aportes da teoria construída por uma predominância do pensamento científico masculino. Como resultado temos a ampliação dos estudos decoloniais e dos feminismos do Sul que promovem novas lentes de compreensão das realidades situadas.
Neste estudo buscamos as contribuições da juventude sobre a significação social da mulher para que, enquanto habitantes desse lugar, possam compartilhar suas compreensões críticas, legitimadas pelas suas vivências e possibilitar uma análise dos aportes teóricos dos feminismos decoloniais.
Assim, a partir das percepções expressas pelos saberes das jovens egressas da rede básica de ensino, foi possível traçar paralelos culturais e sociais sobre o ser mulher que se vinculam às heranças do sistema colonial de gênero. Contudo, também localizamos caminhos de resistência e superação das opressões que se impõem pela violência da colonialidade, dinâmicas necessárias para a ruptura colonial em todos os âmbitos da vida.
REFERÊNCIAS
Ballestrin, L. M. de A. (2017). América Latina e o giro deocolonial. Estudos Feministas 25(3), 1035–1054, set-dez. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n3p1035
Curiel, O. (2020). Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In: Hollanda, E. B. de (org.). Pensamento feminista hoje: sexualidades no sul global. 1. ed. – Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-das-mulheres/obras_digitalizadas/heloisa-buarque-de-hollanda-pensamento-feminista-hoje_-sexualidades-no-sul-global-bazar-do-tempo-20.pdf
Lima, A. (2019). Educação para mulheres na América Latina: um olhar decolonial sobre o pensamento de Nísia Floresta e Soledad Acosta de Samper. Curitiba: Appris.
Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, 22(3), 935-952, set-dez. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755/28577
Lugones, M. (2019). Colonialidade e Gênero. In: Pensamento Feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de janeiro: Bazar do Tempo.
Martins, R. &Tourinho, I. 2017. (Des) arquivar narrativas para construir histórias de vida ouvindo o chão da experiência. In: Martins, R; Tourinho, I.; Souza, E. (2017) (org). Pesquisa Narrativa: Interfaces entre histórias de vida, arte e educação. Santana Maria, UFSM.
Minayo, M. C. de S. (org.) (2010). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 29 ed. Petrópolis: Vozes.
Miñoso, Y. (2019). Fazendo uma genealogia da experiência: o método rumo a uma crítica da colonialidade da razão feminista a partir da experiência histórica na América Latina. In: Hollanda, E. B. de. Pensamento Feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de janeiro: Bazar do Tempo.
Mogrovejo, N. (2020). O queer, as mulheres e as lésbicas na academia e no ativismo de Abya Yala. In: Hollanda, E. B. de (org.). Pensamento feminista hoje: sexualidades no sul global. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-das-mulheres/obras_digitalizadas/heloisa-buarque-de-hollanda-pensamento-feminista-hoje_-sexualidades-no-sul-global-bazar-do-tempo-_20.pdf
Muylaert, C., et al. (2014). Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP. São Paulo, 48(2), 193-199. https://doi.org/10.1590/s0080-623420140000800027
Oliveria, A. (2020). Ser mulher e filósofa: narrativas de superação da supremacia masculina na filosofia. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Amapá, Macapá. Disponível em: https://www2.unifap.br/ppged/files/2021/04/dissertaçao-de-mestrado-_ana-karem-_versão-final.pdf
Oyewùmí, O. (2021). A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do tempo.
Quijano, A. (2010). Colonialidade do poder e classificação social. In: Santos, B. de S.; Menezes, M. P. (Org). Epistemologias do Sul. Coimbra: Cortez.
Santos, A. (2020). Tudo aquilo que sou perpassa a minha existência enquanto mulher e lésbica: narrativas de professoras lésbicas das instituições de ensino superior do Amapá. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Amapá, Macapá. Disponível em: https://www2.unifap.br/ppged/files/2020/10/dissertaçao_andressa-costa-dos-santos.pdf
Segato, R. (2016a). Las estruturas elementares de la violência: ensayos sobre género entre la antropologia, el psicoanálisis y los derechos humanos. Cidade Autônoma de Buenos Aires: Prometo Libros.
Segato, R. (2016b). La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Sueños.
Suaréz, D. (2017). Pesquisa Narrativa, outras formas de conhecer. In: Martins, R.; Tourinho, I.; Souza, E. (org). Pesquisa Narrativa: Interfaces entre histórias de vida, arte e educação. Santana Maria: UFSM.
Walsh, C. (2017). Pedagogias Decoloniais: práticas Insurgentes de resistir, (re)sistir y (re)viver. Quito: Catherine Walsh, editora.
Notas
Notas de autor
Información adicional
Como citar: Souza, A. P., & Custódio, E. S. (2022). Gender and decoloniality: perceptions about being a woman in the narrative of young graduates from the basic education network of Santana-AP. Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e17369. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17369
Contribuições dos Autores: Souza, A. P.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Custódio, E. S.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
Aprovação Ética: Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal do Amapá. CAAE: 52053021.1.0000.0003.