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Bases da arquitetura discursiva que assentaram a invenção da infância na modernidade
Bases of discursive architecture that settled the invention of childhood in modernity
Bases de la arquitectura discursiva que asentaron la invención de la infancia en la modernidad
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 15, núm. 34, e17963, 2022
Universidade Federal de Sergipe

Publicação Contínua

Revista Tempos e Espaços em Educação 2022

Recepción: 31 Julio 2022

Aprobación: 22 Octubre 2022

Publicación: 15 Diciembre 2022

DOI: https://doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17963

Resumo: Nos propomos a escrever esse texto buscando retomar a discussão das bases da arquitetura discursiva que assentaram a infância no mundo moderno ocidental, tendo grande inspiração no legado do pensamento Iluminista dos séculos XVIII e XIX. Trata-se de traçar um panorama histórico para entender como o sentimento de infância foi se constituindo, isto é, partimos do entendimento de que um estudo das infâncias e os acontecimentos que a ela se associam precisam focalizar não no que elas são, mas nas condições de possibilidade para que se constituíssem de tal modo. Assim, coloca-se em movimento a partir de quatro arquiteturas discursivas: pesquisa de Philippe Ariès e as críticas foucaultianas; a pedagogização do sexo da criança; a pedagogia moderna; e, por fim, uma discussão se haveria a morte da infância constituída na Modernidade.

Palavras-chave: Infância, Invenção, Modernidade, Morte.

Abstract: We propose to write this text seeking to resume the discussion of the bases of discursive architecture that settled childhood in the modern Western world, taking great inspiration in the legacy of Enlightenment thought of the 18th and 19th centuries. that they are, but under the conditions of possibility for them to be constituted in such a way. Thus, it is set in motion from four discursive architectures: research by Philippe Ariès and foucaultian criticisms; the pedagogization of the child's sex; modern pedagogy; and, finally, a discussion of whether there would be the death of childhood constituted in modernity.

Keywords: Childhood, Modernity, Invention, Death.

Resumen: Proponemos escribir este texto buscando retomar la discusión de las bases de la arquitectura discursiva que asentó la infancia en el mundo occidental moderno, tomando gran inspiración en el legado del pensamiento de la Ilustración de los siglos 18 y 19. que lo son, pero en las condiciones de posibilidad de que se constituyan de tal manera. Así, se pone en marcha a partir de cuatro arquitecturas discursivas: la investigación de Philippe Ariès y la crítica foucaultiana; la pedagogización del sexo del niño; pedagogía moderna; y, finalmente, una discusión sobre si habría la muerte de la infancia constituida en la modernidad.

Palabras clave: Infancia, Invención, Muerte, Modernidad.

INTRODUÇÃO1

As percepções sobre a infância geradas social e culturalmente são múltiplas. Problematizar a infância e os modos como as crianças se comportam são algumas das preocupações dos diferentes campos do conhecimento. Talvez a infância nunca fora tão estudada como hoje, de modo que a Psicologia, a Sociologia, a Pedagogia, a Biologia, o Direito, os higienistas e outros campos buscam compreender, discutir, problematizar e explicar. Muitos compreendem que se trata de um período da vida que requer muita atenção e diferenciados cuidados diante da sua fragilidade, de modo que é muito fácil de perceber a grande preocupação de diversos especialistas higienistas em diagnosticar os ‘problemas’ da infância, ou seja, crianças que não se encaixam ou têm alguma doença (psico)patológica. Aliás, a criança provoca medo quando escapa ao controle social, ao desafiar padrões e regras estabelecidas. Enquanto invenção da sociedade adulta, necessita ser educada e gerenciada para moldar o futuro da sociedade (Schérer, 2009). De acordo com Schérer (2009), vários grupos sociais, como mulheres, negros, portadores de deficiências, etc., estão em processo de emancipação nos últimos séculos. No entanto, a criança continua sob a guarda do adulto, aguardando a sua emancipação. Clarice Lispector (1998, p. 136-137) escreveu sobre isso de forma muito assustadora e linda:

Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele próprio. [...] Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. [...] O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu autossacrifício.

Esperar que cresça, colocando-as ao nosso alcance, explicá-la, domá-la para delinear o seu contorno. Por isso é tão incessante a busca por explicações sobre o que é uma criança, de modo que o foco está no que ela pode vir a ser em seu estado de adulto. É, portanto, imprescindível cuidar das crianças para que não se percam e para que não se desviem dos caminhos indicados pelos adultos. É fundamental que sejam governadas, supervisionada por um adulto, tutelada pela sua condição de menoridade. A criança, enquanto sujeito, e a infância, enquanto marco temporal etário, são datados e produzidos nas contingências de cada época, tornando-se objetos específicos de atenção no plano social, sobretudo da extensão do século das Luzes até a contemporaneidade.

Deste modo, não pretendemos, aqui, recorrer à historicização para traçar uma linha cronológica extensa de acontecimentos que envolveram a vida das crianças, mas apenas apontar algumas das condições de emergência que contribuíram na composição dos diferentes modos como elas são referidas hoje. Não queremos aqui legislar sob uma verdade acerca da infância, tampouco dizer qual modo infantil é o melhor para as nossas crianças e quais devem ser evitados, pois são nocivos.

Existem racionalidades políticas engendradas nas enunciações que compõem os discursos sobre infância e educação. Essas discursividades vem moldando e conduzindo os sujeitos infantis de maneiras específicas conforme o contexto social da época e os regimes de verdade ali postos. Esses modos de condução e fabricação de sujeitos infantis estão atrelados, ao conhecimento dos objetos específicos, nesse caso, a infância e a educação, que tangenciam poder. Por isso, optamos por pensar a infância dentro das tramas discursivas que enunciam sobre ela, levando em consideração os efeitos nas práticas que visam capturar a educação. Os discursos sobre o sujeito infantil, ao se manifestarem, não estão aí para descrever os objetos na sua totalidade, mas para tentar decodificar aquilo sobre o que eles falam.

PESQUISA DE PHILIPPE ARIÈS E AS NECESSÁRIAS CRÍTICAS FOUCAULTIANAS

Philippe Ariès (1914-1984), historiador francês, foi o primeiro a discutir a emergência da noção de infância, que pode ser entendida como uma categoria social a partir de dois sentimentos constituídos no século XVII: a paparicação e a moralização. Estes estudos estão presentes na obra História Social da Criança e da Família, publicada em 1960, onde o autor desenvolveu uma pesquisa pioneira de cunho iconográfico (estátuas, pinturas, gravuras, retratos); ao estudá-las, identificou mudanças de comportamentos, hábitos e maneiras de pensar das famílias da época, fazendo um resgate da historiografia da criança europeia a partir dessas representações imagéticas. Vale reforçar, aqui, que estamos nos referindo a um recorte da historicização da infância a partir dos moldes ocidentais europeus de classe burguesa, conforme os estudos realizados por Ariès (2016).

Em síntese, Ariès (2016) identificou que até o fim do século XIII as crianças, nas suas representações, ainda não possuíam uma expressão característica, pois continuava-se com as representações de crianças em modelos adultos em um tamanho menor, sem nenhuma diferença de traços faciais e/ou demais expressões, isto é, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É no século XIV que diminui a frequência do uso de imagens de adultos em tamanho menor, mas ainda não há sinalizações de representações que identifiquem novas compreensões. Contudo, não estar evidente que o sentimento de infância não existia, “não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças” (Ariès, 2016, p. 99). Desde muito cedo, a criança convivia com os adultos e não chegava a vivenciar a juventude, sem uma diferenciação nas ocupações sociais, como o trabalho e os jogos, pois “assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes” (Ariès, 2016, p. 99).

De acordo com Ariès (2016), pode-se dizer que foi na Idade Média que as Idades da Vida começaram a ter relevância. Constituída por seis etapas: a primeira, idade do nascimento aos sete anos; a segunda, dos sete aos quatorze anos; a terceira, dos quatorze aos vinte e um anos. Essas três primeiras etapas da vida não são valorizadas pela sociedade, pois o sujeito infante era compreendido como um mero protótipo de adulto; em outras palavras, alguém que não contribuía diretamente com a construção e desenvolvimento da sociedade, seja em instâncias políticas, trabalhistas, etc. É a partir da quarta idade, com a juventude, dos vinte e um aos quarenta e cinco, que as pessoas passavam a ser reconhecidas socialmente. Na quinta idade, dos quarenta e cinco aos sessenta anos, a pessoa não era considerada velha, mas também não era mais jovem. Por fim, a sexta idade, dos sessenta anos até a morte. Como podemos perceber, todas essas etapas alimentaram a ideia da vida dividida em fases (Ariès, 2016). A indeterminação da idade se estendia a atividades sociais, tais como jogos e brincadeiras até o sujeito ter idade suficiente para trabalhar. Os trajes infantis eram réplicas das roupas dos adultos, na classe burguesa, para dar mais um exemplo.

É no século XVI que se torna evidente uma nova compreensão de infância, passando a posicionar a criança enquanto um sujeito separado dos adultos. Essa perspectiva fica visível com o surgimento do retrato da criança morta nas efígies funerárias, mas não em seus próprios túmulos, mas nos túmulos de seus professores. Nesse período, a morte da criança continua não sendo valorizada, com a compreensão de que outra criança viria a substituí-la. Foi no final do século XVII que a família passou a se estruturar em torno da criança e a sua morte começou a ser seguida pelo sofrimento entre os familiares, de tal modo que os infanticídios se tornaram uma atividade cada vez mais restrita (Ariès, 2016). Com essa representação, o sentimento da infância começara a ser percebido.

Nesta nova compreensão de infância emergem dois sentimentos: o primeiro se trata da dependência da criança em relação ao adulto para sobreviver, bem como demanda acolhimento; por segundo, o surgimento do amor materno (Narodowski, 2013). Nesse mesmo período a criança torna-se uma fonte de distração e entretenimento para os adultos ao fazer graça a partir de seus “sapateados, brincadeiras e bobagens pueris” (Ariès, 2016, p. 101), mas sem ainda existir a noção de infância, de modo que a diferenciação entre adultos e crianças acontecia de maneira gradativa. Emergia, portanto, no meio familiar, um sentimento em relação às crianças que era caracterizado pela paparicação nos seus primeiros anos de vida, de modo que os adultos as viam como puras, inocentes, frágeis, e que por esses motivos careciam de atenção e de educação.

Também no século XVII, outras ações colaboraram para um distanciamento entre crianças e adultos. Uma das ações que demonstram esse aspecto é a abundância de retratos com crianças sozinhas, passando a ser um hábito registrar lembranças da infância por meio da produção artística de pintores, que mais tarde, no século XIX, foram substituídas por fotos. Outra característica desse período é o uso da expressão infância, referindo-se quase sempre à primeira idade e a expressão petit enfant (criancinha ou criança pequena, do francês vernáculo) que começa a receber o significado que atualmente se utiliza. Neste âmbito do vocabulário, faltava uma expressão para se referir às crianças nos seus primeiros meses, sendo sanado apenas no século XIX, quando a língua francesa pegou emprestado do inglês a expressão baby, que nos séculos XVI e XVII caracterizava as crianças em idade escolar. A partir de então, com o francês bébé, a criança bem pequena passou a receber, finalmente, um termo (Ariès, 2016).

Ainda que Ariès (2016) seja uma grande referência para a historiografia da infância, pelo pioneirismo e vigor, também recebeu suas necessárias críticas, sobretudo em relação à ausência das comprovações das hipóteses e por não contemplar todas as classes sociais (estudos de Maria Isabel Bujes; Sandra Corazza; Lloyd DeMause; Walter Kohan; Leni Vieira Dornelles; Colin Heywood; e muitos outros). É principalmente nas décadas 1970 e 1980 que a publicação de Ariès deu lugar a uma série de críticas, muitas delas a partir da vertente pós-estruturalista e das teorizações foucaultianas, questionando se, de fato, a infância é uma invenção moderna, na qual não existia na Idade Média e na Renascença; seu romantismo e postura nostálgica em relação ao passado; sua metodologia de pesquisa, especialmente no que tange o tratamento dado aos registros culturais, literários e artísticos (Kohan, 2003; Kramer, 2003). Entretanto, vale salientar que é com a publicação da obra de Ariès que a infância passa a ser concebida sob o prisma de construída social e historicamente, possibilitando instigar novos caminhos de pesquisa em relação à infância e o tensionamento de novas categorias infantis. Além disso, mostrou a fragilidade e a exposição das crianças no decorrer da história da humanidade, não sendo vistas enquanto sujeitos de direitos e protagonistas de suas histórias que merecessem atenção em relação a sua condição diferenciada do ser adulto, sendo vistas como pré-adultos, sujeitos pré-fabricados, animalescos não civilizados.

Diferente de Ariès (2016), que compreende que a infância foi descoberta na Modernidade, compreendemos junto com Corazza (2002, p. 79) que ela é “uma instância suscitada e tornada necessária pelo funcionamento do dispositivo de infantilidade”. Isto é, não houve uma progressiva “consciência da particularidade infantil, particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto” (Ariès, 2016, p. 156), mas sim um agenciamento de “uma ideia histórica complexa, formada no seio do dispositivo de infantilidade” (Corazza, 2000, p. 22). Deste modo, trata-se mais de uma invenção mais do que uma conscientização da sua existência; mais do que uma descoberta, mas de uma produção. As características que foram distinguindo os adultos das crianças foram sendo construídas pelo dispositivo da infantilidade, agindo na diferenciação entre adulto e criança.

Ao considerarmos que a invenção da infância está relacionada ao governo das primeiras etapas da vida humana, então o conceito de dispositivo torna-se relevante na análise de como ocorre essa constituição. Pois, a infância como a conhecemos atualmente, é fabricada na Modernidade em sintonia com o biopoder, pois “apenas um poder capaz de causar a vida ou devolver à morte poderia ter engendrado, como um de seus dispositivos, esse de infantilidade” (Corazza, 2000, p. 21). De acordo com Foucault (1984/2001, p. 198), a partir do século XVIII, ao problema da criança se acrescenta “o da ‘infância’ (isto é, da sobrevivência até a idade adulta, das condições físicas e econômicas desta sobrevivência dos investimentos necessários e suficientes para que o período de desenvolvimento se torne útil)”. Para fabricar o infantil é necessário acionar a visibilidade e os regimes de enunciabilidade, que possibilitam enxergar e dizer desses infantis que até então viviam “mais ou menos como fantasmas, dos quais não se falava, que quase não se enxergava e que, por isso mesmo, também não incomodavam ninguém” (Corazza, 2002, p. 58). Faz parte do mecanismo do dispositivo da infantilidade fazê-los visíveis e enunciáveis. Para tanto, recorre-se a vários discursos, como da literatura em que se vai relatar como são belos os dias da inocência, da infância como aurora da vida. A infância, então, se torna o padrão pelo qual os adultos se comparam e se medem (Corazza, 2000).

Ainda, a partir de Ariès (2016), podemos pensar em descoberta, invenção, conceito, natureza, consciência, sensibilidade, sentimento, as quais provocam uma série de críticas e contestações (Corazza, 2002). De acordo com Corazza (2002, p. 83), estas categorias continuam sendo “contestadas, refutadas, revisadas, por isto mesmo, incitaram uma abundante produção discursiva que constituiu esse novo campo epistemológico”. Também há críticas tendo em vista as generalizações de sua obra, com problematizações das fontes e a pouca quantidade de imagens selecionadas pelo autor, pois “quando existem dezenas de milhares, levaria facilmente a conclusões errôneas sobre o lugar da infância” (Kuhlmann Jr., 1998, p. 22), ou pelo menos, se circunscrevendo a um tipo muito específico de criança e infância que não corresponderia, quantitativamente, a grande parcela das crianças, bem como não estaria em concordância com os múltiplos modos infantis existentes. Isto é, limitou-se a um nicho social específico na pesquisa iconográfica, pois se debruçou em analisar pinturas, monumentos funerários, retratos, esculturas, dentre outros objetos próprios de práticas limitadas às famílias burguesas, suprimindo tantos outros materiais que não foram levados em consideração nas pesquisas, como os textos médicos e jurídicos, os registros paroquiais, a literatura romanesca, as cartas, as biografias dos santos e os tratados de educação que mostram que estas não estavam silenciadas sobre a infância na Idade Média (Kuhlmann Jr.,1998).

Heywood (2004, p. 29), contrariando as ideias de Ariès, entende que “a infância (assim como a adolescência) durante a Idade Média não passou tão ignorada, mas foi antes definida de forma imprecisa e, por vezes, desdenhada”. Kohan (2003) indica que os gregos também estavam preocupados com as crianças, havendo aí um sentimento de infância, de modo que Sócrates apontava a infância enquanto um momento importante da vida e que necessitava de cuidado. Platão, por sua vez, indicava a necessidade de cuidado com a criança por aquilo que ela virá a ser, quando exorta, nas palavras de Kohan (2003, p. 18): “nos ocupemos das crianças e de sua educação, não tanto pelo que os pequenos são, mas pelo que deles devirá”, sendo a infância um degrau fundamental da vida humana, sobretudo a partir de projeções políticas e de uma boa educação que garantiria constituir um cidadão prudente. Corazza (2002) também identificou outros desdobramentos a partir da obra de Ariès, dentre eles, a crítica de Flandrin (1988) de que, nas pesquisas iconográficas realizadas por Ariès, a classe privilegiada foi a burguesia, por ter condições de fazer monumentos funerários, esculturas e retratos de seus filhos, o que consequentemente conduziu suas histórias a serem mais bem exploradas. Deste modo, assevera que as conclusões de Ariès estariam comprometidas, tendo em vista que sua análise foi realizada a partir de um único exemplo, a infância de Luís XIII.

Também, Demos (1970) afirma que os bebês da colônia Puritana de Plymouth, Massachusetts (EUA), por volta de 1630, eram gentilmente tratados e protegidos nos primeiros anos de vida e que somente após os dois anos de idade eram submetidos à severa disciplina. Contudo, concorda com Ariès, que no século XVII existia algum reconhecimento da infância como diferente da vida adulta, porém apenas em relação às crianças pequenas. DeMause (1991) também argumenta a existência histórica pré-moderna da infância ao partir da compreensão de que a criança era feliz porque conseguia estar de forma livre com pessoas de diferentes idades e classes sociais. Entretanto, concorda com Ariès em apontar a infância como uma produção da Modernidade. Nem todos os historiadores concordam com a perspectiva de negação da infância na época pré-moderna. Marwick (1982, p. 288) compreende que os pais se interessavam pela sobrevivência de suas crianças e davam-lhes proteção, mas ressalta que a criança, do seu nascimento aos seis ou sete anos, é basicamente pertencente ao mundo das mulheres, marcado por práticas habituais, uma tradição não escrita, um contato face a face e linguagem falada, de modo que essa comunicação permanecerá em grande parte fechada para nós.

Através das descrições relatadas sobre as relações entre crianças e adultos, nos contextos da França, Portugal e Brasil, Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004) indicam um possível exagero na afirmação da inexistência de uma concepção da particularidade infantil e tratamento idêntico a dos adultos às crianças e aos jovens na sociedade medieval e colocam em xeque a compreensão da infância no singular, ressaltando o caráter histórico e plural dessa categoria etária. Estes apontamentos nos alertam para que possamos nos perguntar se as histórias podem ser replicadas para todos os contextos do mesmo modo sem considerar as particularidades e os contextos em que adultos e crianças estão inseridos, bem como buscar entender que infância é essa que a fonte está se referindo. Infância e Modernidade, num primeiro momento, estão relacionadas a uma criança civilizada, com um lugar específico destinado a ela e diferenciado do lugar dos adultos, marcados pela noção de distinção geracional, ocorridos de fins do século XVIII em diante (Veiga, 2004). Quando se pensa na construção dessa criança civilizada, podemos associar a sua infância e os fenômenos que dizem sobre a sua educação às relações de poder entre adultos e crianças na sociedade, pois tanto a invenção da infância quanto a sua manutenção aconteceu por uma vontade de poder sobre os sujeitos infantis.

A Modernidade construiu e consolidou uma infância cronológica, com datas de início e fim, com etapas de desenvolvimento, recheada de fases e continuidades, bem como adjetivações de crianças sob o caráter dicotômico, como deficientes e saudáveis, educados e indisciplinados, hiperativos e calmos, superdotadas e deficientes cognitivas, etc. para fins de classificação, sempre com a finalidade maior de idealizar o futuro, intervir na infância para construir um mundo melhor com novas ideias. Assim, do adulto civilizado esperavam-se comportamentos tais como: conter as emoções em relação às crianças, aplicar castigos e ensinamentos morais, acompanhar o desenvolvimento dos filhos, assumindo a responsabilidade pelos seus cuidados, o que refletiria em uma educação para a civilização das crianças (Veiga, 2004). Nesse contexto, é possível constatar alterações baseadas nas relações de poder entre adultos e crianças, que até o início do século XVIII não se conseguia definir em razão das poucas diferenças nas atribuições destinadas às crianças e aos adultos.

Os estudos científicos em diversos campos como a Medicina; o surgimento de escolas especializadas na infância; o desenvolvimento da família nuclear; o surgimento de novas formas de lazer e comemorações festivas; o aumento de produtos para a criança, a estruturação das leis trabalhistas ao final do século XIX e a regulação do trabalho infantil, reforçaram cada vez mais a infância como uma unidade de referência de tempo geracional. Assim, “no processo de construção desse modelo de sociedade, isso implicou a reformulação dos costumes com o objetivo de fazer a criança ‘desaprender’ a viver no mundo adulto, movimento esse que se fez numa longa duração histórica” (Veiga, 2004, p. 70). Desde o século XIX, o controle sobre as crianças está em ascensão, favorecendo uma profusão de diagnósticos e resultados, colocando em atuação visibilidades obrigatórias das populações infantis.

É no século XVIII que as diferenciações entre adulto e criança foram ficando cada vez mais perceptíveis, de modo que a criança burguesa passou a não ser mais vestida como um adulto. Nesse período, a criança assume um lugar central no âmbito familiar. Junto a isso, emerge mais tarde a instituição escolar, que passa a ser o novo meio educacional no final do século XVII, devido à preocupação com a disciplina e, por parte dos moralistas do período, que entendiam que a infância deveria ser preservada por meio do disciplinamento. Neste aspecto, Ariès (2016, p. 124) declara que “a escola medieval não era destinada às crianças, era uma espécie de escola técnica destinada à instrução dos clérigos [...]. Ela acolhia da mesma forma e indiferentemente as crianças, os jovens e os adultos, precoces ou atrasados, ao pé das cátedras magisterias”. Além disso, “a substituição da aprendizagem pela escola exprime também uma aproximação da família e das crianças, do sentimento da família e do sentimento da infância, outrora separados. A família concentrou-se em torno da criança” (Ariès, 2016, p. 159).

PEDAGOGIZAÇÃO DO SEXO DA CRIANÇA

Para Foucault (1976/1988), em sua análise ao conceito de sexualidade, possibilita compreender que há uma pedagogização do sexo da criança, firmada a partir do século XVIII enquanto um dos resultados do processo de investimento no corpo por vias do biopoder. As reformas religiosas e morais dos séculos XVI e XVII produziram um sentimento de pudor e vergonha na criança, em seu corpo e em quaisquer gestos afetivos ou sexuais com o corpo. Estamos nos referindo aqui ao período da Reforma em que Martinho Lutero foi o principal representante, e que tiveram um forte impacto na composição da infância, pois uma de suas ferramentas foi a criação de escolas a partir da moralização e da evangelização das crianças. Houve, portanto, um investimento na moralização dos sujeitos e, o início da normalização (esta decorrente da formulação de normas, referenciais normativos), incluía outras formas de educar.

Durante a Reforma dos séculos XVI e XVII, tinha-se o interesse em manter o corpo e qualquer relação com o sexo em silêncio. No século XVIII, ao se considerar a existência da sexualidade na criança, enfatizou-se falar sobre sexo e corpo de modo a incitá-la e exaltá-la. Foucault (1976/1988) mostra que essa explosão de discurso que desvenda o desejo de saber sobre o sexo da criança, constitui, na verdade, um condicionamento, ou seja, dizer ou não dizer sobre sexo se insere em um regime de verdade. Portanto, se estabelece uma rede complexa de poder e saber na qual passa a ser controlado quem disse e o que disse. Foucault (1976/1988) entende que essa vontade de saber é também uma vontade de não saber. Fica soterrada a realidade subterrânea do corpo e dos prazeres pelo regime de verdade forjado sobre a criança e a sua sexualidade, ficando abafada pelo que poderia ser inserido em discurso, mas que os especialistas começam a dizer.

Coloca-se a sexualidade na forma do discurso que se acredita ser verdadeiro, pois, ao ser proferido por cientistas, são outorgados como legítimas e, assim, orientam a educação das crianças na Modernidade. Essa explosão de discurso não é um investimento limitado somente ao sexo da criança, pois ao mesmo tempo existe um interesse sobre a criança no seu desenvolvimento como um todo. Como apontado por Ariès (2016) sobre o sentimento de paparicação conferido à infância, isto é, movido por percepções do corpo e do sexo da criança, e que fazem emergir práticas discursivas que vão explicar o que é a criança, a infância, suas fases de desenvolvimento, suas características cognitivas, físicas, morais, etc. Ou seja, a criança entra em um regime de verdade e no interior de práticas discursivas que servirão de base para a construção da ciência da infância, cujo lema consiste em educar crianças ou ensinar como educá-las. Esse conhecimento científico produzirá uma pedagogia com determinados conhecimentos sobre a criança, pois é impossível educá-las sem conhecer sua natureza e, a partir disso, buscar a sua essência, sua verdade interior, uma educação que a transforme em homem.

O que está em foco é o corpo da criança. Este corpo que é, sobretudo, objeto de entretenimento do adulto, paparicação (ARIÈS, 2016). A partir do século XVI esse corpo se tornou um objeto de pudor, um corpo que precisa ser educado, monitorado, coberto e controlado nos mínimos detalhes. Emerge, segundo Foucault (1975/2002a, p. 119), a disciplina, isto é, uma técnica de poder específica sobre o corpo que visa “a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente”. O controle do corpo, a antecipada manipulação operacional, dos comportamentos, gestos, etc., permitem-nos compreender que esse corpo se insere, entrando numa maquinaria de esquadrinhamento, que é sustentada por diferentes forças.

De acordo com Foucault (1975-1976/2002c), o século XVIII foi decisivo na passagem da disciplina do corpo individual para o governo dos corpos, mas não mais como indivíduo, agora, como espécie. Isso significa a transição do disciplinamento do corpo para o governo da população. Vale dizer que isso não significa que o disciplinamento enquanto método e uma tecnologia do biopoder desapareça para dar lugar e espaço a outro modo de poder: a biopolítica. A biopolítica é alcançada por meio do biopoder. A prática médica e a literatura nela produzida constituem um exemplo dessa intersecção entre biopoder e biopolítica. A prática médica se dá em nome da proteção e defesa da sociedade. Nesse contexto, as crianças são consideradas como seres em perigo, inocentes e indefesos, e também como perigosas (Foucault, 1976/1988). A primeira ação dessa prática médica foi a retirada da criança da situação de rua. O segundo momento foi de colocar a criança em um local fechado para que possam ser mais facilmente vigiadas e controladas. O terceiro momento corresponde a educá-la, principalmente, com base nos preceitos de eugenistas e higienistas que constituíam a prática médica da época. Neste momento, o que está em jogo é um novo esquadrinhamento da criança e do seu corpo, conduzido por meio da disciplina, mas principalmente por meio da nova atmosfera, novo regime de verdade e novas práticas criadas sobre a criança, visando tornar visível um determinado modo de ser criança, de viver a infância e de colocar a população (incluindo a criança) em determinado padrão de normalidade.

Foucault (1975/2002b) destaca alguns processos interessantes a respeito dessa abordagem recente de se relacionar com o corpo e com a sexualidade. Em primeiro lugar, o status central conferido pela família, a configuração do regime de verdade sobre a sexualidade do casal e que produz determinado tipo de família, que Foucault denomina de canguru (Foucault, 1975/2002b). Simultaneamente, a emergência da família deve-se ao estatuto central atribuído à criança a partir do século XVIII. Foucault (1975/2002b) entende que esse entendimento de família só existe e está condicionado à existência de um determinado tipo de infância. É a atenção ao corpo da criança e especialmente com a masturbação e ao comportamento sexual que se desenvolve durante a infância, que levou à eliminação de todos os intermediários na educação da criança para que se concentrasse no seio da família e os pais como responsáveis.

Foucault (1976/1988) entende que a sexualidade é uma das ferramentas de controle mais eficazes enquanto um dispositivo histórico de poder, fabricando uma série de práticas discursivas heterogêneas, constituídas de pressupostos filosóficos, científicos, religiosos, medidas administrativas, de leis, entre outras. Foucault (1976/1988) também entende que esse dispositivo se concentra mais em determinados grupos estratégicos, como a família e a criança. A pedagogização do sexo das crianças que Foucault (1976/1988) discute envolve diversas práticas que são gravadas no corpo, que ao longo dos séculos vão produzindo uma certa forma de se relacionar com o corpo e a sexualidade, e ao mesmo tempo, uma certa forma de viver a vida. Isto é, a pedagogização do sexo da criança é uma dinâmica que vai do corpo para uma determinada configuração normalizadora da criança, ou seja, para uma determinada configuração da infância.

Esta análise parte do entendimento de que, a criança, por se tratar de uma das populações estratégicas do dispositivo da sexualidade (Foucault, 1976/1988), ingressam em uma rede de saber-poder. Se a infância é uma fabricação da Modernidade, gerada na rede de poder e saber que constituem diferentes práticas, como as médicas e pedagógicas, ainda que esta invenção tenha certas funções estratégicas, também é possível compreender que a infância, assim como a sexualidade, também é um dispositivo histórico do poder. Para Foucault (1976/1988), o sujeito é sempre constituído pelos dispositivos de seu tempo, um efeito material dos dispositivos do saber-poder. O dispositivo é a rede que é formada por conjuntos heterogêneos de diferentes regimes de verdades e práticas, são os modos de ação e produção do poder e saber. A partir desses entendimentos, pode-se considerar que a infância é um dispositivo do poder e saber, que atua por meio de distintos modos de objetivação, que estão inseridos em diferentes práticas de produção do sujeito infantil. Deste modo, o sujeito infantil é composto por esse dispositivo, o dispositivo da infância. Isto é, o corpo principal da infância é o efeito material do dispositivo na infância. Para chamar a infância como dispositivo, é necessário apontar como essas características se situam na fabricação moderna da infância.

Pode-se apontar resumidamente que tais fronteiras estiveram atuantes nas práticas médicas estabelecidas desde o século XVIII, práticas de ensino, que consolidaram principalmente as instituições escolares, como uma disciplina e uma concepção integral da educação infantil, bem como as práticas de divisão e identidade de gênero. De acordo com esse procedimento, as crianças são marcadas, classificadas e orientadas. Cada uma dessas práticas tem sua visibilidade, expressividade, intensidade e subjetividade. Cada uma dessas práticas também é composta por um conjunto de elementos heterogêneos, incluindo instituições, práticas discursivas, leis, medidas e assim por diante. Podemos pensar até mesmo em dispositivos disciplinares, dispositivos médicos e dispositivos de sexualidade. No entanto, a reflexão que proponho aqui trata da infância como dispositivo. Nas palavras de Foucault (1976/1988, p.71),

Os pedagogos e os médicos combateram, realmente, o onanismo das crianças como uma epidemia a ser extinta. De fato, ao longo desta campanha secular, que mobilizou o mundo adulto em torno do sexo das crianças, tratou-se de apoiá-la nesses prazeres tênues, de constituí-los em segredos [...]; em todo canto onde houvesse o risco de se manifestarem, foram instalados dispositivos de vigilância, estabelecidas armadilhas para forçar confissões, impostos discursivos inesgotáveis e corretivos; foram alertados os pais e educadores, sendo entre eles semeada a suspeita de que todas as crianças eram culpadas e o medo de que eles próprios viriam a ser considerados culpados caso não desconfiassem suficientemente: tiveram de permanecer vigilantes diante desse perigo recorrente, foi prescrita a sua conduta e recodificada a pedagogia; e implantadas sobre o espaço familiar as bases de todo um regime médico-sexual.

Nessa perspectiva, as práticas denominadas pedagógicas correspondem àquelas práticas que se inserem no ambiente escolar, ou aquelas que são fabricadas para orientá-los e direcioná-los. Podemos perceber que a história da criança e da infância corresponde à organização das instituições escolares em diferentes períodos. Por exemplo, Ariès (2016) aponta que até o século XV, os colégios e as escolas existentes eram abrigos para os pobres e gradualmente se tornaram instituições cuja missão era ensinar.

Nos séculos XVI e XVII as escolas eram consideradas instituições de ensino, mas o ensino aqui tinha a função de afastar as crianças e jovens das coisas mundanas, isto é, mantê-las longe das conversas relacionadas aos prazeres do corpo e da carne. A função de ensinar fez com que as escolas praticassem estruturas disciplinares cada vez mais rígidas. A disciplina é a anatomia política dos detalhes, nos diz Foucault (1975/2002a), que utiliza diferentes instrumentos para manipular os corpos das crianças, como a distribuição dos indivíduos no espaço e no tempo para tornar o espaço visível e o tempo bastante útil. Foucault (1976/1988, p. 30), ao descrever os colégios europeus do século XVIII, considera como maquinarias em permanente estado de vigilância: “o espaço da sala, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios [...], os regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono, tudo fala de maneira mais prolixa da sexualidade das crianças”. O espaço é estruturado dentro da composição de quadros vivos, e o tempo é regulado com o objetivo de determinar a atuação de cada corpo a cada momento. Quanto mais se almejava moralizar, corrigir, cobrir e canalizar o corpo da criança e suas ações, a disciplina escolar tornou-se cada vez mais rígida. A história das escolas está diretamente relacionada às representações sociais que cercam as crianças e, do mesmo modo, a história das escolas também é a história do corpo, dentre tantos, do corpo da criança.

O disciplinamento do corpo no espaço é mantido e fabricado através da formação de várias forças existentes, por exemplo, em instrumentos externos aos muros, em pressupostos teóricos nos documentos pedagógicos governamentais, brinquedos, livros, etc. destinados às crianças e toda literatura produzida para e/ou sobre as crianças; ou em instrumentos produzidos dentro dos muros escolares, como lista de chamada, livros de ocorrência, etc. Foucault (1976/1988) entende que as práticas divisórias e as que agem por meio do dispositivo da sexualidade se assentam no corpo do indivíduo, operando modos de objetivação, meio pela qual são subjetivados e transformados em sujeito. O dispositivo da sexualidade fabricou determinados tipos de normalidade, categorizando os indivíduos em categorias identitárias, como sujeitos homossexuais, sujeitos heterossexuais, sujeitos meninos, sujeitos meninas, sujeitos negros, sujeitos brancos, etc.

PEDAGOGIA MODERNA

A pedagogia moderna está inserida nesta conjuntura em que os métodos são cuidadosamente forjados (o tempo e o espaço são organizados da forma mais produtiva e útil) (Foucault, 1975/2002a), a partir de uma determinada classificação da criança na cultura, no tempo, na natureza e, propriamente, de uma definição de infância. A pedagogia moderna é um efeito entre o esquadrinhamento do método, do corpo e da criança. Isso decorre diante da demanda relacionada à educação escolar, pois a escola que até então era limitada a alguns membros dos clérigos vai se expandindo, absorvendo populações do campo, dos burgos e da nobreza. Isto é, a escola vai se transformando de uma pequena instituição em uma das instituições com maior responsabilidade pelo desenvolvimento e progresso social.

Desde o século XIX, com o estruturamento dos conhecimentos nos campos da Psicologia, da Pedagogia, da Biologia e outras áreas de conhecimento, enquanto um estabelecimento de um estatuto de ‘cientificidade’ que passou a impor-se como fundamental para orientar também práticas atinentes aos sujeitos infantis (Bujes, 2006). O espanhol Ignácio de Loyola (1491-1556), em 1551, foi o pioneiro em pensar numa instituição específica com a finalidade de agrupar crianças e ensinar disciplinas, o que, mais tarde, se tornou o sistema educacional moderno. O pedagogo e teólogo checo Jan Amos Comenius (1592-1670) elaborava métodos para ensinar e programar a aula. Décadas mais tarde, o filósofo inglês John Locke (1632-1704) ressaltava que uma formação apropriada deveria incluir uma criança bem alimentada, receber um bom ensino e ter caráter para então se tornar um adulto virtuoso. A pedagogia moderna, tendo como maior expoente o pensamento filosófico de Comenius em sua obra Didática Magna, partia do ideal de ensinar tudo a todos, em que todas as pessoas fossem civilizadas o suficiente para colocar a sociedade em funcionamento, buscando a organização social (Narodowski, 2006).

Comenius realiza um esquema daquilo que mais tarde se denominou de infância moderna. Para Comenius, o sujeito deveria ser educado nos primeiros anos de vida, seguindo uma ordem de sequência e graduação na instrução, na ideia de que todos poderiam tornar-se educáveis. Assim, a infância deveria ser formada com métodos racionais, eficazes e muito precisos, por meio de um programa universal de ensino, tal qual como descrito na Didática Magna (Narodowski, 2006). Comenius trata a infância enquanto ponto de partida, como base que deve ser completada para atingir a idade madura, ou ainda, enquanto uma semente que necessita ser cultivada, ou seja, “a infância não pode ser outra coisa senão onde se assenta, portanto, a base a partir da qual se atingem as metas superiores” (Narodowski, 2006, p. 44). Contudo, Narodowski (2006, p. 46) aponta que o ideal comeniano “não se aprofunda nas qualidades empíricas do ser infantil, nem teoriza” sobre o sujeito infantil, ou seja, “a infância não é uma substância que necessita ser cristalizada”. Ainda que Comenius não se aprofunde nas qualidades empíricas do sujeito infantil, o educador checo aponta fortemente que a infância precisa ser educada na sua totalidade, sendo realizada fora do seio familiar, haja vista a falta de tempo dos pais e dos conhecimentos necessários para educar os filhos, destacando para a necessidade dos processos de escolarização.

Posteriormente, percebemos a infância moderna liberal ligada ao pensamento educativo do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Vale dizer, contudo, que “Rousseau opera em sentido inverso a Comenius. Enquanto a infância comeniana é inferida de uma proposta pedagógica, da infância rousseauniana decorre um projeto educacional” (Weinmann, 2008, p. 136). Rousseau apresenta outro modo de conceber a criança, enfatizando a importância e necessidade de sua interação com o mundo, com o meio social, com os homens e, principalmente, com a Natureza. Em síntese, para o pensador suíço, a criança desenvolve sua inteligência e o que tem de potencialidades de sua própria Natureza em contato com o mundo (MARÍN-DÍAZ, 2010).

Rousseau (1979) percebe um sujeito mais livre, que busca em si e por si mesmo, sendo que o papel do adulto é proteger, e não julgar. Vemos emergir uma educação mais centrada na criança e nas suas características particulares. É especialmente na obra Emílio ou da Educação (1762), que “a infância significa o homem em seu estado natural, antes de ser degenerado pela cultura” (Marín-Díaz, 2010, p. 201). É a partir do interior, das particularidades de cada indivíduo que ocorre a educação. O sujeito seria “o fator especial do trabalho instrutivo, um fator dotado com uma capacidade de autorregulação que deveria ser integrada na estratégia de governamento” (Marín-Díaz, 2010, p. 202). Rousseau (1979, p. 78) salienta:

Não deis a vosso aluno nenhuma espécie de lição verbal; só da experiência ele as deve receber; não lhe inflijais nenhuma espécie de castigo, pois ele não sabe o que seja cometer uma falta; não lhe façais nunca pedir perdão, porquanto não pode ofender-vos. Desprovido de qualquer moralidade em suas ações, nada pode ele fazer que seja moralmente mal e que mereça castigo ou admoestação.

Nesta citação podemos identificar a defesa de um progresso natural infantil, bem como a necessidade de preservar a inocência colada na criança. Em relação aos adultos, caberia organizar o ambiente, prevenir ações indesejadas, cuidar e monitorar a criança, para que nada de mal lhe acontecesse, ou seja, “deixando as crianças em plena liberdade de exercer sua travessura, convém afastar delas tudo o que possa torná-la dispendiosa e não deixar ao seu alcance nada frágil ou preciso” (Rousseau, 1979, p. 79). Rousseau (1979, p. 82) ainda afirma que é necessário educar Emílio no campo, “longe dos maus costumes da cidade, que o verniz com que se cobrem torna sedutores e contagiosos para as crianças”, pois é preciso que Emílio “trabalhe como um camponês e pense como um filósofo, para não ser tão vagabundo como um selvagem. O grande segredo da educação é fazer com que os exercícios do corpo e os do espírito sirvam sempre de descanso uns para os outros” (Rousseau, 1979, p. 261).

Rousseau (1979, p. 79) acredita em uma educação natural e isolada, fazendo menção sobre a infância da seguinte forma: “o mais perigoso intervalo da vida humana é o que vai do nascimento à idade de doze anos. É o momento em que germinam os erros e os vícios”. Para Rousseau, é necessário deixar a criança chegar ao adulto, pois ela não deixará de fazer questionamentos. Desta forma, da educação de Emílio, podemos perceber a centralidade que Rousseau confere à criança, em detrimento do adulto, de modo que lhe cabe mais o acompanhamento do que a instrução.

Em Emílio, temos o primeiro território de emergência de novos enunciados que funcionará até primórdios do século XX enquanto operador de regimes de verdade para os discursos pedagógicos moderno-liberal (Noguera-Ramírez, 2011). Emílio, um livro de observação da criança, constitui-se um esboço de um novo regime de veridição no campo pedagógico, que será atualizado e desenvolvido um século mais tarde, sobretudo pela Psicopedagogia, tornando-se um saber especializado no governamento de si e dos outros (Noguera-Ramírez, 2011). Pela pedagogia de Rousseau, a postura do professor diante da criança deve estar sincronizada com suas necessidades essenciais com a finalidade de conservá-la das nocivas influências de uma sociedade corrompida. É de deixar a infância seguir seu percurso natural rumo à idade adulta enquanto condição para que a criança se torne cidadão digno desse novo contrato social. Assim como todo o projeto educacional da Modernidade, Rousseau não envolve em seu projeto os aspectos cognitivos, apenas enfatiza e endossa os aspectos morais. Em Rousseau, a infância deve submeter-se à racionalidade adulta, pois, como lhe falta o juízo, é necessário que o adulto intervenha exercendo a sua autoridade de forma moderada, de modo que respeite a natureza da criança, não distorcendo o caráter do seu desenvolvimento para a idade adulta.

É exatamente na interlocução entre adulto e criança que os valores morais do adulto podem se contrastados com o da criança; criança essa que está ali para ser instruída e educada nos moldes da norma vigente daquele espaço e tempo. O movimento gerado entre adulto e criança se caracteriza pela ambiguidade a respeito da infância, algo que pode ser visto na obra Emílio.

Ao se questionar sobre o que é a criança e, ao mesmo tempo, sobre a maneira adequada de educá-la e instruí-la, o adulto começa a situar-se, por sua vez, em relação a esse ser recém-chegado, idêntico a ele mesmo e, contudo, tão diferente, seu outro promissor, que ele deixou de ser. A pedagogização da infância produz um efeito de compensação. Ela problematiza o adulto relativamente aos valores que ele encarna: se, física e intelectualmente, ele continua sendo superior aos seus pequenos interlocutores, existe algo que tem relação com o sentimento, não com o intelecto, um charme particular que emana da infância inventada e acaba por contagiá-lo (Schérer, 2009, p. 20, grifo do autor).

Concordamos com Narodowski (2001, p. 40) ao dizer que existem autores que defendem Rousseau como um pensador da liberdade, mas não é esta sua posição, pois “a relação entre a criança e o adulto é necessariamente assimétrica, em virtude de uma cláusula fundante da mesma: a criança é heterônoma por ser criança, enquanto o adulto é autônomo justamente por ser adulto”. Em Emílio a educação é eminentemente negativa, de modo que seu princípio fundamental é o de não perturbar o desenvolvimento natural da infância (Weinmann, 2008). Em Emílio, também se encontra uma descrição de como uma formação mal orientada pode distorcer a alma infantil:

Ao nascer, uma criança grita; sua primeira infância passa-se chorando. Ora a sacodem e a mimam para acalmá-la, ora a ameaçam e lhe batem para que fique quieta. Ou lhe fazemos o que lhe agrada, ou exigimos dela o que nos agrada; ou nos submetemos às suas fantasias, ou a submetemos às nossas: não há meio termo, ela deve dar ordens ou recebê-las. Assim, suas primeiras ideias são as de domínio e servidão. Antes de saber falar ela dá ordens, antes de poder agir, ela obedece e, às vezes, castigam-na antes que possa conhecer seus erros, ou melhor, cometê-los. É assim que cedo vertemos em seu jovem coração as paixões que depois imputamos à natureza, e após nos termos esforçado para torná-la má, queixamo-nos de vê-la assim (Rousseau, 1979, p. 25-26).

Os princípios rousseaunianos deram inspiração para o pensamento pedagógico no século XIX, e Fröebel, considerado um grande pedagogo da infância, foi o primeiro exemplo a concretizar os seus pressupostos (Bujes, 2004). Entretanto, estes princípios não se inseriram de forma imediata no campo da prática: “será necessária toda a ‘revolução romântica’, toda a imposição de uma visão positiva da ciência e mais um século de intervalo para que elas revivam num núcleo ‘renovador’ da Pedagogia, no alvorecer do século XX” (Bujes, 2004, p. 49). A linguagem presente nas narrativas pedagógicas modernas, que trazem conceitos de liberdade e natureza e que, estão relacionados ao desenvolvimento, crescimento, maturação, motivação e meio, estão no cerne nas narrativas pedagógicas recentes (Noguera-Ramírez, 2011).

Na mesma perspectiva de Comenius e Rousseau, Kant (2006), que viveu entre 1724 e 1804, na obra Sobre a pedagogia, escreve sobre a pedagogia e faz distinção entre “instrução” e “disciplina”, associando instrução à produção de pensamento crítico racional e autonomia, enquanto a disciplina se associa ao adestramento e a obediência, onde o sujeito animalesco pode ser transformado em humano. Focando ainda mais nesta segunda definição, Kant (2006, p. 12) afirma que “as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que se acostumem a obedecer e a ficar sentadas, obedecendo pontualmente o que lhes é mandado”. Ainda, Kant (2006) entende que o sujeito, dentre todos os animais, é o único suscetível a ser educado, porém, a criança, por ter inclinações à teimosia, não é livre e precisa ser educada para se tornar uma pessoa. Neste caso, apenas a escolarização da criança pode solucionar este conflito. Vale destacar, contudo, algumas diferenciações de pensamento entre Rousseau e Kant.

Rousseau e Kant versam sob duas faces do mesmo sistema de pensamento. A infância de Rousseau é a inocência, em Kant o homem recebe a culpa pela sua menoridade2. Rousseau quer proporcionar preceptor aos menores, enquanto que Kant detesta submeter os pensamentos à tutoria de outras pessoas. Rousseau estima o bom selvagem, o estado de natureza do homem, removendo Emílio do ambiente social corrompido. Kant defende a razão de uso público como condição para que o homem se livre da menoridade. Rousseau se interessa por áreas específicas da infância, isto é, as habilidades motoras, a imaginação, a percepção e a sensação. Kant está preocupado com a compreensão. Rousseau assume a infância como não-razão e a usa como uma meta para orientá-la em direção à racionalidade (Weinmann, 2008). Apesar dessas diferenciações, o que vale dizer é que tais pensadores ocuparam, pelos seus discursos, espaços estratégicos que os situaram para almejar uma formação do cidadão racional.

Deste modo, princípios jesuíticos, princípios comenianos e o pensamento de Locke tinham a intenção de transformar a criança em um adulto virtuoso a partir da instituição escolar. Vale mencionar que em Locke, a infância é uma folha em branco, ou ainda, uma tábula rasa, de modo que nela a educação precisa imprimir o conhecimento e o autocontrole (Narodowski, 2013). E assim, um entendimento moderno de infância foi sendo moldado pelos discursos de religiosos, reformadores, moralistas, ideológicos sociais, sendo aos poucos adaptado, apropriado e difundido pelas diversas instituições sociais desse período. A escola foi uma dessas instituições onde as crianças tornaram-se infantes através do disciplinamento exaustivo, forjando moldes tradicionais de pensar, agir e sentir (Marín-Díaz, 2010). Com a disseminação da escola pelo território social, a noção de infância moderna clássica foi tornando-se natural entre a população. No século XIX, a escola passa a atingir maior inserção de crianças, não sendo mais um privilégio de minorias numéricas abastadas, e as propostas institucionais ganham força internacional (Kuhlmann Jr.; Fernandes, 2004). Com o advento de novas demandas, novos modos de pensar a educação foram sendo erigidos pela necessidade de controle social. Os grupos minoritários abriram condições para que diversificadas teorias que tratassem de sujeitos da diferença, incluíndo as crianças fossem pensadas.

CONCLUSÃO

A infância constituída na Modernidade teria chegado ao fim, de modo a ser nada além da ideia da “areia entre uma maré vazante e outra montante”? (Corazza, 2001, p. 73). Mal se havia compreendido e estudado a ideia de infância enquanto uma construção social, pesquisada por Ariès em 1960, quando em 1982, o sociólogo estadunidense Neil Postman espantou a comunidade científica quando anunciou em seu livro a morte da infância. De acordo com Buckingham (2007, p. 17),

A metáfora da morte está por toda parte, e não está menos nas livrarias, nas quais os textos sobre a morte da infância se encontram junto aos que se ocupam da morte do eu, da sociedade, da ideologia e da história. Muitas vezes parece que esses debates só permitem a reduzida opinião entre o desespero fátuo e o otimismo nervoso.

Sobre a morte da infância, Buckingham (2007) parece apontar que o enfraquecimento das fronteiras entre o mundo adulto e o mundo infantil acontece de forma lenta e irremediável, ocasionado pelas mudanças na organização familiar, as tecnologias digitais, dentre outros fatores. Marín-Diaz (2010), ao problematizar os discursos sobre a morte da infância e o surgimento de uma infância pós-moderna no contexto contemporâneo, sinaliza que a argumentação dos defensores desses discursos, para fundamentá-los, além da influência das recentes tecnologias digitais e do desaparecimento das fronteiras entre o mundo infantil e o adulto, o que está acontecendo é a passagem de características da infância moderna clássica para a infância moderna liberal.

Corazza (2000) formula o conceito de fim da infância de forma muito interessante, mas não no sentido de descrever uma questão rematada ou irremissível, mas para indicar como esse fim é uma forma de discurso para que a infância possa se produzir ininterruptamente, custe o que custar. Ressalta que precisamos deixar de lado a tonalidade nostálgica e apocalíptica com que esse discurso de fim se introduziu. E assim, “[p]or enquanto, talvez, se possa dizer o fim-da-infância, sim; porém, simplesmente como o nome do enunciado mais atual de incitamento da infantilidade, promovido pelo jogo de poder e pela explosão do jogo discursivo acerca do infantil” (Corazza, 2000, p. 206). Jogos que, apontados para o desaparecimento da infância, se revestem de um alto valor moral; fazendo com que a vida lute contra a morte dentro do dispositivo de infantilidade e redistribuindo o poder, conduzindo tal dispositivo para revigorar o poder daquelas crianças consideradas como enfraquecidas, impondo limites, fazendo todo um movimento de fortalecimento e “levando-nos a continuar obsessivamente falando e praticando uma infância, mesmo que perdida, a ser resgatada, defendida, e perpetuamente produzida” (Corazza, 2000, p. 207).

Então, o discurso sobre o fim da infância é a forma atual com que nossa sociedade incita a infantilidade, também na tentativa de causar um sentimentalismo da morte da infância. Esse tipo de incitamento era diferente no século XIX, em que por meio da educação formal obrigatória, do aumento da idade mínima para a vida adulta e dos esforços para eliminar o trabalho infantil, as crianças eram sistematicamente separadas do mundo adulto. O romantismo, enquanto expressão cultural da ascensão da burguesia, concedia às crianças uma bondade e pureza que lhes era natural, tratando-as como representantes dos ideais naturais, opondo-se à industrialização e urbanização. De acordo com Buckingham (2007, p. 22), “foi também nessa época que o estudo científico da infância mais notadamente na forma da pediatria e da psicologia do desenvolvimento começou a se estabelecer; e esse trabalho logo chegou à literatura popular de aconselhamento dirigida aos pais”. Para além da proliferação de discursos sobre a infância e as crianças, a literatura infantil e a indústria de brinquedos explodiram sem precedentes, ganhando muita força e contribuindo para demarcar o comportamento infantil. Mas isso tudo foi muito reforçado pela mudança do status social da infância, de modo que a diferença entre crianças e adultos era fortificada pelas práticas sociais (Buckingham, 2007).

Atualmente, as crises na educação, na família, nas relações público-privadas, etc. estão enfraquecendo profundamente a preservação da concepção de infância construída na Modernidade, concepção essa essencialmente da burguesia. Assim, é a partir do momento em que a sociedade percebe (não totalmente de forma consciente, ressaltasse) que a infância está enfraquecida, que ela resgata sua força. O resgate dessa força segue a tendência da racionalização de todos os âmbitos sociais. A infância, por ser frágil e essencial, requer ações que assegurem a sua existência. À vista disso, ela se tornou uma demanda não somente moral e política, mas principalmente jurídica, técnica e mercadológica. Por isso a exacerbada preocupação em garantir as condições da infância, tornando o sentimento de infância em direitos da infância, promulgando legislação específica para a proteção desses direitos, e o governo e a sociedade civil tomando medidas para coibir todos os tipos de violência contra a criança.

Mesmo que as condições que dão concretude para a existência social da infância estejam em crise, ela não desaparecerá de forma automática, pois é um dos pilares do nosso estilo de vida e uma figura necessária desde o contexto moderno. No início da Modernidade, uma nova relação do sujeito com o corpo e a vida começaram a se delinear, de modo que emergia uma ruptura com a tradição e a natureza. A vida de uma pessoa passa a ser não mais considerada a partir de um vínculo na sucessão de geração em geração, de modo que a morte de uma pessoa passou a ser considerada como um fim. Com isso, a criança se apresenta como uma possibilidade eterna para além da morte dos pais.

Por isso que desvendar a infância e conhecer seus detalhes mais sutis, tornou-se uma parte necessária do processo de objetivação (e subjetivação) do sujeito moderno. A infância encarna o mesmo paradoxo de ser o outro, mas também o mesmo do adulto. Sendo assim, o adulto consegue enxergar uma existência que é diferente da dele, mas que nela está contida um germe, em potência. A infância parecia esconder um certo segredo, como se carregasse uma verdade mais básica sobre o sujeito. Dominar este segredo possibilita que os adultos atuem no corpo e na alma das crianças para moldá-las de acordo com os requisitos da nova era emergente. Foi por meio desse processo de saber e dominar que a infância se transformou em uma das experiências basilares dos sujeitos nas sociedades ocidentais modernas. Não há como simplesmente nos livrar dos pensamentos sobre infância, porque não há como (pelo menos por enquanto) pensar sem referência a ela (Corazza, 2000). Sua verdade nos é imposta como uma necessidade subjetiva. Nossa cultura a vê como algo que necessita ser mantido, não só porque por meio das crianças garantiremos o futuro da espécie, mas, principalmente, porque a infância com esse valor moral elevado, já se tornou um bem em si mesmo.

Agradecimentos

Os autores agradecem o financiamento para a realização deste estudo fornecidos pelas CAPES e CNPq.

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Weinmann, A. O. (2008). Infância: Um dos nomes da não razão. 2008. 259f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Notas

1 Este artigo situa-se no âmbito de um projeto de pesquisa que visa discutir as condições de proveniência e emergência dos discursos em dissertações e teses defendidas em Programas de Pós-Graduação em Educação sobre o brincar das crianças em tempos digitais e perscrutar os dispositivos agenciados por tais discursos e seus potenciais efeitos. Deste modo, este texto é resultado do primeiro movimento em que busca discutir as bases da arquitetura discursiva que assentaram a infância no mundo moderno ocidental, tendo grande inspiração no legado do pensamento Iluminista dos séculos XVIII e XIX. Buscamos mostrar as condições que possibilitaram a emergência de discursos das crianças como “inocentes”, que é necessário mantê-las distantes das tecnologias digitais, dando condições para aquilo que no nosso estudo estamos chamando de “dispositivo da periculosidade”.
2 A título de exemplo, Kant (1985, p. 100), ao responder o que é o 'Esclarecimento' ('Aufklürung'), vai dizer o seguinte: "Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufhlärung]".

Notas de autor

1 Universidade La Salle, Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil.
1 Universidade La Salle, Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil.

adilsonhabowski@hotmail.com

Información adicional

Como citar: Habowski, A. C., & Ratto, C. G. (2022). Bases of discursive architecture that settled the invention of childhood in modernity. Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e17963. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17963

Contribuições dos Autores: Habowski, A.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Ratto, C.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.



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