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Sociedade das outsiders: das pedagogias de gênero da prosperidade às heterotopias pós-feministas
Stefane Rodrigues Colman; Gregory da Silva Balthazar
Stefane Rodrigues Colman; Gregory da Silva Balthazar
Sociedade das outsiders: das pedagogias de gênero da prosperidade às heterotopias pós-feministas
The outsiders’ society: from prosperity gender pedagogies to post-feminist heterotopias
La sociedad de las outsiders: de las pedagogías de género de la prosperidad a las heterotopías postfeministas
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 14, núm. 33, e16443, 2021
Universidade Federal de Sergipe
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Resumo: Este artigo trata de uma possível permeabilidade entre a experiência feminista e a experiência evagélica neopetencostal. A partir de um grupo focal com jovens evangélicas, problematizamos a intersecção entre a pedagogia de gênero pulsante na teologia da prosperidade e as linhas de força de duas premissas feministas ressignificadas pela racionalidade neoliberal: a igualdade de gênero e o empoderamento feminino. Com isso, defendemos que os ditos das jovens evangélicas nos permitem sugerir a existência de uma heterotopia pós-feminista: espaços, certamente, não de pleno rompimento com a ordem do discurso de gênero neoliberal, mas que, apesar de tudo, ainda ensejam e ensaiam pequenas rachaduras que, desde o seio mesmo da normatividade, permitem a essas jovens evangélicas criarem outras possibilidades subjetivas para si mesmas.

Palavras-chave: Empoderamento, Gênero, Igualdade, Pós-feminismos, Subjetividade.

Abstract: This article focuses on a possible permeability between feminist experience and evangelical Neo-Pentecostal experience. Through a focus group approach, we problematize the intersection between the pulsating gender pedagogy in prosperity theology and the lines of force of two feminist premises, which was resignified by a neoliberal rationality: gender equality and female empowerment. Therefore, we defend that the sayings of young evangelicals allow us to suggest the existence of a post-feminist heterotopia: spaces, certainly not full of neoliberal gender discourse ruptures, despite of that, still give rise to small cracks that from the very heart of normativity allow these evangelical young women to create other subjective possibilities for themselves.

Keywords: Empowerment, Equality, Gender, Post-feminisms, Subjectivity.

Resumen: Este artículo se centra en una posible permeabilidad entre la experiencia feminista y la experiencia evangélica neopentecostal. A partir de un grupo focal con jóvens evangélicas, problematizamos la intersección entre la pedagogía del género que pulsa en teología de la prosperidad y las líneas de fuerza de dos premisas feministas resignificadas por una racionalidad neoliberal: igualdad del género y empoderamiento femenino. Por lo tanto, defendemos que los refranes de jóvenes evangélicas permiten que sugiramos la existencia de un heterotopia postfeminista: espacios, ciertamente no llenos de las rupturas neoliberal del discurso del género, sino que, todavía, dan lugar a pequeñas grietas que, desde el seno mismo de la normatividad, permiten estas jóvenes mujeres evangélicas crear otras posibilidades subjetivas de sí mismos.

Palabras clave: Empoderamiento, Género, Igualdad, Postfeminismos, Subjetividad.

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Publicação Contínua

Sociedade das outsiders: das pedagogias de gênero da prosperidade às heterotopias pós-feministas

The outsiders’ society: from prosperity gender pedagogies to post-feminist heterotopias

La sociedad de las outsiders: de las pedagogías de género de la prosperidad a las heterotopías postfeministas

Stefane Rodrigues Colman1
Universidade Tiradentes, Brasil
Gregory da Silva Balthazar1
Universidade Tiradentes, Brasil
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 14, núm. 33, e16443, 2021
Universidade Federal de Sergipe

Recepción: 23 Junio 2021

Aprobación: 24 Septiembre 2021

Publicación: 23 Noviembre 2021

INTRODUÇÃO

[...] acreditamos que podemos ajudá-lo mais eficazmente ao nos recusarmos a aderir à sua sociedade; ao trabalhar em prol de nossos fins comuns - justiça e igualdade e liberdade para todos os homens e mulheres - fora, e não dentro, de sua sociedade. [...]. Se é para ter um nome, poderia ser chamada de Sociedade das Outsiders (Woolf, 2019, p. 116, grifos nossos).

Em junho de 1938, Virginia Woolf publicou seu ensaio filosófico contra a cultura da guerra que levou à emergência dos fascismos macropolíticos do início do século XX. O texto de Virginia Woolf foi construído, basicamente, em forma epistolar, entre ela e um (anônimo) advogado inglês. Em suas cartas, e mesmo o que a faz responder a primeira missiva que recebe do advogado, Virginia Woolf é tomada por uma pergunta para a qual talvez não tenha resposta – talvez por isso tenha demorado três anos para escrever-lhe em retorno: “três anos é muito tempo para deixar uma carta sem resposta, e a sua ficou aqui à espera de uma resposta por um tempo maior ainda. Tinha a esperança de que ela se respondesse por si só ou que outras pessoas respondessem por mim” (Woolf, 2019, p. 9). Trata-se, nas palavras da autora, de “uma carta talvez única na história da correspondência humana, pois quando, antes, um homem instruído perguntou a uma mulher como, em sua opinião, a guerra pode ser evitada?” (Woolf, 2019, p. 9). A escritora inglesa inicia seu relato questionando, talvez a si mesma, o que ela, como mulher, teria a oferecer a tal discussão. Afinal, ainda que ambos – Virginia e o advogado – pudessem compartilhar de uma classe social – a “classe dos instruídos”, nas palavras da autora –, existia uma diferença fundamental: o advogado era um homem instruído, ela era apenas a filha de um homem instruído.

Trazer, portanto, Virginia Woolf para este trabalho significa sublinhar o modo como a autora, desde então, apontava para questões que ainda hoje se fazem cruciais de serem debatidas, sobretudo pelos feminismos. No caso específico do ensaio Três Guinéus, e tal como indicou Susan Sontag (2003, p. 11), Virginia Woolf teve a originalidade de, em plenos anos 1930, “focalizar aquilo que era visto como demasiadamente óbvio e impertinente para ser mencionado, e muito menos para ser objeto de ponderações: o fato de que a guerra é um jogo de homens – que a máquina de matar tem um gênero, e ele é masculino”. Ao efetivamente mostrar como a cultura patriarcal euro-ocidental construiu a guerra como uma dimensão que dá aos homens “alguma glória, alguma necessidade, alguma satisfação na luta que nós [mulheres] nunca sentimos e que nunca extraímos prazer” (Woolf, 2019, p. 13), Virginia Woolf lançou luzes, ainda que indiretamente, sobre como as transformações no tecido social provocadas pelos feminismos – naquele momento específico de emergência de uma educação e de um mercado de trabalho para as mulheres – podiam criar possibilidades subjetivas outras para as mulheres e, consequentemente, ser um lócus de transformação do tecido social: “é suficiente para lhe mostrar, senhor, que a Sociedade das Outsiders tem os mesmos fins que a sua sociedade - liberdade, igualdade, paz; mas que ela busca realizá-los pelos meios que um sexo, uma educação e valores diferentes que resultam dessas diferenças colocaram ao nosso alcance” (Woolf, 2019, p. 123).

É, portanto, sobre como os feminismos - sobretudo em suas marcas mais liberais, como o empreendido em algumas obras de Virginia Woolf1 - produziu uma transformação profunda no tecido social, em um movimento de “feminização cultural contemporâneo, isto é, a maneira pela qual temas, valores, questões, atitudes, comportamentos femininos foram incorporados na modernidade” (Rago, 2001, p. 60). Mais do que falar dos feminismos como sinônimo de movimento social - por certo, uma marca fundamental -, pensamos, na esteira de Virginia Woolf, feminismos como um ethos, uma atitude, um modo de ser, um modo ético de se guiar no e com o mundo, na relação outros e conosco mesmo: “um movimento cultural de feminização no qual a sociedade passa a romper com regimes de verdades binários marcados por modos coercitivos de atuação do gênero, em nome de valores mais femininos e feministas” (Balthazar & Marcello, 2018, p. 7-8). Averbera-se, aqui, uma articulação capital com o campo da educação: problematizar os feminismos como um ethos é uma ação de pesquisa que se volta para como os modos de subjetivação por eles promulgados se fazem como um gesto primariamente pedagógico, ou seja, conceitos como “educação [pedagogia e currículo] não se limita mais a ser um sinônimo de escola, já que diversas instâncias da cultura hoje se ocupam, das mais diferentes formas, em produzir, em formar, enfim, em educar sujeitos” (Fischer & Marcello, 2011, 506).

Consequentemente, problematizar essa pedagogia inscrita na feminização, na filoginia, do social como um efeito daquilo que Virginia Woolf nomeou de sociedade das outsiders diz, em muitos sentidos, de como os feminismos, enquanto uma ética, enquanto um ethos, construíram, em suas muitas vertentes, espaços que poderíamos chamar de heterotopias subjetivas feministas: “espaços de resistência feministas [que] oferecem marcos discursivos alternativos em que novas formas de subjetividade podem emergir” (McLaren, 2015, p. 13). Se falamos em heterotopias feministas, é compreendendo, como nos ensinou Foucault (1987, p. 7), que as “utopias consolam”, porque “elas não têm lugar real”. Porém, e para o filósofo, há espaços de utopias concretas: as heterotopias; elas nos inquietam, porque são espaços absolutamente outros, ou seja, “são como que contraespaços . [...] essas utopias localizáveis” (Foucault, 2013, p. 20). Assim, e se aqui colocamos em diálogo Virginia Woolf e Michel Foucault, é compreendendo que aquilo que a escritora inglesa chamou de sociedade das outsiders, uma sociedade transformada por um processo de feminização do tecido social, se aproxima da ideia foucaultiana de heterotopias de desvio: “os lugares que a sociedade dispõe em suas margens, nas paragens vazias que a rodeiam, [...] destinadas aos indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à norma exigida” (Foucault, 2013, p. 22).

Nesse artigo, mais do que pensar diretamente o conceito de Virginia Woolf, interessa-nos, singularmente, as potencialidades analíticas a que nos convida para refletirmos sobre as relações possíveis entre as experiências evangélicas e as experiências feministas. Assim, e munidas do debate acima, não desejamos sugerir que as vivências de jovens evangélicas hoje estejam marcadas por éticas feministas radicalmente progressistas; que já estão pulverizadas no tecido social e, portanto, já se inscrevem como pedagogias culturais do gênero. Antes, e de forma mais singela, apostamos que a filoginia da cultura, este ethos feminista, é paradoxalmente também debitária das marcas (neo)liberais2 dos feminismos; que representa, sem dúvida, a problemática que “conseguiu reunir o maior número de mulheres desde o apelo lançado por Betty Friedan em 1963. Herdeiro das sufragistas, reivindica a igualdade de direitos e de fato para todas as mulheres, em nome do direito inalienável de cada indivíduo à igualdade e à autodeterminação” (Descarries, 2000, p. 15, grifos nossos). No caso do presente estudo, e como abordaremos com maior acuidade ao longo do texto, iremos sugerir uma implicação da experiência subjetivida de jovens evangélicas com uma dimenssão muito particular dos feminismos, a saber, a ideia de pós-feminismo como dimensão neoliberalizada do ethos feminista; no sentido de nos perguntar: como os pós-feminismos e a teologia da prosperidade se interseccionam na pedagogização de suvjetividades femininas neoliberais? Mais do que isso, e de modo mais central, será que podemos encontrar, mesmo que contingentemente, espaços de agenciamento das jovens evangélicas no seio da normatividade neoliberal do gênero?

Para tanto, inspiramo-nos na proposta do grupo focal como um caminho metodológico que possibilita permitir a relação com a diferença radical para abrir o pensamento daquelas que compõe o grupo focal, inclusive a pesquisadora, para um outro modo de pensar, como uma potência da filosofia da diferença: "admitindo que algo pode ser, ao mesmo tempo, isso e aquilo" (Louro, 2007, p. 238) como uma experiência evangélica e feminista. A escolha pelo uso de tal caminho metodológico foi realizada levando em consideração o encontro da multiplicidade de experiências que podemos (e que podem se) encontrar em um espaço de diálogo com o outro, como é potencializado pelas rodas de conversa em um grupo focal (Dal’Igna, 2012). Segundo Maria Cláudia Dal’Igna (2012, p. 205), “a interação do grupo e a discussão focada em tópicos específicos são características que permitem não apenas definir a técnica, mas diferenciá‐la de outras, como, por exemplo, entrevistas de grupo e discussões em grupo”.

Assim dito, escolhemos como disparadores do grupo focal obras literárias e trabalhos teológicos implicados às proposições feministas; de modo que é justamente pela interação e pelo diálogo entre visões plurais como potencialidade para se pensar diferentemente do que se é na relação com o outro que nos debruçamos sobre o grupo focal: nosso interesse, seguindo Laura Dalla Zen (2017, p. 123), “era de apreender não a opinião de uma ou outra [evangélica] acerca dos efeitos produzidos pelo contato” com a literatura e a teologia feminista, mas, antes, “gerar dados que, de alguma maneira, fizessem ver a repercussão desses efeitos na constituição subjetiva” do que, aqui, chamamos de heterotopias pós-feminista. Para a composição do grupo focal, convidamos quatorze jovens evangélicas da congregação3 de uma das autoras do presente texto, mas, devido a questões de disponibilidade, apenas oito jovens evangélicas puderam participar.

Com o grupo focal, nossa aposta é que as jovens evangélicas podem nos sugerir a existência de uma sociedade das outsiders, de heterotopias pós-feministas, como gestos contigentes, singelos, microfísicos de resistência à ordem normativa do gênero; ou, nos termos da teóloga feminista Nancy Pereira (2013, p. 11)“espaços anexos aonde as mulheres podem se mover, mas sem a necessária desconstrução e crítica radical dos dispositivos estruturais, também eclesiológicos e antropológicos, que mantém o patriarcado vivo e poderoso”. Por meio das falas de jovens evangélicas produzidas no grupo focal, portanto, objetivamos, nesse artigo, problematizar ditos e gestos que nos permitem vislumbrar e sugerir a construção, no seio mesmo das vivências evangélicas, marcadamente estruturadas pelo patriarcado-neoliberal, de espaços anexos, de sociedades das outsiders, de heterotopias pós-feministas, que permitam às mulheres tecerem: “formas de viver que não configuram, necessariamente, em uma resistência na qualidade de subversão da norma”, mas como “gestos mínimos – gestos que, por certo, poderiam ser tomados de outra perspectiva como de viés conservador –, aquelas mulheres afirmam modos de vida e de ação do centro mesmo da normatividade” (Balthazar & Marcello, 2018, p. 9).

IGUAIS NA PALAVRA

Algumas pensadoras [feministas] defendem que a primeira opressão entre classes, coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino, dentro do casamento tradicional. A partir desta premissa, o homem e a mulher são postos como seres irremediavelmente antagônicos. [...]. O próprio Jesus, durante o tempo em que esteve na terra, cuidou de pôr a mulher em uma posição de igualdade e de honra na sociedade. [...]. homem e mulher não são seres irremediavelmente antagônicos, antes se completam (Freitas, 2015, n.p., grifos nossos).

Publicado no blog da Igreja Ministério Verbo da Vida, o texto de Lenise Freitas, escritora e líder do Ministério Graça e Verdade, vinculada à Igreja Verbo da Vida, expressou algumas ideias que compõem seus livros, como a obra Perspectivas de Gênero, Graça e Verdade. No artigo em questão, é possível vislumbrar uma proposição basilar de pautas de correntes feministas mais moderadas e (neo)liberais implicadas à ideia de igualdade de chances para homens e mulheres, o que é mais expressivo na seguinte proposição da escritora-ministra: “eu sou plenamente a favor que a mulher tenha direitos civis como os homens; isto inclui direitos políticos, trabalhistas e sociais” (Freitas, 2015, n.p.). Contudo, a escritora-ministra tece uma dura crítica às leituras feministas mais progressistas e culturalistas do gênero, defendendo uma espécie de sistema sexo-gênero que marcou (e, por certo, ainda marca) algumas correntes dos estudos feministas; como, no campo da educação, foi o caso, na década de 1980, dos primeiros trabalhos de Guacira Louro (1987, p. 11): as relações sociais entre homens e mulheres “têm uma base natural (biológica)” e “outra histórica e passível de transformação [o gênero]”.

Aqui, então, a complementaridade da experiência de homens e mulheres encontra vazão discursiva: “a relação entre homem/mulher não se explicita necessariamente num choque ou enfrentamento, mas, ao contrário, muito frequentemente se expressa por uma cumplicidade entre seus elementos” (Louro, 1987, p. 11). Mais do que isso, e tal como proposto por Francine Descarries (2000), essa visão de igualdade de direitos sem romper com a ideia do sexo como um dado natural e imutável promoveu algumas correntes feministas de pensamento que sustentaram a valoração de traços de um ethos feminista existente no domínio da intimidade, da maternidade e da domesticidade; como se dimensões como cuidado, a empatia e a solidariedade fossem naturalmente femininas (Descarries, 2000).

Se trazemos essa discussão promovida pela escritora-ministra, é porque consideramos como a enunciação iguais e complementares é reveladora de um entrelaçamento dos vetores de força do que podemos chamar, hoje, de pós-feminismos com a teologia da prosperidade; sugerindo-nos, assim, compreender a “produção do religioso e sua própria constituição enquanto uma linguagem de regulação de corpos e condutas, o que nos permite descrever a religião como uma espécie de dispositivo produtor de inúmeras materialidades [subjetivas]” (Teixeira, 2018, p. 19, grifos nossos). Em outros termos, e como dito na introdução, pensar o encontro de um ethos pós-feminista e do discurso evangélico nos termos de uma linguagem que governa os corpos é, em muitos sentidos, perguntar sobre seu caráter de pedagogia cultural. Com efeito, compreendemos que todas as instâncias da cultura são “práticas de subjetivação potentes na contemporaneidade [...]. sempre e incondicionalmente, exercem uma pedagogia cultural ao propor e/ou informar algo na/da/sobre a produção de modos de vida [de gênero e sexualidade]” (Pocahy & Dornelles, 2019, 129). Certamente, aqui, nossa compreensão de gênero é radicalmente distinta daquela do sistema sexo-gênero mancionada acima, de modo que, para nós, não há nada de puramente natural em nossa constituição subjetiva de gênero. Antes, e conforme colocou Guacira Louro (2008, p. 18), em uma leitura agora mais construcionista, partimos do pressuposto que o “ser homem e ser mulher constituem-se em processos que acontecem na cultura [...]. A construção dos gêneros dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais”.

Diante dessas proposições, e antes de adentrarmos a análise do grupo focal, é imperativo que definamos o que estamos chamando aqui de pós-feminismos e sua implicação a leituras mais (neo)liberais da crítica feminista, bem como o modo como se implica com a teologia da prosperidade. Como demonstraram Stéphanie Genz e Benjamin Brabon (2009, p. 1), o conceito de pós-feminismos é, por certo, de difícil apreensão e marcado por uma forte contradição: "odiado por algumas e celebrado por outras, emerge no final do século XX em diferentes contextos culturais, acadêmicos e políticos, do jornalismo e da mídia de massas às análises feministas, teorias pós-modernas e retóricas neoliberais”. Não iremos adentrar o espinhoso terreno de debates epistemológicos sobre as camadas polissêmicas do conceito de pós-feminismos ou suas inúmeras, e nada consensuais, apostas teórico-políticas possíveis. Antes, e se o evocamos, é pensando, na esteira de autoras como Juanita Elias (2013), em uma leitura muito específica desse conceito. A saber, como uma incorporação de algumas agendas feministas à racionalidade neoliberal, mas, também e de forma mais ampla, como os discursos feministas de marcas (neo)liberais estruturam e organizam a produção de subjetividades femininas a partir de uma ontologia neoliberal de gênero.

Isto se opera em pelo menos três níveis. Primeira e amplamente, ambos parecem ser estruturados por uma corrente de individualismo que substituiu quase inteiramente as noções do social ou político [...]. Em segundo lugar, está claro que o sujeito neoliberal autônomo, calculado, regulador de si carrega uma forte semelhança do sujeito ativo, livre, reinventor de si do pós-feminismo. […] uma terceira conexão, que poderia implicar em uma sinergia ainda mais significativa: são as mulheres que são chamadas para se autocontrolarem, autodisciplinarem (Gill, 2008, p. 443).

Assim dito, os pós-feminismos são aqui pensados, muito especificamente, como aquilo que Michel Foucault (1979) chamou de o indefinido da luta: “como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle−repressão, mas de controle−estimulação: ‘Fique nu...mas seja magro, bonito, bronzeado!’”. Com efeito, os pós-feminismos são aqui tomados como um movimento de resposta, um movimento de controle-estimulação, de uma cultura política de gênero capitalista-andro-heteronormativa às pautas igualitárias dos feminismos (neo)liberais, de modo que a demandada de igualdade de gênero (igualdade de direitos políticos, igualdade de direitos educacionais, igualdade de direitos sobre o corpo, mas sem romper com o binômio de papeis de homens e mulheres estruturantes e estruturadores da matriz de inteligibilidade normativa de gênero) se tornou um novo imperativo do governo das condutas neoliberais: “o neoliberalismo, desta forma, constitui um projeto estratégico que prospera com base no poder biopolítico, ou seja, de um poder que constitui indivíduos confiáveis que se autoresponsabilizam pelas normas de igualdade de gênero embutidas no mercado” (Prügl, 2014, p. 7).

Contudo, qual realação possível os pós-feminismos, enquanto expressão da neoliberalização do ethos feminista, tem com a teologia da prosperidade? No sentido de oferecer uma resposta possível, trazemos à baila a proposição mais central de Katie Sullivan e Helen Delaney (2017) de que a maior parte dos estudos feministas adotam uma lente secular de análise, de modo que deixam escapar do horizonte analítico como o discurso evangélico se atrela aos discursos dos pós-feminismos e, assim, produzem formas específicas de subjetividades femininas neoliberais. Em outros termos, e nas palavras das autoras, “tanto o pós-feminismo quanto a teologia da prosperidade são discursos culturais hegemônicos que se entrelaçam com o discurso neoliberal de uma forma que coopta a feminilidade e o feminismo” (Sullivan & Delaney, 2017, p. 6).

Segundo a cientista política Mary Wrenn (2020, p. 1), podemos compreender a teologia da prosperidade como um movimento evangélico cristão que emergiu, nos Estados Unidos na segunda metade do século XX, em consonância ao surgimento do neoliberalismo: “o evangelho da prosperidade é uma variação moderna e neoliberal de um pentecostalismo que pressupõe a crença de uma aliança bíblica entre o crente e Deus, que garante ao crente bênçãos relacionadas à saúde e riquezas; quando alcançada ele demonstra uma fé adequada”. Com efeito, a teologia da prosperidade coloca no indivíduo a responsabilidade de empreender a si mesmo no ato de crer, como um sintoma do ethos neoliberal que promove uma “economia de todos os recursos da vida pelo neoliberalismo [...]. A questão é que a racionalidade neoliberal dissemina um modelo de mercado para todos os âmbitos e atividades - até mesmo onde dinheiro não é uma questão central - e configura seres humanos exaustivamente enquanto atores de mercado” (Brown, 2015, p. 31). Assim, e como colocou Jaqueline Texeira (2012, p. 62) sobre a teologia da prosperidade no Brasil, a prosperidade não se restringe singularmente à monetização – ou seja, “o dinheiro não é o único mediador-ritual da prosperidade” –, mas, antes, “as noções de prosperidade e de vida em abundância podem ser praticadas e consequentemente, reformuladas, em todas instâncias da vida, sendo a família a principal delas”.

É, portanto, nos discursos que permeiam a família que as jovens evangélicas do grupo focal trouxeram ao centro do debate alguns enunciados que nos permitem, talvez, vislumbrar o entrelaçamento, aqui debatido, entre os discursos pós-feministas àqueles da teologia da prosperidade. Assim, e a partir do debate sobre o imperativo da virgindade presente no livro Bordados de Marjane Satrapi, pudemos ouvir falas que destoam da lógica femininsta mais hegemônica de que a virgindade é uma demanda assujeitadora reservada unicamente às mulheres sob o jugo patriarcal:

Então, isso foi uma uma grande deturpação dos valores sexuais, eu acho, que teve para a sociedade. Tipo, é tanto que existe muito essa teoria de que “o homem é muito mais difícil de se controlar, a mulher que é mais fácil se controlar, a mulher que freia, não sei o quê…”. Só que mesmo existindo instintos diferentes, tipo, essa responsabilidade é das duas pessoas, duas pessoas que estão compromissadas. Então, em relação a esse assunto, eu não acredito que a Bíblia e o evangelho em si tragam um julgamento diferente por causa do gênero, é isso (Virgínia, grifos nossos).

Nos termos das jovens, encontramos na palavra o preceito da igualdade de gênero tão presente nos discursos pós-feministas contemporâneos: “esse ponto pra mim, com relação à virgindade é muito claro. A Bíblia não faz distinção em relação a homem ou a mulher, isso é um contexto cultural do mundo e não da palavra de Deus”, comentou Gabriela na sequência de Virginia. Como bem colocou Elisabeth Prülg (2014), as pretensões de soluções das desigualdades de gênero de algumas correntes (neo)liberais e individualistas dos pós-feminismos têm triunfado hoje, produzindo uma nova linguagem de equilíbrio e igualdade de gênero como um ativo à razão neoliberal contemporânea. Assim dito, as falas das jovens evangélicas são sintomáticas desse triunfo dos discursos pós-feministas no seio mesmo da teologia da prosperidade: “este evangelho é decididamente neoliberal, pois ele mistura uma crença em um poder individual com uma ideia de que uma sociedade capitalista provê oportunidades iguais para todos” (Sullivan & Delaney, 2017, p. 6).

Igualdade de oportunidades, igualdade de deveres. Contudo, e tal como aparece na fala das jovens evangélicas do grupo focal, a igualdade não se tece na ordem de uma fratura com as normas de gênero, mas, antes, como a pedagogia de gênero pulsante na teologia da prosperidade amplia o imperativo da virgindade aos homens; como uma dimensão que tem relação, conforme comentou Gabriela no grupo focal, na forma como homens e mulheres precisam igualmente assumir “a santidade e os princípios da palavra”. Em outros termos, empreender a si mesmo em uma economia sexual do casamento não diz, no contexto vivido pelas jovens evangélicas, de uma sujeição incontornável das mulheres à tutela do marido, mas seria um princípio que borra as fronteiras da ordem do discurso de gênero e, assim, enreda os homens nas formas de governo e disciplinamento antes reservada somente às mulheres: “eu e a minha esposa nos casamos virgens. Nós não temos palavras para descrever os benefícios desta obediência. Há recompensas valiosas, naturais e espirituais. Sempre vale a pena ficar com a vontade de Deus”, escreveu o pastor Perilo Borba (2014, n.p.) no blog da Igreja Missionária Verbo da Vida.

Sob esse prisma, e para além da ideia de pureza em si, o discurso mais central dessa igualdade de gênero na sujeição enfatiza, nos termos da teologia da prosperidade, o imperativo da virgindade como uma rota individual transvestida de escolha, na direção de valorar a firmeza da autorresponsabilidade de cada um/a pela virgindade como uma escolha pela santidade: “tanto na época da escola, quanto durante a faculdade, eu me vi muitas vezes intimidado e criticado porque estava acertando. [...]. Nenhum prazer passageiro deste mundo se compara ao prazer de agradar a Deus! Que a santidade seja o nosso normal” (Borba, 2014, n.p.). Em recente estudo, a antropóloga Marla Frederick demonstrou, por meio de uma etnografia com mulheres evangélicas da Jamaica, como apresentadoras de programas televisivos evangélicos estadunidenses ganharam uma forte expressão nacional e internacional ao partilharem suas experiências de traumas e redenções sexuais:

A chamada para o empoderamento pessoal oferecida por televangelistas como Juanita Bynum através da oração, jejum, semeadura, e ultimamente tomando controle do seu destino [por meio da redenção sexual] oferece aos ouvintes uma esperança de que, apesar das barreiras institucionais para o sucesso, suas circunstâncias pessoais podem mudar. Pesquisas sobre o crescimento de um Pentecostalismo global apontam para como essas narrativas de transformação pessoal têm efetivado mudanças em comunidades locais ao oferecer discursos conservadores de responsabilidade pessoal que defendem um modo de ser/viver pietista. (Frederick, 2015, p. 126, grifos nossos).

Assim, e em suas histórias, as apresentadoras evangélicas demonstram como, seja pelo abuso sexual, seja pela indulgência sexual, perderam a marca da pureza e da santidade, mobilizando por seus exemplos pessoais de vida, por suas narrativas de transfomação pessoal, que sua audiência empreenda a si mesma dentro da pedagogia de gênero da prosperidade: “seguidoras de um programa televisivo religioso frequentemente usam testemunhos de traumas e triunfos sexuais de televangelistas, ou o que eu denomino evangelho da redenção sexual, como inspiração para conduzir e reinvidicar suas proprias vidas”, de modo a “ promover agência entre mulheres cristãs negras, mulheres que tentam esculpir seu caminho tanto economicamente quanto socialmente em um mundo no qual sua existência tem sido, frequentemente, marginalizada” (Freferick, 2015, p. 125). Assim, é uma escolha individual não somente manter a pureza, mas, também, retomá-la em atos que conformam nossas subjetividades à ontologia promulgada pela pedagogia de gênero da prosperidade. No caso do grupo focal, não aparecem temas de violência sexual, mas de como é possivel a redenção da indulgência sexual: “existe a questão de ‘poxa vida, acabei transando com meu namorado antes do tempo’. E existe a questão da santidade, da restauração da santidade. Não, obviamente que biologicamente ninguém volta, mas se tratando da palavra é inegociável, a santidade é algo inegociável”, colocou Henriqueta no grupo.

Importa, aqui, mencionar que partilhamos da crítica de autoras como Wendy Brown ou Michel Foucault à racionalidade neoliberal, mas que tal crítica não visa demonizar de forma maniqueísta o ethos neoliberal. Assim, e pensando como os feminismos foram inelutavelmente tocados por essa razão neoliberal, vemos que caminhamos em uma corda bamba analítica: “é necessario examinar a maneira na qual as ideias de um determinado movimento feminista têm sido integradas à racionalidade e à logical neoliberal, o que tem se perdido nesse processo e o que, talvez, tem-se ganhado.” (Prülg, 2014, p. 2). Não há, em um estudo como o de Marla Frederick, como não ver esse caminho analítico como um ato de andar na corda bamba. De um lado, é urgente criticar os limites de subjetividades constituídas na lógica economização absoluta da vida, marcadas pela individualização e pela perda de um sentido comunitário do político: “Tais narrativas, geralmente, não são sobre organizações políticas ou mudanças estruturais, mas elas oferecem aos indivíduos um senso de eficácia na mudança de suas próprias vidas” (Frederick, 2015, p. 126). De outro lado, não podemos fechar os olhos para como é inegável que, no seio mesmo da lógica neoliberal, floresce um sentido outro de solidariedade e, talvez, de paradoxal sororidade diante da violência sexual:

As mulheres conduzem a si da melhor forma que podem. A urbanização tem influenciado a todos nós - independentemente dos níveis de renda ou de gênero. Nós vivemos em épocas econômicas fluidas, que conduzem a experiências sexuais fluidas - independentemente se somos amantes saudosas, as que vivem “as vidas de apaixonadas," as esposas fiéis, as que administram amantes, as que conduzem a paisagem do turismo sexual, ou as absolvidas em desejar tudo isso junto. Televangelistas, aparentemente, revelam suas almas, ajudando as pessoas a se conduzirem por esses novos terrenos ao narrar suas próprias experiências. Mulheres com quem conversei apreciam isso. Elas querem alguém que dite as normas e ainda se identifique com elas e atravesse ao lado delas enquanto encontram seus caminhos através dessas realidades moveis do sexo. (Frederick, 2015, p. 134).

Na corda bamba, podemos, então, afirmar que o preceito de igualdade como chave central do encontro dos pós-feminismos com a teologia da prosperidade se constitui como uma pedagogia neoliberal do gênero, cujos efeitos não são unívocos ou constituem um poder puramente mal. Mais do que isso, e tal como aqui tentamos argumentar, a neoliberalização dos feminismos, em seu vértice com a vivência evangélica, têm efeitos profundamente contraditórios em termos da forma como direcionam as relações de poder, o fortalecimento de algumas forças sociais e o enfraquecimento de outras. Como nosso objetivo mais central é ver pontos possíveis de resistência, podemos, talvez, aqui, sugerir como a criação de zonas de oxigenação em espaços de indelével sujeição, como é o caso das igrejas evangélicas, não prima pela construção de rupturas frontais com a ordem normativa do discurso de gênero, mas, mesmo que de forma contingente, mesmo que de forma provisória, estes “‘outros lugares’ de exclusão e reclusão podem, na verdade, fornecer espaços [heterotópicos] para as mulheres estabelecerem relações que levem à solidariedade política e ao empoderamento [nos termos mesmo da lógica da razão neoliberal]” (McLaren, 2015, p. 9, grifos nossos). Em meio a esses efeitos contraditórios, o desafio que nos resta diante dessa provavel heterotopia pós-feminista é perguntar: onde o significado feminista de empoderamento pode ser recuperado e onde as tecnologias neoliberais abrem espaços para mudanças por baixo?

EMPODERAMENTO EM DEUS

“Em Jeremias, diz: ‘Que tenho para vocês, diz o Senhor, planos de fazê-los prosperar e não de causar danos, planos de dar a vocês esperança e um futuro’. Assim, minha irmã, saiba que Deus te liberta e te dá poder. Tome posse disso, empodere-se do Poder de Deus”, escreveu a psicóloga Valquíria Salinas (2021, s.p., grifos nossos), coordenadora do Culto Regional de Mulheres da Assembléia de Deus de Sorocaba/SP, em sua coluna no site Mulher Cristã; vinculado à editora Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Não trazemos o presente excerto à toa. Antes, o consideramos perolar para pensarmos um alerta fundamental da internacionalista feminista Juanita Elias (2013, p. 156) sobre a resignificação dos sentidos de empoderamento sob os pós-feminismos e suas apostas neoliberais: “o apego a ideias relacionadas ao empoderamento das mulheres se faz importante neste conxeto [de neoliberalização da sociedade], pois é um exemplo de como um conceito associado com a política crítica e transformatória feminista tem resultado em algo bem menos radical”.

O conceito de empoderamento ganhou maior ressonância a partir de importantes estudos de autoras feministas negras, como Patricia Hill Collins. Em uma análise do conceito de empoderamento, Joice Berth (2019, p. 25, grifos nossos) demonstra como Patricia Hill Collins defende que os processos de empoderamento: “embora possam receber estímulos externos diversos da academia, das artes, da política, etc, é um movimento interno de tomada de consciência ou do despertar de diversas potencialidades que definirão estratégias de enfrentamento das práticas do sistema de dominação machista e racista”. É inegável, aqui, ver as marcas indeléveis da herança do conceito humanista de sujeito que marcou não só o pensamento liberal, mas, paradoxalmente, o conjunto das chamadas teorias críticas: “o sujeito crítico, ele próprio inspirado na figura do sociólogo crítico da educação, um sujeito não apenas capaz de ver e analisar a sociedade de uma forma transparente, desde que apropriadamente equipado com as armas da ‘crítica’, mas também de transformá-la radicalmente” (Tadeu, 2002, p. 7). No campo da educação, essa marca do sujeito crítico de linhas humanistas foi fundamental nas formulações das “pedagogias feministas na perspectiva das pedagogias emancipatórias, que pretendem a conscientização, a libertação ou a transformação dos sujeitos e da sociedade” (Louro, 2011, p. 118).

Não estamos, por certo, defendendo que a ideia de empoderamento neoliberal dos pós-feminismos e das pedagogias feministas críticas são sinônimos em termos teórico-políticos. De modo algum. Nossa ideia é que estamos, como já dito, diante de uma nova camada da proposição foucaultiana do inconstante da luta: “a cada movimento de um dos dois adversários corresponde o movimento do outro” (Foucault, 1979). Em outros termos, a resposta da ordem do discurso normativa de gênero é sua constante reiteração e, com isso, como passa a abarcar as fraturas, os vazamentos, as rupturas produzidas por movimentos sociais como os feminismos. Assim dito, e segundo a leitura de Juanita Elias (2013, p. 5), a linguagem do empoderamento tem sido “empregada para transformar pessoas marginalizadas em responsáveis, racionais, tomadoras de decisões econômicas. O empoderamento, assim, se torna parte de um arsenal discursivo de técnicas que visam produzir subjetividades neoliberais”. Com efeito, é urgente problematizar como a noção de empoderamento é esvaziada do sentido atribuído pelas teorias feministas críticas e redimensionado como um imperativo político-cultural para empoderar as mulheres na lógica da racionalidade neoliberal de governo das condutas.

Não são só ideias como igualdade e empoderamento que passam a compor o léxico neoliberal de políticas estatais e de diretrizes de fóruns econômicos e sociais, mas a própria noção de sujeito crítico é arrastada por essa onda de neoliberalização de todas as dimensões da vida e do pensamento. Conforme demonstrou Manuella Aragão (2021), o discurso da pedagogia crítica do sujeito emancipado enquanto um ato de autodeterminação e de autodefinição de si mesmo é, em muitos sentidos, relido e reapropriado em políticas curriculares de marcas inegavelmente neoliberais; como as Diretrizes Nacionais de Formação Docente e a Base Nacional Curricular Comum. Consequentemente, a permeabilidade de um sujeito crítico autodeterminado se entrelaça, paradoxalmente, à noção neoliberal de um sujeito autogestado: a noção de sujeito crítico se tornou ordem do discurso ou uma verdade hegemônica no campo da educação ou um novo imperativo educacional, produzindo a reapropriação da ideia do sujeito crítico como algo intransponível e inelutável às políticas educacionais internacionais e nacionais ditadas por instituições como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Fundação Lemann, etc.

É nesse perigoso jogo do indefinido da luta que, do senso comum à lógica do mercado, o empoderamento começa, nos termos pós-feministas, a ser uma questão mais relacionada às mulheres enquanto indivíduos autogestadas do que das lutas de coletividades feministas:

No contexto do Reino Unido, há um aumento significativo de histórias de sucesso feminino na área de conquistas educacionais que reproduzem tropos de liberdade de alta visibilidade, atualmente, implicadas à categoria de jovens mulheres. O termo “garotas de sucesso” é definido puramente na sua relação de enquadramento com arranjos neoliberais econômicos e sociais existentes que serve para apagar o papel que o coletivo e as lutas políticas de base têm apostado, no empoderamento de mulheres e garotas ao redor do mundo (Elias, 2013, p. 163).

Nesse sentido, os pós-feminismos, enquanto dimensão neoliberalizada dos feminismos, não necessariamente são reconhecidos como fruto dos movimentos feministas, mas, sim, como uma questão de como a própria racionalidade neoliberal opera convocando indivíduos a empreenderem a si mesmos. Mais do que isso, a ideia mesma de reiteração na norma nessa reapropriação do empoderamento e da igualdade não visa romper com a ordem andro-heteronormativa e capitalista da nossa cultura, mas é, como colocou Rosa Fischer (1999, p. 44, grifos nossos), um poder que se coloca como preocupado com a população e cada um de nós em particular: “um poder que se reveste de ‘bondade’ e sincera dedicação a toda a comunidade, mas que não tem condição de exercer-se senão munindo-se de toda a informação sobre cada grupo, sobre o que pensam e sentem todos os indivíduos e como estes podem ser melhor dirigidos”.

Assim, e de modo central, podemos entrever que os pós-feminismos não rompem, em seu encontro com a teologia da prosperidade, com a base mais fundamental da matriz ontológica de gênero, conforme podemos vislumbrar no debate do grupo focal sobre possíveis posições de poder de mulheres e de homens:

Até o fato de algumas igrejas as mulheres não poderem ser chamadas de profetisa, ou de pastoras, sendo que existem profetisas na Bíblia, e aí assim eu acredito que é um assunto que eu devo estudar bem mais, sabe, porque pelo que é entendido, por exemplo, eu não concordo que uma mulher exerça um cargo de governo na Igreja. Uma mulher, ela não é casada e é pastora de uma igreja, eu não concordo com isso, certo?! De acordo com o que eu já estudei, com o que eu tenho em mente, das passagens que eu já li, o que eu já estudei sobre o assunto. Mas por exemplo, o fato de não poder ser chamada de pastora ou de profetisa, porque determinados cargos são exclusivos de homens, isso também eu não concordo, entende?! Mas eu acho que a mulher ela não deve exercer um governo na igreja sozinha (Virginia).

Nesse excerto do grupo focal, vemos uma confusão na fala de Virgínia: ora, defende que a mulher não pode ser uma pastora; ora, abre essa possibilidade sob o preceito de uma posição de pastorado somente legitimada no casamento. Conforme a socióloga da religião Maria das Dores Machado (2005, p. 391), “análises sobre o tema [do pastorado feminino] sugerem uma forte associação entre o sacerdócio feminino e o laço matrimonial, uma vez que a maioria das pastoras são casadas com homens que ocupam cargos hierárquicos iguais ou superiores em suas denominações”. Assim, a possibilidade de empoderamento de mulheres enquanto vozes de liderança dentro de suas congregações é, inelutavelmente, vinculada à demanda do casamento e da vida doméstica, bem como à ideia de complementaridade na igualdade se vê, em algumas camadas, maculada pelo “papel decisivo dos homens no processo de ascensão das mulheres nas hierarquias religiosas” (Machado, 2005, p. 391).

Ao complementar os ditos de Virginia, Giovana reafirma a ideia de igualdade na sujeição trabalhada na seção anterior: “para [o homem] ser um pastor de uma igreja, presidente, ele precisa ter uma família”. Como foi o caso dos ditos sobre a virgindade, o imperativo do casamento como condição do pastorado é, enquanto pedagogia de gênero da prosperidade, ampliado também aos homens: “é bíblico isso, para um homem liderar uma igreja ele precisa primeiro liderar a sua casa. Então se ele não tem uma família, se ele não tem filhos, se ele não sabe lidar com família, eu também não concordo em ele assumir uma igreja” (Giovana). Assim, encontramos, nas falas das jovens, a camada mais insidiosa do poder transvestido de bondade: de um lado, suas falas sugerem uma abertura à revisão do lugar social das mulheres e uma sensibilidade ao empoderamento feminino nas Igrejas. De outro lado, nas palavras de Maria das Dores Machado (2005, p. 392), “percebe-se resistências à plena autonomia feminina e, consequentemente, dificuldades em implementar uma política mais equitativa de administração da denominação”.

Nesse âmbito, os ditos produzidos no grupo focal sobre a autonomia feminina também nos convocam a andar na corda bamba analíta; no paradoxo da submissão ao marido e do empoderamento feminino:

Gente, vocês podem achar o que vocês quiserem de mim, super crente do evangelho, mas, velho, quando eu li esse versículo [fala do versículo Provérbios 18:22, citado por Marcella ao defender a complementariedade do marido e da esposa] falo “mano, tipo, de verdade, quando a gente lê a palavra de Deus e fala que, beleza, a gente tem que submeter ao homem, mas a palavra de Deus fala que tipo de homem é aquele”, é o homem que deve me amar como Cristo amou à igreja, minha gente, é muito mais fácil pra mim ser submissa à um homem que ama a Cristo e que vai me amar da mesma forma. Cara, o nível do amor que a palavra fala do homem em relação à mulher é um nível de sacrifício muito maior do que a mulher se submeter a um homem que já tá pronto, que tá amando de acordo com aquele amor. Ninguém tem coragem de falar isso, mas isso é a verdade (Gabriela, grifos nossos).

À mulher cabe a manutenção da família e a submissão ao pastorado do seu marido. Não qualquer marido, mas um marido empreendedor de si mesmo: capaz de direcionar todo seu amor a Deus e a família. No discurso petencostal sobre masculinidade, a ideia de homem pronto como evocada por Gabriela tem relação com a colocação de Jaqueline Texeira (2012, p. 64) sobre a pedagogia de gênero da prosperidade: as práticas pentecostais da prosperidade nas periferias “constituem um importante instrumento para garantir às mulheres que seus maridos uma vez convertidos abandonem o consumo da bebida alcoólica, as visitas às prostitutas e o vício do cigarro, canalizando o dinheiro para a família e suas demandas". Estamos, novamente, diante de uma reiteração da razão neoliberal sobre a antiga pauta feminista da violência doméstica, colocando-nos diante da cortante afirmação de Foucault (2010, p. 299): “tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então, temos algo a fazer”.

Não é novo na crítica feminista os esforços para a erradicação da violência de gênero, tendo como um dos elementos principais dessa desconstrução a crítica ao modo como a “dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência” (Saffioti, 2001, p. 115). Assim, e uma das raízes do problema da violência doméstica, é como os homens são pedagogizados por uma tecnologia da masculinidade que tem a violência como um elemento decisivo na construção do espectro de autoridade do homem na sociedade, na família, na cultura, etc: “há de usar socos, palavrões, violência – a única resposta cabível num mundo indiscutivelmente viril” (Louro, 2013, p. 181). Conforme Maria Izilda Matos (2001), há, em nossa cultura, uma sociabilidade masculina pautada na violência e na mesa do bar; duas dimensões que, diante da falha em viver adequadamente a ordem normativa da masculinidade, diante da falha da performatividade de uma masculinidade hegemônica, violência e álcool se tornam, para estes homens que falharam em sua masculinidade, elementos exacerbadores da violência doméstica como ato último de afirmação de uma autoridade masculina.

Se, conforme disse Foucault (2010), tudo é perigoso e não necessariamente ruim, estamos diante de uma perigosa pedagogia da prosperidade que educa corpos masculinos a se assujeitar a modos de subjetivação neoliberal. Contudo, e em seu lastro do ethos feminista, a prosperidade demanda não só o abandono dos vícios por parte dos homens, mas, quando esse homem falha em sua renovação em Cristo, falha em empreender sua masculinidade, criando espaço para as mulheres se empoderarem e dizerem não à violência:

Eu fui em alguns projetos missionários, que uma das frentes da viagem missionária tinha aconselhamento jurídico. Então, assim, você via que aquilo tava combatendo violência doméstica, cara, tipo assim, “separa desse cara, ele é louco, ele vai matar você”, entendeu?! Então, assim, é justamente chegar naquele ponto que, quando a palavra foi “permaneça casado, submeta-se ao seu marido”, se ele tá espancando você, isso nunca (Gabriela).

Com efeito, e mesmo a violência doméstica sendo reafirmada em alguns espaços religiosos - “eu já ouvi no púlpito [da Igreja], que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Isso é muito grave, porque é um discurso que vem de uma autoridade eclesiástica”, mencionou Camila -, existem movimentos no seio de algumas instituições neopentecostais que propiciam o empoderamento das mulheres e o fim da violência doméstica. Em um estudo sobre mulheres pentecostais em situação de violência, Sandra Duarte de Souza e Claudia Poleti Oshiro (2018, p. 216) demonstram como a subserviência feminina pregada em algumas igrejas opera, muitas vezes, em favor da violência em detrimento da dissolução do laço sagrado do matrimônio, mas é inegável como mulheres de algumas matizes neopentecostais narram que foi pela experiência religiosa - cursos para mulheres, conversas com os pastores, etc - que encontraram “sua força para romper com o ciclo de violência e superar os abusos sofridos, são indicadores de que a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica passa também pelo investimento em parcerias entre o poder público e as religiões”. Assim, as mulheres encontram nas igrejas que debatem os seus problemas cotidianos espaço que aqui chamamos de heterotópicos, espaços outros que “demonstram que, além da fé e dos ritos sagrados, as religiões oferecem às mulheres espaços sociais e culturais em que possam articular seus desejos, medos, esperanças e convicções morais, espaços estes que não são oferecidos em outro lugar” (Souza & Oshiro, 218, p. 216).

Na mesma esteira do novo homem reformado em Deus, os jovens já devem ser educados, dentro de uma tecnologia de gênero da prosperidade, para não adentrar esses perigosos terrenos que afastam o homem da família e de Deus. Em um estudo sobre masculinidade com jovens neopentecostais, Sandro Freitas (2016, p. 104) colocou como “cabe então a todo homem saber guardar e cultivar suas conquistas: família, negócios, animais, terras e tudo aquilo que esteja sob sua tutela. Para tal, as características que devem ser adquiridas pelos garotos para que se tornem homens são: ser pacientes, trabalhadores e cuidadosos”. Assim, poderíamos dizer que essa pedagogia do homem pronto no amor de Deus não visa meramente a submissão ao divino ou à igreja, mas é uma pedagogia de gênero que, no jogo neoliberal, convida os jovens a empreenderem a si mesmo; como elemento fundamental à prosperidade: “recuperando o direito perdido no Éden (numa alusão ao gênesis) de gozar de bem estar físico e material em sua vida na terra. A noção de direito e autonomia são, assim, tuteladas pela igreja, que se coloca como mediadora das relações do fiel com o divino e com seu meio social” (Teixeira, 2012, p. 55, grifos nossos). Como, então, se tece, na visão das jovens evangélicas, a submissão da mulher ao marido, essa figura do homem pronto em Deus, no jogo de gênero dos pós-feminismos e da prosperidade?

A palavra nunca disse “seja submissa a qualquer homem que não seja segundo o coração de Deus”. Pelo contrário, a palavra falou que tem que ser submissa, mas ela também fala qual o padrão do homem em relação à aliança do casamento. Então todo mundo fala “ser submissa, ser submissa”, mas se a gente for submissa de acordo com o homem de acordo com o que a palavra de Deus tá falando, é um complemento, como Marcella falou, nunca foi o trabalho de um só (Gabriela, grifos nossos).

E tem que lembrar também que existe diferença entre você ser submissa e você ser subserviente, porque a submissão é a compreensão de estar debaixo de uma missão, né, a gente traz para o padrão de homem que a Bíblia nos mostra. E a subserviência é completamente carnal, cara, é totalmente aquilo, que eu não estou debaixo de uma missão, tô de baixo de alguma coisa que alguém mandou e por isso que você é capacho, tipo, você abaixa a cabeça e sofre, entendeu?! E precisa lembrar também que a união de um homem dentro do padrão bíblico com uma mulher que foi encontrada pelo homem do padrão bíblico e ambos se amam, culmina para o propósito principal de Deus, cara, que a família. A união, ela não pode ser união por si só, ela tem que gerar uma família, entendeu?! (Henriqueta, grifos nossos).

É, novamente, o jogo da corda bamba. Isto é, a reiteração da norma de gênero sob lentes pós-feministas: “um homem ele é a coluna que sustenta a casa, e a mulher é como que fosse tipo as paredes que protegem”, disse Camila na sequência de Henriqueta. É um empoderamento que não rompe a lógica binária e não rompe o lugar tradicional de marido e mulher, mas que deixa entrever, pela lógica da complementaridade dos gêneros, pela lógica da prosperidade no amor a Deus, um sentido rachado de submissão. Podemos, talvez, pensar essa rachadura com um efeito neoliberalizador do casamento evangélico, pois, como colocou Jaqueline Teixeira (2012, p. 65) em seu estudo sobre a Universal do Reino de Deus, as mulheres evangélicas têm seu empoderamento garantido nesse jogo dúbio de uma submissão rachada por ela não ser somente a mantenedora emocional da casa; mas, junto ao seu marido, a mantenedora financeira: “a profissionalização e o empreendedorismo da mulher emergem, não mais como uma característica de oposição ao bem estar da família, mas sim como extensão das atividades da mulher no seio familiar”.

A mulher de Provérbios 31, velho, se um dia eu chegar a ser aquela mulher, Deus seja louvado. Por que aquela mulher é “a mulher”. Porque a mulher, ela dá ordens às criadas, os filhos dela a louvam, o seu marido ele é bem visto por causa da boa reputação daquela mulher, ela negocia, ela trabalha, ela tarde da noite ela vai tecer tecidos, tipo, ela não é mulher que é totalmente assim, como Henriqueta falou, não é aquela mulher que está abanando o marido e botando uvas na boca dele, sabe?! Ela é a mulher que trabalha e que sustenta a sua casa, que edifica a sua casa, como Gabi falou (Virginia).

Nesse excerto, diríamos, talvez, encontrar o grande resumo das possibilidades subjetivas descritas no grupo focal reservadas às mulheres evangélicas e que, aqui, estamos tentando analisar. É esse arquétipo subjetivo da evangélica como mulher que trabalha e edifica a casa que encontramos ressonâncias dos discursos pós-feministas que endossam a produção subjetividades femininas neoliberais pautadas em discursos como ambição, mobilidade social, escolha, igualdade, complementaridade, individualidade e autogestão. Na perigosa apropriação neoliberal do termo empoderamento, estamos, nessa pedagogia de gênero da prosperidade, diante de uma rasura da crítica feminista no momento em que, enquanto empreendedoras de si, as jovens estão dizem sim a ocuparem esse duplo papel na ordem do genero: o trabalho no mercado e o trabalho doméstico. Se falamos em perigo, é pelo modo como esse discurso é revelador de uma: “‘economia racional feminina’ que tem sua utilidade maximizada pela economia racional masculina encontrada na economia clássica e na adição de sensibilidades femininas essencializadas como o interesse pelo bem-estar dos membros da família e habilidades de trabalhos domesticos.” (Elias, 2013, p. 157). Certamente, a premissa de Virginia Woolf do trabalho como um modo de garantir a liberdade de pensamento das mulheres se vê, aqui, constrangida: como pensar livremente quando essa edificação da casa demanda trabalhar para sustentar a casa, cuidar dos filhos e do marido e, depois, tarde da noite tecer tecidos?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inegável, como mostram autoras como Ana Paula Vosne Martins (2016, p. 29), a pouca permeabilidade entre os estudos feministas e os estudos sobre religião, tendo “geralmente os estudos feministas sobre a religião sublinhado mais os mecanismos de opressão e de representações negativas da feminilidade”. Assim, e epistemologicamente, os estudos feministas auxiliaram a sustentar uma aparente incompatibilidade entre a experiência feminsita e a experiência cristã (e, no Brasil atual, majoritariamente a evangélica). Mais centralmente, e tentando nos afastar da ideia da religião evangélica como um lugar de uma inelutável dominação e subalternização das mulheres, nos perguntamos: resistir à normalização do gênero seria um ato primário de dizer não à religião? Será que uma experiência evangélica não poderia se tornar, ainda que indiretamente, ainda que contingentemente, um caminho para uma experiência que se aproxima da feminista?

A partir do grupo focal, e na corda bamba da análise, é, certamente, o desejo pela agência sobre suas vidas que pulsa nas falas das jovens evangélicas, um desejo que mobiliza, sem dúvida alguma, heterotopias marcadas pela “segregação das mulheres em espaços separados que, ironicamente, as permitem criar laços e contestar as relações de poder patriarcal que as segregam" (McLaren, 2015, p. 9). Ou, nos termos de Ana Paula Vosne Martins (2020, p. 107), a agência das mulheres sempre foi pensada, no campo dos estudos feministas, como um pressuposto de resistência, de fratura, de rompimento com os processos de dominação, “como se o feminismo fosse um movimento ou um conjunto de valores antitéticos”. Contudo, e tal como aqui proposto, tentamos delinear como, mesmo que paradoxalmente, mesmo que de modo limitado, essas jovens tecem “um tipo de agência feminina que é menos conhecida e lembrada [pelos estudos feministas]: a agência conservadora” (Martins, 2020, p. 107).

Mais do que isso, e diante da chamada neoliberalização dos feminismos, o nosso desejo, aqui, foi de mostrar como as experiências dessas jovens - que seriam vistas como singularmente reificação da norma, desde outras lentes teóricas de leitura - podem criar heterotopias pós-feministas (porque neoliberais, porque normalizadas): espaços, certamente, não de pleno rompimento com a ordem do discurso neoliberal de gênero, mas que, apesar de tudo, ainda ensejam e ensaiam pequenas rachaduras que, desde o seio mesmo da normatividade, permitem a essas jovens evangélicas oxigenar as relações de gênero dentro de seus espaços de fé e, com isso, nos sugerem possibilidades de invenções, de criações, de suas subjetividades. Um pouco, talvez, como a Sociedade das Outsiders imaginada por Virginia Woolf (2019, p. 116): “ela se comporia de filhas de homens instruídos, trabalhando por sua própria classe - como, na verdade, poderiam trabalhar em qualquer outra? - e segundo seus próprios métodos, em prol da liberdade, da igualdade e da paz”.

Para finalizar, e por mais dura que seja sua aposta à normalização, a religião ainda é um caminho (e, às vezes, o único visível no horizonte social) para muitas mulheres afirmarem suas existências e se afirmarem como sujeitos de alguns dos discursos feministas que, hoje, constituem o tecido social - inclusive, algumas práticas religiosas embebidas pelos pós-feminismos. Não há certo ou errado. Não há ruim ou bom. Não há norma ou resistência. Há o entremeio dessas relações. Na e pela religião, há o desejo de muitas mulheres de viverem o melhor que conseguem diante das misérias e das belezas do mundo, diante do jogo inelutável da vida e da morte. Talvez, não seja um gesto revolucionário capaz de mudar o mundo, mas é, certamente, algo que toca, mobiliza e transforma a vida de muitas mulheres que encontram na religião um modo de dizer sim à vida.

Material suplementario
Información adicional

Como citar: Colman, S. R., & Balthazar, G. S. (2021). The outsiders’ society: from prosperity gender pedagogies to post-feminist heterotopias. Revista Tempos e Espaços em Educação, 14(33), e16443. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v14i33.16443

Contribuições dos Autores: Colman, S. R.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Balthazar, G. S.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.

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Notas
Notas
1 Conforme diversas autoras têm proposto, o diálogo entre a obra woolfiana com os feminismos é marcado por uma pluralidade de posturas sobre a questão das mulheres: ora mais conservadoras, como quando o gênero se faz fortemente imbricado às questões de classe; ora mais radicais, especialmente quando ela aborda o lugar subalterno reservado culturalmente às mulheres frente aos homens. Contudo, e em delineamentos mais gerais, há, na obra aqui referida, um público específico - as filhas dos homens ilustres, isto é, mulheres de uma burguesia intelectualizada - e, também, seus argumentos estão alicerçados sobre pautas muito específicas dos feminismos liberais do início do século XX, a saber, o direito à educação, trabalho e vida cívica. Ver, por exemplo, Naomi Black (2018).
2 É preciso pontuar que entendemos o conceito de neoliberalismo não somente como um conjunto de políticas estatais, uma fase do capitalismo ou uma ideologia de autorregulação radical do mercado, mas “nos juntamos a Michel Foucault e outros ao entender o neoliberalismo enquanto uma ordem da razão normativa que, quando se torna ascendente, toma forma de uma racionalidade aplicável que se estende a uma formulação específica de valores econômicos, práticas e métricas de cada dimensão da vida humana” (Brown, 2015, p. 30). Mais centralmente, falaremos de como os feminismos de linhas liberais não permaneceram intocados pelas “transformações históricas - econômica, cultural e política - que têm sido descritas como neoliberais, e não nos surpreenderia encontrar ideias feministas, criativamente, apropriadas em tais processos” (Prügl, 2014, p. 7). Assim, e no sentido de destacar a apropriação naoliberal dos feminismos liberais, utilizaremos o termo (neo)liberal - com o prefixo neo entre parênteses - quando nos referimos especificamente aos feminismos de linhas liberais e neoliberais; e o termo neoliberal - com o prefixo neo sem parenteses - para nos referir à racionalidade de governo das condutas pela economização radical de todas as dimensões da vida humana.
3 As jovens fazem , portanto, parte de uma mesma congregação, a Igreja Verbo da Vida; localizada na cidade de Aracaju/SE. A congregação foi, originalmente, fundada pelo casal estadunidense Harold Leroy Wright e Janace Sue Wright na cidade de Guarulhos no ano de 1985, com o objetivo de levar a Palavra de Deus para o Brasil. Presidido, atualmente, pelo Apóstolo Guto Emery, a Verbo da Vida coordena mais de 220 instituições evangélicas em todas as capitais de cada estado brasileiro, interiores e fora do país; a exemplo da Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Paraguai, Estados Unidos, Canadá, Angola, Moçambique, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Portugal, Japão. O Ministério Verbo da Vida está ligado ao "Ministério Kenneth Hagin” - “Rhema Bible Training College” - fundado, também, pelo Rev. Kenneth Hagin, no ano de 1963, em Tulsa-OK, Estados Unidos. Em Aracaju, a Igreja Verbo da Vida foi fundada em julho de 1996 e está localizada na Rua Campo do Brito, 1265, bairro: São José. Além da Igreja sede em Aracaju, há uma congregação no bairro Lamarão e nas cidades de Itabaiana, Itabaianinha, Lagarto e Pirambu. Ver mais em: https://verbodavida.org.br/
Notas de autor
1 Universidade Tiradentes, Aracaju, Sergipe, Brasil.
1 Universidade Tiradentes, Aracaju, Sergipe, Brasil.

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