Resumo: O objetivo deste artigo foi (re)constituir aspectos históricos do processo educacional no município do Icó-CE, com ênfase na educação dos primeiros habitantes locais, entre os anos de 1599 e 1759, que está situado no período colonial brasileiro. Para isto, realizamos um estudo de caráter documental, explorando alguns escritos de autores locais como Couto (1962) e Lima (1995). A educação em solos icoenses no Brasil Colônia não foi um processo tranquilo e sereno, pelo contrário, em seu início caracterizou-se por tensões, violência e resistência, já que os indígenas que habitavam o território insistiam em defendê-lo dos invasores europeus. A doutrinação religiosa foi um meio utilizado pelos dominadores para subjugar culturalmente os povos nativos do território brasileiro. A construção da Igreja de Nossa Senhora da Expectação, em 1709, foi um marco fundamental para estabilização dos sacerdotes educadores e organização da rotina do povoado.
Palavras-chave: Educação, Icó-CE, Período Colonial, Jesuítas.
Abstract: This article aimed to (re)constitute historic aspects of the educational process in Icó – CE, with emphases in the education of the local inhabitants, from 1599 to 1759, that is situated in the Brazilian colonial period. Therefore, it was realized a documental study, exploring some writings by local authors as Couto (1962) and Lima (1995). Education in Icó in Brazil Colonia was not a peaceful process. On contrary, it was in the beginning characterized by tensions, violence and resistance, because the native Indians insisted on defending their territory against European invaders. The religious indoctrination was a way used by determinators to subjugate native people culturally of Brazilian territory. The construction of Nossa Senhora da Expectação Church, in 1709, was a fundamental milestone to stabilization of the educating priests and organization of village routine.
Keywords: Education, Icó-CE, Colonial Period, Jesuits.
Resumen: El artigo tuvo como objetivo (re)constituir aspectos históricos del proceso educacional en Icó–CE, priorizando la educación de los primeros habitantes locales, entre los años de 1599 y 1759, que está situado en el período colonial brasileño. Para eso, fue realizado un estudio de carácter documental, explorando algunos escritos de autores locales como Couto (1962) y Lima (1995). La educación en suelos icoenses en el Brasil Colonia no fue un proceso tranquilo y sereno. Al contrario, en su inicio fue caracterizado por tenciones, violencias y resistencia, ya que los indígenas que habitaban el territorio insistían en su defesa contra los invasores europeos. El adoctrinamiento religioso fue un medio usado por los dominadores para subyugar culturalmente los pueblos nativos del territorio brasilero. La construcción de la Iglesia de Nossa Senhora da Expectação, en 1709, fue un marco fundamental para estabilización de los sacerdotes educadores y organización da rutina del poblado.
Palabras clave: Educación, Icó-CE, Periodo Colonial, Jesuitas.
Publicação Contínua
A educação colonial no município de Icó-CE: o processo educacional dos primeiros habitantes (1599-1759)
Colonial education in Icó-CE: educational process of the first inhabitants (1599-1759)
La educación colonial in Icó-CE: el proceso educacional de los primeros habitantes (1599-1759)
Recepción: 28 Julio 2020
Aprobación: 08 Mayo 2021
Publicación: 05 Junio 2021
Esta pesquisa trata da história da educação1 no município de Icó-CE, com ênfase nos acontecimentos relacionados ao processo educacional dos primeiros habitantes locais, no período colonial brasileiro. A aproximação com essa temática aconteceu a partir das leituras iniciais para compreensão da historicidade das práticas educativas no referido lócus para desenvolvimento do trabalho de dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Pacheco (2017) afirma que existe pouca centralidade das pesquisas históricas na área da educação voltadas para o período colonial. Agregando a essa informação, Rocha (2011) ressalta que não se pode generalizar a história da educação a partir de estudos feitos em outras regiões do país, isto é, não podemos desprezar ou esquecer as especificidades regionais e os aspectos históricos locais.
Nesse sentido, notamos a existência de carência de estudos e pesquisas sobre a história da educação no município de Icó-CE, em particular, no período colonial (1500-1822). Evidentemente que a abrangência desse período histórico brasileiro é vasta, por isso, centramos nossos olhares para a segunda etapa (1599-1759) do processo educacional colonial definida por Saviani (2008), que no lócus em investigação corresponde ao período de início do processo de colonização e povoamento. Destarte, aguçou-nos o desejo de investigar o passado educacional desse município partindo do seguinte questionamento: Como se constituiu a educação no município de Icó-CE no período colonial entre 1599 e 1759?
Diante desta indagação, definimos como objetivo (re)constituir aspectos históricos do processo educacional no município do Icó-CE no período colonial do Brasil, especificamente entre 1599 e 1759, com ênfase no início da educação dos primeiros habitantes locais.
O município de Icó está localizado na região Centro-Sul cearense e possui representatividade histórica no Estado por ter sido a terceira vila a ser instalada no Ceará no ano de 1738, logo após Aquiraz e Fortaleza. O Icó também se destacou na produção agrícola e na pecuária, configurando-se em grande rota comercial do Nordeste. Por sua importância econômica, a parte urbanística da cidade foi projetada pela Corte Imperial, sendo que desde o ano de 1998, seus casarões, igrejas e teatro são acervos do patrimônio nacional tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Freitas e Biccas (2009, p. 31) nos esclarecem que a história da educação é sempre um capítulo denso e tenso na história política, ao qual acrescentamos, seja ela no âmbito nacional, estadual ou local. Nessa perspectiva, a história da educação no município de Icó-CE desenvolveu-se entrelaçada aos acontecimentos políticos, religiosos e econômicos, sendo que o processo de educação dos primeiros habitantes são resultados dos interesses ideológicos de diversos atores da época.
Esta pesquisa mostra-se relevante devido a já referida necessidade de registro histórico da educação em Icó-CE, com ênfase no período colonial brasileiro. Dessa forma, o empreendimento se justifica pela possibilidade de contribuir para a ampliação das investigações históricas em educação no Estado do Ceará.
Para o alcance de nosso objetivo, recorremos à pesquisa documental. Realizamos buscas por coletas de materiais em bibliotecas e na casa de cultura do município de Icó-CE, o que nos levou a duas obras de registros locais, Couto (1962), com fins eclesiásticos, e Lima (1995), com teor histórico cultural. Tais documentos históricos foram confrontados com fontes bibliográficas para a realização das reflexões empreendidas neste trabalho. Assim, esta (re)constituição histórica se deu a partir de fontes documentais secundárias.
Esta pesquisa está amparada pela Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016, que no Artigo 1º, especificamente no inciso VI, preconiza que “pesquisa realizada exclusivamente com textos científicos para revisão da literatura científica” não precisa passar pelo registro e avaliação no Comitê de Ética de Pesquisa, sistema CEP/CONEP (Brasil, 2016).
Antes da presença dos colonizadores europeus no território brasileiro, os nativos tinham suas formas de organização para viver coletivamente nas tribos, que se sustentavam por gerações pelos ensinamentos dos costumes e rituais para sobrevivência na selva. Ostetto (1991) afirma que a educação indígena centrava-se no repasse de costumes, de rituais de iniciação, de exercícios corporais, de introdução do trabalho de sobrevivência, com vistas à adaptação ao meio e de busca pela independência.
Corroborando o exposto, Pacheco (2017, p.149) ressalta que a educação na tribo era “voltada para o ensino das tradições e costumes do povo”, envolvia transmissão de valores para desenvolvimento “da coragem, do temor pelos pajés, do enfrentamento da morte, das tradições religiosas”. Além disso, a referida autora menciona que existiam atividades para a “aprendizagem de músicas, dança e jogos”.
Essa perspectiva de educação nas tribos brasileiras começou a mudar com a chegada dos primeiros jesuítas por volta do ano de 1549. Para Saviani (2008), com a missão de converter os indígenas à santa fé católica a pedido do rei de Portugal da época, Dom João III (1502-1557), os jesuítas criaram escolas e instituíram colégios e seminários que se espalharam pelas diversas regiões do território brasileiro. Para Pacheco (2017, p.151)
Nesse processo, o estilo de vida europeu, as instituições de socialização e aprendizagem, como as escolas de ler e escrever, que foram implantados pelos jesuítas, com o foco na catequese e no ensino das primeiras letras, trouxeram mudanças consideráveis nos modos de vida infantis. Um processo de submissão, sujeição, exploração e escravidão passaram a fazer parte da vida das crianças brasileiras.
Esse modelo de educação em meio ao processo de colonização caracterizou-se pela aculturação, ou seja, os métodos utilizados na época buscavam “quebrar” os rituais dos nativos e implantar elementos culturais dos colonizadores aos indivíduos colonizados.
Saviani (2008) ressalta que a educação no período colonial no Brasil corresponde a três etapas distintas. De acordo com ele,
A primeira etapa corresponde ao chamado “período heróico”, que [...] abrange de 1549 com a chegada dos primeiros jesuítas [...] até a morte de Anchieta, em 1597, e a promulgação do Ratio Studiorum2, em 1599. A segunda etapa (1599 -1759) é marcada pela organização e consolidação da educação jesuítica centrada no Ratio Studiorum. A terceira etapa (1759-1808), corresponde a fase pombalina, que inaugura o segundo período das ideias pedagógicas no Brasil (Saviani, 2008, p.31).
Notamos que a primeira etapa, denominada de período heroico, é caracterizada pelas primeiras ações dos jesuítas para educação dos nativos, correspondendo ao movimento de convertê-los a fé cristã por meio da instrumentalização da catequese. Com a promulgação Ratio Studiorum em 1599, tem-se início a segunda etapa marcada pela consolidação da Companhia de Jesus3 frente os processos educacionais da colônia, que promove a educação não apenas dos indígenas, mas também se estendendo aos povos colonizadores e a elite colonial. A última etapa, que começa em 1759, é caracterizada pela organização da educação a partir da iniciativa estatal pela instituição da reforma pombalina e expulsão dos jesuítas.
Diante do exposto, percebemos que foi um longo período na história da educação brasileira com esse modelo educacional de forma oficial pautado no trabalho dos jesuítas, totalizando 210 anos (1549-1759). Mas não foi um processo simples, pelo contrário, os indígenas possuíam seus costumes e crenças que na concepção e propósitos dos jesuítas precisavam ser modificados. Para Silva e Amorim (2017, p. 191) o objetivo dos jesuítas em promover a educação dos indígenas era “formar uma cristandade no além-mar que se mantivesse fiel à ‘Santa Sé’ e na mudança de costumes e práticas comuns nas tribos indígenas como a poligamia, nudez e a antropofagia”.
Nesse sentido, os jesuítas por meio de seus métodos objetivavam interferir na rotina de vida dos nativos, promovendo modificações em seus hábitos, costumes, comportamentos e, sobretudo, em suas crenças religiosas. Sobre alguns métodos adotados pelos jesuítas, Pacheco (2017, p. 153) destaca que eram pautados em uma disciplina rígida, com atividades “de repetição e memorização, bem como o ensino de regras, da obediência e os castigos físicos”.
Colaborando com esse assunto, Rodrigues (2011, p. 88) enfatiza que os jesuítas pregavam uma espécie de “pedagogia da sujeição ou da submissão”, na qual as ações educativas combinavam “com sucesso o ensinar a ler, escrever e contar através da repetição exaustiva e/ou cantada das lições e o seu representar, em pequenos autos de fé e exaltação religiosa, mesclada de proibições, castigos e recompensas”.
Contudo, Bosi (1992) menciona que o método mais eficaz de pregação não demorou para ser descoberto pelos jesuítas, a estratégia se pautava na generalização do medo, do horror, já tão vivo no índio, aos espíritos malignos, e estendê-lo a todas as entidades que se manifestassem nos transes. O autor supramencionado ainda destaca um fato triste, que “[...] infelizmente para os povos nativos, a religião dos descobridores vinha municiada de cavalos e soldados, arcabuzes e canhões” (Bosi, 1992, p.72).
Percebemos assim, que a educação foi um processo tenso, por meio do qual os colonizadores impuseram o pensamento europeu aos povos indígenas, torturando a imaginação nativa e se impondo com poderio material quando preciso.
Após um longo período de organização e consolidação do modelo educacional jesuítico nas terras brasileiras, Portugal resolve romper com esses ideais, buscando aproximação com outros modelos europeus, com propósito de criar uma escola que atendesse a finalidade do Estado e não mais aos interesses eclesiásticos. O rompimento do Estado com a Companhia de Jesus pode ter sido agravado pelo fato de que alguns colonos, ao observarem que as riquezas produzidas pelo trabalho dos índios se acumulavam para os jesuítas, começaram a “contestar e denunciar como crime de lesa-majestade”, pois para eles, “deveriam ser contabilizadas prioritariamente a favor da coroa” (Rodrigues, 2011, p. 89).
De acordo com Saviani (2008), foi por meio do Alvará4 de 28 de junho de 1759, que a Coroa portuguesa decretou o fechamento dos colégios jesuítas e introduziu as aulas régias mantidas pelo Estado, sendo que pouco tempo depois, com a Lei de 3 de setembro de 1759, o rei Dom José I (1714-1777) determinou a expulsão dos Jesuítas do território português e de todas as terras de além-mar.
É importante destacar que o funcionamento das aulas régias não extinguiu os estudos em colégios de ordem religiosa (Saviani, 2008), isto significa que, a saída dos jesuítas não se deu por completa, alguns padres continuaram fomentando os estudos em alguns colégios eclesiásticos.
Maciel e Shigunov Neto (2008) chamam atenção para o fato de que esse processo de expulsão dos jesuítas (desabilitando oficialmente a educação proposta por eles), e de formulação das reformas pombalinas, dá início a uma peculiaridade das reformas educacionais brasileiras, caracterizada pela total destruição e substituição das antigas propostas pelas novas.
No contexto histórico do Ceará, Farias (2012) menciona algumas dificuldades no início do processo de colonização desse Estado Nordestino, ressaltando que eram poucos os sacerdotes que tinham interesse de vir ao território cearense. Segundo o autor, além das secas e da pobreza que assolavam a região, a mesma era povoada por índios agressivos e selvagens, com rudes habitantes, dos quais muitos eram criminosos, negros e mulatos, vivendo em constante pecado com as índias e gerando famílias de grosseiros mestiços -primeiros cearenses.
Esses fatos assinalados pelo autor, a seca e a pobreza, associados à mentalidade preconceituosa do colonizador em relação aos povos nativos, que claramente estava relacionada ao racismo visceral daquela sociedade, constituíram-se obstáculos ao desenvolvimento econômico, político e social do Ceará por mais de cem anos, contados após a chegada dos europeus no Brasil em 1500.
De acordo com Couto (1962), no Ceará não houve uma organização mais ampla das missões dos jesuítas e o processo educacional se restringiu ao esforço de alguns destes padres. Os primeiros jesuítas chegaram ao Ceará por volta do ano de 1607 (Xavier, 2010). No entanto, para Couto (1962) só a partir de 1688, com a fundação da Capitania do Ceará Grande, por ordem de Dom Pedro II (1648-1706), foi que oficialmente iniciaram os trabalhos de instrução, buscando-se aldear e doutrinar os índios.
É interessante esclarecer que o processo educacional dos indígenas que habitavam o Ceará começou a se desenvolver, inicialmente, buscando evangelizar, no caso, por meio de visitas e vivências nas tribos. Contudo, essa primeira tentativa de ir as tribos para modificar a rotina de vida dos povos nativos não foi eficiente, pois com as saídas dos jesuítas para outros territórios, os indígenas retornavam aos costumes anteriores.
Nesse sentido, sem alcançarem os resultados desejados, foi adotada a estratégia de aldeamentos5. Para Farias (2012, p. 70):
Havia muitos interesses em torno dos aldeamentos, que não era apenas por parte dos religiosos. Atendia em muito ao projeto colonial português. Para começar, ao concentrarem-se os nativos numa área restrita, deixavam-se os sertões desocupados para os colonos pecuaristas deles se apropriarem lucrativamente. Além disso, os índios aldeados seriam utilizados como mão de obra em diversos tipos de trabalho, fossem nas próprias missões, gerando riquezas para os jesuítas, fosse através dos trabalhos compulsórios requisitados e prestados aos fazendeiros ou às autoridades coloniais.
Assim, nota-se que os aldeamentos não se restringiam a catequização indígena, mas também envolviam interesses econômicos e socioculturais. Nessa perspectiva, o aldeamento dos índios era uma forma de dominação e adestramentos dos nativos na busca de implantar rituais e costumes europeus, e se apossarem dos territórios e riquezas naturais desse Estado. Além disso, os europeus aproveitavam esses aldeamentos para exploração da mão de obra nativa para produção e extração de materiais.
Em relação as missões dos jesuítas em Icó-CE, os escritos de Couto (1962) ressaltam que não há uma época exata do início da evangelização dos indígenas nesse município antes de 1700, por não ser possível mencionar nomes de padres catequistas antes desse período. Contudo, o referido autor, suspeita que a catequese dos nativos do território do Icó pode já ter iniciado em 1692, partindo da hipótese da existência de atuação de missionários que evitaram o derramamento de sangue no confronto entre nativos coligados e colonos, procedentes do São Francisco.
No seu escrito, Couto (1962) afirma que em 1682 ocorreu a expansão dos colonizadores nos sertões de Icó-CE, com a bandeira do Capitão Bartolomeu Nabo de Correia, mas não se tem vestígios da vinda de algum sacerdote com ele. Lima6(1995) ressalta que a caravana comandada pelo referido capitão veio composta de 40 imigrantes denominados de “Homens do São Francisco”. O que motivou a vinda dessas pessoas foram os vastos campos de pastagens, propícias para a criação de gado em grandes escalas, apesar das estiagens características da região. A partir daí começaram as concessões da sorte de terras para instalação de fazendas de criar gado.
Para Lima (1995), os primeiros povoadores “civilizados” do território de Icó-CE foram procedentes das famílias dos Montes e dos Fonsecas. O Coronel João da Fonseca Ferreira (1682-1705) é considerado fundador do Icó primitivo, na passagem do Bom Sucesso, nas testadas das terras do Coronel Francisco de Montes Silva (1705-1741), que foi o segundo chefe e fundador do atual Icó. A Crônica de ambos foi amplamente expandida no título de origens coloniais de Icó (Couto, 1962).
É importante frisar que esse processo de colonização se deu de forma conflituosa e violenta, pela resistência das tribos nativas que habitavam no local, da mesma forma que ocorreu em outras regiões do Estado do Ceará. Sobre o processo de colonização em geral, Silva e Amorim (2017, p. 188) ressaltam que
[…] não foi homogêneo em toda a extensão do território, muito menos foi harmônica a ocupação, tendo em vista que os confrontos com os povos indígenas aconteciam por causa do cativeiro para o trabalho escravo e a desapropriação de lugares considerados pontos estratégicos para a Coroa portuguesa.
Nesse contexto, a ocupação em Icó-CE, não se deu de forma pacífica e harmônica. Com base nos escritos de Théberge (1973), Lima e Sousa (1996) ressaltam que os índios foram bastante resistentes na defesa de seu território, mas depois de enormes perdas, viram-se obrigados a reconhecer a superioridade das armas europeias e adentraram na mata, onde os invasores não os podiam perseguir. Mesmo assim, as tribos indígenas iam sendo implacavelmente perseguidas, escravizadas, chacinadas e disseminadas (Barroso, 1962).
Assim, notamos que os indígenas da localidade, insistiam em defender seu território da invasão europeia e a preservação de sua identidade cultural. A partir desse desejo de resistência dos nativos, inferimos que a educação nesse momento voltava-se para estratégias de sobrevivência, com atividades de iniciação de exercícios físicos, de uso de arco-flecha, com intuito de criar resistência e desenvolver a coragem para o combate.
De acordo com Couto (1962), foi por meio da ação do padre João de Matos Serra, vigário da vara7 do Ceará e prefeito das missões da capitania, em parceria com capitão Plácido de Azevedo Falcão, cabo do presídio de Jaguaribe-CE, que houve um apaziguamento das tribos dos Tapuias8 Icós e Xixicós. Esses nativos viviam na região compreendida entre as margens direita dos rios Jaguaribe e Salgado e o rio do Peixe na Paraíba, sendo considerados pelos colonizadores inimigos e invasores de suas terras (Lima, 1995). Percebemos uma inversão do discurso em prol do poder das terras, o colonizador denominando o nativo de invasor por não se submeterem aos seus anseios.
Para Lima (1995), o padre João de Matos Serra prestou grandes serviços no território icoense, sendo responsável pela pacificação entre colonizadores, sesmeiros9 e nativos. Considerando essa passagem do escrito desse autor, percebemos que a atuação dos sacerdotes pautada em métodos educativos de pregação de exercícios espirituais e temor a divindade conseguiam apaziguar e intermediar situações de confrontos nesse processo de povoamento.
A partir daí, aproximadamente em 1707, ou seja, 25 anos depois da invasão branca nos sertões do Icó, o vigário de São José de Ribamar do Aquiraz veio da povoação de Fortaleza para o interior com o objetivo de catequizar a tribo dos Icós tapuias que se estendiam até a região do Rio do Peixe. A grande resistência dos indígenas aos ensinamentos exaustivos de quebra de rituais e costumes culminou para não obtenção de êxito nessa ação, assim, a missão durou apenas dois meses.
Com a edificação da Capela de Nossa Senhora do Ó (hoje conhecida por Matriz de Nossa Senhora da Expectação), por volta de 1709, não faltou mais padres nas terras de Icó-CE. Couto (1962, p. 56) faz o seguinte relato:
Acreditamos sinceramente, que a partir de 1709, não faltou mais um padre nas paragens Icoenses. Indicamo-lo as exigências da catequese dos aborígenes, as necessidades espirituais dos moradores brancos e a solicitude pastoral dos senhores Bispos de Pernambuco, em sempre proverem o bem espiritual dos habitantes destas partes cearenses.
Diante dessa constatação, notamos que a construção de uma capela no povoado de Icó-CE, propiciou a estabilidade de sacerdotes na referida localidade, não se restringindo a catequização apenas dos indígenas, mas com o prestígio religioso da época, se expandiu aos habitantes ditos brancos que também precisavam estar bem espiritualmente.
Silva e Amorim (2017, p. 187) nos alertam para a existência de níveis distintos de instrução proporcionados pelos jesuítas no território brasileiro,
A atuação pedagógica dos jesuítas influenciou o modo de educar os indivíduos na colônia segundo as suas posições sociais. Isso levou a níveis distintos de instrução: para os índios, os rudimentos da língua e os ofícios; para os brancos libertos, os rudimentos da escrita, da leitura e os ofícios; para as classes abastadas, os ensinos superiores que garantiriam a manutenção da estrutura de poder; já para os escravos africanos e alforriados, os ofícios.
Assim, com surgimento da primeira capela de Nossa Senhora da Expectação os sacerdotes jesuítas criam vínculos fortes com a diversidade de sujeitos que formavam o povoado de Icó-CE. A capela passa a regular a vida coletiva, pois o badalar do seu sino cria uma sistemática de vida da comunidade.
De acordo com Farias (2012, p.74), nos aldeamentos instalados em solo cearense tudo era regulado através de toques de sino da igreja, bem cedo, o badalar dos sinos aconteciam para acordar os índios para se ocupar nos serviços domésticos, sendo que ao pôr do sol, o sino anunciava o fim do trabalho e o momento de reunião da comunidade para os ritos religiosos. Posteriormente, o sino tocava para anunciar missa, enterro e batizado. Assim, a vida em comunidade era disciplinada ao som dos sinos.
Enfatizamos que, inicialmente, a capela construída em Icó-CE era conhecida como curato, que quer dizer uma povoação pastoreada, sendo que em 1717 destacou-se o trabalho do padre Domingos Dias da Silveira que se encontrava exercendo suas funções de cura. De acordo com Couto (1962), o referido padre alcançou duas épocas distintas à frente dos trabalhos de evangelização no Icó-CE, o curato de 1717 a 1722, e o limiar da nova paróquia cearense até aproximadamente 1726.
O padre Domingos Dias engajou-se nas lutas pastorais, e percebendo o amedrontamento do povoado em relação aos índios bárbaros utilizou a igreja como forma de refúgio para se defenderem dos possíveis ataques (Couto, 1962). Notamos assim, que mesmo com a construção da referida capela, e a educação da maioria dos indígenas por meio da conversão a fé cristã, algumas tribos, em número cada vez menor, insistiam em preservar seus costumes e lutar pela defesa de seu território.
O curato de Icó, nos registros de Couto (1962), foi elevado à categoria de Matriz, entre 1720 a 1722, sendo a segunda a ser instituída em solo cearense, a primeira foi a paroquia de Aquiraz. Assim, defende que a freguesia10 foi instalada em 1722. Para o autor supramencionado existe um equívoco em alguns escritos ao atribuir o título de primeiro vigário ao padre Antônio Barbosa Gerez, pois para o mesmo, o primeiro vigário deve ser considerado o padre Domingos Dias da Silveira.
Ainda, sobre a edificação da referida Igreja Matriz (Figura 1), Lima (1995) menciona que ela foi construída pelo Coronel Francisco de Montes Silva11 quando já estava de posse da terra do Icó. A construção e funcionamento da Matriz teve grande relevância, não só para a vida religiosa, mas para o início ou a sistematização da vida em comunidade, consequentemente, para o processo educacional do povoado.
Com a Matriz construída, sendo a segunda a ser implantada no Estado, o Icó teve ampla hegemonia eclesiástica sobre toda região Centro-Sul-Oeste cearense. Essa hegemonia religiosa, política e social perdurou entre os anos de 1717 a 1748. No último ano, em 1748, o Vale do Cariri se tornou, eclesiasticamente independente, com a criação de sua primeira freguesia, sob a inovação de Nossa Senhora da Luz dos Cariris Novos, cuja sede de Matriz era a cidade de Missão Velha (Couto, 1962), que fica aproximadamente uma distância de 150 quilômetros do município de Icó. Apesar da emergência desse novo polo eclesiástico, a Matriz continuou como referência para o crescimento e organização do povoado.
É interessante mencionar que dentro desse período de tempo (1717 a 1748) o Icó se transformou em vila (1735), sendo a terceira instituída na Província do Ceará, depois da instalação de Aquiraz (1700) e Fortaleza (1726). Por meio da Carta Régia de D. João V (1689-1750), proclamada em 17 de outubro de 1735, foi criada essa vila, sendo que sua instalação ocorreu de fato em 04 de maio de 1738, quando foi instituída a câmara do senado, poder local de amplas atribuições que permitia aproximação com a Capitania e administração dos problemas da vila (Lima & Sousa, 1996).
Pelos estudos empreendidos até aqui, com base nos registros históricos de Couto (1962) e Lima (1995), e nas discussões com a literatura historiográfica ao nosso alcance, constatamos que a construção da Igreja da Matriz Nossa Senhora da Expectação foi importante para o desenvolvimento educacional e econômico do município de Icó, impactando na organização de toda uma rotina de vida dos indígenas e colonizadores, e servindo de referência eclesiástica para os povoados circunvizinhos por um longo período. A criação da Matriz foi tão importante para organização do povoado e para o processo educacional das pessoas pela fé cristã que outras igrejas foram criadas no mesmo século como a Igreja Santuário Senhor do Bonfim12, em 1749, e a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em 1770 (Santos, 2018).
Diante do que nos apresenta Silva e Amorim (2017, p. 190) sobre a instrução dos jesuítas fundamentada em três documentos norteadores da sua prática pedagógica: Exercícios Espirituais, as Constituições da Companhia de Jesus escrita pelo padre Inácio de Loyola, e os ensinamentos pelo Ratio Studiorum, nos parece que em Icó-CE, o trabalho de convenção a fé cristã foi bastante eficiente para aproximação dos povos e desenvolvimento da educação.
É importante frisar que a instituição de Icó-CE como vila, em 1738, a consolida na época como um local cearense de prestígio político, econômico e religioso, sendo que a instalação da câmara do senado, deu aos representantes legais do poder relativa autonomia para o gerenciamento das atividades e serviços.
Encontramos registros, nos escritos de Lima (1995), de que em 1738 existiu o ensino de latim na vila do Icó. Essa constatação é corroborada por Castelo (1970), o qual nos revela que no Ceará, com a criação das vilas havia a instituição do ensino de primeiras letras e de língua latina. Para ele, o cargo de professor dessas cadeiras era em regra exercido pelo secretário da câmara, sendo que ensinava, “segundo o seu regimento, as regras de ortografia portuguesa e sintaxe, as quatro operações aritméticas simples, o catecismo cristão, e regras de civilidade” e, para os indivíduos mais instruídos “o ensino da língua latina” (Castelo, 1970, p. 37).
Para Farias (2012) a instalação da câmara do senado e criação de vilas eram estratégias do Reino de Portugal para integrar a capitania e a elite local às relações de poder da Coroa. Girão (1979) ressalta que essas câmaras tinham a funcionalidade administrativa, econômica, policial e judiciária, entre suas atribuições, estavam as regulamentações das feiras, dos mercados e do trânsito, a fiscalização de construções de estradas, pontes, calçadas, o exercício do comércio, dentre outros.
Diante do que foi apresentado nessa seção, constatamos que a educação dos primeiros habitantes do município de Icó-CE, no período de 1599 a 1759, foi constituída inicialmente, por métodos bastante violentos devido a resistência dos integrantes das tribos indígenas locais que não queriam se curvar aos costumes e tradições dos invasores. Esse processo começou a se estabilizar com a construção da Capela de Nossa Senhora da Expectação, que passou a organizar os diferentes membros do povoado a partir da convenção à fé cristã. Com a elevação do povoado à vila e a instituição da câmara do senado também começaram acontecer aulas de primeiras letras e latim ministradas pelo secretário da referida câmara.
Estudos que buscam a (re)constituição histórica são sempre desafiadores, pois as fontes nem sempre se apresentam acessíveis aos pesquisadores, ou ainda, difíceis de ser encontradas, e as que são encontradas podem se apresentar com informações pouco esclarecedoras sobre os fatos históricos, exigindo uma análise cuidadosa do pesquisador.
Em nossas análises, verificamos que a educação no período colonial no município de Icó-CE foi tensa, no sentido que houve muita resistência dos indígenas que insistiam em defender seu território e não se submeter à vontade dos homens europeus. Notamos ainda, que a ideia não era somente converter os primeiros habitantes do território à fé cristã, mas imbricado a isso, existia o interesse de explorar a mão de obra nativa para extração de materiais, e de se apropriar das vastas terras locais.
Constatamos ainda que as práticas educativas da época só vieram a se estabilizar com a edificação da Capela de Nossa Senhora da Expectação (1709), sendo que a partir daí não faltaram mais padres nesse local, e a igreja passou a regular a rotina cotidiana do povoado, organizando a integração dos membros da comunidade entorno da convenção da fé cristã. Além disso, destacamos que com elevação do povoado à condição de vila em 1738, há vestígios da existência do ensino das primeiras letras e latim.
Pelo exposto, reconhecemos o contributo dos jesuítas para a educação do Ceará em geral e, particularmente, dos primeiros habitantes do Icó-CE, entre os anos de 1599 e 1759 do período colonial brasileiro, especificamente, no que se refere a organização dos processos educativos. Entretanto, ressaltamos que a educação implantada nos moldes apresentados neste trabalho, como dominação cultural e material dos povos nativos, constituiu-se uma grave agressão à cultura dos primeiros habitantes que aqui viviam antes da chegada dos europeus.
A irreversibilidade desse processo de constituição histórica nacional, cearense e icoense, faz com que sejamos herdeiros de uma dívida incomensurável para com os descendentes dos povos nativos e sua herança cultural ainda hoje persistente em práticas tradicionais, que só poderá ser revertido a partir da efetivação de uma educação emancipatória, comprometida com a justiça social em benefício das populações injustiçadas da sociedade, como negros, indígenas, quilombolas, mulheres, entre outras.
Por fim, consideramos que as reflexões e informações contidas neste estudo, podem contribuir com outros estudos futuros e motivar a curiosidade de mais pesquisadores para o desenvolvimento do conhecimento da história da educação vernácula, valorizando a identidade e (re)constituição histórica local.
Como citar: Lima, P. R., Nóbrega-Therrien, S. M., & Pinto, C. A. S. (2021). Colonial education in Icó-CE: educational process of the first inhabitants (1599-1759). Revista Tempos e Espaços em Educação, 14(33), e14117. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v14i33.14117
Contribuições dos autores: Paulo Rogério de Lima: concepção e desenho do estudo, adquisição dos dados, análise dos dados, interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica do conteúdo intelectual importante. Sílvia Maria Nóbrega-Therrien: concepção e desenho do estudo, adquisição dos dados, análise dos dados, interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica do conteúdo intelectual importante. Cesar Augusto Sadalla Pinto: contribuições para a redação do artigo, revisão crítica do conteúdo intelectual importante. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
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