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Educação domiciliar no Brasil: Uma política pública na contramão do direito à educação democrática
Homeschooling in Brazil: A public policy moving against the right to democratic education
La educación a domicilio en Brasil: Una política pública contraria al derecho a una educación democrática
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 16, núm. 35, e18815, 2023
Universidade Federal de Sergipe

Artigos

Revista Tempos e Espaços em Educação 2023

Recepción: 03 Diciembre 2022

Aprobación: 02 Febrero 2023

Publicación: 04 Abril 2023

DOI: https://doi.org/10.20952/revtee.v16i35.18815

Resumo: Analisamos as ameaças dos movimentos “conservadores” materializadas na aprovação pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 3.179, de 8 de fevereiro de 2012, que dispõe sobre a possibilidade de oferta domiciliar da Educação Básica. Com isso, permite que pais, mãe e/ou tutores e tutoras legais eduquem crianças em casa, sem que isso configure crime de abandono intelectual. Constatou-se que a onda conservadora proeminente, a partir de 2014, se baseia na ideia de desqualificar o pensamento freiriano, intervindo na perspectiva pedagógica e curricular advinda da luta dos movimentos sociais. Ademais, investigamos as bases documentais do Ministério da Educação, como a cartilha “Educação Domiciliar: um direito humano tanto dos pais quanto dos filhos”, que apresenta o homeschooling como uma modalidade de ensino dirigido pelos pais visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a vida, exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Assim, recorremos às manifestações de entidades educacionais brasileiras comprometidas com uma educação pública, laica, crítica, reflexiva e inclusiva para ratificar como os “conservadores” vêm, insistentemente, retirando direitos sociais por meio de suas ações junto às políticas educacionais. Por fim, reforçamos que a proposta fere o direito constitucional de educação, quando se concede aos pais, leigos, a tarefa de educar seus filhos em casa e, com isso, retirar do Estado a obrigação de uma educação democrática para crianças e jovens.

Palavras-chave: Educação Domiciliar, Movimento Conservador, Terceira via.

Abstract: We analyzed the threats of the "conservative" movements that materialized in the approval by the House of Representatives of Bill 3.179 of February 08, 2012, which provides the possibility of offering Basic Education at home. This allows fathers, mothers, and legal guardians to educate children at home without constituting a crime of intellectual abandonment. It was found that the prominent conservative wave, from 2014 on, is based on disqualifying Freirian thought, intervening in the pedagogical and curricular perspective arising from the struggle of social movements. Furthermore, we investigated the documentary bases of the Ministry of Education, such as the booklet "Homeschooling: a human right of both parents and children," which presents homeschooling as a type of education directed by parents aiming at the full development of the person, their preparation for life, the exercise of citizenship, and qualification for work. Thus, we resort to the manifestations of Brazilian educational entities committed to public, lay, critical, reflexive, and inclusive education to ratify how the "conservatives" have been insistently removing social rights through their actions in educational policies. Finally, we reinforce that the proposal hurts the constitutional right to education when it grants lay parents the task of educating their children at home, thus removing from the State the obligation of democratic education for children and young people.

Keywords: Homeschooling, Conservative movement, Third way.

Resumen: Analizamos las amenazas de los movimientos "conservadores" materializadas en la aprobación por la Cámara de Diputados, del Proyecto de Ley 3.179, de 8 de febrero de 2012, que dispone sobre la posibilidad de oferta domiciliaria de Educación Básica. Con esto, permite a los padres, madres y/o tutores legales educar a los niños en casa, sin que esto constituya un delito de abandono intelectual. Se constató que la prominente ola conservadora, a partir de 2014, se basa en la idea de descalificar el pensamiento freiriano, interviniendo en la perspectiva pedagógica y curricular surgida de la lucha de los movimientos sociales. Además, investigamos las bases documentales del Ministerio de Educación, como la cartilla "Educación en casa: un derecho humano de padres e hijos", que presenta el homeschooling como un tipo de educación conducida por los padres dirigida al pleno desarrollo de la persona, su preparación para la vida, el ejercicio de la ciudadanía y la cualificación para el trabajo. Así, recurrimos a las manifestaciones de las entidades educativas brasileñas comprometidas con una educación pública, laica, crítica, reflexiva e inclusiva para ratificar cómo los "conservadores" vienen eliminando insistentemente los derechos sociales a través de sus acciones en las políticas educativas. Finalmente, reforzamos que la propuesta lesiona el derecho constitucional a la educación, cuando otorga a los padres laicos la tarea de educar a sus hijos en casa, quitando así al Estado la obligación de una educación democrática para los niños y jóvenes.

Palabras clave: Educación a domicilio, Movimiento conservador, Tercera vía.

INTRODUÇÃO

Neste estudo analisaremos as ameaças dos movimentos “conservadores” materializadas na aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 3.179, de 08 de fevereiro de 2012. Tal projeto visa alterar as Leis nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), e 8.069, de 13 de julho de 1990, (Estatuto da Criança e do Adolescente), para dispor sobre a homeschooling, portanto, da possibilidade de oferta domiciliar da Educação Básica no Brasil. A presente análise considera a educação domiciliar como uma “terceira via”, uma vez que, esta parece representar às tentativas de alguns partidários do liberalismo econômico, propor uma reconciliação de posicionamentos didático-pedagógicos tradicionalmente associados à direita e à esquerda. Desse modo, para adotar uma política educacional ortodoxa, como o ensino criacionista, tornou-se fundamental, com políticas sociais mais progressistas, trazer o debate acerca do direito à educação.

Vale destacar que, conforme Giddens (2001), essa terceira via representa um movimento de modernização do centro. Embora aceite o valor socialista básico da justiça social, rejeita a política de classe, buscando uma base de apoio que perpassa as esferas da sociedade. Logo, nota-se, a rejeição da noção de política de classe, presente na concepção socialista e, a exaltação do desenvolvimento “espiritual e da religiosidade” na educação domiciliar.

ENSINO DOMICILIAR: UMA TERCEIRA VIA PARA A EDUCAÇÃO NO BRASIL?

De acordo com Lacerda (2018), a homeschooling é uma experiência estadunidense baseada na vanguarda do nacionalismo cristão. Esta proposta se fortaleceu durante as décadas de 1960 e 1970, período que as escolas públicas ficaram impregnadas de movimentos de contracultura1. A busca da legalização da educação em casa, em todos os estados da federação, se pautava em uma plataforma ideológica criacionista, na qual a visão de um Deus criador, não poderia lidar, simultaneamente, com a teoria evolucionista. Desta forma, a educação domiciliar seria importante, porque os Estados Unidos deixariam de ser um país pecador e teriam os dez mandamentos como uma base legal para o sistema. Diante deste cenário, pode-se indagar: como se deram as manifestações em defesa da implementação do ensino domiciliar no Brasil? Quais suas principais características e reivindicações no cenário brasileiro? As bases defendidas pelas famílias brasileiras também estão relacionadas com perspectivas religiosas?

Cabe recordar que as tentativas do protagonismo evangélico sobre propostas educacionais cresceram a partir do processo eleitoral de 2018. No Brasil, o cenário político foi marcado por coalizões do segmento de igrejas pentecostais e a crítica à “ideologia de gênero”. Assim, destacava-se a atuação de grupo conservador em um projeto que acusava as escolas de “doutrinação ideológica”, denominado de Movimento Escola Sem Partido — MESP. Portanto, era urgente propor medidas para impedir que os professores expressassem posicionamentos próprios acerca sexo, aborto, união homoafetiva, agenda LGBTQIA+ e outras pautas relacionadas às manifestações, objetivando a promoção de igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual. Para os grupos conservadores, este processo acabaria em um ativismo pela tradicional família brasileira e, com os valores neoliberais no contexto familiar, ampliando as iniciativas da família patriarcal. Por tudo o que foi dito, o projeto da educação domiciliar acompanha o crescimento do movimento conservador no país.

É importante destacar que, a “onda conservadora” (Boulos, 2016, p. 29)2 pode ser observada desde o ano de 2013 na política brasileira, na qual se observou a ascensão de um viés de conservadorismo político, econômico e moral voltado para o fisiologismo entre partidos de direita. Esse processo foi ampliado a partir de 2014, uma vez que o Congresso Nacional, eleito neste período, pode ser conceituado como um dos mais conservadores da história republicana brasileira. Este Parlamento se tornou um espaço prioritário e disputado por setores explorados e, com a expressão da reacionária burguesia brasileira, representada por empreiteiros, banqueiros, fabricantes, exportadores, importadores e ruralistas, constituindo assim as bancadas da bala, evangélica e ruralista. Tal congraçamento tornou difícil a penetração de representação política das demandas populares. Neste sentido, tornou-se um espaço político com uma classe dominante divorciada do povo, porque os congressistas iniciaram intenso movimento de apresentação e aprovação de propostas Contrarreforma do regime democrático-liberal e reforçaram a blindagem do processo democrático. Assim sendo, ainda nesta ocasião, os congressistas, antes de bloquearem as pautas relacionadas com as liberdades e direitos civis, tais como: a legalização do aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e de combate à homofobia e à transfobia, também se revezaram para expor algumas propostas como o ensino criacionista nas escolas e outras formas de controle reacionário sobre a Educação (Demier, 2016).

A partir do cenário apresentado, o governo do presidente Jair Bolsonaro, especialmente por meio dos ex-ministros das pastas de Educação, Milton Ribeiro, e da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, intensificou a pressão para assegurar a regulamentação do ensino domiciliar no Brasil. Para estes ex-ministros, com base no reconhecimento de recente decisão do Supremo Tribunal Federal — STF, em reconhecer a constitucionalidade da educação domiciliar, como também de sua ilegalidade, pois não existe a regulamentação por lei para este regime educacional, a pauta de tornou uma prioridade, porque há no Brasil uma média de 35 mil famílias que já optaram por este modelo.

Da mesma forma, estes ex-ministros justificaram que 85% dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE já aderiram ao modelo da educação domiciliar. Do mesmo modo, insistiam que não havia a obrigatoriedade de adesão ao projeto, bem como combatiam as críticas de várias entidades científico-pedagógicas sobre o processo de socialização vivido pelos estudantes no espaço escolar, porque estas não eram bem fundamentadas. Para estes ex-ministros, as crianças e jovens participantes da educação domiciliar possuem contato com diferentes formas de socialização, uma vez que existem outras práticas sociais presentes nas famílias, nos clubes, nas bibliotecas e até mesmo nas igrejas.

Este aspecto ainda ganha amplitude diante do fato da Associação Nacional de Ensino Domiciliar, representado pelo procurador do Banco Central, Alexandre Magno Fernandes Moreira, defender a liberdade educacional das famílias como um direito cultural, portanto, o direito à educação, no qual compreende: a) a liberdade de dar e receber ensino em sua própria língua; b) o direito dos pais de educarem os filhos de acordo com suas convicções morais e religiosas; c) o direito de transmissão familiar das crenças e culturas dos pais; d) a liberdade de consciência e de crença de crianças e adolescentes de acordo com suas capacidades (direito de escolher ou negar uma herança cultural); d) o direito de criar instituições de ensino diversas daquelas instituídas pelo Poder Público, em especial as escolas confessionais, responsáveis por transmitir determinada herança cultural e religiosa para as novas gerações (Moreira, 2022).

Contudo, em 2021, entidades como o Conselho Nacional de Educação - CNE, a partir da ex-presidente Maria Helena Guimarães de Castro, defenderam um posicionamento crítico e de oposição à educação domiciliar no Brasil, porque consideravam que tal proposta poderia comprometer a socialização de crianças e jovens. Da mesma maneira, Castro, afirmava que a proposta impedia o contato dos estudantes com ideias e pensamentos distintos, como favorecia a desqualificação da formação pedagógica e técnico-científica dos profissionais da Educação. A ex-presidente ainda afirmou que: “Acho legítimo que uma família religiosa defenda o criacionismo, mas acho importante que o filho dessa família possa conhecer outras teorias, como a teoria de Darwin sobre a evolução das espécies, completou” (Agência Câmara de Notícias, 2021).

Percebe-se que a defesa do “direito da família” em escolher um formato de educação pressupõe a incorporação de uma terceira proposta de ensino no Brasil, portanto, uma “terceira” via como um direito educacional para o contexto pedagógico.

Os simpatizantes do conservadorismo recorreram ao Supremo Tribunal Federal — STF para ter acesso ao uso do direito, como um instrumento de defesa de princípios morais e religiosos. Neste sentido, se apropriaram da ideia, ou necessidade, de garanti-la, por meio de uma “Juridificação”, com estratégias relevantes para a implementação de uma política educacional. Dessa forma, o discurso a respeito do “direito”, quer seja de família ou legal, tornou-se um tema debatido no cenário pedagógico atual, sendo digno de análise, pois revela que sua essência é a ideia de uma restauração moral e religiosa, apesar da laicização do Estado, ou seja, a separação entre as normas religiosas e seculares. Assim sendo, é possível perceber a forte influência da doutrina religiosa sobre a legislação, constituindo um “novo” modelo no campo educacional.

Convém ressaltar que, conforme Paiva (1986), conforme as reivindicações educacionais na história dos países europeus, os movimentos dos trabalhadores se recusaram a distinção entre a formação, num sentido mais amplo, e a educação voltada para o trabalho3. Assim, a luta por uma escola gratuita e compulsória, garantida pelo Estado, ou seja, uma escola única, significava a recusa da divisão em escolas para “gentlemen e as workingschools” (p. 21) pois, o que os trabalhadores desejavam era o acesso dos filhos à escolarização subsequente.

No caso do Brasil, há uma disparidade de propostas educacionais com a simultaneidade de ensino, para os mesmos níveis de escolarização, realizados por uma rede pública e outra por escolas privadas. Neste sentido, observa-se um processo de segmentação: escolas para pobres e ricos. De acordo com Paiva (1986), esta fragmentação colocou o conceito da democratização em discussão desde meados da década de 1960, pois a crescente privatização do ensino possibilitou, para além de uma fragmentação das classes sociais na escola, a instituição do ensino público como “escola de pobres”. Da mesma forma, esta diferenciação, entre as formas de escolarização, se apresenta como uma preocupação central para o país, uma vez que teremos a educação domiciliar como uma “terceira via” e com base religiosa.

Para Moreira (2022), ao defender a educação domiciliar, o direito à educação exige um esforço da parte do Estado para disponibilizar diversas formas de educação, como também implica a liberdade e pluralismo de ideias. Neste sentido, os pais podem escolher escolas para seus filhos que não são estabelecidas pelas autoridades públicas, assegurando a educação religiosa e moral conforme as próprias convicções.

Esta é outra ideia acerca do “direito” e de outro modelo de educação, pois se observa a reação do setor conservador para o controle de políticas educacionais e do Estado sobre as pautas educativas. O site do Ministério da Educação — MEC divulgou, em outubro de 2022, no Documento intitulado como “Educação Domiciliar: Um Direito Humano tanto dos pais quanto dos filhos”4.

O Ministério da Educação lançou a Cartilha Educação Domiciliar: um Direito Humano tanto dos pais quanto dos filhos, criada com o objetivo de esclarecer o que é a educação domiciliar, apontar dados estatísticos e históricos, contextualizar o tema da regulamentação, além de apontar os propósitos dessa modalidade de ensino. A cartilha contém 20 páginas e define a educação domiciliar como uma modalidade de ensino dirigida pelos próprios pais, com vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para a vida, exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. O documento aponta casos reais de estudantes de outros países, do ensino fundamental ou médio, que estudam em regime de educação domiciliar. Além disso, a cartilha traz a informação de que cerca de 35 mil crianças e adolescentes do Brasil já estudam em regime de educação domiciliar, estimativa anterior à Covid-19, que ressalta ainda mais a necessidade de regulamentação dessa modalidade de ensino (Lançada Cartilha de Educação Domiciliar, 2021).

O conteúdo inicial da Cartilha se pauta justamente na ideia do “direito” para assegurar o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a vida, o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (Lançada Cartilha de Educação Domiciliar, 2021). Assim, recorrem ao artigo n.º 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual prevê que “os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de educação que será ministrado aos seus filhos”.

Ao apelarem para um tipo de “clandestinidade” da prática deste modelo já experienciado por 35 mil crianças e adolescentes brasileiros, afirma que é necessário regulamentar o regime de educação domiciliar.

Da mesma forma, comentam sobre as práticas de ensino, como: a constituição de currículo estruturado com possibilidade de ampliação dos objetivos de aprendizado; a constituição de comunidades que se organizam para auxiliar famílias com o mesmo regime ou comunidades de famílias educadoras. Esse processo ainda conta com a participação dos alunos na produção de ensaios e relatórios a partir de sua base de aprendizagem e com a supervisão dos pais. Logo, estes devem expor seus trabalhos para outros estudantes que fazem parte das comunidades de aprendizagem ou famílias educadoras.

Entretanto, chama a atenção ao afirmarem que a socialização — aspecto muito criticado e ressaltado em estudos sobre a educação domiciliar — é justificado por processos tradicionais, à medida que os estudantes mantêm o contato com familiares como primos, ou amigos, e ambientes nos quais convivem com outras pessoas. Da mesma maneira, frequentam o clube, supermercado, conversas com porteiros ou pessoas idosas e participam de atividades pedagógicas ou artísticas. Estas práticas sociais são enfatizadas como significativas, porque asseguram a liberdade educacional das futuras gerações.

Contudo, na supracitada Cartilha, ignora-se que outro processo de socialização, especialmente, educacional, se realiza justamente nas trocas entre as comunidades da educação domiciliar. A elaboração de um currículo estruturado, na qual não se vislumbra os conhecimentos escolhidos por este tipo de comunidade educacional na Cartilha, constata-se a constituição de uma rede educacional e pedagógica paralela ao Estado e com a aprovação do Ministério da Educação para se apartar de uma proposta, ou projeto, de educação nacional. Uma rede que, distinta das outras duas, da pública ou privada, não comprovam sua base de conhecimentos e ganham total autonomia para elaboração de um currículo oculto.

Sendo assim, estabelece-se outro fundamento para a socialização, pois a Escola, enquanto instituição social, permite que um agente social, no caso os estudantes, se aproprie do que a sociedade determina e do que ele anseia, desta forma compartilhando os espaços e os objetos através de uma perspectiva histórica e de acordo com as expectativas de uma sociedade específica. São as motivações e necessidades oriundas de um contexto histórico que abrem os sentidos dados pelas relações simbólicas e as trajetórias sociais suscetíveis de serem compreendidas de maneiras diferentes. Significa assim que um determinado arbitrário cultural se fundamenta a partir das disposições provenientes de estruturas estruturadas, na qual pressupõe conceitos universais atemporais e a-espaciais, enquanto as estruturas estruturantes são recheadas de temporalidade e de espacialidade, ou seja, de conteúdos histórico-sociais. A criatividade dos alunos diante das situações novas mostradas na escola, ou a perseverança em um arbitrário cultural, demonstram que as práticas geradas no âmbito escolar podem orientar a conservação de um determinado capital cultural, mas também o aumento do “patrimônio”, na sua representação simbólica para melhor posicionamento em um grupo social (Dubar, 2005).

No caso do ensino domiciliar, haverá uma incoerência expressa quando a escola modifica a lógica da socialização com o intuito de promover o “direito” de algumas famílias, pois haverá um recorte social e pedagógico sobre indivíduos de determinadas gerações.

A Escola, inspirada nos estudos de Goffman (2007), como uma das “instituições totais” (p.16)5 absorve parte do tempo e do interesse de seus participantes. Este processo é característico dos que delas participam, pois o ingresso e permanência supõem processos de perda e mortificação do “eu”, pela substituição por “nós”. Assim, o indivíduo esforça-se conscientemente para investir em certos níveis de sociabilidade com outros integrantes de um determinado grupo de pessoas. Estas são as estratégias institucionais, familiares aos indivíduos, que preveem as formas criadas para controlar a vida diária de grande número de pessoas em um espaço restrito e com poucos gastos de recursos. Contudo, há uma relação entre indivíduo e sociedade, como uma troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades.

Neste sentido, um sistema de esquemas pessoais é socialmente constituído de disposições institucionais e individuais adquiridas por práticas sociais. Estas são constantemente orientadas para funções e ações do agir cotidiano. Percebe-se, assim, que as instituições sociais, como, por exemplo, a família e a escola, representam mercados simbólicos e espaços instituidores de competências necessárias aos indivíduos para atuarem nos diferentes campos culturais e sociais. Esta parece ser uma forma de socialização que os neoconservadores querem evitar e justificam o direito de não querer como justo e igualitário.

Nesse sentido, há uma confrontação entre aquilo que se constituiu como uma socialização escolar e a difusão das inovações e reformas educativas que introduziram outra lógica para o tema, a partir da educação domiciliar. Constituindo-se, assim, num dilema que parece ter afetado, bastantemente expressiva, as concepções, valores e as finalidades educacionais.

AS RESISTÊNCIAS À EDUCAÇÃO DOMICILIAR: AS TENSÕES ENTRE CULTURA E CURRÍCULO

Em 19 de maio de 2022, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que autoriza o homeschooling, também conhecido como ensino domiciliar, no Brasil. A modalidade é vedada no país por conta de uma determinação do Supremo Tribunal Federal — STF, que em 2018, proibiu que as crianças ficassem restritas ao estudo plenamente doméstico, em vez de frequentar uma escola. Na ocasião, a maioria dos ministros entendeu que, sem uma lei regulamentando a modalidade, não haveria como garantir o cumprimento do direito fundamental à educação.

Para alguns atores sociais da esfera política, como o senador Marcelo Castro (MDB-PI), o projeto desvia a atenção do que é essencial na educação, para tratar de um assunto que não contribui em nada para a melhoria do ensino, contudo, embora contrário ao texto, designou um relator para aprofundar o tema 6.

Da mesma forma, representantes do governo federal e entidades nacionais, estaduais e municipais da área educacional divergiram sobre a regulamentação do ensino domiciliar para o país. Pode-se citar o “Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em Defesa do Investimento nas Escolas Públicas'', no qual foi assinado por mais de 400 instituições educacionais de todo o país. Este Manifesto, elaborado a partir das Coalizões, Redes, Entidades Sindicais, Instituições Acadêmicas, Fóruns, Movimentos Sociais, Organizações da Sociedade Civil e Associações, considera que a regulamentação da educação domiciliar é fator de extremo risco, porque se constitui em mais um ataque ao direito à educação, uma das garantias fundamentais da pessoa humana; porque pode aprofundar ainda mais as desigualdades sociais e educacionais; porque pode estimular a desescolarização e multiplicar os casos de violência e desproteção de crianças e adolescentes.

O Manifesto alerta para a necessidade de maiores investimentos na educação, e efetivo regime de colaboração para superar os inúmeros desafios impostos, e não de uma modalidade que desobriga o Estado com a garantia da Educação de qualidade. Da mesma forma, este documento afirma que a pauta da educação domiciliar é de baixíssima adesão popular, e que há uma contraposição das pessoas de assegurar que os pais tirem os filhos da escola. O documento aponta para o que é realmente prioridade no campo educacional: a expansão da educação integral; o cumprimento das metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação (e dos planos subnacionais); mais aportes para o financiamento público, inclusive com vinculação dos recursos do pré-sal para a Educação; regulamentação do Sistema Nacional de Educação, potencializando os regimes de cooperação e colaboração interfederativos; além de maior regulamentação da rede educacional privada.

O Manifesto denúncia outras questões sensíveis ao debate da educação domiciliar: a insegurança alimentar de crianças e famílias que voltaram a fazer parte do Mapa da Fome da ONU, a invisibilidade dos casos de trabalho infantil e o aumento expressivo no número de agressões, violência doméstica e da violência sexual, em especial contra meninas, mulheres e adolescentes LGBTQIA+. Tais questões revelam a vulnerabilidade de crianças e adolescentes sem o amparo cotidiano das escolas.

Para além das questões trazidas pelo supracitado Manifesto, é importante analisar os motivos de críticas apresentados pelos defensores da educação domiciliar para distanciar crianças e adolescentes da educação formal e propor algumas práticas curriculares para serem desenvolvidas em ambientes familiares.

Ao defenderem a educação moral e religiosa dada pelos pais, os apoiadores da educação domiciliar sustentam que a família é fundamental para transmitir os valores culturais, em especial, as crenças religiosas, implicando o dever de todos, principalmente do sistema escolar. Entretanto, algumas questões são consideradas com valores socialmente controvertidos, particularmente, aqueles nos quais são considerados de opiniões com caráter político ou ideológico, pois são considerados temas polêmicos, tais como: controle de armas, aborto, liberdade religiosa, vacinas, direitos dos animais, privacidade, livre mercado, mudança climática global, teoria da evolução, legalização da maconha, direitos dos LGBTQIA+, cultura do cancelamento7, conflito Israel-Palestina e outros relacionados com a “identificação de situações específicas que configuram o desvio de finalidade educacional, por meio de ilícitos educacionais denominados genericamente de doutrinação” (Moreira, 2022, p.116). Portanto, a liberdade de pais e professores não é absoluta, pois determinados conteúdos não podem ser incluídos nos currículos educacionais, haja vista que não concordam com as finalidades da educação.

Para os apoiadores da educação domiciliar, algumas questões não podem incidir sobre as finalidades da educação, tais como: ensinar e estimular os alunos a cometer crimes ou corrupção de menores; fazer apologia de fato criminoso ou apologia ao crime; ensinar concepções ou doutrinas racistas induzindo a discriminação de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; exibir materiais inadequados às crianças ou adolescentes; estimular a prática de atos sexuais por menores de 14 anos, configurando estupro de vulnerável ou cenas de conjunção carnal, como também de materiais pornográficos ou obscenos e, por último, ensinar “ideologia de gênero”, também chamada de “teoria de gênero”, de “estudos de gênero” e de “feminismo pós-moderno”, pois esta última envolve diversas doutrinas com foco na noção de que gênero, ou o sexo, entretanto não é um dado da natureza, e sim como uma construção social.

Justamente a ideologia de gênero se tornou um tema bastante emblemático, porque é considerado, pelo grupo da educação domiciliar, como um tema que interfere na filosofia, na racionalidade e na existência de verdades universais, bases da civilização ocidental. Da mesma forma, atribuem a Judith Butler, a partir de sua obra “Gender Trouble”, publicada em 1990, como responsável pelo marco da introdução da “ideologia de gênero” no contexto educacional (Moreira, 2022).

Percebe-se que tais finalidades para educação domiciliar parecem estar em contraposição à política governamental, desenvolvida pela equipe do Ministério da Educação do presidente Jair Bolsonaro, nos últimos quatro anos no Brasil. Cabe destacar que a menção à arma feita com os gestos das mãos liderou a campanha deste presidente durante o pleito eleitoral em 2018, como a edição de mais de 40 decretos deste governante, durante seu mandato, para facilitar o acesso da população civil às armas. O mercado registrou uma média de cerca de 1.300 armas compradas por brasileiros por dia 8.

Da mesma forma, a ideia de que professores podem expor seus alunos a práticas sexuais ou obscenidades precisam ser questionadas, considerando alguns fatos importantes no cenário educacional. Pertinente a essa situação, convém recordar que, desde 2004, o governo federal, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, lançou o Programa Brasil sem Homofobia. Esta proposta tinha como objetivo combater a violência e o preconceito contra a população LGBTQIA+, composta por travestis, transsexuais, gays, lésbicas, bissexuais e outros grupos. Para isto, o Programa enfatizava a formação para profissionais da educação, para tratar das questões relacionadas ao gênero e à sexualidade, contudo o material foi alvo de críticas e intitulado de “kit gay” por setores conservadores da sociedade, como de grupos do Congresso Nacional, no ano de 2011. As críticas estavam pautadas em acusações de que o governo estimulava a homossexualidade e a promiscuidade. Isto favoreceu a suspensão do projeto e, após alguns anos, o material foi assumido pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais — ABGLT, envolvida na elaboração, que decidiu divulgar o caderno com instruções ao professor.

As críticas da educação domiciliar para a incorporação de temas, advindos dos movimentos sociais, não pode ser considerada uma inserção “ingênua”. Embora suas análises apresentem concepções controvertidas, estas devem ser analisadas a partir de percurso histórico-cultural da educação brasileira, pois a questão da sexualidade não é algo novo no país.

Nos anos de 1970 e 1980, os veículos de comunicação começaram a tratar sobre a sexualidade, uma vez que havia a contaminação significativa da Síndrome da Imunodeficiência Humana - AIDS, transmitida pelo vírus HIV, caracterizada pelo enfraquecimento do sistema de defesa do corpo e pelo aparecimento de doenças oportunistas. Esta doença se tornou um grave problema de saúde pública e era necessário alertar a população sobre os métodos de prevenção, as causas e os tratamentos disponíveis para a AIDS. A partir deste cenário, o governo percebeu a necessidade de colocar o assunto nos currículos escolares, como era preciso também lidar com os casos de gravidez precoce e os riscos de contaminação pelo vírus HIV. Neste sentido, houve uma demanda social que exigia a aproximação do tema com as escolas, pais e professores.

Logo após, o governo brasileiro instituiu uma reforma na Educação Básica implementando os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs 9 e a concepção de temas transversais no currículo escolar10. A proposta compreendia que os temas, como, por exemplo, a orientação sexual, seria um dos transversais e poderia ser analisado conforme a realidade e as necessidades diárias dos estudantes. Este tema ganhou ampla relevância, porque para além de uma disciplina, tornou-se um assunto debatido no contexto escolar. Neste sentido, o Estado assumiu um projeto educacional que visava melhor compreensão sobre a sociedade, podendo ainda contribuir com as decisões mais seguras diante da sexualidade para os estudantes. Da mesma forma, pode-se supor que um processo dialógico na escola auxiliaria na proteção dos estudantes contra os abusos e as explorações sexuais praticadas por adultos, como também no adiamento da gravidez com uso de métodos contraceptivos e do comportamento sexual tardio e responsável.

Neste sentido, o Estado precisou definir uma proposta didático-pedagógica correlacionada com um determinado tempo histórico-cultural e gerou um currículo que abordasse conhecimentos sociais para além daqueles tradicionais presentes nos diferentes campos disciplinares. Assim, conforme a realidade e a necessidade da sociedade brasileira, foi preciso conhecer tanto o ambiente social como o escolar, para integrá-los no processo formativo dos estudantes frente às questões relacionadas à saúde, à vida, ao bem-estar e à experiência com a sexualidade. A saída foi a transversalidade, ainda que alguns profissionais da educação tivessem pouca definição sobre o conceito ou como tratá-lo no contexto curricular de uma sala de aula.

Tais considerações apontam que, conforme Candau e Moreira (2007), é necessário diferenciar os conceitos sobre currículo e conhecimento escolar. Para os autores,

As discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, discussões sobre conhecimentos escolares, sobre os procedimentos e as relações sociais que conformam o cenário em que os conhecimentos se ensinam e se aprendem, sobre as transformações que desejamos efetuar nos alunos e alunas, sobre os valores que desejamos inculcar e sobre as identidades que pretendemos construir (Moreira, 2007, p.18).

Deste modo, percebe-se que há disputas travadas na construção curricular e que estas, de certa forma, objetivam formar um modelo de identidade que poderá responder a determinados interesses históricos, sociais e culturais.

Conforme Candau e Moreira (2007), as tensões existentes entre cultura e o currículo, mostram que o conceito sobre a primeira variou historicamente e desta maneira, algumas questões foram privilegiadas em detrimento de outras, ao longo da história das produções curriculares. Isto pode ser exemplificado com a questão da laicidade no contexto da escola pública durante boa parte do século XX, e a ampliação da defesa de um ensino pautado a partir da religiosidade trazida pela educação domiciliar no Brasil. A inserção, ou não, da presença de grupos religiosos na educação brasileira, em especial, a pública, tem sido um desafio significativo da escola frente às disputas de poder entre Estado, Igreja e Religião, distinto de “manter-se neutra”. Assim sendo, pode supor que as questões referentes à religião pouco estão relacionadas apenas com uma disciplina dedicada ao Ensino Religioso, pois esta é optativa, mas, atualmente, insinua-se a eliminação de conhecimentos escolares do currículo, como o evolucionismo, no dia a dia da escola, em detrimento para o criacionismo. Por fim, nota-se que se isto não for possível, determinados grupos reivindicam a retirada de seus filhos da instituição social responsável pelo processo educativo e escolar.

Tais posicionamentos auxiliam na compreensão da rejeição dos apoiadores da escola domiciliar sobre as concepções do educador brasileiro Paulo Freire. Para este autor, a educação se constituiu a partir da valorização, humanização e libertação do ser humano por meio de princípios éticos e, estes, como alternativa para a educação escolar. Em face disso, será mais coerente lidar com os conflitos e as diferenças religiosas instauradas na sociedade e reproduzidas no contexto escolar. Ainda conforme o autor, o princípio ético se define na vida, pois a ética pedagógica libertadora é construída a partir daquele que é oprimido, excluído ou segregado de direitos provenientes do sistema econômico e uma sociedade pautada no fundamentalismo religioso (Freire, 1987). Tal concepção contribui para combater a desigualdade social e as discriminações de raça, gênero, religião e orientação sexual, como aquela defendida pela heteronormatividade, pois o que importa é a valorização do reconhecimento das identidades culturais e relações mais humanizadas.

Diante de tal concepção, há questionamentos dos grupos conservadores sobre a máxima apresentada por Freire de que a “educação é um ato político”, pois, conforme Moreira (2022), esta afirmação se restringe a adesão às concepções freirianas e mostra mais como uma forma de sedução a uma ideologia, filosofia, crença ou posição partidária, na qual pode ser considerado um desvio da finalidade educacional, portanto, uma doutrinação. Representa, assim, um tipo de reducionismo, pois a dimensão política está vinculada a um regime político e uma filosofia política, portanto, conforme os simpatizantes da escola domiciliar, não é importante privilegiar a dimensão privada do desenvolvimento individual, mas a defesa dos valores da família nuclear.

Sabe-se que praticamente as distintas e múltiplas concepções políticas estão em disputa na sociedade contemporânea e democrática. Assim, é necessária a educação gratuita e obrigatória, na qual o direito à educação possa suscitar importantes análises sobre as desigualdades sociais e de diferentes grupos sociais e culturais. Da mesma forma, é importante reconhecer que os movimentos sociais foram fundamentais para garantir dois aspectos relacionados ao direito à educação: a oportunidade de acesso e a possibilidade da permanência. Logo, este direito pressupõe a responsabilidade do Estado na formulação e implementação de políticas públicas para efetivação de um projeto educacional democrático para o país. Entretanto, quando um determinado grupo social reivindica que somente “os pais têm o dever de coordenar, de governar a educação dos filhos, nenhuma outra autoridade, pública ou privada, tem o poder superior aos pais na educação dos filhos” (Moreira, 2022, p. 211). Tal perspectiva supõe uma inversão do conceito de direito à educação, incidente sobre os destinatários finais de uma política educacional.

Se nas três primeiras décadas do século XX, o processo pedagógico tinha como centro os professores e seus saberes, a partir da década de 1960, o foco se volta para a criança como núcleo do projeto educacional. Para a atual onda conservadora, o foco agora está sob a família e este modelo não tolera a intervenção do Estado. Desta forma, os defensores da educação domiciliar criticam o Sistema Nacional de Avaliação e as avaliações, tanto das escolas como em larga escala, pois afirmam que esta política fracassou e não dará conta das demandas atuais.

Justamente a exigência da avaliação escolar está presente no referido Projeto de Lei n.º 1.338 de 2022. Esta proposta de educação domiciliar prevê a obrigatoriedade da matrícula do estudante em uma instituição de ensino credenciada, o cumprimento de conteúdos curriculares conforme a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e a possibilidade de inclusão de conteúdos curriculares adicionais considerados pertinentes pelas famílias educadoras. Sugere ainda que, o acompanhamento do desenvolvimento do estudante seja por meio de um docente, tutor da instituição de ensino em que estiver matriculado, dos pais ou responsáveis legais, assim como de preceptores. A avaliação realizada pela instituição de ensino acontecerá somente ao término do período letivo por meio de exames do sistema nacional de avaliação da educação básica e seus derivados subnacionais.

VIII - realização de avaliações anuais de aprendizagem e participação do estudante, quando a instituição de ensino em que estiver matriculado for selecionada para participar, nos exames do sistema nacional de avaliação da educação básica e, quando houver, nos exames do sistema estadual ou sistema municipal de avaliação da educação básica (Projeto de Lei n. 1338, 2022).

Este projeto de lei ainda visa assegurar que o Estado brasileiro, diante de uma nova proposta de “direito educacional”, mantenha o reconhecimento da escola como uma instituição que intervém e defende uma cultura de direitos da cidadania, uma vez que é no ambiente pedagógico que pode ocorrer a desconstrução de preconceitos. Em suma, representa um espaço político e social para o desenvolvimento de oportunidades escolares iguais para meninos e meninas.

É importante destacar que os direitos da cidadania são constitucionais e possuem ordenamentos jurídicos que regulam a relação entre os cidadãos e o Estado. Desta forma é que os direitos humanos ganham a materialidade, porque se cria uma perspectiva mais ampla a partir dos direitos da cidadania, haja vista o horizonte político, ético e filosófico para compreensão e construção histórica sobre a dignidade humana, argumento bastante defendido por Paulo Freire.

CONCLUSÃO

Sendo assim, as resistências à educação domiciliar podem ser explicadas no longo e doloroso processo histórico, de acesso, da população brasileira, à educação pública e gratuita, assim como, das lutas pela melhoria da qualidade diante das desigualdades sociais. Isto representou anos de envolvimento e trabalho, dos profissionais da educação e de pesquisadores, com e sobre a discriminação contra pessoas com deficiência, em razão de cor/raça, gênero, orientação sexual, tipo de arranjo familiar e outras formas de preconceitos.

A aprovação de um Projeto de Lei relacionado à Educação Domiciliar possibilita que se criem “novas” formas de instaurar uma lógica do medo e da desconfiança na pessoa do professor, estabelecendo um contexto de vigilância constante e de denúncias, segregando os diferentes e, ainda, propondo a desresponsabilização do Estado para com a Educação, na forma “privatização familiar” do processo didático-pedagógico.

Assim, é urgente nos debruçarmos, cada vez mais, nas análises acerca das alterações das leis, em especial daquelas que primam pela garantia dos direitos dos estudantes brasileiros, como a destruição de toda a ideia de educação integral, consciente, problematizadora e inclusiva.

Reafirmamos, também, que o estudo objetivou analisar os motivos nos quais os pilares como a família, a liberdade de escolha, a moral, a qualidade do ensino, ganharam investimentos de defesa, ou seja, precisavam se apartar do pensamento crítico, reflexivo, multicultural e inclusivo. Com isso, acreditamos firmemente que domesticar a educação pode trazer, entre tantas repercussões sociais, a interpretação de que se está produzindo outra ideia de igualdade ou justiça social. Contudo, tal movimento centraliza a educação, o preparo para a vida, bem como o exercício da cidadania das crianças e adolescentes para seus pais, tutores ou preceptores, reafirmando uma onda polissêmica orientada para um projeto ideológico/religioso de educação.

Por tudo o que foi dito, argumentamos como essa Lei possibilitará que novas políticas sejam implementadas, comprometendo as conquistas alcançadas na direção de uma Educação mais crítica, reflexiva, inclusiva e democrática.

REFERÊNCIAS

Boulos, G. (2016). A onda conservadora. In F. Demier, & R. Hoeveler. A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Editora, Mauad.

Demier, F. (2016). O barulho dos inocentes: a revolta dos “Homens de bem”. A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Editora, Mauad.

Dubar, C. (2005). A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.

Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Giddens, A. (2001). A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record.

Goffman, E. (2007). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.

Lacerda, M. B. Neoconservadorismo de periferia: articulação familista, punitiva e neoliberal na Câmara dos Deputados (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Lançada Cartilha de Educação Domiciliar. (2021). O documento esclarece, aponta dados e explana sobre a regulamentação dessa modalidade de ensino. Brasília, DF: MEC. Recuperado de https://www.gov.br/pt-br/noticias/educacao-e-pesquisa/2021/05/lancada-cartilha-de-educacao-domiciliar

Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em Defesa do Investimento nas Escolas Públicas. (2022). Rio de Janeiro: Anped. Recuperado de https://www.anped.org.br/sites/default/files/images/manifesto_17mai22_1_.pdf

Moreira, A. M. F. (2022). Direito à Educação: fundamento e prática. Brasília, DF: Academia Monergismo.

Moreira, A., & Candau, V. (2007). Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica.

Paiva, V. (Org.). (1986). Perspectivas e dilemas da Educação Popular. Rio de Janeiro: Edições Graal.

Projeto de Lei n. 1338, de 2022. (2022). Altera as Leis nºs 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), e 8.069, de 13 de julho de 1990, (Estatuto da Criança e do Adolescente), para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica. Recuperado de https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/153194

Notas

1 O termo contracultura foi criado pela imprensa norte-americana dos anos 1960 para se referir às manifestações culturais marginais, contestadoras, que floresciam nos EUA e em outros países, especialmente na Europa, representando formas não tradicionais de oposição. Esse movimento era uma resposta à acelerada industrialização, crescimento econômico e racionalização científica no pós-guerra. Assim, houve importantes manifestações artísticas, como o rock, os movimentos hippie e punk e a internacionalização do movimento estudantil, culminando nas manifestações em diversos países em maio de 1968. Logo, o movimento contracultural representou uma revolução comportamental nas sociedades ocidentais.
2 Essa terminologia foi utilizada pioneiramente por Guilherme Boulos em um pequeno artigo publicado na Folha de São Paulo, em 2014, inaugurando debates em ambientes de esquerda.
3 Segundo a autora, esta luta já conta com 150 anos e ainda é presente nos países capitalistas avançados.
4 Recuperado de https://www.gov.br/mec/pt br/media/acesso_informacacao/pdf/CartilhaEducacaoDomiciliar_V1.pdf
5 Segundo o autor, a escola faz parte das instituições estabelecidas com a intenção de realizar, de modo próprio, algum tipo de tarefa de trabalho, e que se justificam pelos seus fundamentos instrumentais.
7 A cultura do cancelamento é um fenômeno moderno segundo o qual uma pessoa ou um grupo é expulso(a) de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis.
9 Conforme o INEP, “os PCNs foram elaborados para difundir os princípios da reforma curricular e orientar os professores na busca de novas abordagens e metodologias. Eles traçam um novo perfil para o currículo, apoiado em competências básicas para a inserção dos jovens na vida adulta; orientam os professores quanto ao significado do conhecimento escolar quando contextualizado e quanto à interdisciplinaridade, incentivando o raciocínio e a capacidade de aprender”. Recuperado de http://portal.inep.gov.br/web/saeb/parametros-curriculares-nacionais
10 Com base nessa ideia, os PCNs definiram alguns temas que abordavam valores referentes à cidadania: ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo e Pluralidade Cultural.

Notas de autor

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
2 Colégio Universitário Geraldo Reis, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

constant.ela@gmail.com

Información adicional

Como citar: Constant, E., Melo, S. C., Conceição, J. W. S. (2023). Educação domiciliar no brasil: Uma política pública na contramão do direito à educação democrática. Revista Tempos e Espaços em Educação, 16(35), e18815. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v16i35.18815

Contribuições dos Autores: Constant, E.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Melo, S. C.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Conceição, J. W. S.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.



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