Resumo: Este artigo analisa as compreensões de Educação Física na Escola Municipal Pluridocente Indígena Aldeia Três Palmeiras. O estudo se constituiu como qualitativo, configurando uma pesquisa de campo descritiva e interpretativa. A metodologia se deu por meio de: observação participante das aulas de Educação Física e da dinâmica escolar no contexto da aldeia; anotações em diário de campo; registro de imagens; entrevistas remotas, no período de isolamento social, por meio de aplicativos de conversa/interação. Durante nosso processo de imersão no contexto da aldeia Três Palmeiras, localizada em Aracruz (ES), foi possível constatar que a Educação Física Escolar Guarani vem sendo construída no dia a dia da escola como expressão da cultura local (tradicional e esportiva), a partir das experiências não positivas do passado, com ênfase no esporte, e dentro de uma conjuntura da escola indígena com predominância de professores de outra etnia tencionando os aspectos interculturais.
Palavras-chave: Educação Física Escolar, Educação Escolar Indígena, Pluridocência.
Abstract: This article analyses the comprehension of Physical Education at Três Palmeiras’ indigenous pluridocent village municipal school. The study was constituted as qualitative, been set up as a descriptive and interpretative. The methodology was fulfilled with: participant observation of the Physical Education classes and the school dynamics in village context; field diary notes; registry of images; remote interviews, during the time of social isolation, thru apps of conversation/interaction. During our process of immersion of Três Palmeiras’ village context, located in Aracruz (ES), it was possible do verify that Guarani’s School Physical Education has been build up daily as an expression of the local culture (traditional and sportive), as from non-positive experience of the past, with emphasis on sports, and inside a conjuncture of indigenous school with a predominance of teachers from another ethnic group intending the intercultural aspects.
Keywords: School Physical Education, Indigenous School Education, Pluridocence.
Resumen: Este artículo analiza la comprensión de la educación física en la Escuela Municipal Indígena Pluridocente Aldea Tres Palmeras. El estudio se constituyó como cualitativo, configurando una investigación de campo descriptiva e interpretativa. La metodología se dio a través de: observación participante de las clases de educación física y la dinámica escolar en el contexto de la aldea; anotaciones en un diario de campo; registro de imágenes; entrevistas a distância, en el período de aislamiento social, por medio de aplicaciones de conversación/interacción. Durante nuestro proceso de inmersión en el contexto de la Aldea de Tres Palmeras, ubicado en Aracruz (ES), fue posible verificar que la Educación Física de la Escuela Guaraní viene siendo construida en la vida cotidiana de la escuela como expresión de la cultura local (tradicional y deportiva), a partir de las experiencias no positivas del pasado, con énfasis en el deporte, y dentro de una coyuntura de la escuela indígena con predominancia de profesores de otra etnia tencionando los aspectos interculturales.
Palabras clave: Educación física escolar, Educación escolar indígena, Pluridocencia.
Publicação Contínua
Compreensões de educação física na Escola Pluridocente Guarani do Espírito Santo
Comprehensions of physical education at Guarani multi-teacher school in Espírito Santo
Comprensiones de la educación física en la Escola Pluridocente Guarani do Espírito Santo
Recepción: 19 Agosto 2022
Aprobación: 22 Noviembre 2022
Publicación: 19 Diciembre 2022
A temática desse artigo evidencia a educação escolar indígena como uma modalidade da educação básica. Mais especificamente, trata do componente curricular Educação Física (EF) no contexto de uma escola indígena pluridocente do povo Guarani, localizada na região de Aracruz-ES.
Quando identificamos a escola como exemplo concreto da modernidade que adentrou os territórios indígenas, inicialmente de forma impositiva e com projetos bem delimitados a fim de catequizar e assimilar esses povos, percebemos o quanto ainda há de resquícios e evidências históricas dessa relação. Entretanto, um marco que reconheceu a nova configuração que esta instituição passou a assumir dentro dessas comunidades se deu por meio da Constituição Federal de 1988. A educação escolarizada indígena passou a ser reconhecida como um direito, devendo considerar toda diversidade cultural e linguística de cerca de 305 povos do Brasil. Fazer a educação diferenciada acontecer é algo extremamente complexo e delicado, pois envolve muitas distinções entre os grupos, no entanto, trata-se de uma demanda emergente e legítima.
Essa questão, além de estar associada diretamente ao modelo escolar indígena também pode estar associada, por exemplo, aos modelos de formação de professores indígenas. Como resultado de um movimento disruptivo ou de mudanças, em que podemos conjecturar que se manifesta como um fluxo contínuo de (des)ordem. Nesse contexto, consideramos significativos os avanços no processo de formação intercultural para educação escolar indígena, no entanto, os resultados das tensões geradas entre o tradicional e moderno são imprevisíveis e podem gerar novos desafios/tensões. Assim, as propostas ou modelos de formação implicam, também, em ações que tendem a gerar tensões no âmbito tradicional e moderno. Em outra perspectiva, é possível considerar tensões internas que não estão diretamente relacionadas à modernidade, mas à cultura local. Consideramos que a multiplicidade de elementos culturais fruto dos desdobramentos do processo de modernização global e de fatores contemporâneos relacionados às mudanças comportamentais no âmbito das sociedades decorre, de acordo com Balandier (1997), de uma tensão entre tradição e modernidade, onde o novo promove um contexto de desordem, gerando uma nova ordem em uma dinâmica ambivalente.
Durante nosso processo de imersão no contexto da aldeia foi possível constatar que a Educação Física vivenciada no cotidiano da escola/aldeia e escola, expressa as contradições do campo de conhecimento e das próprias relações humanas. Nesse cenário, a construção do lugar (ou lugares) da Educação Física no campo analisado se vincula às relações estabelecidas na escola/aldeia e, consequentemente, com a própria Educação Física. Foi nesse contexto que o processo de formação de professores e a proposta de interculturalidade ganhou destaque na busca para compreensão da EF e qual o seu lugar no campo analisado.
Nessa conjuntura, a pesquisa foi construída por meio de aproximações e buscas sucessivas por “[...] ‘resíduos’ e certos fatos que resistem às explicações habituais e só vêm à luz em virtude do confronto entre a teoria do pesquisador e as ideias nativas.” (Peirano, 1995 apud Magnani, 2009, p. 134). A aproximação prévia com o campo de pesquisa implicou também no movimento de estranhamento em relação ao objeto, “[...] a qual provém da presença de sua cultura de origem e dos esquemas conceituais de que está armada e que não são descartados” (Magnani, 2009, p. 134). O movimento de aproximação e distanciamento do objeto de estudo, o esforço de manutenção de rigor científico em uma dimensão que, simultaneamente, é olhar de perto e de dentro, “[...] teve que distanciar-se pelo fato de estar em contato com outra cultura e outras explicações, as chamadas ‘teorias nativas’” (Magnani, 2009, p. 134). Esse estudo considerou essa condição de copresença no campo de pesquisa, e reitera que “[...] a atenção em ambas é que acaba provocando a possibilidade de uma solução não prevista, um olhar descentrado, uma saída inesperada (Magnani, 2009, p. 134).
Assim, a concepção do objeto de estudo, as trilhas e estratégias metodológicas também são decorrentes dessas constatações e das implicações recíprocas. Porém, mesmo considerando as implicações históricas no campo da implantação do modelo escolar nas comunidades indígenas, fomos em busca de informações sobre como se dão essas relações no âmbito da escola indígena tomando como referência ações que têm contribuído para a difusão dos saberes tradicionais e aqueles difundidos na/pela sociedade moderna vinculados à Educação Física. No decorrer do processo de análise, esse contexto foi caracterizado como ambiente com trocas interculturais importantes e está intimamente ligado à formação de professores. A identificação da escola como Pluridocente demarca e sinaliza a dimensão intercultural articulada aos saberes das etnias e do campo educacional formal e trazem implicações significativas para Educação Escolar Indígena e a Educação Física como componente curricular nesse contexto. Não foi possível localizar na literatura sobre educação escolar indígena, um conceito de Pluridocência, no entanto, no campo de pesquisa – Escola Municipal Pluridocente Aldeia Três Palmeiras – esse conceito foi incorporado ao nome formal da escola e na concepção desses sujeitos, pois a Pluridocência pressupõe a participação de pessoas indígenas de outras etnias na configuração do corpo docente da escola. Nesse sentido, o lugar da Educação Física na escola indígena se constitui como um campo de tensões permanentes, ora objeto de desconfiança e desvalorização quando associada ao modelo escolarizado (Educação Física Escolar), ora caracterizada como prática corporal inerente ao se movimentar indígena (Educação Física), por isso lhe é atribuída valorização diferenciada. Desta forma, este artigo analisa as compreensões de Educação Física na Escola Municipal Pluridocente Indígena Aldeia Três Palmeiras.
O critério fundamental para escolha da Escola Municipal Pluridocente Indígena Aldeia Três Palmeiras como campo de estudo, foi porque, das cinco aldeias Guarani Nhãdewa existentes no município de Aracruz-ES, apenas a aldeia Três Palmeiras possui escola em seu território. A escola foi uma reivindicação das comunidades da região e atende todas as crianças das aldeias Guarani, sendo elas: Piraqueaçu, Boa Esperança, Olho d’água, Nova Esperança (também conhecida como Reserva) e Três Palmeiras1 (lócus).
O estudo foi realizado por abordagem qualitativa e desenvolvido por meio de pesquisa de campo de caráter descritivo e interpretativo. As estratégias e métodos utilizados para construção do trabalho e registro das informações do campo se deram a partir de: a) revisão de literatura; b) observações das aulas de Educação Física e da dinâmica escolar no contexto da aldeia; c) anotações em diário de campo, viabilizadas pela observação e conversas pautadas em diálogos, momentos e contextos vivenciados, seguidos de impressões e interpretações; d) registros de imagens, que colaboraram na interpretação de outras informações levantadas e ilustram o trabalho de campo preservando a identidade das pessoas; e) entrevistas remotas no período de isolamento social por meio de aplicativos de conversa/interação também contribuíram para o trabalho.2 Por meio das observações e entrevistas remotas foi realizada a produção dos dados a partir da reunião de informações e problematizações que versavam sobre o cotidiano (rotina) escolar pluridocente e da Educação Física na/da escola/aldeia.
Como o estudo foi atravessado pela pandemia, algumas ações foram empreendidas antes e outras durante o momento de crise sanitária que se instaurou no Brasil. Antes da pandemia, no período entre outubro de 2019 e março de 2020, foi possível realizar um total de 7 visitas na escola. Em março de 2020, o acompanhamento se deu em dois dias específicos das aulas de Educação Física. Naquela ocasião foram acompanhadas as turmas do 4º e 5º ano; 6º e 7º; e 8º e 9º ano do Ensino Fundamental. Essa estratégia foi para contemplar as turmas que dialogam nos dois idiomas: português e Guarani.
Devido à pandemia, iniciada em meados de março de 2020, o acesso presencial às aldeias foi proibido pela FUNAI e houve a suspensão das atividades presenciais na escola por cerca de três meses. Diante do contexto apresentado, o trabalho de campo precisou ser interrompido e repensado.
Em junho de 2020 ocorreu o retorno progressivo das atividades de forma remota. A partir desse período, os professores preparavam as aulas em uma semana, e na semana seguinte os alunos/pais buscavam o material na escola. Essa opção foi disponibilizada para as pessoas que não possuíam acesso à internet e/ou demais recursos. Os dirigentes da escola informaram que a maioria das famílias optou pelas atividades impressas.
Buscando novas alternativas, foi elaborado um primeiro roteiro de entrevistas para ser realizado nessa fase de atividades suspensas na escola a fim de compreender e refletir sobre o novo cenário instituído nas aldeias Guarani ocasionado pela pandemia. Naquele momento, convidamos a Pedagoga e o Diretor da escola e estabelecemos um diálogo com eles por meio de um aplicativo de conversa/interação virtual.
Considerando a nova rotina deflagrada pela pandemia, foi elaborado um novo roteiro de entrevista semiestruturada direcionada aos sujeitos com diferentes funções/cargo na escola e representação na comunidade. Foram convidados todos os seis professores, diretor da escola, pedagoga e os caciques das aldeias Guarani. No entanto, devido à nova demanda de trabalho (aulas remotas)3, a entrevista foi realizada apenas com dois professores (de História e Ciências), um cacique, o diretor e a pedagoga da escola.
Em um momento posterior, foi possível realizar entrevista com a professora de Educação Física por chamada de vídeo (online), assim como conversamos por meio do grupo de conversa/interação virtual com dois alunos do 9º ano do Ensino Fundamental sobre a disciplina na escola. Nesta etapa, os dados foram guiados por roteiro flexível, em que os sujeitos (professores, administradores, dirigentes, alunos e lideranças da aldeia) foram questionados sobre os usos e apropriações da Educação Física pela Escola Municipal Pluridocente Indígena Aldeia Três Palmeiras. Os depoimentos foram captados por mensagens de texto e áudio disponibilizado no aplicativo de conversa/interação virtual, a partir da autorização prévia da pessoa entrevistada e da instituição escolar.
Em meio a esse cenário, vivenciamos dificuldades relacionadas ao acesso e sinal de internet de rede na comunidade Guarani. Esse foi um dos principais motivos para adesão limitada do grupo. Além disso, segundo os nossos informantes, os atores sociais da escola estavam atarefados com as novas demandas da rotina de ensino em modo remoto4. Ou seja, segundo eles, a jornada de trabalho triplicou. Mesmo com todos os desafios, foi possível dar andamento ao trabalho e, abaixo, apresentamos os sujeitos que participaram das entrevistas (presencial ou online) e suas respectivas identificações nesse estudo.
Assim, em concordância com pressupostos que reconhecem e consideram as dinâmicas e tensões culturais que foram enfrentados durante a fase de campo, buscou-se possibilitar estratégias no “olhar”, “ouvir” e “escrever” sobre. A inspiração na observação denominada participante possibilitou um grau de interação com o campo estudado, afetando-o e sendo afetada. O que significa dizer que “[...] o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade observada, a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de modo a não impedir a necessária interação” (Oliveira, 1996, p. 21).
No processo de revisão sistemática e análise de dados, foi possível identificar e analisar duas categorias: I) relação entre formação de professores indígenas e a interculturalidade numa escola Pluridocente e II) aspectos que culminam na compreensão de Educação Física entre os gestores e professores da escola Guarani. Neste artigo, apresentaremos o recorte referente à segunda categoria.
No contexto de análise das categorias articuladas ao referencial teórico e dados do campo, foi possível constatar repercussões importantes e contraditórias dentro do contexto denominado pluridocência e no âmbito da Educação Escolar Indígena. Isso significa que as características culturais e o processo de formação5 local podem influenciar na adesão das aulas, na evasão e no distanciamento dos alunos da escola Guarani, bem como na formação de novos docentes. Isso implica diretamente nas diferentes compreensões de EF que os sujeitos desse ambiente apresentarão, sendo essa nossa segunda categoria analisada neste trabalho.
A partir dos rumos metodológicos adotados, o estabelecimento das categorias se constituiu como fio condutor para conclusão desse estudo. A caracterização da escola associada à formação de professores foi fundamental para compreensão dos avanços históricos na qualidade das ações relacionadas à proposta intercultural e de valorização dos saberes das comunidades indígenas. No mesmo sentido, também identificamos aspectos que carecem atenção e aprofundamento no sentido de mitigar desdobramentos que possam comprometer o acesso ao processo de formação de professores Guarani.
Na Escola Municipal Pluridocente Adeia Três Palmeiras a disciplina de EF é ministrada por uma professora Tupiniquim (EF A) que não possui formação específica na área, mas que, em 2020 iniciou um curso de EF à distância6. Ela possui graduação em Pedagogia e exerce esta função em um Centro Municipal de Educação Infantil Indígena (CMEII) em Caeiras Velhas – aldeia da etnia Tupiniquim.
Mesmo sem formação específica, a professora EF A foi convidada a assumir o cargo de professora de Educação Física no início do ano de 2019, a princípio para todas as turmas do Ensino Fundamental da Escola Municipal Pluridocente Indígena Aldeia Três Palmeiras. No entanto, a partir de seus relatos, logo constatou a dificuldade de comunicação com a turma do 1º, 2º e 3º ano por não falar a língua Guarani. Nesse sentido, a escola também compreendeu que não seria positivo para os alunos a escuta da língua portuguesa, por isso, solicitou que a professora regente7 (professor referência), assumisse também as aulas de Educação Física da sua turma e assim foi feito. Desde então, a Professora de EF A ficou responsável apenas pelas turmas do 4º ao 9º ano da escola.
Nesse contexto, a Educação Física Escolar, segundo um dos principais documentos norteadores - Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas (RCNEI), trata-se de um “[...] conjunto de conhecimentos culturalmente produzidos que se referem à movimentação do corpo” (Brasil, 1998, p. 321). Essa definição é decorrente de uma comparação inicial com a Educação Física não indígena. É nessa direção que a especificidade da EF se apresenta como processo inerente ao corpo e ao movimento como linguagem construída e reconstruída por meio da cultura. Logo, os conteúdos da EF se configuram num conjunto amplo de práticas corporais que compõem o cotidiano e, no contexto analisado, “[..] as culturas indígenas, por si mesmas, têm suas próprias formas de Educação Física” (Brasil, 1998, p. 321-322).
As contradições parecem percorrer o processo de elaboração da proposta de Educação Física em uma perspectiva intercultural. Por outro lado, as contradições funcionam como potência para avanços rumo à qualificação das ações. Nesse contexto, podemos considerar que algumas incongruências se constituem como fruto dessas relações. Se constitui como resultado do trabalho coletivo e democrático, onde o trabalho realizado por “muitas mãos” constrói soluções para o que se estabelece como necessário e urgente. Essa qualificação pode ser evidenciada em alguns encaminhamentos subsequentes do documento. É nessa perspectiva que a Educação Física na/da escola indígena pode se constituir como uma tarefa local e “[...] cabe a cada comunidade, em diálogo com os professores (junto com seus assessores, se necessário), decidir se (e como) um currículo escolar de Educação Física pode ser útil à formação de suas novas gerações” (Brasil, 1998, p. 323). O esforço de construção de uma outra Educação Física para a escola indígena é o ponto fulcral da proposta. No contexto da Escola Municipal Pluridocente Indígena Aldeia Três Palmeiras: “[...] a EF já está inserida, porém, como os não indígenas falam: tem que ter o professor específico né pra isso. Mas na verdade sempre teve, sempre aconteceu (Professora de Alfabetização Guarani)”.
Nota-se que há dificuldade em pedagogizar esses momentos ou de ajustá-los no tempo-escola. A compreensão da EF como prática corporal indissociável da identidade Guarani sugere que não há necessidade de professor específico. Em outra perspectiva, diferentemente da clássica dicotomia corpo/mente e corpo/espírito, também podemos compreender que “[...] para o indígena não há separação entre o que consideramos conhecimento teórico e conhecimento prático. Os saberes indígenas se constituem da confluência entre a teoria e o fazer, pois acontecem de forma simultânea dada a sua complexidade cognitiva” (Nazareno; Araújo; Pereira, 2019, p. 92-93).
Tendo em vista essa dimensão inseparável entre a teoria e prática, vivenciada e aprendida no fazer do dia a dia, a compreensão de EF apresentada pelos participantes do estudo estabelece íntima relação com os documentos oficiais. Assim, a Educação Física ocorre “[...] independentemente da escola, existem atividades envolvendo transmissão de conhecimentos e valores referentes ao uso do corpo. E é por isso que este documento sustenta que as culturas indígenas, por si mesmas, têm suas próprias formas de Educação Física” (Brasil, 1998, p. 322).
Segundo nossos informantes, os anciães da comunidade defendem que não há necessidade do ensino da disciplina na escola, alegando que a mesma acontece por si só. Essa constatação pode ser um indicativo de que a EF escolar seja compreendida por parte da aldeia, como representação das práticas corporais locais. Segundo o Diretor da escola, “[...] pra nós Guarani a EF de fato seria já em todo momento, em todo momento em que a criança faz seus movimentos, é mesmo que seja no trabalho, mesmo que seja brincando, mesmo que seja jogando, já é uma forma de educar fisicamente” (Diretor da Escola).
Para os Guarani do Espírito Santo, a dança, seus cantos, jogos e brincadeiras, a pesca, a confecção de artesanato, a culinária, o cultivo e as caminhadas, fazem parte do ensino e compreensão de Educação Física. Ou seja, isso indica que a compreensão dos Guarani sobre a Educação Física é ancorada num sentido mais amplo de suas práticas corporais, extrapolando a questão esportiva e desconectada de uma perspectiva pedagógica formal e institucionalizada.
Considerar a Educação Física como componente curricular implica a compreensão e caracterização de intenção pedagógica formal com que é tratado um conteúdo no âmbito escolar (Bracht, 1999) e o modelo escolar é uma representação do pensamento moderno. Isso significa que o esforço de pedagogizar a Educação Física Escolar Indígena também representa, em parte, a constituição moderna do se movimentar humano. Essa é mais uma contradição inerente as ações que têm como objetivo formalizar o processo educacional. Elas derivam da própria consciência moderna, daí a necessidade de não perdermos de vista os pressupostos do que entendemos como Educação Física e como é vivenciada na aldeia. Por outro lado, mesmo que os pressupostos iniciais para identificação da Educação Física escolar na escola indígena tenham partido de uma ideia, relativamente, restritiva de Educação Física escolar não indígena, o RCNEI demonstra romper, parcialmente, com esses pressupostos quando associa à Educação Física as práticas corporais e confere autonomia à comunidade indígena sobre sua necessidade ou não como componente curricular. Nessa conjuntura, observamos, novamente, resultados adversos. O que pode servir como um discurso legitimador da Educação Física escolar na escola indígena, também pode descaracterizá-la como componente curricular. Segundo o RCNEI (Brasil, 1998, p. 323),
[...] para alguns grupos indígenas, é possível que não haja nenhuma razão para se ensinar Educação Física na escola. Pode ser que eles considerem que a educação corporal informal (fora da escola) e as atividades físicas desenvolvidas no dia a dia e nos rituais são suficientes para a formação de suas crianças e seus jovens. Se a decisão for essa, ela precisa ser respeitada.
Além da relação com a educação do corpo e atividades físicas desenvolvidas no dia a dia que podem ser suficientes para formação das crianças e jovens mencionadas pelo documento, vimos também outra situação que pode influenciar a dispensa desta disciplina se dá em virtude de seu próprio conteúdo. Nesse sentido, parte dos informantes declarou receio de que seja trabalhado apenas conteúdos externos, em detrimento dos conhecimentos e práticas advindas da cultura e tradição Guarani. O medo é de que acabem incentivando ou motivando os mais jovens às “práticas de fora” causando perda e esquecimento das “de dentro”.
No entanto, mesmo considerando a EF como parte de suas atividades diárias, ela foi concebida como componente curricular na escola Guarani. Essas discordâncias parecem funcionar como tensões necessárias para qualificação da Educação Física no contexto analisado. Assim, percebemos tanto no documento quanto nos dados do campo várias contradições, desencontros, mas há, também, vivências significativas protagonizadas pelos sujeitos da escola/aldeia. Assim, em meio à liberdade de decisão sobre ter ou não Educação Física na/da escola, o receio de abandono das práticas corporais cede espaço aos benefícios e potencialidades atribuídas ao conhecimento escolar. Há um sentimento de valorização da escola, mesmo com relativa desconfiança da EF escolar.
Se pensarmos que o campo acadêmico/científico da Educação Física tem debatido sobre os desdobramentos históricos da dualidade corpo/mente no âmbito da sociedade moderna contemporânea, nos deparamos com um desafio às avessas: o desafio de pensar uma Educação Física para povos e comunidades que, em alguma medida, não fazem essa distinção. Se considerarmos que nas sociedades modernas os discursos sobre a saúde e o corpo historicamente com ênfase na dimensão anatômica e biológica trouxeram impactos significativos para EF em escolas não indígenas, podemos observar que na EF em escolas indígenas se afirma um tipo de “unidade existencial” que integra o Ser Guarani com as práticas corporais. Não há, em princípio, o desejo de domínio da natureza ou a relação homem máquina.
A compreensão das práticas corporais (Educação Física) como parte de si mesmo, a possibilidade de continuidade de existência após a morte por meio de outras formas que, em sua maioria remetam ao movimento, aos animais, indicam um tipo de fusão entre corpo/mente/espírito (Ciccarone, 2001). Mesmo considerando o relativo contato da comunidade indígena com a sociedade não indígena, a crítica está situada no campo das dificuldades de pensar a Educação Física em escolas indígenas tendo como parâmetro a Educação Física em escolas não indígenas. Dentre outras considerações possíveis, os processos relacionados à formação de professores, pesquisadores, gestores indígenas, se constituem como ações coerentes dentro da proposta de educação escolar intercultural alinhada à cultura e demandas local.
Quando analisamos os objetivos para Educação Física em escolas indígenas pelo viés da interculturalidade podemos notar outras potencialidades e parte dos desafios pedagógicos para o desenvolvimento do componente curricular das escolas indígenas. Nesse contexto, segundo o RCNEI (Brasil, 1998, p. 327), os objetivos são:
[...] conhecer e avaliar os elementos da cultura corporal de movimento da sociedade envolvente; contribuir para a educação corporal e uma vida mais saudável; revitalizar aspectos da cultura corporal de movimento indígena; divulgar aspectos da cultura indígena para a sociedade brasileira; estimular a troca de conhecimentos e técnicas dos povos indígenas entre si [...].
Sendo assim, podemos notar elementos que impulsionam um tipo de movimento legitimador da presença da Educação Física em escolas indígenas dentro da perspectiva intercultural. Nesse sentido o que parece é que os documentos apontam para uma direção que nem sempre se efetiva nas escolas indígenas, tendo em vista as diversas concepções que habitam diferentes contextos culturais e étnicos.
Em 2006, primeiro ano em que a EF foi inserida na escola Guarani do Espírito Santo, a disciplina foi desenvolvida com conteúdo e metodologias comuns à escola não indígena, o que causou uma visão negativa. Ao invés de realizar uma proposta com objetivos claros de promover vivências de práticas corporais de outras culturas – como propõe o ensino intercultural – segundo o relato do diretor da escola Guarani, o professor Tupiniquim desenvolvia apenas os esportes futebol e vôlei sem diálogo e conexão com o contexto Guarani.
Tal experiência gerou certo repúdio e desconfiança da comunidade em relação à disciplina nesse primeiro momento. Mesmo assim, o diretor da escola insistiu para que a disciplina continuasse na escola, porém, com outro professor. O diretor da escola apresentava uma compreensão de EF diferente da comunidade porque ele conseguia identificar e reconhecer as contribuições da EF para a escola local. Foi naquele período que um professor de Matemática Guarani assumiu a disciplina e pôde trabalhar da forma esperada pela aldeia e lideranças Guarani.
No relato que segue, podemos observar que uma das lideranças demonstra preocupação com a prática de modalidades esportivas no cotidiano de maneira que possam comprometer a difusão de valores tradicionais. Nesse sentido, defendem que o esporte não pode ser exclusividade e/ou prioridade, pois há o risco de contrapor-se às possibilidades do se movimentar indígena ou ainda do ethos e cosmogonia do povo. O cacique da aldeia Três Palmeiras afirma: “[...] No meu vê a gente não pode, nosso povo, nós, não podemos focar muito nesse esporte dos brancos” (Cacique da Aldeia Três Palmeiras, 2019).
É um fato reconhecido pela própria liderança que os jovens tenham preferência e prazer em jogar futebol ou “jogar bola”, como relata o diretor da escola ao perguntar sobre quais práticas corporais são realizadas nas aulas de EF:
[...] Peteca é uma das práticas do Guarani, brincadeiras né, jogo da onça... Então é essas aí que são práticas culturais... arco e flecha, zarabatana, dança Jhondaro, dança guerreiro, tudo aí é da cultura Guarani. São praticados não todo dia, mas, porque maioria das vezes é bola que os meninos gostam muito né, bola que predomina mais, é bola né (Diretor da Escola).
As práticas corporais e o “jogar bola” se apresentam como expressão da Educação Física escolar e, simultaneamente, carregam as tensões entre os desejos dos mais jovens pelos esportes e de parte da liderança da aldeia vinculado às práticas corporais indígenas.
Os dados indicam que o posicionamento dos jovens e de alguns adultos ao fazerem questão de um espaço “adequado” para “jogarem bola” já indica uma flexibilidade das lideranças em relação ao uso desta prática no cotidiano da aldeia. Assim como, a participação da comunidade em competições com outras etnias e da cidade local (com não indígenas). Isso revela uma disparidade entre o dito e o feito. Atualmente, a compreensão e aceitação do esporte bem como da EF na escola é outra. Essa compreensão também foi sinalizada no Referencial Curricular Para Escolas Indígenas de várias etnias e acrescentou, ainda, que a prática desse esporte é quase diária, em muitas comunidades (Brasil, 1998).
Aqui observamos aspectos que podem justificar a adesão ou o receio dos líderes indígenas em aderir ou difundir as práticas esportivas nas aulas de Educação Física em escolas indígenas. A primeira pode estar ligada às possíveis transformações/mudanças no modo de ser indígena a partir dos valores dos não indígenas e distanciamento das práticas corporais tradicionais, comprometendo aspectos da ancestralidade, da memória, dos rituais e a espiritualidade ou também podem estar associadas ao processo de apropriação e ressignificação das práticas corporais esportivas. O outro indica de maneira direta os benefícios decorrentes da prática esportiva e demonstra relativa autonomia dos praticantes para apropriação e ressignificação dos esportes. Essa compreensão estará presente também nos estudos de Fassheber (2006).
Para aquele autor, o futebol é apropriado e ressignificado mimeticamente passando a se constituir como um dos aspectos para reafirmação identitária do ser Kaingang. Para os Bororo, o futebol apesar de compartilhar das regras universais, “[...] não é o mesmo futebol praticado em outros lugares [...] há na manifestação da cultura corporal de movimento traços identitários que desenham e revestem as práticas corporais de singularidades produzidas culturalmente” (Saneto, 2016, p. 164).
Esses autores tiveram diferentes objetos de estudo, no entanto, o futebol aparece de forma recorrente e parece cada vez mais enraizado nas aldeias brasileiras. No contexto da aldeia Guarani, é notória a apropriação do futebol de diferentes maneiras, seja pela vestimenta (muito comum o uso de camisas e seus adereços de clube de futebol), assim como crianças e jovens com posse de bolas de futebol pelos cantos, seja através dos usos dos espaços (qualquer pedaço de chão se torna um “campinho de futebol” e atualmente, existe um espaço delimitado para essa finalidade ao lado da escola).
Se concordarmos que a escola se constitui como extensão da aldeia, o esporte, inserido no cotidiano das práticas corporais indígenas, constitui-se como cultura corporal indígena. Nesse contexto, também é objeto da Educação Física em escolas indígenas. Nessa relação paradoxal, as práticas corporais estão inseridas na dimensão intercultural em um fluxo contínuo de retroalimentação onde o tradicional e moderno se expressam na cultura tradicional/local.
As práticas corporais associadas à cultura tradicional vivenciadas nas festividades e no dia a dia da comunidade cedem espaço à cultura esportiva e integram o acervo cultural, principalmente dos mais jovens. Assim, a anuência de um espaço específico para “jogar bola” e o fato dela estar localizada ao lado da escola (espaços centrais), também reflete o lugar que essa prática tem apresentado no contexto da aldeia Guarani Três Palmeiras. Tal qual constatado por Fassheber (2006) e Saneto (2016), mesmo não tendo dados suficientes para afirmar categoricamente, podemos conjecturar, com base nas observações, que há um processo de apropriação e ressignificação do futebol semelhante ao que acontece com os Bororo e os Kaingang.
Sendo assim, o possível processo de apropriação dos esportes não se dá de maneira passiva. Como apresentamos anteriormente, as resistências das abordagens dos esportes nesse contexto, vem sendo negociada de forma constante. Em contrapartida, ao conversar com a professora de EF A e o diretor da escola sobre a questão dos esportes na rotina escolar, há uma concepção que confronta com a do cacique da aldeia.
Podemos praticar tudo, todos os esportes indígenas e não indígenas. Nós também queremos conhecer e aprender sobre outras culturas, sobre o que não é indígena. Então, nas aulas de Educação Física também queremos aprender esportes e práticas de outros povos (Professora de EF A, 2021).
A prática do esporte na escola, sempre é uma forma de união, coletiva né porque os indígenas gostam de estarem em coletividade. Então, isso é sempre bom né. Ter um momento de socializar, de conversar, de risos, de piadas, de torcidas... Então, isso é bom, isso é ótimo para o povo indígena, seja na escola e seja na aldeia (Diretor da Escola, 2021).
A fala do diretor da escola Guarani reitera a hipótese de ressignificação apresentada anteriormente, pois caracteriza o esporte como um meio de sociabilidade e mantém íntima relação com as constatações de Fassheber (2006) e Almeida (2013). Para os agentes da escola, o esporte pode e deve ser vivenciado e praticado na escola. Ao que se refere sobre os conteúdos, cabe ao professor e ao grupo técnico pedagógico escolar, assim como às lideranças/comunidade, estabelecerem os critérios para escolha deles, a fim de que as escolhas correspondam permanentemente aos anseios e demandas do coletivo. Como reitera o documento, o currículo da EF deve ajudar a “[...] formar alunos críticos, capazes de refletir sobre essas situações de conflito relacionadas às culturas corporais indígenas” (Brasil, 1998, p. 325).
Dessa forma, o professor da disciplina deve problematizar questões que atravessam o cotidiano da aldeia, como por exemplo, acerca do desuso das práticas corporais tradicionais. Assim, a EF e a escola, assumem ao lado da comunidade o compromisso de manutenção dos aspectos que configuram a cultura e identidade do grupo étnico em questão. O professor deverá, portanto, se apropriar desses saberes para que juntamente com a comunidade envolvida, suscitem as práticas corporais tradicionais. Dessa forma, podemos compreender que a função/papel do professor se apresenta em “[...] uma dimensão mais complexa do que a instrução prevista tradicionalmente em nossas escolas” (Grando, 2006, p. 33).
Por outro lado, pensar sobre os esportes como construção social e, por isso, passíveis de reconstrução, podemos perceber potencialidades para múltiplas abordagens desse conteúdo nas aulas de Educação Física em escolas indígenas, assim como já foram tematizados no campo da Educação Física em escolas não indígenas. Obviamente, não se trata de “reimplantação” de uma perspectiva de ensino crítico dos esportes tal qual desenvolvido na cultura corporal não indígena. Está atrelado à ideia de relações/ações a partir da ideia de interculturalidade rumo a outras práticas, paradigmas outros, possibilidades outras a partir da revisão permanente do que está posto como modelo ou alternativa (Walsh, 2019). Significa ponderar, a partir dos interesses e políticas locais, onde seja possível refletir sobre as práticas e, de maneira consciente, reordená-las ou ressignificá-las.
Segundo relato da professora de EF A, era possível identificar na fala dos Guarani uma concepção de Educação Física “esportiva” e “naturalizada” (que a mesma acontece por si só, com ou sem escola). A professora de EF A pôde constatar que poucas das manifestações culturais Guarani eram praticadas nas aulas de EF. A partir desta constatação, resolveu desenvolver e construir com os alunos zarabatanas, chocalhos e o arco. De forma simultânea, incentivou a prática da dança Jhondaro8 no cotidiano das aulas. A dança e os cantos, de acordo com relatos do campo, são elementos presentes nas aldeias Guarani, através de apresentações do coral e grupo de dança da comunidade no cotidiano da aldeia (em alguma festividade, por exemplo), ao receber visitas9 e em espaços não indígenas. A partir do desenvolvimento das práticas tradicionais da cultura Guarani, assim como de outras etnias, a vivência de outros esportes além do futebol, foi possível repensar e talvez, ampliar este olhar sobre a disciplina nesse grupo.
Em 2020, no primeiro dia de aula de EF, a professora de EF A realizou um levantamento de conteúdos com todas as turmas, a fim de conhecer quais práticas (da cultura Guarani e não indígena) os alunos se identificavam. Cada um recebeu um papel para desenhar ou escrever em qualquer espaço da escola. A professora de EF A explicou sobre um importante período do ano para toda comunidade indígena: o mês de abril, em decorrência da data 19 de abril10 – dia do “índio”11 – fruto de um pensamento colonial.
Naquele mês, aconteceu a “Semana dos Povos Indígenas”. Aquele evento foi de iniciativa das comunidades Guarani e Tupiniquim e ocorre com apoio da Prefeitura Municipal de Aracruz. Além de promover o aumento na movimentação de turistas, o evento objetiva manifestar e divulgar à população capixaba as culturas das etnias presentes, além de se constituir como um momento de reinvindicação política e com potencial para que a sociabilidade aconteça entre os indígenas das diferentes aldeias.
Em 2020, as escolas Guarani e Tupiniquim estavam se articulando para contribuir na organização, programação e realização do evento, alegando que a escola possuía um papel central na valorização da tradição, como designam a LDB (1996) e o RCNEI (1998). O evento foi um meio de motivar e ensinar as crianças e jovens indígenas.
Na “Semana dos Povos Indígenas” estava previsto (porém, não ocorreu devido à pandemia, segundo o diretor da escola e a professora de EF A: apresentações de danças Guarani e Tupiniquim, com cantores indígenas e coral, venda de comidas da culinária Guarani e Tupiniquim, competições esportivas, jogos e brincadeiras tradicionais. Muito motivada e disposta a professora de EF A relata: “Por isso, precisamos treinar e aprender nas aulas de Educação Física. [...] As aulas serão organizadas daqui pra frente, focando no aperfeiçoamento dos jogos tradicionais e esportivos para a semana dos Povos Indígenas” (Professora de EF A, 2020).
Naquele momento a professora se referiu a um “preparo” dos alunos, visando o resultado nesse evento que também apresentava um viés competitivo e performático. As relações entre a cultura das práticas esportivas modernas e práticas corporais tradicionais voltam à tona em um tom de disputa e desempenho. Segundo a professora de EF A os alunos Guarani podem e devem praticar os esportes não indígenas.
Mesmo considerando as potencialidades dos esportes como parte da cultura local, no contexto descrito é possível identificar aspectos que provocam um redirecionamento no que analisamos anteriormente. As festividades e celebrações assumem características competitivas que também expressam valores esportivos tradicionais/modernos. Nesse sentido, as ressignificações das práticas corporais esportivas se potencializam se revelando em diversos sentidos e vivências, sendo possível observar o caráter competitivo e, por vezes, performático.
Observamos que os desafios frente às dinâmicas educacionais no âmbito da Educação Física Escolar Indígena da Escola Municipal Pluridocente Aldeia Três Palmeiras são contínuos e análogos aos desafios vivenciados por professores no dia a dia da educação escolar brasileira. Podemos constatar aproximação significativa com aquelas apresentadas por González e Fensterseifer (2010), quando analisaram as transformações no discurso legitimador da EF no âmbito escolar não indígena centrado no “exercitar-se para”. A partir dessa noção primária, destacam as dificuldades encontradas na construção e efetivação de um novo modo de legitimar a EF no espaço escolar.
A relação entre as práticas corporais e os esportes na aldeia Três Palmeiras tende a estar alinhada ora aos interesses dos mais jovens ora aos interesses dos líderes/representantes da escola. Por outro lado, a compreensão do que é a Educação Física, qual o seu papel e lugar no campo da educação escolar Guarani, está diretamente relacionada, mas não de forma exclusiva, com a maneira que será conduzida pelos professores responsáveis pela disciplina.
Não obstante a isso, o recorte realizado em nossas análises, por meio das categorias identificadas na pesquisa, indicam que a função docente exerce grande representatividade na constituição da Educação Física escolar na aldeia. Assim como os conteúdos associados exclusivamente ao esporte em tempos passados que serviram/servem como justificativa para discordâncias sobre a presença da disciplina no currículo. Pode-se perceber, com isso, que a partir de estratégias didáticas e metodológicas apropriadas, é possível notar uma nova compreensão de EF.
Sobre essa questão, podemos constatar a importância de cursos de Licenciatura Intercultural específicos para Indígenas no Brasil, que ainda recentes, certamente contribuirão para o processo de constituição de uma educação escolar indígena diferenciada e específica. No caso da escola Guarani, as dificuldades vigentes para o acesso ao Ensino Superior, acabam reforçando a necessidade de contratação de professores indígenas de outra etnia. Isso acaba repercutindo na maneira de conduzir e ministrar as aulas de EF, assim como a maneira que ela será compreendida, constituída, vivenciada e aceita (ou não) pela comunidade escolar e fora dela.
Vejamos que, no caso da Educação Física, os professores que assumiram a disciplina ao longo dos anos, nenhum possuía uma formação específica e não eram Guarani. Outro ponto importante que resulta em relativa desvalorização e descrédito da EF foi a constatação de inexistência de orientações acerca dos conteúdos da EF na Proposta Pedagógica das Escolas Guarani do Espírito Santo (PPEGES). Diferente de outras disciplinas, não foi possível encontrar conteúdos relacionados à EF. Essas e outras questões emergem da compreensão dos desafios a serem superados para ensino da Educação Física e implicam na constituição do lugar da Educação Física nessa escola/comunidade/aldeia.
Essas análises se referem às considerações sobre as ações e procedimentos adotados para o desenvolvimento das atividades pedagógicas na/da escola por meio da participação dos líderes nas decisões educacionais e valorização das práticas corporais tradicionais, consideração aos desejos e interesses principalmente dos mais jovens, e no acesso à formação de professores indígenas, mesmo que de forma parcial. Assim, em proporção distinta entre os sujeitos, a Educação Física compõe e representa de forma significativa aspectos identitários à cultura local e, considerando os dados do campo sobre os encaminhamentos desse componente curricular na escola pesquisada, além do acesso à formação docente para pessoas indígenas, em sua maioria Tupiniquim, se constitui como fundamental a formação docente de indígenas Guarani, para avançarmos rumo ao que se coloca como interculturalidade.
Nesse contexto, mais do que apontar qual o lugar exato da Educação Física, tratamos da identificação do que vem sendo esse componente curricular no campo analisado. Sendo assim, a Educação Física vem se constituindo como prática corporal vivenciada no dia a dia da escola/aldeia/comunidade onde são compartilhados saberes representados por meio das culturas tradicionais Guarani e pelos esportes. Por isso, quando vivenciada fora dos preceitos formais da escola, possui lugar de destaque, pois é associada às práticas corporais nativas inerentes ao se movimentar indígena. Contudo, a apropriação do esporte pela comunidade indica ampliação da noção de práticas corporais. Desta forma, tais quais as práticas corporais indígenas, o esporte acontece independente da escola. É nesse cenário que há uma diferenciação. A Educação Física Escolar simultaneamente tem a missão de resgatar as práticas corporais indígenas e pedagogizar o esporte. Assim, se desloca para um lugar de desconfiança, quando põe em “risco” interesses de parte dos sujeitos.
Em meio aos movimentos de aproximação e distanciamento ao objeto de estudo, o olhar de perto e de dentro que, simultaneamente, é de fora, evidenciamos um tipo de reordenamento a partir das apropriações e dos encontros (vivências educacionais) possibilitados pela educação escolar indígena. As contradições se estabelecem como condição existencial da Educação Física no contexto da escola analisada. Assim, as contradições ou ambivalências geradas pelas relações estabelecidas no processo de constituição da Educação Física em escolas indígenas, ao mesmo tempo em que sinalizam obstáculos por vezes não superados, podem funcionar como potência para ações educacionais rumo à formação/educação escolar intercultural. Nesse contexto, as ações relacionadas às orientações sobre a educação escolar intercultural se estabelecem como materialização das potencialidades didático metodológicas relacionadas.
No contexto de análise das categorias articuladas ao referencial teórico e dados do campo foi possível constatar repercussões importantes dentro do contexto da Educação Física Escolar em contexto indígena. Isso significa que as características culturais e o processo de formação local podem influenciar na adesão das aulas, distanciamento dos alunos da escola Guarani, na formação de novos docentes Guarani, bem como na compreensão sobre Educação Física. É nesse contexto que a Educação Física é compreendida e vivenciada por meio das práticas corporais da cultura indígena (caça, pesca, danças, jogos, brincadeiras etc.) e do esporte (Futebol).
De maneira geral, a compreensão de Educação Física se apresenta em duas perspectivas principais: a primeira se refere a apropriação do termo e identificação da própria existência do Ser Guarani, daí sua valorização, pois se manifesta como prática corporal inerente ao se movimentar do indígena. Está ligada, em alguma medida, com a identidade Guarani e por isso, não há necessidade de um saber de fora. Essa compreensão também foi demarcada nos documentos oficiais como justificativa para não inclusão da Educação Física em algumas escolas indígenas. A outra está associada à Educação Física escolar institucionalizada. Nesse caso específico, não é redundante o termo. Essa Educação Física escolar deve incorporar a cultura corporal indígena local. Entretanto, além das práticas corporais daquela “Educação Física Natural” do Ser Guarani, está embutido o esporte. Simultaneamente, a Educação Física escolar é objeto de desconfiança por parte do grupo pelo receio de abandono das práticas corporais tradicionais. Essa desvalorização, também, pode ser inferida pela não existência de conteúdos explicativos sobre essa disciplina nos documentos da escola. Por outro lado, a valorização dos esportes por parte de membros da escola/aldeia expressa relativa valorização sobre a pertinência desse lugar na escola. Nessa conjuntura, a estratégia de ensinar os esportes e/ou considerá-los como parte dos conteúdos garante participação e adesão dos alunos nas aulas. Por esse ângulo, a Educação Física escolar passa a ficar “refém do esporte” para sua legitimação. Como se a valorização da Educação Física escolar dependesse dos conhecimentos “de fora”, mesmo que já incorporados pela cultura local.
A formação e as atuações dos professores estão intimamente relacionadas com as visões e maneiras de vivenciarem e/ou ensinarem a Educação Física, ou seja, está ligada as diferentes compreensões de EF. Nesse processo educacional que, simultaneamente, é escolar e da aldeia, emergem as tensões e potencialidades da interculturalidade. Assim a Educação Física na Escola Indígena Pluridocente de Aracruz vem sendo construída no dia a dia da escola/aldeia como expressão da cultura local (tradicional e esportiva), das experiências com ênfase no esporte e dentro de uma conjuntura da escola indígena com predominância de professores de outra etnia.
Assim, esse (não)lugar de destaque da EF perante os documentos da escola Guarani e, devido a maneira que foi iniciada na escola, provocou uma certa desconfiança principalmente do público mais velho. No entanto, hoje, essa relação tem se estabelecido de forma mais amistosa e seus conteúdos se fazem presentes no dia a dia da escola/aldeia com apreciação. Ora associada aos afazeres tradicionais do povo, ora como objeto de desejo dos mais jovens representada por meio do esporte futebol. Se constitui em um (não)lugar ainda não definido apropriadamente por nós, não indígenas. Se manifesta como componente curricular que, em meio os desafios intrínsecos à própria área de atuação profissional, se constrói no cotidiano com os sujeitos na/da escola/aldeia. Essa construção permanente da Educação Física Escolar Indígena da escola/aldeia além de lidar com as contradições históricas entre as culturas tradicionais indígenas e a cultura moderna vivenciada no processo de “marcha pelo Brasil” em busca da Terra sem Mal, nos dias atuais, foram relativamente substituídas pela reconstrução/manutenção permanente do Ser Guarani por meio da valorização da tradição pelos mais velhos e uma possível ressignificação do esporte pelos mais jovens, líderes educacionais e comunidade.
Como citar: Freitas, S. C., Saneto, J. G., & Gomes, I. M. (2022). Comprehensions of physical education at Guarani multi-teacher school in Espírito Santo. Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e18028. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.18028
Contribuições dos Autores: Freitas, S. C.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Saneto, J. G.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Gomes, I. M.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
Aprovação Ética: Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal do Espírito Santos CAAE: 26687419.5.0000.5542.
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