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Sondar, orientar e qualificar: reverberações da Lei nº. 5.692/1971 e as expectativas para a formação profissional (Curitiba –1971-1983)
Jorge Luiz Zaluski
Jorge Luiz Zaluski
Sondar, orientar e qualificar: reverberações da Lei nº. 5.692/1971 e as expectativas para a formação profissional (Curitiba –1971-1983)
Probe, guide and qualify: reverberations of Law no. 5,692/1971 and expectations for professional training (Curitiba – 1971-1983)
Sondear, orientar y calificar: reverberaciones de la Ley nº. 5.692/1971 y expectativas de formación profesional (Curitiba – 1971-1983)
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 15, núm. 34, e17685, 2022
Universidade Federal de Sergipe
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Resumo: Este texto tem como objetivo analisar as atividades desenvolvidas pelo Serviço de Orientação (SOE), na Escola Tiradentes, em Curitiba-PR, durante os anos de 1971-1983. Para isso, como documentação histórica, foram utilizados Relatórios do Serviço de Orientação (SOE) disponibilizados no arquivo da instituição. As observações de Benjamin Cowan, sobre a noção de pânico moral, auxiliam na observação do documento. Com base na pesquisa, as atividades desenvolvidas pelo SOE teve forte aproximação com os preceitos compartilhados pela ditadura militar, e serviram como uma forma de orientar a formação dos estudantes para assumirem atividades profissionais sustentadas por distinções de classe e gênero.

Palavras-chave: Adolescentes, Gênero, Lei nº. 5.692/1971, Serviço de Orientação.

Abstract: This text aims to analyze the activities developed by the Guidance Service (SOE), at Tiradentes School, in Curitiba-PR, during the years 1971-1983. For this, as historical documentation, Guidance Service Reports (SOE) available in the institution's archive were used. Benjamin Cowan's observations on the notion of moral panic help to observe the document. Based on the research, the activities developed by SOE had a strong approximation with the precepts shared by the military dictatorship, and served as a way to guide the training of students to take on professional activities supported by class and gender distinctions.

Keywords: Teenagers, Gender, Law no. 5,692/1971, Guidance Service.

Resumen: Este texto tiene como objetivo analizar las actividades desarrolladas por el Servicio de Orientación (SOE), en la Escola Tiradentes, en Curitiba-PR, durante los años 1971-1983. Para ello, como documentación histórica, se utilizaron los Informes del Servicio de Orientación (SOE) disponibles en el archivo de la institución. Las observaciones de Benjamin Cowan sobre la noción de pánico moral ayudan en la observación del documento. Con base en la investigación, las actividades realizadas por la SOE tuvieron una fuerte aproximación con los preceptos compartidos por la dictadura militar, y sirvieron como una forma de orientar la formación de los estudiantes para asumir actividades profesionales sustentadas en distinciones de clase y género.

Palabras clave: Adolescentes, Género, Ley nro. 5.692/1971, Servicio de Orientación.

Carátula del artículo

Publicação Contínua

Sondar, orientar e qualificar: reverberações da Lei nº. 5.692/1971 e as expectativas para a formação profissional (Curitiba –1971-1983)

Probe, guide and qualify: reverberations of Law no. 5,692/1971 and expectations for professional training (Curitiba – 1971-1983)

Sondear, orientar y calificar: reverberaciones de la Ley nº. 5.692/1971 y expectativas de formación profesional (Curitiba – 1971-1983)

Jorge Luiz Zaluski1
Universidade Estadual do Centro-Oeste, Brasil
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 15, núm. 34, e17685, 2022
Universidade Federal de Sergipe

Recepción: 10 Junio 2022

Aprobación: 18 Octubre 2022

Publicación: 16 Diciembre 2022

INTRODUÇÃO

A historiadora da educação Alicia Mariani Lucio Landes da Silva (2021), ao estudar o Serviço de Orientação (SOE), indica que esta atividade pedagógica chegou ao Brasil no fim do século XIX, sob influência dos saberes da Educação e da Psicologia. As primeiras atividades relativas à Orientação Profissional se deram em instituições modelo, tal como o Liceu de Artes e Ofício de São Paulo (1924). Já na década seguinte, o professor Lourenço Filho criou o Serviço Público de Orientação Profissional, com o qual, por meio dos estudos da Psicologia, se tinha em vista dar um atendimento diferenciado aos/as estudantes. Era preocupação daquele momento formar trabalhadores/as para atuarem no setor considerado mais adequado. A partir do proposto por Lourenço Filho, essa atividade pedagógica foi incorporada às Leis Orgânicas de Ensino Secundário de São Paulo. Mais tarde, quando promulgada a Lei nº. 4.024/1961, a legislação fixou normas para a formação do orientador educacional em âmbito nacional. Para Silva, (2021, p. 19), “foram construídas gradativamente no intuito de adequar e institucionalizar práticas que algumas instituições educacionais vinham desenvolvendo”.

Com a Lei nº. 5.692/1971, que instituiu a obrigatoriedade da sondagem de aptidões nas escolas, Silva destaca que as funções do orientador educacional foram ampliadas, pois, a reformulação da legislação, como destaca Silva, (2012, p. 39), “passou a ser designada a um campo mais integrado com os demais sujeitos da comunidade escolar, além de se tornar um indicador de decisões profissionais do aluno através do aconselhamento vocacional”. Assim, reforçava-se a relação de que as decisões da equipe escolar deveriam ser tomadas sob a intenção de conciliar a “vocação” do discente com o mercado de trabalho.

As atividades de orientação educacional foram responsáveis pela produção de um considerado número de fontes. São relatórios, entrevistas, materiais pedagógicos, dentre os mais variados documentos que auxiliam para compreender a dinâmica das instituições, de parte da realidade social, e ainda, na medida do possível, adentrar no cotidiano familiar. Assim, diante da vasta possibilidade de investigação, a partir da seleção de Relatórios do Serviço de Orientação Educacional desenvolvidos na Escola Tiradentes, em Curitiba-PR, entre os anos de 1971-1983, busca-se analisar os documentos selecionados, com o objetivo de identificar parte das reverberações da Lei nº. 5.692/1971, sobre a obrigatoriedade de desenvolver a “sondagem de aptidão”, e, a partir das informações, analisar quais as expectativas de futuro construídas para os/as estudantes da instituição.

Benjamin Cowan (2016), em sua obra, “Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil”, ainda não traduzida no Brasil, analisou discursos que por aqui circularam em contextos autoritários, utiliza, em sua investigação, a noção de “pânico moral”, idealizado pelo sociólogo sul-africano Stanley Cohen na década de 1970. A partir dessa compreensão, por meio da análise documental, entre elas livros didáticos e normativas escolares, Cowan indica que, na tentativa de controlar a sexualidade dos/as estudantes, e isso desencadeou uma série de ações compreendidas como “pânico moral”, atos com que se pretendia “proteger a juventude” e livrá-la dos perigos da subversão (Cowan, 2016). Parto do pressuposto que esse discurso norteou a construção da Lei nº. 5.692/1971, bem como a reorganização do Serviço de Orientação Educacional. Assim, a análise dos documentos selecionados parte de consonância com as observações de Cowan, sendo o pânico moral como um fio condutor da análise aqui exposta.

Importante destacar que antes da referida lei, o Decreto-lei número 477, de 26 de fevereiro de 1969, havia definido normas de conduta para serem cumpridas em todo o âmbito educacional. O documento que “define infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares” (Brasil, 1969) visava restringir as práticas educacionais desenvolvidas nas escolas. Conforme a legislação, considerava-se infração aquele/a que praticasse “atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados”, ou utilizasse “dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública”. O decreto-lei buscava, então, controlar as possíveis atividades pedagógicas que poderiam levar os/as estudantes para o que foi considerado como descaminhos, não associados à profissionalização.

Em Curitiba, o Colégio Estadual do Paraná (CEP), vinha realizando ações por meio do Serviço de Orientação Educacional (SOE), criado em 1968. Quando promulgada a Lei nº. 5.692/1971, na tentativa cumprir as prescrições da legislação, através da Resolução nº. 3.601/SEC, foi criado o Complexo Educacional do Colégio Estadual do Paraná, Decreto nº. 1.358, de 23 dezembro de 1975, que, além do CEP, correspondia um conjunto de mais sete instituições escolares, sendo elas: Escola Tiradentes; Escola Dr. Xavier da Silva; Escola Professor; Escola Conselheiro Zacarias; Escola Dona Carola; Escola Aline Picheth e Escola Amâncio Moro. Na análise aqui apresentada, foi utilizado a documentação da Escola Tiradentes. A partir dessa seleção, acredita-se que seja possível compreender a dinâmica das atividades desenvolvidas por todo o Complexo Educacional, bem como indicar as particularidades da instituição.

O CEP, já vinha realizando ações para orientar os estudantes em relação à profissionalização. Com a criação do SOE, ainda restrito ao CEP, tinha-se a pretensão de indicar caminhos para o futuro dos/as estudantes. Contudo, para atender à Lei nº. 5.692/1971, o SOE, em meio à implementação do Complexo Educacional, foi responsável por desenvolver estratégias para a “sondagem de aptidões” e se manteve em consonância com as recomendações do Decreto-lei número 477, de 26 de fevereiro de 1969. A equipe do CEP e o SOE elaboraram projetos, regimentos e planos, como indica Silva, (2019, p. 50), “como forma de dispositivos de controle, na tentativa de ajudar o comportamento dos alunos e, consequentemente, dos demais sujeitos da comunidade escolar (pais, professores, funcionários, etc.)”. A orientação vocacional dos/as estudantes esteve imersa numa rede discursiva que visava a reforçar os valores morais prescritos nas legislações.

O SOE era composto por pedagogas especializadas na área de orientação escolar. Elas desenvolveram regimentos, normas e encaminhamentos pedagógicos para orientar as atividades desenvolvidas nas instituições que integravam o Complexo Educacional do Colégio Estadual do Paraná. Entre estes documentos, destacava-se o Plano Diretor, por ser esta a principal orientação para o desenvolvimento de ações de formação para o trabalho no âmbito do SOE.

O Plano Diretor foi elaborado em 1974 com o objetivo de servir como um guia de ações a serem desenvolvidas no complexo educacional, que naquele momento ainda estava em formação. O Plano Diretor, produzido de forma datilografada e encadernado, continha 151 páginas. O documento é composto por texto, tópicos, esquemas de síntese e organograma, onde são indicadas etapas de atividades, vertentes, objetivos pedagógicos, dentre outras informações. Tem como premissa básica a eficácia e a eficiência, como formas de acelerar ações pedagógicas sob um ritmo de empresa, pelo pressuposto de que deveriam estar aliados à organização, à capacitação, aos mecanismos e ao currículo como instrumentos básicos da ação docente.

O Plano Diretor, (1974, p. 08), indicava que, “a partir da sétima série, serão oferecidas atividades diversificadas no setor de Artes Industriais, de Nutrição e Estética e de Comércio e Escritório, que os alunos livremente escolherão anualmente”. Ou seja, com a distribuição de turmas com base na distinção por idade, sexo e série, as atividades para fins profissionais ocorreriam de forma concentrada na Unidade Centro, local onde funcionavam as 7ªs e 8ªs séries. Ponto esse que gradativamente foi se alterando, quando, no ano de 1980, a Escola Tiradentes já havia completado todo o ciclo do ensino fundamental.

A atenção em orientar os/as estudantes para a formação profissional constituiria um grande esforço coletivo de toda a equipe educacional do Complexo Educacional, principalmente a partir de ações desenvolvidas pelo SOE. O Plano Diretor informava que esse setor deveria dispor de:

- Serviço de apoio ao educando, constituindo-se no conjunto de princípios e normas que permeiam o seu ajustamento e ao pleno rendimento de seus recursos pessoais.

- Informações ao corpo docente e à direção sobre as necessidades e possibilidades dos alunos e indicações das situações educativas adequadas para cada caso.

- Inter-relação entre programas da escola e vida da comunidade, envolvendo a família, os empregadores, as agências educativas, assistências e recreativas (Paraná, 1974, p. 9; grifos do autor).

A narrativa do documento expõe o caráter ideológico predominante na construção dos procedimentos pedagógicos para o desenvolvimento das atividades do SOE, com atenção voltada à lógica da produção e da qualidade. O texto do Plano Diretor demostra, ainda, que o ajustamento moral dos/as estudantes contribuiria para seu rendimento no trabalho. Os melhores resultados em sala de aula garantiriam a formação de trabalhadores/as exemplares, desde que estivessem alinhados às normas estabelecidas pelo reforço de uma moral para o trabalho. Uma perspectiva que indicava que, como indica Silva, (2019, p. 59), “o jovem que se ajustava na escolha de uma profissão estaria contribuindo para o crescimento da Nação”.

O Plano Diretor propunha, ainda, a realização de um “diagnóstico da realidade”:

- grau de estabilidade da família;

- a localização da residência com relação à UNICEP;

- os meios de acesso às unidades componentes;

- as instituições e associações básicas que polarizam as ações humanas na comunidade;

- os tipos de atividades educativas, de recreação e econômicas desenvolvidas na comunidade.

Caracterização da comunidade escolar, com:

- levantamento do nível socio-econômico cultural dos pais, e estudo da composição da família dos alunos e a distribuição da clientela escolar por idade, sexo e turmas, pela escolaridade anterior e condições de saúde, aspirações e valores (Paraná, 1974, p. 9; grifos do autor).

Com base na prescrição do Plano Diretor, as pedagogas do SOE tinha autonomia para investigar as condições de vida dos/as estudantes por meio de “entrevista com as famílias para levantamento sócio-econômico cultural”. A entrevista tinha por objetivo produzir dados que seriam utilizados nas atividades pedagógicas da sondagem de aptidões. A incisiva atenção para o ajustamento moral dos/as estudantes relacionava-se com, como destaca Silva, (2012, p. 45), “uma preocupação em conhecer o aluno em seus aspectos financeiros e vocacionais, porque ambos deveriam estar em consonância”. Assim, por mais que os/as estudantes construíssem expectativas de futuro para a formação profissional e as relações de trabalho, essa não deveria estar distante da realidade em que viviam. A educação escolar da população deveria contribuir para a manutenção da ordem social. De certo modo, tal concepção favoreceria o reforço/naturalização das desigualdades sociais, como as relativas às relações de gênero e classe social.

O Plano Diretor, (1975, p. 107), conceituava, “aptidão como o nível de excelência atingido pelo indivíduo em determinadas habilidades, que pressupõe capacidade mais treinamento”. Diante da ausência de um debate para a mobilidade social e, conforme as prescrições do Plano Diretor, as supostas habilidades dos/as estudantes estariam associadas às condições de vida de cada estudante. Para identificar as “possíveis aptidões”, a equipe do SOE tinha o compromisso de, além do contato com as pessoas da família por meio de entrevistas ou reuniões, fazer com que os/as estudantes respondessem constantemente a testes. A partir de seu resultado, os/as professores/as deveriam incorporar em suas aulas estratégias de ensino que permitissem aos/às estudantes perceber que os conteúdos estudados em sala eram úteis em diferentes áreas de trabalho.

A “sondagem de aptidões”, de acordo com o Plano Diretor, deveria ser desenvolvida com base na distinção serial. O documento propunha os seguintes encaminhamentos:

Da 5ª e 6ª série do 1º Grau: SONDAGEM DE APTIDÕES

- Levantamento do nível mental através do Raven e I.N.V (Bateria CEPA).

- Levantamento da área emocional através da técnica do Faz de Conta (em colaboração com outras áreas).

- Teste do Desenho como instrumento de diagnóstico da personalidade.

- Teste de assimilação cultural.

- Ficha de Observação dos professores.

- Observação dos problemas – motores, foniáticos, pedagógicos e emocionais (juntamente com as outras áreas).

- Entrevistas com pais para falar de suas profissões.

- Ficha cumulativa.

Da 7ª e da 8ª série do 1º grau:

- Levantamento de interesses através do Catálogo de livros (Morey Otero)

- Inventário ilustrado de Interesses de Harold Geist ou Inventário de Angelini

- Teste de Aptidões – aplicação da D.A.T – Bateria CEPA – para determinar o tipo de raciocínio (mecânico – verbal espacial, etc.).

- Bateria de sondagem do fator G.

- Ficha de observação do professor.

- Entrevistas com profissionais da comunidade.

- Monografias sobre as várias profissões (juntamente com outras áreas).

- Album de profissões.

- Auto-biografia do futuro (com área de Comunicação e Expressão).

- Observação a respeito do desempenho e participação do discente nas atividades de iniciação profissional (Paraná, 1974, p. 10; grifos do autor).

Em estudo, Silva já havia identificado que essas prescrições integravam o Plano Diretor do Colégio Estadual do Paraná ainda em 1971. As ações para o levantamento da “sondagem de aptidão” foram implementadas em todas as escolas que passaram a integrar o Complexo Educacional. Como destaca Silva, (2012, p. 45), “aspectos psicológicos eram observados através da escrita, desenho e teatro feitos pelo aluno, assim os profissionais da educação traçariam seu perfil”. A utilização (e desenvolvimento) de testes vocacionais esteve presente durante o desenvolvimento da Psicologia ao longo do século XX. Ana Paula Porto Noronha, Fernanda Andrade de Freitas & Fernanda Ottati analisaram oito instrumentos de avaliação psicológica em testes vocacionais em obras publicadas no Brasil. Constataram que alguns desses métodos avaliativos constavam no Plano Diretor. Como indicam Noronha et al. (2003, p. 289), o estudo “revelou que os instrumentos, de maneira geral, não possuem as especificações necessárias relacionadas aos estudos de padronização e de validação aos quais deveriam ser submetidos”.

Para os autores, a ausência de maior controle para a publicação das obras que apresentavam esses testes permitiu a ampliação da circulação de, como menciona as autoras Noronha et al. (2003, p, 290), “instrumentos que não foram submetidos às provas reconhecidamente científicas” Pelo uso legitimado desses testes nas escolas, os/as estudantes estiveram sujeitos à inconfiabilidade de todo o procedimento adotado para a “sondagem de aptidão”, sobressaindo a análise dos dados a partir das normas, condutas e valores morais aceitos (ou aderidos) pela equipe da instituição, na tentativa de garantir uma formação dos/as estudantes como não desviantes.

Ao comparar as prescrições para os dois grupos - 5ª e 6ª séries e 7ª e 8ª séries -, é possível destacar que a distribuição de ações para o levantamento da suposta aptidão levou em consideração distinções de faixa etária. No primeiro grupo (5ª e 6ª séries), cujos estudantes estavam saindo da infância e entrando na “pré-adolescência”, as recomendações indicam que deveria existir maior participação na trajetória de vida e ensino dos/as responsáveis pelos/as estudantes. Para o segundo grupo (7ª e 8ª séries), que já havia ingressado na adolescência, deveriam ser levados em consideração os interesses e a participação de cada discente. A passagem para a adolescência não significava uma total autonomia na escolha sobre o seu futuro, mas que a formação das subjetividades dos/as estudantes já havia passado por um processo de formação que possibilitava que escolhessem seus projetos de futuro, a serem construídos a partir dos valores morais compartilhados pela instituição de ensino. Ou seja, como visto no primeiro capítulo, os/as estudantes teriam encontrado as suas “vocações profissionais” tendo em vista uma suposta autonomia e seus próprios interesses.

O Plano Diretor recomendou que a observação dos/as estudantes fosse realizada com base nos trabalhos “Inventário ilustrado de Interesses”, de Harold Geist, ou “Inventário de Angelini”, e “Levantamento de interesses através do Catálogo de livros”, (Morey–Otero), ambos da psicologia. As obras destes psicólogos também norteavam a construção dos modelos de testes de aptidão que deveriam ser utilizados nas escolas do Complexo Educacional. Essas obras possuíam, em sua maioria, ilustrações endereçadas a diferentes áreas profissionais, como veremos a seguir.

Nesse sentido, a grande área -“parte diversificada” –, do currículo seguido, exigia um grande esforço que ia além das aulas sobre os conteúdos trabalhados em sala. A Diretriz Curricular do Estado do Paraná apresentou, de forma breve, as três grandes áreas que deviam ser desenvolvidas na formação dos/as estudantes. No Plano de Ação, construído ao longo da década de 1970 para atender ao Complexo Educacional, priorizaram-se a área Industrial e a de Comércio e Serviços. Já o Plano Diretor, que expôs orientações para a formação profissional, indicou:”,

[A “Iniciação para o Trabalho”] será caracterizada por uma programação de atividades diversificadas, reunidas em três blocos, conforme o setor profissional em que se localizam, isto é, setor secundário ou terciário, subdividido em Saúde e Serviços.

As atividades de Iniciação para o Trabalho serão desenvolvidas em 360 horas. Dessas, serão destinadas 120 horas para as de Higiene e Enfermagem, obrigatórias para todos os alunos. Paras as 240 horas restantes haverá a possibilidade de escolha por parte do aluno, inscrevendo-se em um dos blocos e podendo permanecer no período seguinte” (Paraná, 1974, p. 109)

Com base no documento, a prescrição indicava que as instituições do Complexo Educacional deveriam priorizar debates sobre saúde e higiene. Talvez tenha sido esse um dos motivos, nas avaliações do grande grupo ciências, de as atividades da Escola Tiradentes se terem voltado, em sua maioria, a assuntos como, higiene, cuidados com a alimentação, a poluição, dentre outros. A educação dos sentidos para qualificar futuros profissionais oscilava entre garantir a formação básica para dar sequência aos estudos de segundo grau daqueles/as que não poderiam investir nos estudos. Muitos dos/as estudantes certamente recebiam parte destas informações de suas famílias. A adesão dessas prescrições deveria contribuir para a iniciação ao trabalho, desenvolvida em conjunto com a “sondagem de aptidões”, realizada pela equipe do SOE. Veremos, a seguir, a relação dos conteúdos trabalhados por este setor de ensino e como as atividades desenvolvidas contribuíram para forjar uma infância e adolescência ideais.

ESCOLA TIRADENTES: SILÊNCIO, SONDAGEM SENDO REALIZADA!

Adentrar nas informações levantadas pelo SOE da Escola Tirantes permite identificar adesões, negociações e distanciamentos na implementação do prescrito na Lei nº. 5.692/1971. Por apresentar informações sobre o público atendido, podemos identificar parte da realidade vivenciada pelos/as estudantes no ensino escolar, principalmente no cotidiano da sondagem de aptidões, assim como descrever características de famílias, dificuldades, dentre outras percepções sobre o contexto observado. Neste sentido, os relatórios anuais do serviço de orientação educacional auxiliam a estabelecer esse percurso. Como o movimentar da lente de uma lupa, que ora se aproxima ora se afasta do objeto observado, esses relatórios permitem perceber a adesão das legislações educacionais federais e estaduais analisadas neste estudo.

O Relatório Anual do Serviço de Orientação Educacional é composto por diferentes documentos, utilizados ao longo do ano para realizar a sondagem de aptidão dos/as estudantes. Composto por questionários sobre interesses profissionais, perfil da composição familiar e condição de renda de cada estudante, exames psicológicos sobre personalidade e profissões, dentre outros. Ao fim de cada ano, os documentos eram reunidos e encadernados em capa dura, verde, e escrito em letras douradas. O caderno não possui uniformidade na quantidade de páginas, cujo número varia de 180 a 380 folhas, não numeradas. O texto era construído com base nas atividades desenvolvidas para cada grupo de séries (manhã ou tarde), de acordo com o número de estudantes, de turmas, de fichas, de relatório de análise das informações, dentre outros. Essa ausência de padrão permite identificar os assuntos mais evidentes, e talvez considerados mais relevantes naquele momento. No arquivo da Escola Tiradentes foram encontrados relatórios de 1977 (tarde); 1980 (manhã); 1981 (manhã e tarde) e 1982 (tarde). Importante lembrar que a instituição mantinha a distribuição de turmas com base na distinção por sexo: meninos estudavam nas turmas da manhã e as meninas, no período vespertino.

A pesquisadora de educação Guacira Lopes Louro (2013) aborda, em seus estudos, as produções das “diferenças, distinções, desigualdades”, principalmente em relação às distinções de gênero. Para a autora, a escola produz essas desigualdades de forma constante (Louro, 2013). A Escola Tiradentes manteve (e reforçou) muitas das desigualdades de gênero. Parte-se aqui, então, do pressuposto de que tanto as atividades desenvolvidas pela equipe do SOE, quanto a própria composição dos relatórios anuais estão imersas nas definições dicotomizadas e naturalizadas sobre meninas/mulheres e meninos/homens.

Os relatórios que correspondem às turmas dos estudante meninos possuem uma diversificação de informações sobre a realização de atividades, questionários, cursos, testes e entrevistas para acompanhamento da formação do futuro adolescente como trabalhador. Já em relação aos relatórios das turmas de estudantes meninas, poucas informações foram coletadas. De forma naturalizada, as prescrições profissionais para as estudantes meninas indicavam atividades das áreas de costura e cozinha, essas que dispunham de espaços específicos na unidade centro do Colégio Estadual do Paraná. Tendo em vista as desiguadades de gênero instituídas, e com base na tentativa da manutenção/reforço dos valores sociais e morais, não seria necessário investir na formação das meninas como futuras profissionais nas distintas áreas do conhecimento, já que o ensino da escola serviria para aperfeiçoar algo que já seria “natural” a elas.

O SOE da Escola Tiradentes era composto pela seguinte equipe de professoras entre os anos de 1975-1982: Edith Luzia Fabricio de Melo; Elvira Rosinha Kurten de Vasconcellos; Aidê Tania Salomão Watanabe e Alair Vendramel Hatum. De acordo com os documentos, eram necessárias duas orientadoras educacionais para um conjunto de 200 estudantes. Em relação às informações dos relatórios, mesmo que houvesse diferenças de um ano para outro (e sequência anual incompleta), os documentos indicam que os procedimentos indicados no Plano Diretor eram seguidos pela referida equipe. O atendimento dos/as estudantes da 5ª e 6ª série era realizado juntamente com os/as responsáveis. Já o atendimento dos/as estudantes da 7ª e da 8ª série era realizado somente com o discente.

Para melhor compreensão das ações voltadas à iniciação para o trabalho, foram analisados os relatórios de 1980 e 1981, por se entender que neles há informações que permitem melhor identificar as reverberações da Lei nº. 5.692/1971 para o atendimento do SOE e, principalmente a partir desse ano, pelo fato de que a instituição passou a ofertar a 8ª série.

Com base nas diferenças de gênero que influenciaram a realização de atividades e a organização dos relatórios anuais da orientação educacional, nota-se que para as meninas houve maior atenção em saber das características da família (como: com quem mora; renda familiar; atividades profissionais dos/as responsáveis; situação conjugal; doenças e, pincipalmente com base na moral disciplinar, o acompanhamento do desempenho escolar e levantamento das características de liderança). Em conjunto com as informações distribuídas por turma, os relatórios possuem ainda, nas páginas finais, listagem das turmas com assinatura dos/as responsáveis para identificar se eles/as realizavam o acompanhamento escolar das estudantes, ponto esse que se assemelha ao do relatório do SOE para as turmas dos meninos.

Em 1980, conforme o relatório correspondente às turmas do período da manhã, dos 382 estudantes do período, apenas 15% residia próximo da escola, enquanto dos/as demais, 36% no centro, e 46% em outros bairros. Com apenas 3% de dados não informados, a maioria dos/as estudantes não morava próximo da escola, como visto no capítulo dois, isso dificultaria a mobilidade até ela. Na sequência, ao traçar o perfil profissional dos/as responsáveis, com base na distinção de sexo, o documento, informa que estes trabalhavam em múltiplas atividades, como as listadas.

Com base nas informações do levantamento é possível afirmar que os homens, em sua maioria, eram os principais responsáveis pela renda familiar. Estes realizavam diferentes atividades profissionais. As ocupações indicadas no relatório foram listadas a partir de seu grau de hierarquia social, em que se valorizavam algumas atividades em detrimento de outras. Nessa listagem, a atividade dos militares aparecia em primeiro lugar, dando sequência, em sua maioria, as atividades que exigiam ensino superior ou associadas à necessidade de concurso público, ou algo similar. A listagem era encerrada com as atividades que demandavam maior trabalho físico e/ou menores anos de estudo.

Mesmo com a indicação de algumas atividades realizadas fora do espaço doméstico, as mulheres exerciam, em sua maioria, atividades direcionadas à ajuda, ao cuidado, à limpeza, como professora, zeladora e costureira, características das desigualdades de gênero, interrelacionadas com questões de classe social. O trabalho doméstico exercido por 36 das mulheres entrevistadas não era reconhecido como trabalho produtivo.

Com base nas informações dos relatórios, havia estudantes que conviviam apenas com a mãe. Importante destacar que a ficha de entrevista dos/as estudantes restringia a opção para marcar que moravam com a mãe, o pai ou os dois. Contudo, ao cruzar com outras informações, é possível identificar, no relatório de 1982, a existência de outros arranjos de família. De um total de 434 estudantes, 350 responsáveis pelos/as estudantes da 5ª à 8ª série informaram ser casados; 24 aparecem como viúvo(a), 6 como solteiras, 16 como desquitados (as), 10 como divorciados(as), 26 como separados (as) e 2 com outra situação (Curitiba, 1982).

Importante lembrar que as custas escolares iam além de mensalidades e do material escolar. Segundo o relatório do SOE, os/as estudantes deviam possuir dois tipos de uniformes, devendo ainda atender às diferenças de sexo, sendo eles:

Masculino - uso diário - 1º) camisa branca tergal, mangas curtas e compridas, com emblema; 2º) calça tergal azul-marinho. 3º) Meias pretas; 5º) blusa azul-marinho, decote v.; 6ª) japona naylon, duas faces, azul-marinho; 7ª) cinta preta sem enfeites. Educação Física - 1ª) camiseta branca malha com emblema “CEP”; 2º) calção brin santista branco; 3º) meias brancas curtas; 4º) tênis branco; 5º) agasalho de helanca azul-marinho com listas brancas (optativo) – feminino - uso diário - 1º) camisa branca tergal mangas curtas com emblema; 2º) calça tergal azul-marinho; 3º) meias pretas; 4º) sapato preto colegial amarrado sem enfeites; 5º) blusa azul-marinho decote v; 6ª) japona naylon duas faces azul marinho. – Educação Física - 1ª) camiseta branca malha com emblema “CEP”; 2º) short azul-royal brin santista; 3º) meias brancas; 4º) tênis branco; 5º) agasalho de helanca azul-marinho com listas brancas (optativo) (Curitiba, 1980, s/p.).

O uso do uniforme, obrigatório, além de configurar uma educação dos corpos autorizados para circular no espaço escolar, serviria também para uma educação generificada. A necessidade do uso de dois uniformes, um para o uso em sala e outro para as atividades de educação física (e ainda os agasalhos utilizados nos dias de frio), consumia parte da renda familiar. Conforme o Relatório de Orientação Educacional, a instituição realizava atividades de cooperativismo, em que se propunha “colaborar no aprimoramento do processo educacional, na assistência escolar e na integração família – escola – comunidade” (Curitiba, 1980). Com a intenção de fortalecer os “princípios da solidariedade”, a cooperativa consistia em atividades voluntárias de doação, empréstimos, compras mais baratas. O uniforme escolar estava entre um dos itens que poderiam ser adquiridos.

Para a equipe do SOE, as informações sobre a ocupação profissional da família, eram utilizadas na tentativa de traçar um possível percurso profissional dos/as estudantes. Ao obter informações sobre a profissão dos/as responsáveis, poder-se-ia mensurar mais ou menos o quanto a família possuía de renda, assim como o seu capital cultural. Desta forma, a equipe do SOE poderia orientar os/as estudantes para a concretização dos sonhos no âmbito profissional dos/as estudantes. Nesse caso, não caberia ao ensino escolar oferecido na instituição garantir o sucesso profissional, mas apenas orientar para possíveis percursos a serem experimentados na iniciação para o trabalho.

De acordo com relatório do SOE, os/as estudantes, ao chegarem à 5º série, estariam na passagem da infância para a pré-adolescência. Nesse percurso, os/as estudantes “diferem marcadamente uns/umas dos/as outros/as quanto ao nível de maturidade física, interesse e necessidades” (Curitiba, 1980). A tentativa em constituir o adolescente desejável esteve empenhada na compreensão de que a equipe do SOE deveria agir em duas grandes áreas:

Área emocional

- compreensão, afeição e paciência do adulto (amor, amizade, carinho, afeição, atenção, consideração);

- respeito a seus sentimentos e certeza de segurança e confiança, buscando sanar imaturidade emocional, instabilidade reacional e motora, impulsividade, agressividade, timidez, inibição, indisciplina e desobediência;

- atendimento individual e grupal;

- oportunidade para atividades e de aceitação no grupo de companheiros (sentir-se estimado(a), sentimento de “pertencer”);

- “status” e responsabilidade de que se sentem capazes.

Área física

- hábitos e cuidados sanitários (alimentação, higiene, sono, repouso, postura, limpeza conhecimento do seu corpo);

- participar de campanhas de segurança; (pessoal e coletiva);

- ginástica, corridas, jogos em grupos e em equipes, danças, desportos;

- orientação sobre estímulos narcóticos;

- necessidade de espaço físico para a prática de esporte e outras atividades (Curitiba, 1980, s/p).

A necessidade de incorporação de hábitos consideráveis saudáveis no que tange a saúde física e mental está associada a duas questões. A primeira, relativa à preparação do corpo para exercer as relações de trabalho de forma disciplinada. A segunda, a questões de ordem moral, para que os/as estudantes evitassem “estímulos narcóticos”, como indica o documento, tais como o consumo de cigarros e de outras substâncias consideradas tóxicas.

Essa formação só seria garantida se tanto o SOE como as aulas em sala contribuíssem para atender ao que o documento aponta como “necessidades básicas dos alunos”. Estas, além de construírem hábitos de estudos para melhorar o rendimento na escola, haviam sido desenvolvidas ao longo de cada ano para garantir que a formação dos adolescentes estivesse apoiada nos seguintes preceitos:

Área social

- atividades individuais e em grupo;

- pertencer a um grupo, ter um “status” e de ser respeitado pelo grupo;

- orientação para conhecimento e compreensão adequados, dos assuntos sexuais;

- recreação sadia, atividades positivas e vida ao ar livre;

- ajustamento heterossexual;

- ajustamento social através de atitudes de cooperação e de competição;

- entrosamento escola-família;

- motivação para uma participação ativa na comunidade;

- melhor definição do papel social do professor;

- integração dos elementos responsáveis pela tarefa educativa;

- conhecimento das atribuições dos diversos setores da Escola;

- participação na vida em família; ou seja; melhor conhecimento e relacionamento com os membros de sua própria família;

- desenvolvimento de valores sociais positivos.

Área vocacional

- valorização das profissões;

- sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, através da participação do aluno em oficinas especializadas, laboratórios, biblioteca, visitas, excursões e palestras, onde o aluno encontre meios de desenvolver suas aptidões e interesses;

- discutir problemas de relações humanas e de trabalho, em atividades de grêmio e associações;

- segurança e confiança que o levem a independência para tomada de decisões;

- ganhar e economizar seu dinheiro;

- busca e definição de filosofia de vida;

- escolher e projetar-se para o exercício de uma profissão (Curitiba, 1980, s/p; sem grifos no original).

Para o historiador Benjamim Cowan (2016), durante o período da ditadura militar, o discurso anticomunista no Brasil adquiriu grande vulto. Segundo o autor, o discurso enunciado pelos grupos sociais de direita (entre eles, líderes da Igreja Católica, militares, políticos e demais civis que apoiavam um movimento contra o suposto comunismo), afirmava que o comunismo era responsável por romper com os valores morais das famílias, sendo considerado uma ameaça principalmente na formação sociocultural dos/as jovens. Para Cowan, na tentativa de barrar o suposto avanço do ideário do comunismo, muitas escolas foram vigiadas pelos militares para evitar ações que distanciassem os/as estudantes dos valores morais considerados corretos. Muitos materiais didáticos passaram também a ser controlados pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), na tentativa de inibir o que era considerado discurso subversivo (Cowan, 2016).

As recomendações do SOE demostram que as atividades desenvolvidas pela equipe de professoras possuíam estreitas relações com os debates sobre combater a suposta ameaça subversiva. Nesse sentido, as atividades do SOE deveriam promover no/a estudante o ajustamento heterossexual através da autorização de falar sobre sexo e sexualidade, como indica o documento, uma “orientação para conhecimento e compreensão adequados, dos assuntos sexuais”. Assim, como uma autorização em falar sobre o assunto, como afirma Foucault, a escola pode ser entendida como um espaço legítimo e da “necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (Foucault, 2008, p. 30). Nesse sentido, o suposto ajustamento heterossexual ocorria por meio do reforço das distinções de gênero já naturalizadas, principalmente sob o ensino de um ideal familiar composto por homem e mulher e filhos/as, e de que cabia ao masculino o sustento da família.

É importante lembrar que antes do golpe de 1964 e depois dele, foram realizadas a Marcha em Defesa da Família, como mais uma forma de denunciar o discurso comunista, assim como para defender os preceitos da norma familiar burguesa, que começavam a ser questionados sobretudo pelos jovens oriundos das camadas médias. De acordo com Brito, (2019, p. 04), “ideias de família, tradição e papéis de gênero alimentaram as Marchas e ampararam a expectativa de uma vaga moralidade a ser perseguida pela ditadura”.

A expectativa sobre o/a futuro/a do/a adolescente deveria ser construída então a partir de uma formação moral, que garantisse, como indica o documento, o “ajustamento social através de atitudes de cooperação e de competição” (Curitiba, 1980). Assim, escolhida uma profissão, caberia a cada um/a competir no mercado de trabalho, mas sempre atento/a às incertezas, pois também era preciso ganhar e economizar seu dinheiro. Nesse processo, pretendia-se que fossem banidas, além das ações tidas como subversivas, as consideradas impróprias para viver em sociedade, principalmente no espaço escolar. Conforme o relatório, os/as estudantes deveriam eximir-se de:

Agressividade: (reação violenta contra pessoa e/ou objeto); teimosia, petulância, desafio, gestos, palavras.

Indisciplina: (comportamento inadequado).

- liderança negativa, desafio à autoridade, falta de respeito a colegas, falta de auto-controle, irriquietação constante, interferências, danos ao prédio escolar, falta de sistematização da vida escolar: material, pessoal, frequência, pontualidade, uniforme).

Mentira: (alteração intencional da verdade).

- deturpa fatos, inventa situações, cria personagens.Furto: (posse indevida da propriedade alheia).

- desaparecimento de objetos, material escolar, dinheiro, lanche, etc. (Curitiba, 1980, s/p, sem grifos no original).

As ações consideradas indesejáveis correspondiam à garantia dos direitos individuais, tais como o direito à propriedade privada. Outro ponto importante era a valorização da disciplina nas ações de não faltar ao trabalho, possuir material escolar, utilizar uniforme, ser pontual e não questionar as autoridades superiores (nesse caso, os professores/as e a direção da escola).

Com um total de 382 estudantes matriculados no início do ano letivo de 1980, com base nos relatórios, verificou-se que a equipe do SOE mantinha os/as estudantes sob vigilância constante para a tentativa da manutenção de relações sociais condizentes com o ideal disciplinar compartilhado pela instituição. Ao atender aos/às estudantes por meio de conversas individuais, no primeiro bimestre de 1980, por exemplo, nas turmas da manhã, registraram-se 101 ocorrências das consideradas infrações disciplinares. A partir do uso de palavras-chave para o registro das transgressões, com base no relatório, os estudantes meninos da Escola Tiradentes, até o mês de maio de 1980, haviam tido:

problemas de relacionamento aluno x aluno; saúde (indisposições físicas); permissão para entrada tardia e/ou saída antes do término das aulas; justificativa e abono de faltas; indisciplina; encaminhamento para exame médico (CEP) – dispensa da prática de E, F.; falta de material escolar; não comparecimento a R.P.P; desatenção em aula; pornografia; “cola” no teste; queixa contra professores; excesso de faltas; furto; esclarecimentos vários; “desaparecimento” de material escolar, uniforme e outros; uso de “palavrões”; relacionamento professor x aluno; “colação de grau” saída de escola sem autorização; gazeta" (Curitiba, 1980, s/p).

Desses dados, 23 eram de estudantes da 5ª série; 19, dos da 6ª série; 22, dos da 7ª e 37, dos da 8ª série. Os registros do relatório de 1980 indicam que a equipe do SOE considerava infração qualquer ação que rompesse com a considerada normalidade da instituição de ensino. Além de advertidos, os estudantes que haviam tido “problemas de relacionamento”, acusação de roubo, saída sem autorização e a pornografia (que, como lembra Cowan, era vista como algo considerado subversivo), falta de material escolar e desatenção em aula eram consideradas infrações. Nesse último aspecto, a falta de material escolar devido às condições financeiras da família ou a dificuldade de concentração ou aprendizagem durante as aulas tornar-se-iam agravantes que precisavam ser resolvidos tanto para a continuidade dos estudos, como para evitar novos registros vistos como indisciplina. Com base no relatório, o fim do ano letivo chegou com 390 estudantes matriculados na instituição, desses, 298 tiveram registros de ocorrência.

Em relação às turmas da tarde, composta por estudantes meninas, o sistema de classificação de ocorrências foi registrado de outra maneira. Diferente da contagem de cada ato considerado infração, o relatório contava com fichas de acompanhamento por turma, que os/as professores deveriam preencher e encaminhar às responsáveis pelo SOE. Conforme a “Ficha informativa dos alunos”, no levantamento de dados deveriam ser mencionados “dados referentes ao relacionamento, à disciplina, à escolaridade e as características emocionais dos alunos, com vista à organização de turmas e seu ajustamento às mesmas” (Paraná, s/d). As informações das turmas contribuiriam tanto para a identificação dos possíveis problemas, quanto para uma provável intervenção pedagógica. Tendo em vista o referido documento, nele deveriam ser indicados os/as:

- alunos que apresentam problemas de relacionamento e não devem permanecer juntos, na mesma turma, no próximo ano (dependência, grupo fechado).

- alunos que apresentam problemas de relacionamento quanto: a trabalhos em grupo (rejeição).

- alunos que apresentam características de liderança (positiva) (negativa).

- alunos que apresentam problemas disciplinares;

- alunos que apresentam problemas emocionais, tais como: insegurança, timidez, problemas pessoais, distúrbios de personalidade e necessitam atendimento especial;

- alunos que apresentam dificuldade de aprendizagem.

- alunos que apresentam facilidade de aprendizagem (Paraná, s/d; grifos do autor).

Sendo a ficha utilizada para o levantamento de informações das meninas, com base no relato dos/as professores, no ano de 1981, de 335 estudantes matriculadas, foi considerado que 63 meninas possuíam algum tipo de problema, entre eles: “insegurança, isolamento, infantilidade, gagueira, preguiça; não realizavam tarefas; faltas, inquietas, complexo de superioridade, timidez e problemas pessoais”. Dessas, 09 também tiveram seus nomes apontados como lideranças negativas.

Louro, ao refletir sobre as relações de gênero e ensino no espaço escolar, infere que, a escola desenvolve uma educação generificada para o corpo e gestualidade, e, no que corresponde às meninas, busca silenciá-las como forma de serem boas. Ou seja, como indica Louro, (2003, p. 76), “desde a infância, tradicionalmente, as meninas aprendem não apenas a proteger seus corpos como a ocupar”. Nesse sentido, a timidez, apontada na documentação, trata de um constructo social constituído por meio das desigualdades de gênero historicamente construídas, em que a proteção corporal imposta às mulheres desde a infância inibe as relações sociais e provoca a assimilação de que não se pode romper com aquele comportamento. Entretanto, aquelas que arrebentam os limites impostos pela educação generificada são acusadas de inquietas ou até mesmo de possuírem o que foi denominado pelo documento como complexo de superioridade.

A partir das informações disponíveis nos relatórios, a tabela 14 - Idade dos/as estudantes - permite estabelecer uma comparação dos dados que contribuem para construir um panorama dos/as estudantes a partir da diferença etária. As informações dos estudantes meninos referem-se ao ano letivo de 1980; o das estudantes meninas, ao ano de 1982.

Tabela 1
Idade dos/as estudantes

Fonte: Escola Tiradentes (Relatório Serviço de Orientação, 1980; 1982)

A primeira diferença encontrada entre os estudantes de ambos os sexos está relacionada com a ausência de estudantes meninas na 8ª série. Mesmo com a oferta dessa série a partir de 1980, ela ficou restrita ao periodo da manhã, ou seja, compreende somente os meninos. Com base na análise dos dados indicados na tabela. constata-se que o número de estudantes meninas que cursavam a série com idade fora do prescrito na Lei nº. 5.692/1971 era maior do que o dos meninos. Nesse sentido, o acesso ao ensino escolar pelas meninas, ainda que entendido como obrigatório, permanecia ocorrendo mais tarde do que o dos meninos. Gradativamente, porém, estas estudantes foram as que passaram maior tempo na escola.

Importante destacar que, com base nos relatórios do SOE, alguns estudantes já exerciam alguma atividade remunerada. Das estudantes meninas, uma tabela apresenta o levantamento de 1982, segundo o qual 10 estudantes ocupavam algum alguma atividade remunerada, sendo 3 da 5º série, 5 da 6º série e 2 da 7º série. Em relação aos meninos, com base na análise do “Questionário de Entrada e saída”, destinado aos estudantes da 8ª série, dentre os 93 questionários respondidos, ao terem que assinar sim ou não para a pergunta “Você já desenvolveu alguma atividade profissional?”, 9 assinalaram que terem exercido. Para esse grupo de estudantes de ambos os sexos, a iniciação para o trabalho faria menos sentido, pois já haviam enfrentado uma rotina de trabalho.

Ao analisar os relatórios, foi possível identificar que a equipe do SOE propunha acompanhar as recomendações expostas no Plano Diretor, principalmente com vistas a identificar a profissão/ocupação de pais/mães, bem como a realizar os denominados testes vocacionais. O percurso da sondagem de aptidão seguia três estapas. Na primeira, realizava-se a identificação das condições socioecnômicas da família do/a estudante, por meio de um questionário encaminhado na tentativa de identificar possíveis interesses profissionais dos estudantes do ensino fundamental (5ª série), bem como se já exercial alguma atividade remunerada. O questionário constituía um instrumento para a equipe do SOE investigar o espaço doméstico/família dos estudantes e, como indicado, tinha por “objetivo conhecer você e seus interesses para melhor ajudá-lo”, com a finalidade de antecipar a realização de atividades laborais.

Apresentado o questionário aos meninos da 5º série, a instituição de ensino reforçava a natulização da realização de atividades laborais desde a infância, pois para além dos objetivos do modelo de ensino, sabia-se da realidade escolar em que muitos estudantes já exerciam alguma atividade remunerada. Esse questionário se destinava a meninos situados, em sua maioria, na faixa de 11 ou 12 anos de idade. Ao indagar “quais as profissões que você conhece (através de experiências, leituras, televisão, cinema, por informações ou outros)” e “em qual ou quais profissões você tem alguma experiência?”, a instituição escolar reconhecia (e legitimava) o fato de a população infantojuvenil realizar atividades laborais. Conforme discussão anterior, na instituição circulava o ideário de que as condições socioeconômicas dos/as estudantes poderiam determinar suas escolhas profissionais. Neste caso, a educação escolar pouco contribuiria para a ascensão social a partir da preparação para o trabalho. A mobilidade social ocorreria somente para os/as estudantes que pudessem arcar com os estudos na formação de ensino técnico e os que, quiçá, galgassem o ensino superior.

Na segunda etapa da “sondagem de aptidão”, buscava-se aplicar o teste vocacional a todos os estudantes. O resultado consistia em somar a númeração indicada pelo estudante para cada pergunta realizada. Solicitava-se que o teste fosse respondido com veracidade e exatidão e que cada aluno refletisse sobre “por que gosto tanto de fazer isso”. Os estudantes deveriam responder ao seguinte questionário:

De acordo com a seguinte graduação, escreva à frente de cada questão o número que corresponde a seu agrado ou desagrado:

  • 5 significa “gosto muito”

  • 4 significa “gosto pouco”

  • 3 significa “me é indiferente” nem me agrada nem desagrada.

  • 2 significa “me agrada um pouco”

  • 1 significa “me desagrada muito”

Seção A - Quanto você gosta?

1. Sair numa excursão?/ 2. Pertencer a um clube de exploradores?/ 3. Viver ao ar livre, fora da cidade?/ 4. Semear e plantar numa chácara durante as férias?/ 6. Ser técnico agrícola em uma região propícia?/

Seção B – Quanto você gostaria?

1. Armar ou desamarrar objetos mecânicos?/ 2. Manusear ferramentas e máquinas?/ 3. Construir móveis ou objetos de madeira?/ 4. Consertar instalações elétricas de sua casa?/ 5. Desenhar e dirigir a construção de um poço ou bomba de água?/ 6. Ser perito mecânico numa grande oficina ou fábrica?/

Seção C – Quanto você gostaria?

1. Resolver mecanismos numéricos?/ 2. Resolver problemas de aritmética?/ 3. Fazer as contas de uma cooperativa escolar?/ 4. Explicar aos outros como resolver problemas de aritmética?/ 5. Participar em concursos de aritmética?/ 6. Ser calculista em uma empresa?/

Seção D – Quanto você gostaria?

1. Conhecer e estudar a estrutura das plantas e dos animais?/ 2. Fazer experimentos de biologia, física ou química?/ 3. Investigar a origem dos costumes dos povos?/ 4. Estudar e entender as causas dos movimentos?/ 5. Ler revistas e livros científicos?/ 6. Ser investigador num laboratório de biologia, física ou química?/

Seção E – Quanto você gostaria?

1. Discutir em classe?/ 2. Ser chefe de um clube ou sociedade?/ 3. Dirigir uma campanha política de um candidato estudantil?/ 4. Fazer propaganda para um jornal estudantil?/ 5. Ler biografias de políticos eminentes?/ 6. Ser agente de vendas de uma empresa comercial?/

Seção F – Quanto você gostaria?

1. Desenhar e pintar a cores?/ 2. Modelar em barro?/ 3. Encarregar-se da decoração de uma exposição? 4. Idealizar e desenhar o escudo de um clube ou sociedade?/ 5. Desenhar o vestuário para uma peça teatral?/ 6. Ser perito desenhista numa empresa industrial?/

Seção G – Quanto você gostaria?

1. Escrever contos, crônicas ou artigos?/ 2. Ler obras literárias?/ 3. Escrever versos para um jornal estudantil?/ 4. Representar um papel em uma peça teatral?/ 5. Participar num concurso de oratória?/ 6. Ser redator de um jornal?/

Seção H – Quanto você gosta?

1. Cantar num coro estudantil?/ 2. Escutar música clássica?/ 3. Aprender toccar um instrumento musical?/ 4. Ser membro de uma associação musical?/ 5. Ler biografias de músicos eminentes?/ 6. Ser membro de uma sinfonia?/

Seção I – Quanto você gostaria?/

1. Atender aos enfermos e cuidar deles?/ 2. Proteger os jovens menores do grupo?/ 3. Ser membro de uma sociedade assistencial?/ 4. Ensinar a ler aos analfabetos?/ 5. Ajudar seus companheiros em suas dificuldades e preocupações?/ 6. Ser missionário a serviço das classes humildes?/

Seção J – Quanto você gostaria?

1. Trazer em ordem seus livros e cadernos?/ 2. Ordenar e classificar os livros da bilioteca?/ 3. Aprender a escrever na máquina de datilografia?/ 4. Ajudar a qualificar provas?/ 5. Encarregar-se do arquivo e documentos de uma sociedade?/6. Ser técnico organizador de uma oficina?/ (Curitiba, 1980, s/p).

O modelo de teste utilizado pela equipe do SOE do Colégio Tiradentes era baseado nas proposições em livro publicado pelo francês Pierre Gilles Weil. Pesquisador sobre a orientação profissional e a psicologia do trabalho, Weil migrou para o Brasil no ano de 1948. Uma década mais tarde, foi “chefe do Departamento de Orientação e Treinamento do Banco da Lavoura de Minas Gerais e professor na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG” (Conselho Federal de Psicologia, 2005).

Após a contagem de pontos do questionário, a orientadora vocacional deveria relacionar as informações com base nas ilustrações correspondentes às areas de interesse, como pode ser observado na imagem a seguir:


Imagem 1
Teste de Interesse Weil
Fonte: Escola Tiradentes (Serviço de Orientação Educacional, 1980).

O teste, composto por 16 imagens, propunha que o/a estudante identificasse quais as atividades em que sentia-se bem em realizar. Após a escolha, a orientadora vocacional faria a análise do perfil do estudante a partir do cruzamento de informações entre esse teste e os demais questionários. O estudante deveria atribuir notas entre 1 para a que possuía menor afinidade e 5 para aquela com que sentisse maior afinidade. A partir da soma da pontuação das respostas, a equipe do SOE buscava identificar a suposta vocação de cada estudante. Posteriormente, a equipe porcurava associar os dados da Sondagem de Aptidão com as temáticas das disciplinas ministradas pelos docentes. Dessa forma, a possível escolha profissional de cada estudante passava a ser forjada nas aulas do Escola Tiradentes desde a 5ª série. Sabe-se, todavia, que esta escolha profissional estava condicionada a um conjunto de fatores socieconômicos e culturais.

Com base no levantamento realizado no ano de 1980, a tabela 2 - Áreas de interesse, reune o resultado da aplicação do teste do teste de interesse Weil. O resultado foi o seguinte:

Tabela 2
Áreas de interesse profissional

Fonte: Escola Tiradentes (Serviço de Orientação Educacional, 1980).

Tendo sido limitado o teste vocacional apenas aos meninos, a equipe da SOE, em conjunto com professores/as e direção da Escola Tiradentes, reforçaram a naturalizaçaõ das desigualdades de gênero. Nessa perspectiva, o suposto destino das estudantes já estava em parte traçado, ou seja, elas iriam desempenhar atividades laborais relativas ao cuidado (docência, enfermagem, empregadas domésticas, etc.) ou as relativas ao trabalho reprodutivo (donas-de-casa). Vale observar que os ecos da segunda onda do discurso dos feminismos ainda não haviam chegado à Escola Tiradentes. De acordo com Louro, (2003, p, 58), “a escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer; ela separa e institui. Informa o "lugar" dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas”.

Nesse aspecto, ao consultar as informações da tabela “Áreas de interesse profissional”, mesmo com a presunção de atividades convencionais para os meninos/homens atrelada à formação das masculinidades, a esquematização das áreas corresponde às reconfigurações do ensino proposto pela Lei nº. 5.692/1971, principalmente no que diz respeito à valorização da ciência e à tentativa de impulsionar atividades na grande área da tecnologia. Conforme a tabela 14, ciências, mecânica e serviço social foram as atividades mais desejadas, principalmente pelos 39 estudantes da 8ª série, que estavam completando toda a formação em nível fundamental sob as prescrições da legislação.

No mesmo relatório foram indicados os interesses profissionais dos estudantes da 5º série, sendo eles: A) Ao ar livre: jogador de futebol (8); agricultor (2); topógrafo (1); b) oficial de aeronáutica (1); motorista (3); engenheiro mecânico (3); piloto de avião (5); piloto de carro (1); sapateiro (1); c) cálculo: engenheiro arquiteto (7); d) científico: médico (10); engenheiro (3); engenheiro eletrônico (3); veterinário (4); astrônomo (1) e) persuasivos: sem interesse; f) artista plástico: sem interesse; g) literários: sem interesse; h) musicais) cantos e compositor (1); i) serviço social: enfermagem (1); dentista (2); auxiliar de farmácia (1); psicólogo (1); advogado (1); policial (1); oficial de polícia (1); auxiliar de escritório (1); padre (1); professor (1) (Curitiba, 1980, s/p).

Ainda nessa etapa, com base na análise do documento, a equipe do SOE organizava palestras com profissionais de diferentes áreas, cedia espaço a empresas, tal como o Senac, o que servia para divulgar seus próprios serviços. Nessas ações, para que os estudantes visualizassem a relação entre o ensino escolar e a futura profissão, eram elencados os graus de escolaridade mínima (ou a não necessidade dela) solicitada para a ocupação do cargo com as respectivas idades aceitas para fins de contratação. Assim, a equipe da instituição escolar, ao mesmo tempo que buscava qualificar futuros profissionais, sabendo da realidade existente, ao apresentar o mercado de trabalho, apresentava outras possibilidades para aqueles que não conseguisse dar coninuidade aos estudos. Uma pedagogia marcada pela reprodução social, como indica Bourdieu (1992), mas que contribuiria para o crescimento da competitividade entre os estudantes com vistas a atender às recomendações da Lei nº. 5.692/1971.

Na última etapa, o “Questionário de Entrada e Saída”, entregue aos alunos da 8º série, utilizado para analisar o percurso do estudante na instituição no processo de formação para o trabalho, possuía uma dupla utilidade. A primeira, identificar os interesses e as escolhas dos estudantes; a segunda, coletar informações para rever práticas pedagógicas utilizadas na instituição escolar. Ou seja, com base no cruzamento de informações, essa análise tinha como intenção conferir se a passagem para a adolescência ocorrera segundo as prescrições estabelecidas nas legislações educacionais e nas práticas pedagógicas.

De acordo com o questionário entregue aos meninos da 8º série de 1980, das 93 respostas, ao serem perguntados se, ao concluírem o ensino fundamental, iriam continuar os estudos ou iriam trabalhar, 61 responderam que pretendiam seguir os estudos e 27, que não iriam continuar a estudar. Questionados sobre se sentirem preparados para ingressar no mercado de trabalho, 48 responderam positivamente, enquanto 29 deram resposta negativa em ocupar uma atividade profissional com a formaçaõ recebida na escola. Sobre a escolha de qual curso seguir no segundo grau, 65 informaram já haver escolhido e 26, não. Contudo, ao serem questionados se as habilidades profissionais haviam sido desenvolvidas na escola, de forma prática ou teórica, apenas 4 indicaram que o curso havia contribuído para a formação profissional; 32 informaram que não haviam apreendido a exercer uma atividade profissional. Ou seja, a preparação para o trabalho especializado realizada na instituição escolar, segundo os estudantes, não havia sido eficaz. É importante observar que, de acordo com o “Questionário de Entrada e Saída”, apenas 9 estudantes haviam indicado que estavam trabalhando. Todavia, 32 afirmaram que tinham alguma experiência de trabalho. O labor infantojuvenil, no Brasil, no período, ocorria na maioria das vezes na informalidade.

CONCLUSÃO

A partir das observações apresentadas, pode-se afirmar que a Lei nº. 5.692/1971, a partir da obrigatoriedade que fosse desenvolvida a “sondagem de aptidão”, principalmente para atender a formação profissional, foram ampliadas as atividades desenvolvidas pelo Serviço de Orientação Educacional. Em Curitiba, os documentos da Escola Tiradentes, apresentam um indicativo de que, além da intenção em conduzir os/as estudantes para o mercado de trabalho, as ações estiveram sustentadas por um reforço de distinções sociais já existentes, como as de classe e gênero. Pois, como observado nos documentos, são sinalizados indícios de que, compreender a realidade das famílias dos/as estudantes, servia como um reforço da naturalização das distinções sociais configuradas a partir das relações de trabalho. As diferenças de gênero interseccionam nessa distinção, pois, como visto, existiu maior interesse em oportunizar escolhas e caminhos distintos para os estudantes do gênero masculino, sendo reforçado as atividades de cuidado e limpeza, por exemplo, como restrita às estudantes meninas.

As atividades do SOE demostram parte das reverberações da Lei nº. 5.692/1971, tal legislação, desenvolvida em meio a ditadura militar, integra um projeto de nação em fase de implementação. Com base na análise apresentada neste texto, orientar os/as estudantes para o mercado de trabalho, sem a intenção de garantir a conclusão dos estudos – com matricula obrigatória até os 14 anos – por ser um ensino para crianças e adolescentes, nos apresenta indícios de que o maior interesse consistia em manter os/as estudantes alinhados aos ditames da ditadura, e, como um pânico moral, indicar caminhos para que os estudantes assumissem um perfil de trabalhador.

Material suplementario
Información adicional

Como citar: Zaluski, J. L. (2022). Probe, guide and qualify: reverberations of Law no. 5,692/1971 and expectations for professional training (Curitiba – 1971-1983). Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e17685. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17685

Contribuições dos Autores: Zaluski, J. L.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. O autor leu e aprovou a versão final do manuscrito.

Agradecimentos

Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), pela bolsa concedida durante realização da pesquisa de doutorado.

REFERÊNCIAS
Bourdieu, P., & Passeron, J. (1992). A reprodução. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Brito, A. M. F. (2019). “Um verdadeiro bacanal, uma coisa estúpida”: Anticomunismo, sexualidade e juventude no tempo da ditadura. Anos 90, 26(1), 1-22. https://doi.org/10.22456/1983-201X.90662
Cowan, B. (2016). Securing Sex: Morality and Repression in the Making of Cold War Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press.
Foucault, M. (2008). História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.
Louro, G. L. (2013). Pedagogias da sexualidade. In: Louro, G. L. (2013). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora. p. 09-34.
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Notas
Notas de autor
1 Universidade Estadual do Centro-Oeste, Guarapuava, Paraná, Brasil.

jorgezaluski@hotmail.com

Tabela 1
Idade dos/as estudantes

Fonte: Escola Tiradentes (Relatório Serviço de Orientação, 1980; 1982)

Imagem 1
Teste de Interesse Weil
Fonte: Escola Tiradentes (Serviço de Orientação Educacional, 1980).
Tabela 2
Áreas de interesse profissional

Fonte: Escola Tiradentes (Serviço de Orientação Educacional, 1980).
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