Resumo: Esse estudo teve como objetivo compreender as concepções de ludicidade, de professoras da Educação Básica, e se essas reverberam na sua prática pedagógica. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, realizada em Amargosa-Bahia, tendo como participantes quatro professoras da rede municipal de ensino do Ensino Fundamental dos Anos Iniciais. Para produção dos dados, optou-se por entrevistas semiestruturadas, realizadas individualmente, utilizando o Google meet, no ano de 2020. Assim, ficou evidenciado que as concepções de ludicidade predominante na fala das professoras são aquelas voltada aos jogos, brincadeiras e artefatos lúdicos (livros, fantasias, fantoches), possuindo o caráter de utilidade. Embora as professoras utilizem elementos diversificados como jogos, brincadeiras e outros artefatos, os mesmos se configuram muito como recursos pedagógicos e instrucionais para ensinar os conteúdos.
Palavras-chave: Docência, Estado lúdico, Narrativas, Reflexões.
Abstract: This study aimed to understand the conceptions of playfulness of Basic Education teachers, and if these reverberate in their pedagogical practice. It was a qualitative research, carried out in Amargosa-Bahia, with four teachers from the municipal teaching network of the Elementary School of the Initial Years as participants. For the production of data, semi-structured interviews were chosen, carried out individually, using Google meet, in the year 2020. Thus, it was evident that the predominant conceptions of playfulness in the teachers' speech are those focused on games, games and playful artifacts (books, fantasies, puppets), having the character of utility. Although the teachers use diversified elements such as games, games and other artifacts, they are very much configured as pedagogical and instructional resources to teach content.
Keywords: Narratives, Playful state, Reflections, Teaching.
Resumen: Este estudio tuvo como objetivo comprender las concepciones de ludicidad de profesores de Educación Básica, y si estos repercuten en su práctica pedagógica. Fue una investigación cualitativa, realizada en Amargosa-Bahia, con la participación de cuatro docentes de la red municipal de enseñanza de la Escuela Primaria de los Años Iniciales. Para la producción de datos se optó por entrevistas semiestructuradas, realizadas de forma individual, utilizando Google meet, en el año 2020. Así, se evidenció que las concepciones de ludicidad predominantes en el discurso de los docentes son aquellas enfocadas a juegos, juegos y artefactos lúdicos (libros, fantasías, títeres), que tienen el carácter de utilidad. Mismo las docentes utilizando elementos diversificados como juegos, juegos y otros artefactos, estos se configuran mucho como recursos pedagógicos e instruccionales para enseñar contenidos.
Palabras clave: Docencia, Estado lúdico, Narrativas, Reflexiones.
Publicação Contínua
Concepções de ludicidade: o que as professoras apresentam sobre o tema?
Conceptions of playfulness: what do teachers present about the theme?
Concepciones de ludicidad: ¿qué las docentes presentan sobre lo tema?
Recepción: 28 Febrero 2022
Aprobación: 12 Mayo 2022
Publicación: 18 Junio 2022
As concepções que os indivíduos apresentam revelam muito sobre a sua atuação como sujeito social, relacional e profissional, auxiliando na compreensão de quem são, o que pensam e por fim, as suas ações diárias. Assim, entender quais concepções permeiam a prática dos professores é relevante para propor mudanças, diálogos, formações e pensar numa educação de qualidade para professores e alunos, construindo uma relação mutua de sentidos e significados.
Este artigo apresenta reflexões sobre as concepções de ludicidade, por docente da Educação Básica, sendo estabelecido um diálogo teórico com autores como: Lopes (2004, 2014, 2016); Luckesi (2002, 2014); Kishimoto (2001, 2017), Ferreira (2015; 2020a); Veiga (1989), entre outros. O texto é um recorte da pesquisa de mestrado realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica, Inclusão e Diversidade–PPGECID da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Os diálogos e as narrativas apresentados e analisados são oriundos de uma das categorias revelada durante a análise dos dados. Por fim, o artigo teve como objetivo compreender as concepções de ludicidade, de professorasda Educação Básica, e se essas reverberam na sua prática pedagógica.
A presente pesquisa está pautada numa abordagem qualitativa, no contexto da escola, mais especificamente, nos processos de construção da docência. Para Minayo (2001), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados e motivos, correspondendo a relações mais profundas, onde os processos e os fenômenos não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. Quanto à natureza qualitativa para a produção dos dados, tomamos como base a fenomenologia, que visa ir à essência do fenômeno, procurando elaborar respostas significativas. Mediante aos objetivos, esta pesquisa se caracterizou como sendo exploratória, pois conforme Gil (2008), ela tem como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, que visa aperfeiçoar hipóteses, validar instrumentos e proporcionar familiaridade com o campo de estudo.
Compreendemos que a pesquisa descrita abordou a subjetividade das participantes, buscando analisar o papel da prática docente sobre a constituição da ludicidade como objeto desencadeador de práticas em sala de aula. Para a produção dos dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada, buscando estabelecer um momento de narração da vida das participantes, objetivando o entendimento de quem são os sujeitos da pesquisa e de que forma a sua história e trajetória de vida interfere na sua atuação em sala de aula. As entrevistas aconteceram no Google meet em dia e horário escolhidos pelas professoras. Partimos de perguntas previamente elaboradas no intuito de investigar e aprofundar os dados para responder os objetivos da pesquisa. A pesquisa contou com a participação de quatro professoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e foi realizada no município de Amargosa-Bahia. Ressaltamos que esta pesquisa está vinculada ao projeto “Concepções de ludicidade na formação inicial em Pedagogia: a perspectiva formativa em duas Instituições de Ensino Superior”. Cadastrado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o número CAAE: 09197519.1.0000.0056.
Por fim, para a análise dos dados foi utilizada como técnica de tratamento dos dados a Análise de Conteúdo, que segundo Bardin (2011, p. 31) “é um conjunto de técnicas de análise das comunicações”. Para isso, a intenção da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção), inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não).
Os sujeitos vão se constituindo entre os saberes e os fazeres que demandam deles uma relação com o conhecimento, seja ele científico, popular, acadêmico ou aquele vivenciado entre o homem e o ambiente. Os saberes são construídos a partir das vivências e experiências dos indivíduos com o mundo. Ele pode ser o resultado das produções intelectuais que se constrói através da inserção dos sujeitos nas instituições de educação, desde a primeira infância, se estendendo por toda a sua vida. No entanto, o saber não é só uma construção sistematizada, ele também pode advir de uma prática do homem com as tradições, a cultura, a arte, as crenças e os valores concebidos ao longo da vida.
Os fazeres, por sua vez, é a efetivação dos saberes, ou seja, é colocar em prática aquilo que é aprendido e apreendido ao longo da vida dos sujeitos. Sendo assim, ao logo deste escrito será estabelecido um diálogo entre a ludicidade e as dimensões destes saberes e fazeres para constituição humana. De que maneira os sujeitos podem se expressar em um contexto social que privilegia a racionalidade, a divisão cartesiana do indivíduo e o conhecimento veloz, fluído e dinâmico? Durante a infância inicia-se o processo de socialização e iteração com a cultura.
Parafraseando Manoel de Barros, nosso quintal é maior que o mundo, pois nele cabem todas as coisas, as brincadeiras, os brinquedos e os jogos com certeza fazem parte deste imenso quintal. Quantas vivências lúdicas construímos ou vivenciamos neste período? Seria quase impossível lembrarmo-nos de todas, mas, com certeza, as mais significativas estão guardadas em nossa memória afetiva. Durante todas as fases da vida, a ludicidade se faz presente. Na infância, ela pode ser manifestada através das brincadeiras, dos jogos ou dos brinquedos. Na fase adulta as vivências lúdicas passam a configurar-se a partir de outras ações, através das artes, das trocas sociais e culturais, da comunidade, do trabalho, do lazer, das brincadeiras, dos jogos, entre outros. Ocorrem mudanças nas ações sobre como a ludicidade se apresenta em cada etapa da fase humana, mas ela nunca deixa de existir, isso é, se o sujeito permitir sua manifestação, através de condições sociais e interação com os elementos culturais.
Desta maneira, a ludicidade é entendida como algo singular, não sendo uma ação igual a todos os sujeitos, mas advindo, das vivências e experiências dos indivíduos consigo mesmo, com o mundo e com outros. Conforme Luckesi (2014), a ludicidade possibilita o estado de ludicidade de maneira singular, cada sujeito a vivencia da sua maneira. Segundo Lopes (2014, p. 26), “a ludicidade, enquanto fenômeno da condição de ser do Humano, está presente em cada pessoa e em qualquer cultura. Manifesta-se diversamente e os seus efeitos são potencializadores de intercompreensão”. Neste contexto, a ludicidade se aproxima do saber sensível, aquele ao qual o corpo é o instrumento da sua efetivação.
Para Duarte Júnior (2000), o saber sensível diz respeito à sabedoria exercida pelo corpo, se manifestando em situações variadas em um contexto social. O saber reside em uma confluência entre o corpo e a mente. Duarte Júnior (2000, p. 133), “referencia também o parentesco consanguíneo do saber com o sabor: saber implica em saborear elementos do mundo e incorporá-los a nós (ou seja, trazê-los ao corpo, para que dele passem a fazer parte)”. Sendo assim, o lúdico amplia o repertório dos indivíduos em vivenciar o meio ambiente que está inserido. Através das artes, das brincadeiras, dos jogos, do lazer e recreação, das criações e das relações culturais, o homem segue vivendo um estado de plenitude subjetiva de bem-estar.
A brincadeira é uma ação que eleva os indivíduos a uma imersão na cultura que fazem parte. Na música O Maluquinho, Milton Nascimento traz a brincadeira bente-altas que faz parte da cultura do Estado de Minas Gerais, existe em outras regiões do país, mas com outras variações. “Vida de moleque é vida boa. Vida de menino é maluquinha. É bente-altas, rouba bandeira. Tudo que é bom é brincadeira1 [...]” (Nascimento, 1996). No município de Brejões, localizado no Vale do Jiquiriçá-Bahia, existe uma brincadeira popular chamada cuscuz2, também característica dessa região. As duas brincadeiras citadas trazem a percepção de que a brincadeira é produzida e experienciada mediante a cultura onde o sujeito transita, incorporando elementos tradicionais, a linguagem e as relações que são estabelecidas.
Logo, a partir do brincar o sujeito estabelece relações sociais e incorpora elementos da comunicação, linguagem, símbolos e cultura. Este brincar é livre, sem a mediação do adulto, onde as crianças constroem suas regras, ao mesmo passo que interage com a cultura. Aqui tomamos como base explicativa para o brincar livre ou brincar social espontâneo (BSE) de Lopes (2016, p. 11), pois “no brincar social espontâneo alegrias e tristezas, concordâncias e discordâncias, tudo faz parte do processo de coparticipação e co-criação das regras que regulam a interação”. A liberdade nas decisões e nas relações construídas não segue um padrão, uma ordem, simplesmente vão acontecendo durante a brincadeira, onde são os brincantes responsáveis pela sua construção. Ainda para autora,
A regra pré-existente no BSE é de sentido ético e traduz-se num compromisso regido por dois princípios que cada uma das pessoas que pretende brincar, explicita ou implicitamente afirma: assim eu me vejo, assim eu quero que tu me vejas. É com este pacto inicial que os potenciais brincantes estabelecem a definição da situação a partir da qual se desenvolve a brincadeira. A confiança mútua, a reciprocidade na entrega fica desenhada. Não importa ganhar, nem perder, o importante é brincar, é estar junto, na alegria, na tristeza e nas contrariedades compartilhadas vivenciadas no fluxo criativo dos brincantes que, apesar de contrariados, decidem continuar a brincar juntos e a construir realidades que descobrem e ensaiam nos seus mundos de vida (Lopes, 2016, pp. 11-12).
Assim, o brincar livre ou brincar social espontâneo possui na sua trajetória a ludicidade. As relações estabelecidas no momento da brincadeira promovem uma (re) construção de saberes sociais, relacionais, afetivos, emotivos e cognitivos. Sem propósitos construídos a longo prazo, o brincar é algo presente, onde os sujeitos que o vivenciam estabelecem conexões com a realidade que se apresenta. Conforme argumenta Lopes (2016, p. 12):
A autenticidade da experivivência do brincar social espontâneo, a potencialidade da descoberta da condição de Ser humano, a possibilidade de as manifestar, concretizar em ação, atitude e aquisição de competências, dar sentido à comunicação, ludicidade, cidadania e literacia3 que nos humaniza.
A brincadeira cadencia o indivíduo a um processo de relações que não espera vitórias, acertos ou erros. O brincar parte de uma ação concreta para um movimento simbólico, aos quais os sujeitos estão em constantes trocas verbais, corporais, cognitivas e sociais. A ação da brincadeira traz a todo o momento uma seriedade e um compromisso para quem a executa.
Conforme Kishimoto (2017) a brincadeira tradicional infantil é filiada ao folclore, sendo uma expressão popular e marcada pela oralidade. A mesma guarda a produção espiritual de um povo e de um determinado período histórico, sofrendo mutações e influências. Ainda para autora, “por ser elemento folclórico as brincadeiras tradicionais assumem características de anonimato, tradicionalidade, transmissão oral, conservação, mudança e universalidade” (Kishimoto, 2017, p. 38). As brincadeiras tradicionais vão sendo incorporadas através da relação que as crianças estabelecem com a cultura, sendo recriada e reinventada ao longo dos tempos.
Para Kishimoto (2017, p. 38-39), “enquanto manifestação livre e espontânea da cultura popular, a brincadeira tradicional tem a função de perpetuar a cultura infantil, desenvolver formas de convivência social e permitir o prazer de brincar”. Acreditamos que a brincadeira tem extrema importância na constituição humana. Sendo sinônimo da fase infantil, ela é responsável em promover a interação das crianças na cultura e na sociedade, assim como intermediar o mundo para os sujeitos. Quando a autora cita, perpetuar a cultura infantil, acreditamos que por toda a existência humana, independente dos tempos, dos espaços ou das diferenças culturais, brincar será sempre a representação da infância. O jogo adotado aqui nesta discussão é apresentado como um potencializador dos saberes. Concebido como uma atividade cultural, o jogo está inserido desde a tenra idade. Segundo Huizinga (2001), a ludicidade se expressa através do jogo que “é mais que um fenômeno fisiológico, ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido” (Huizinga, 2001, p. 05). Neste aspecto o jogo adquire uma função de integralidade do ser, é o significado do estar e fazer humano. Não é uma ação pensada e formalizada, ocorre mediante a atuação dos indivíduos na cultura. O jogo é a vinculação de homens e mulheres com a própria forma de viver, se relacionar e interagir, seja no divertimento, ou na seriedade, ele pode ser percebido como o elemento lúdico que direciona os sujeitos em sociedade. Brougère (1998) toma o jogo como uma atividade cultural considerando a presença de uma cultura na definição do que seria jogo. Ainda para ele, o jogo antes de ser uma criação cultural, seria um produto da cultura. Para Brougère (1998, p. 107), “consequentemente o primeiro efeito do jogo não é entrar na cultura de uma forma geral, mas aprender essa cultura particular que é a do jogo”. Quando jogamos, aprendemos antes a entender o jogo e suas regras, isso acontece de maneira ensinada pelos pares, supondo uma relação interativa, pois como sugere Brougère (1998), é preciso aprender sobre os números, antes de jogar com eles.
Desta forma, podemos inferir que jogar exige uma aprendizagem dos elementos que permeiam a ação de jogar, ou seja, se faz necessário antes aprender e imergir nesta cultura lúdica. Conforme Brougère (1998, p. 107) “a ideia que gostaríamos de propor e tratar a título de hipótese é a existência de uma cultura lúdica, conjunto de regras e significações próprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu jogo”. O jogo acontece como componente enriquecedor da cultura, fazendo parte dela, sendo um dos componentes da cultura lúdica, concedendo subsídios para que os sujeitos percebam e interpretem como jogo o que lhe é apresentado pela cultura. É perceptível que uma criança consegue fazer a distinção do que é brincadeira e não brincadeira, do que é jogo e não jogo, ela traz um repertório e referências que são aprendidas no seu cotidiano e na sua imersão durante a ação do brincar. Para Brougère (1998, p. 108):
A cultura lúdica é, então, composta de um certo número de esquemas que permitem iniciar a brincadeira, já que se trata de produzir uma realidade diferente daquela da vida quotidiana: os verbos no imperfeito, as quadrinhas, os gestos estereotipados do início das brincadeiras compõem assim aquele vocabulário cuja aquisição é indispensável ao jogo.
Ao abordar a cultura lúdica, tem-se uma amplificação do que se pensa como jogos, ação composta em cima de regras, amplia-se para uma contextualização como brincadeiras simbólicas e de ficção. Ainda para o autor, “a cultura lúdica não é um bloco monolítico, mas um conjunto vivo, diversificado conforme os indivíduos e os grupos, em função dos hábitos lúdicos, das condições climáticas ou espaciais” (1998, p. 108). O repertório adotado na cultura lúdica diz da imersão dos sujeitos aos espaços, ambientes, grupos sociais e culturais, a qual ele está inserido. A faixa etária de cada indivíduo vai potencializando tanto a construção, quanto o aprimoramento desta cultura lúdica.
Sendo assim, todas as vivências e experiências pautadas nessa cultura lúdica discutida, vai potencializando a construção de saberes que se aprimoram ao longo da vida. As exigências do mundo contemporâneo, científico, global e tecnológico vão exigindo muito mais dos homens e das mulheres criatividade, proatividade, interpretação de mundo imaginação para a resolução de problemas. É a partir das relações lúdicas4 que os indivíduos vão se conectando com o mundo social e na fase adulta já está criado e consolidado um repertório que é armazenado na memória, nas emoções e na cognição, sendo acessado todas as vezes que for preciso.
Será que dentro da gente também somos flor e borboleta? Será que podemos voar montados nas palavras, nas linhas onde se escreve um bordado? Até onde um fio que se desdobra em outro pode nos levar? (Murray, 2020, p. 27).
As perguntas e as respostas circundam a nossa trajetória de vida. Em algumas fases mais, outras menos, mas vamos sempre nessa busca. Nossas falas diárias e opiniões quase sempre vão se tornando naturais, e quase nunca temos consciência disso ou paramos para pensar, assim, seguimos nos expressando e bordando as nossas concepções e crenças sobre o mundo.
A discussão que faremos ao longo dessa categoria é sobre as concepções e as crenças das professoras sobre a ludicidade, pois compreendemos que saber sobre o que os professores pensam sobre determinado assunto é um passo importante para investigar e propor mudanças. Para tanto, tomaremos como base os estudos de Thompson (1992, p. 09), onde ela traz que as “concepções dos professores são vistas como uma estrutura mental mais geral e as crenças fechadas, significados, conceitos, proposições, regras, imagens mentais, preferências e gosto”. Entendemos que as concepções seguem a partir de uma abordagem inicial, relativo ao conhecimento ou as informações e as crenças são aquilo que acreditamos. Assim, a partir das narrativas docentes, iremos analisar quais as concepções abordadas sobre a ludicidade.
Comumente quando pensamos na ludicidade ou no lúdico, nos remetemos à concepção de alegria, cores, felicidade, folia, festas, brincadeiras, brinquedos, jogos e prazer. No entanto, a ludicidade que aqui tomamos como base teórica vai para além de tudo isso. Adquire uma dimensão muito mais complexa que atrai um movimento interno, atingindo o ser na sua expressão subjetiva.
A ludicidade não é uma forma pronta e acabada que se expressa aos olhos e ao contexto social. Luckesi (2014, p. 04) aborda que “[...] não existem atividades que, por si, sejam lúdicas. Existem atividades. Ponto. Elas serão qualificadas como lúdicas (ou não) a depender do sujeito que a vivencia e da circunstância onde isso ocorre”. Entendemos então, que a ludicidade tem relação com o individual, exigindo de quem a concebe envolvimento. Refere-se também a uma relação social, cultural, emocional e psicológica, ou seja, um indivíduo para absorver uma atividade como lúdica necessita estar livre de qualquer ressalva ou reserva. A ludicidade tem relação com a plenitude e inteireza (Luckesi, 2014). O fio que conecta o indivíduo e o momento lúdico precisa estar na mais completa sintonia.
A ludicidade é um termo polissémico (Leal & D’Ávila, 2013), assumindo diversas definições e entendimentos. Mas de qual ludicidade o professor fala? Qual seria a concepção ou concepções trazidas por eles sobre o conceito de ludicidade? Cabe a nós, nesta pesquisa entendermos essas concepções e relacioná-las a constituição dessas professoras como docentes. As professoras trouxeram suas concepções como poderemos verificar abaixo:
Penso que é o conjunto de todas as atividades que são desenvolvidas não só na sala de aula, atividades que são desenvolvidas de forma que envolva jogos, brincadeiras, fantasia, a imaginação, a fim de possibilitar o ensino de forma mais prazerosa, mais atrativa, que venha chamar mais a atenção da criança, sem perder de vista o foco do conteúdo (Cecília).
Eu vejo assim, o lúdico faz com que as crianças aprendam mais, aprendendo brincando. Quando eu pesquiso jogos, eu levo, eu crio e eu vejo a empolgação deles, eu vejo desejo cada vez mais quando produzo algo mais interessante para que eles possam aprender. Eles aprendem com mais facilidade, porque a gente sabe, já é difícil, né? A realidade deles já é muito difícil. Imagine se chegar na sala de aula e encontrar só o decoreba, só a questão de quadro e piloto, só tarefa, tarefa, tarefa [...] aí eu tô falando, e olhe, o despertar tem que ser com o lúdico, com uma dramatização. Sempre dia de sexta-feira gosto de contar história, dia de sexta-feira é dia de história na minha sala. Aí eu me caracterizo, eu faço a contação, eu faço drama e aquela coisa toda. Então eu envolvo a coordenação, os funcionários, envolvo os próprios alunos para serem personagens. Durante a semana eu trabalhei com a história de Chapeuzinho Vermelho, na sexta-feira eu dramatizo essa historinha com eles. Eles saem sempre com mimosinho. As meninas saem com um gorrinho e os meninos com a máscara do Lobo (Cora).
A concepção que as professoras mostram ter a respeito da ludicidade está associada às brincadeiras e aos jogos voltados ao processo de ensino. Isso porque, historicamente, a formação de professores para Educação Infantil e Anos iniciais do Ensino Fundamental esteve (ainda está) muito ligada a essa concepção já consolidada na literatura como a que possibilita o desenvolvimento de práticas nesses níveis de ensino. Kishimoto (2001), expõe uma relação histórica do jogo com a educação, onde o mesmo adquire três funções: (1) recreação; (2) jogo para o ensino dos conteúdos escolares e (3) o jogo para o diagnóstico da personalidade infantil. Ainda para autora, durante o Renascimento, a brincadeira era vista como uma conduta livre que favorecia o desenvolvimento da inteligência e facilitava o estudo. Para contrapor uma educação verbalista, a recomendação era que os pedagogos utilizassem a forma lúdica para ministrar os conteúdos nas escolas.
Ainda para Kishimoto (2001), Claparède (1956), concebe que o jogo infantil é um método natural de educação e instrumento do desenvolvimento. Na teoria Piagetiana a brincadeira é entendida como “ação assimiladora, que enquanto processo assimilativo, participa do conteúdo da inteligência, à semelhança da aprendizagem” (Kishimoto, 2001, p. 32). A autora ainda remete que Vygotsky, concebe que a brincadeira é construída como resultado de processos sociais. Desta forma, percebemos que a formação dos educadores ainda se apega a essa concepção utilitarista dos jogos e brincadeiras de maneira didatizada, sendo instrumento pedagógico para ministrar os conteúdos escolares.
Cecília expõe a ludicidade como algo que se estrutura em um fim em si mesmo, reforçando a utilização dos jogos e das brincadeiras como instrumentos para ministrar conteúdos, pois segundo ela, seria o foco principal. Podemos perceber que através da narrativa da docente, a ludicidade se apresenta a serviço da aprendizagem externa, objetiva e pedagógica.
Durante a sua narrativa, Cora atribui a ludicidade a função de promover a aprendizagem. Entendemos que aprender é um processo complexo de aquisição do conhecimento que ocorre durante toda a trajetória humana. A aprendizagem não se restringe aos conteúdos escolares, mas sim, as relações que os indivíduos estabelecem com o seu entorno, envolvendo os objetos, as coisas, os pares, as trocas, os saberes e os fazeres.
Enfim, a aprendizagem acontece através da interlocução humana com o mundo, se tornando uma relação mediada. De acordo com Ferreira (2020a, p. 418), “a ludicidade é passível de observação, de descrição, de explicação, de descobertas, portanto, no seu processo de ser ludicidade também é possível produzir conhecimentos a partir dos elementos internos e externos manifestados, das experiências”. Assim, entendemos que a ludicidade não possui uma condição, uma espera de resultado, pois a ênfase está no seu processo, não no seu produto final. Diante disso, percebemos que as atividades relatadas pelas professoras são atividades diversificadas e que se diferenciado formato tradicional.
Para Luckesi (2002, p. 02), “brincar, jogar, agir ludicamente, exige uma entrega total do ser humano, corpo e mente, ao mesmo tempo”. Assim, durante os momentos narrados pelas docentes e que as mesmas atribuem como lúdico, não tem como precisar ou mensurar se as atividades promovidas por elas realmente foram lúdicas, porque a resposta para esta questão é individual e dada pelos sujeitos envolvidos nas atividades. Sabemos que para promover a aprendizagem, fatores internos e externos devem estar envolvidos, tais como: motivação, interesse, bem-estar, afetividade, emoções.
Acreditamos que os jogos e as brincadeiras podem ser grandes aliados no processo de ensino e aprendizagem (Canda et al., 2010; Lima et al., 2012; Canda et al., 2018; Gomes, 2020; Porto & Pinto, 2021; Cardoso et al., 2021; D’Ávila & Cassimiro, 2021). Conforme a narrativa de Cora, a ludicidade toma proporção redutiva ao ensino e a aprendizagem, precisando do artefato lúdico para sua expressão. Ela segue trazendo a materialização da ludicidade através do encerramento das atividades semanais, onde apresenta uma contação de história e, ao final, oferta aos alunos um artefato lúdico representante da história. Desse modo, Cora confirma uma concepção de ludicidade ligada às brincadeiras e aos jogos e que se torna difícil sua aplicação em sala de aula por demandar de material e tempo para sua preparação, mas que ao concretizar esse tipo de planejamento, chamado por ela de lúdico, acaba sendo compensador porque os alunos demonstram gostar.
Diante de tais aspectos nos questionamos: A ludicidade pode ser ensinada? Pedagogizada? Pode assumir um caráter de ordem apenas da cognição? Acreditamos que não. Quando compreendemos a ludicidade como algo interno do sujeito, partimos do pressuposto que o lúdico precisa ser vivenciado, apreciado e sentido pelos indivíduos.
Diante disso, as concepções que nos acompanham têm um enorme valor na correspondência da nossa atuação profissional. É através delas que nos colocamos como atores do mundo, trazendo nossos posicionamentos e ideais para o nosso contexto seja pessoal ou profissional. Isto porque Rios (2010) aponta que não somos neutros e ao ensinar remetemos as nossas aprendizagens, mas também as nossas crenças e as ideologias que nos formam. Desse modo, as crenças assumem o valor de compreensão do mundo. Para Soares & Porto (2017, p. 20) “[...] as crenças interferem na consecução da realidade, educacional, porque é a partir destas que os professores julgam, decidem, enfim, vivem a sua práxis pedagógica”. Como sujeitos no mundo, estamos imersos em ideias, opiniões e convicções que vamos adquirindo mediante as relações estabelecidas na sociedade, na cultura e nas comunidades que estamos inseridos. Entendemos que como seres sociais essas concepções são mutáveis e adquirem novas conotações, isso pode ocorrer mediante aos processos formativos enquanto sujeitos e também profissionais, assim como, através das nossas vivências e experiências, como podemos verificar abaixo:
Eu acho que essa concepção que eu tenho de ludicidade veio desde a infância. Porque quando eu brincava de comidinha, eu já fazia isso, eu sentia prazer, e quando a gente sente prazer no que faz, a gente fica feliz (Cora).
Mas é claro que as leituras, essa experiência né? A pedagogia, a Pós, nos ajuda. Mas acho que vem ascender mais e compreender da importância da ludicidade eu acho que é na prática (Cecília).
Aprendi através das leituras e principalmente das vivências. A professora Eva e a professora Zezé5 eram professoras muito empenhadas em trabalhar com a gente, as coisas diferentes, incentivavam também. No nosso período de estágio apareciam por lá para ver se estava acontecendo tudo direitinho e dava muito apoio, incentivava a gente a fazer os jogos, ou melhor, era obrigatório (Clarice).
É um pouco de cada coisa, posso definir desse jeito? Porque se falava muito, se discute muito, se lê muito, mas nunca teve um enfoque tão grande, tão grande como agora. Eu percebo que ganhou uma dimensão maior. Eu não sei se da forma correta, eu não posso julgar isso. E aí é uma questão que a gente tem muito grande, que se aprende brincando, que não é o brincar pelo brincar, tem o brincar por prazer, que pode ser um brincar também para aprender, mas eu vou pensar na criança para lhe dar essa resposta (Marina).
Através das narrativas apresentadas pelas professoras, podemos entender que há uma vinculação entre aspectos da vida e as concepções de ludicidade apresentadas por elas. Mediante a fala de Cora, fica explícito a relação da sua concepção da ludicidade com a infância e o prazer sentido através das brincadeiras. As memórias do que nós somos nos fazem sujeitos sociais que opinam, que constrói conhecimento e que se relaciona com o mundo ao seu redor. Nessa compreensão, Soares & Porto (2017) apresentam que as crenças trazidas pelos professores não se restringem a teoria, ao racional e objetivo, mas se configuram a partir da afetividade, do lado intuitivo, da história pessoal e profissional de cada um. Esse movimento se constitui um processo de elaboração identitária do professor.
Assim, Cecília fala dessa concepção mais vinculada a prática de atuação profissional e que as compressões da importância disso, está no cerne da experiência e na busca por mais conhecimento. Clarice remete as suas vivências e as leituras como um modo de construir conhecimento e evoca suas antigas professoras, como sendo aquelas com quem aprendeu muito e de quem recebeu incentivo. A prática, dessa forma, é tomada como este lugar de construção de suas aprendizagens, inclusive, a respeito do lúdico.
Desse modo, Veiga (1989, p. 16) nos aponta a “prática pedagógica como uma prática social orientada por objetivos, finalidades e conhecimentos, e inseridas no contexto da prática social”. Ela se sustenta por uma relação teoria e prática que em comunhão promovem a construção de um processo educativo pelos professores. Ainda, para Veiga (1989), a prática possui o lado teórico que seria um conjunto de ideias construídas pelas teorias pedagógicas que tem como foco transformar o contexto educacional idealmente. Por outro lado, o objetivo da prática pedagógica é o modo como às teorias são colocadas em ação pelos professores. Desta maneira, as práticas pedagógicas possuem a “missão” de construir um elo indissolúvel entre a teoria e a prática levando em consideração a realidade escolar.
Marina resume narrando que pode ser um pouco de tudo, pois ao mesmo tempo em que ela apresenta o brincar por prazer, ela fala do brincar não pelo brincar, mas por um brincar para aprender. O modo de pensar da docente coaduna com sua concepção de ludicidade. Entendemos que o brincar é uma forma complexa e viável de se alcançar o universo infantil. O mesmo não pode e não deve estar nas instituições de ensino apenas como veículo de aprendizagem, pois oportunizar as brincadeiras como maneira de desenvolver os conteúdos escolares, não é garantia que as aprendizagens aconteçam.
Como educadores não podemos cair na armadilha que as brincadeiras garantem o envolvimento dos alunos de tal maneira que a aprendizagem acontece como algo pronto e acabado. As brincadeiras demandam um envolvimento dos sujeitos, mobilizando conhecimentos que já foram construídos mediante a relação estabelecida entre os indivíduos e o contexto social e cultural. Compreendemos que está no imaginário social relacionar o lúdico sempre a jogos e brincadeiras como veremos abaixo:
No sentido do que é o lúdico. Eu entendo que seja algo que a gente tenta discutir e que eu já li, preciso internalizar porque quando a gente lê e a gente vai para prática é um choque muito grande. Eu não sei, eu não tenho percebido, porque talvez agora estou retomando o espaço da sala de aula. A gente se preocupa muito em propor as atividades de leitura, de escrita, no campo da matemática, mas assim, ainda é algo muito padronizado. A gente não tem ainda essa ruptura de pensar o lúdico como algo mais presente na escola. A gente não tem. Que o professor coloque uma atividade lúdica no seu planejamento, mas que ele faça e veja de uma forma diferente, não só como um planejamento em si, aquele momentozinho que você pega os seus alunos e leva ali pra fazer uma brincadeira e volta pra sala ou quando você vai contar uma história, uma contação de história que você se prepara, desde a sua fala, os movimentos que você vai fazer, como você se caracteriza, como a criança vai internalizar, o que você quer realmente passar com aquilo ali para seu aluno. Então são essas questões que eu ainda vejo na escola como algo mecânico na forma de pensar o lúdico. As pessoas ainda não têm essa preparação. Na verdade, o brincar com sentido de aprender, o brincar com sentido de liberdade que a criança tenha em se expressar (Marina).
Marina correlaciona divergências do lúdico na teoria e na prática, fazendo uma separação, deixando exposto que a ludicidade possui um caráter secundário para a escola e possui referência com o passatempo que está atrelado as brincadeiras, rápidas e aligeiradas proporcionadas para os alunos. Segundo Luckesi (2002, p. 02), “enquanto estamos participando verdadeiramente de uma atividade lúdica, não há lugar, na nossa experiência, para qualquer outra coisa além dessa própria atividade. Não há divisão. Estamos inteiros, plenos, flexíveis, alegres, saudáveis”. É essa concepção que defendemos, as atividades lúdicas que integra os sujeitos plenamente, divergindo da que a professora expõe sobre o lúdico como algo inovador, pois se assim ele se apresenta, com certeza perderá sua característica. Pela narrativa de Marina, percebemos que dificilmente a escola a qual ela se refere, apresentará a ludicidade tendo o sujeito como centro que age e/ou vivencia situações lúdicas (Luckesi, 2002). Marina continua abaixo narrando sua compreensão sobre o lúdico:
Então assim, eu acho que a minha visão... E eu fico com medo de decepcionar você nesse aspecto, porque a gente ainda tem muito o que aprender sobre isso de como a gente vê a questão da ludicidade, porque toda vez que ouço falar se fala sobre jogos, brincadeiras, é ou não é isso? Então é sempre isso, você acha que pode pegar qualquer coisa e montar e achar que está trabalhando o lúdico na sala de aula (Marina).
Marina afirma conhecer a ludicidade como jogos e brincadeiras, mas defende, desde a narrativa anterior, que este deve possibilitar momentos de liberdade e expressão da criança. Na sua narrativa podemos também entender os jogos e as brincadeiras numa perspectiva de funcionalidade instrumental (Lopes, 2014), ou seja, aqueles oportunizados as crianças em datas comemorativas ou culminâncias de projetos, perpassando por momentos isolados dentro do contexto escolar.
O lúdico como condição humana reverberada por Lopes (2014, pp. 27-28), “não está subjugado a calendários ou imposições institucionais, uma vez que pode manifestar-se em qualquer contexto situacional”. No entanto, o lúdico no contexto escolar é atrelado a momentos estanques oportunizados pelos professores, revertendo-se em apresentação de conteúdo como reforça a narrativa de Marina: “Às vezes eu vejo, hoje, a gente vai levar os meninos pra quadra, acho uma coisa bem mecânica viu! Levou os meninos pra fora da sala, brincou, voltou, é aquele momentinho ali sem significado”. Com certeza a ludicidade vai para além do que foi relatado pela professora.
Segundo Lopes (2004) a ludicidade se configura como fenômeno de natureza consequencial à espécie humana, se manifestando e produzindo uma pluralidade de efeitos. Assim, pensar na ludicidade nessa perspectiva, é considerar que a mesma cria uma conexão entre sujeito-mundo-coletividade. Entendemos que a ludicidade não se reduz a conteúdos escolares, mas pode gerar um efeito prazeroso abarcando as aprendizagens que mobilize significados. Finaliza Marina sobre a ludicidade: “Então eu penso que seja algo muito dinâmico, algo que promova realmente a interação, que gere aprendizagem, que seja prazeroso, que tenha o campo da liberdade pra que o aluno possa se expressar”. Marina confere a ludicidade algo funcional, no entanto a ludicidade não possui essa característica, ela acontece porque os sujeitos estão se conectando consigo mesmos, gerando uma relação de inteireza.
Para Lopes (2014, p. 29), “a essência da ludicidade situa-se, mais no conjunto de processos dinâmicos interrelacionais e interacionais protagonizados pelos Humanos que atribuem aos seus comportamentos a significação singular da ludicidade, e menos nos efeitos finais dos mesmos”. A ludicidade pode ser percebida como um processo que promove uma conectividade em linha reta com a ação estabelecida, não admitindo desvios paralelos e nunca relacionada como instrumento ou função para algo ou coisas. Cada docente trouxe a maneira de conceber a ludicidade, como veremos abaixo:
Ludicidade é... Eu vejo como uma forma mais leve de se aprender. Eu denominaria assim, porque a ludicidade é muito voltada para a questão do brincar, né? E às vezes a gente esquece tanto a questão do direito que a criança tem de brincar, né? Que eu acho que deve ser respeitado, mas que a gente pode também utilizar desse brincar para também estar ensinando, né? Porque através das brincadeiras a criança aprende a lidar com o outro, aprende a compreender seus limites, aprende a respeitar a questão do perder, do ganhar e uma série de habilidades que ela pode estar adquirindo através dos jogos e brincadeiras que são feitos. Quando a gente coloca um jogo, pode ser um jogo que não tenha nenhuma premiação, mas todos os meninos se envolvem e quer ser vencedor e muitas vezes a gente tira muito proveito fazendo perguntas voltadas para o conhecimento que a gente está estudando, é... O jogo utilizado antes de iniciar o conteúdo, eles acabam dando muita importância e se envolvendo de tal forma que às vezes não percebem que estão estudando também, estão aprendendo com aquele jogo (Clarice).
Entendemos que não existe forma mais leve ou pesada para aprender. Na fala da Clarice, percebemos que ela atribui a leveza aos artefatos utilizados para ministrar os conteúdos. Para Rios (2010) a educação pode ser considerada um movimento longo e complexo, promovendo um renascimento a cada momento nas relações estabelecidas. Essa educação traz à tona uma realidade muito distante a que presenciamos em algumas escolas, pois ainda vivenciamos uma educação fragmentada na sua função de educar os sujeitos na sua totalidade e na cidadania. A professora atribui a leveza do ensino a ludicidade, não correspondendo ao que tomamos como atribuição da ludicidade.
Entendemos que o lúdico não pode ser confundido com o brincar, pois o brincar conforme Lopes (2014) é uma manifestação social que mobiliza os processos lúdicos. Entre outros documentos legais, o brincar está expresso na Convenção dos Direitos da Criança no seu Artigo 31: “o direito da criança ao repouso, ao tempo livre e à participação em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade”. Infelizmente ainda não é a realidade na maioria das escolas brasileiras. O brincar por si só já traz um leque de aprendizagens sociais, relacionais, cognitivas, motoras, emocionais, afetivas, entre outras, assim precisamos rever a percepção do brincar como expõe Clarice de aproveitar para ensinar. Assim, entendemos que a ludicidade ligada a plenitude do sujeito ainda precisa de entendimento para chegar às escolas.
Partindo dessa perspectiva, o que as colaboradoras trazem como jogos e brincadeiras se configurariam como atividades, pois só podem ser consideradas como lúdicas se oportunizarem uma experiência plena aos sujeitos que a vivenciam (Luckesi, 2002). Portanto, compreendemos que a utilização dos jogos e das brincadeiras em sala de aula nem sempre poderá estar associadas à ludicidade, pois tomamos como base teórica a ludicidade como estado interno e subjetivo. Desta forma, os jogos e as brincadeiras da forma como as docentes relatam, se configuram como um instrumento pedagógico, pois confere o objetivo de ministrar um conteúdo, os alunos não escolhem o que vai jogar ou brincar, existe um planejamento, uma intencionalidade e uma proposta a ser seguida, e também um objetivo a ser alcançado. Por fim, reafirmamos que a ludicidade acontece quando o sujeito vivencia a plenitude da experiência (Luckesi, 2002).
Percebemos através das narrativas das colaboradoras que a concepção de ludicidade apresentada por elas está atrelada aos jogos e as brincadeiras numa relação direta com o processo de aprendizagem. Diante disso, partimos do pressuposto que o trabalho pedagógico está pautado nas concepções e crenças construídas no percurso do desenvolvimento pessoal e profissional das professoras, envolvendo os saberes e as crenças construídas nos processos formativos pessoais e profissionais.
Desse modo, “[...] na prática pedagógica, não se encontra presente somente os conhecimentos teóricos, mas também diferentes tipos de saberes, convicções e teorias implícitas” (Soares & Porto, 2017, p. 24). Ainda, para as autoras, é extremamente importante conhecer onde as docentes alicerçam o seu fazer-pedagógico, entendendo que ele não se resume à racionalidade ou as teorias, mas a confluência de elementos que se constituem na prática pedagógica.
Segundo Ferreira (2020a, p. 418):
Essa ludicidade, como um estado interno, tem a ver com as experiências humanas, não sendo oriundas de brincadeiras, por exemplo. Qualquer atividade que faça “nossos olhos brilharem” como nos diz o autor, pode dar origem a manifestação de ludicidade, essa sensação de conforto, de bem-estar, sendo a brincadeira uma delas (grifo nosso).
Corroboramos com Ferreira, pois a ludicidade mobiliza os sujeitos a movimentos que ativam importantes conexões dele com o meio ambiente que o cerca. As brincadeiras podem ser consideradas como uma das manifestações sociais que promovem um estado lúdico, este, portanto, não tem a “obrigação” de ser recurso para aprendizagens. As concepções trazidas pelas professoras participantes da pesquisa são diferentes da concepção expressa por Ferreira e que coaduna com aquela explicitada teoricamente nessa pesquisa, pois as docentes se referem ao lúdico, as brincadeiras e aos jogos desenvolvidos em sala de aula, objetivando ministrar conteúdos e dar conta do planejamento pedagógico. Percebemos que as professoras a todo o momento correlacionam o lúdico, ao que elas chamam de leveza, recursos, aprendizagem, brincar para, jogar para, fantasias, artefatos, histórias, imaginação, atração, entre outros. Sintetizando, a ludicidade, para as docentes, possui a função de promover aprendizagens, fazendo com elas acreditem que estão trazendo aulas inovadoras para os alunos.
Queremos reafirmar que a ludicidade precisa ser ainda mais explorada como uma questão da imprevisibilidade, pois não conseguimos fazer previsões formatadas ou fechadas sobre o estado de ludicidade, ao qual o sujeito emerge. Sendo assim,
Ainda, entendemos que a ludicidade da forma como está sendo apresentada aqui não é um estado único e exclusivamente relacionado a infância e a educação infantil, mas perpassa qualquer forma de educação e fase da vida. Além de se configurar como sendo mais que brincar e jogar como já vem sendo apontado em alguns estudos (Ferreira, 2020a, p. 419, grifo nosso).
Desse modo, Ferreira (2020a), nos possibilita compreender que a ludicidade está relacionada aos seres humanos, independente da idade, condição social, econômica, cultural, étnica, enfim, todos devem ter presente na sua existência oportunidade de vivenciar a ludicidade e outros estudos também mostram isso, como Ferreira (2015); Ferraz e Ferreira (2019), Cruz et al. (2019), Mineiro e D’Ávila (2020), Guimarães e Ferreira (2020), Pereira (2020), Silva, Ferreira e Silva (2020), Pereira e Jesus (2020), Ferraz, R. D. e Ferreira (2021), Ferraz, R. C. S. N. e Ferreira (2021). Compreendemos que as concepções interferem diretamente na prática docente, assim, conforme as professoras vão tendo contato com outras concepções de ludicidade há mais possibilidades de inclui-las na sua prática em sala de aula. Desta forma, mediante ao que foi exposto pelas professoras, construímos um quadro, a fim de explicitar as concepções delas.
Percebemos que, conforme as narrativas das professoras em relação à prática pedagógica, as concepções de ludicidade assumem um papel de protagonismo no processo de aprendizagem. As professoras fazem uma associação muito direta com os jogos e as brincadeiras refletindo em algo pedagogizado, ou seja, os jogos e as brincadeiras são percebidos como recursos pedagógicos para ensinamento dos conteúdos escolares. Suas concepções têm origem na infância, nas leituras e na formação institucionalizada, sendo que nesse último, a associação dos jogos é também relacionada a recursos para aprendizagem.
Também achamos relevante expor a narrativa de Marina quando ela traz uma divergência entre a teoria e a prática vivenciada por ela no contexto escolar. Segundo Veiga (1989), a teoria e a prática inexistem uma sem a outra, havendo uma dependência mútua, pois uma sofre influência da outra. No entanto, priorizar a teoria em detrimento da prática ou vice e versa, pode incorrer numa posição idealista ou praticista. Conforme Veiga (1989, p. 17) “uma prática sem teoria não sabe o que pratica, propiciando ativismo, o praticismo e o utilitarismo”. O processo educativo com certeza sofre com uma fragilidade científica e epistemológica, assumindo um papel reprodutivo e mecânico.
Comumente vemos professores se queixando que a teoria é uma coisa e na prática é outra. Muitos se queixam que é difícil associar a teoria e a prática por conta de algumas variantes como: ausências de recursos materiais, espaços físicos, tempo, formação pedagógica, cobranças para dar conta de conteúdos, avaliações excessivas, entre outras. Desta forma, compreendemos que para coexistência da teoria e a prática no processo educativo estas precisam ser validadas pelos professores, não por aprenderam que assim é o correto, mas eles precisam atribuir significados a partir da sua própria experimentação de que é possível acontecer.
Retomando a narrativa de Marina sobre a teoria e prática, ela verifica que a ludicidade dos livros, da formação, palestras e cursos, (teoria), não é aquela que ela verifica com as professoras da escola, onde as brincadeiras são trazidas para as crianças como forma de preencher o planejamento. Para ilustrar o pensamento de Marina, trazemos Veiga (1989) para o diálogo, através de duas perspectivas distintas de práticas pedagógicas, são elas: a repetitiva e acrítica, conhecendo previamente as leis e as normas, o professor repete o processo prático quantas vezes queira, não inventa o modo de fazer, apenas imita ou repete a ação; e a reflexiva e crítica, possibilita o professor conhecer a importância social de seu trabalho e seu poder de transformação. Neste âmbito, percebemos que na fala de Marina, os professores citados ainda estão na prática pedagógica repetitiva.
De acordo com as narrativas expostas pelas professoras, pudemos perceber que as suas concepções sobre a ludicidade possuem um sentido de função utilitarista. Conforme Mineiro & Moreira (2020, p. 117), “é um meio/recurso didático ou estratégico, sendo utilizada no ensino, nas empresas ou outros contextos, para alcance de uma finalidade-por exemplo: aprendizagem, produtividade, lucratividade, etc.”. Aqui nos interessa discutir a aprendizagem, que para as professoras, através dos usos dos jogos, brincadeiras e artefatos lúdicos, como personagens de histórias ou fantasias, é possível que as crianças aprendam de maneira mais “leve”, como se o ato de aprender tivesse relação com fardo ou peso. Pudemos comprovar que as concepções de ludicidade recaem nos jogos, brinquedos e nas brincadeiras, sempre verbalizados como instrumentos ou recursos, e as crenças que eles, independentemente de qualquer coisa, geram aprendizagem.
Entendemos que todos os sujeitos podem vivenciar e experienciar um estado de ludicidade. Desta forma, compreendemos que nossas concepções e crenças não são cristalizadas, elas podem sofrer reformulações mediante as novas vivências e experiências através dos nossos percursos formativos, que podem ser pessoal e profissional. Ainda, consideramos que as práticas pedagógicas são carregadas de concepções e crenças que trazemos para o contexto do fazer docente.
Para compreender se a ludicidade existe na prática das docentes, inicialmente precisávamos saber quais as concepções que as mesmas tinham sobre o tema. Mediante as narrativas foi constatado que todas as professoras trazem a concepção de ludicidade voltada aos jogos, brincadeiras e artefatos lúdicos (livros, fantasias, fantoches), possuindo o caráter de utilidade. As professoras deixam inequívoco que os jogos e as brincadeiras servem para auxiliar os alunos na aprendizagem dos conteúdos escolares, relacionando a ludicidade ao pedagógico, com a finalidade de aprendizagem.
Dessa forma, entendemos que essa concepção utilitarista e pedagógica dos jogos e das brincadeiras vem sendo predominante na prática e que pode ser oriunda do processo formativo acadêmico das professoras. Essa concepção não corresponde com a defendida nesta pesquisa, que concebe a ludicidade como plenitude do ser, onde durante uma ação lúdica os sujeitos se sentem inteiros, conectados a ação e não ao objeto. Fica explícito que os jogos e as brincadeiras são sempre escolhidos pelas professoras com a intencionalidade referenciada ao ato de ensinar.
Nesta perspectiva, concebemos que as atividades desenvolvidas nas aulas não possuem características de atividades lúdicas. No entanto, não é possível afirmar que não são, pois compreendemos que as atividades serão lúdicas se os sujeitos que as estão vivenciando, estiverem de maneira plena e inteira, ou seja, estiverem entregues a atividade. Desta forma, pela impossibilidade de observação e interação no ambiente da pesquisa, expomos que nos baseamos pelos relatos das professoras.
Para tanto, as professoras revelaram concepções construídas a partir das relações que elas foram estabelecendo no seu processo formativo, tanto pessoal, quanto profissional. Com isso, pudemos constatar que as concepções se relacionam com a maneira de desenvolver as práticas pedagógicas, mas elas não são cristalizadas, se tratando da docência, elas precisam ser desestabilizadas, provocadas, reconstruídas e reelaboradas a todo o momento.
Como citar: Guimarães, R. S., & Ferreira, L. G. (2022). Conceptions of playfulness: what do teachers present about the theme? Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e17446. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17446
Contribuições dos Autores: Matos, F. S.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Dias, A. F.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; da Silva, I. P.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
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