Resumo: Em Portugal, como em muitos outros países, as crianças possuem visões estereotipadas dos cientistas e do trabalho que realizam. Este artigo descreve as visões que crianças do 3.º ano de escolaridade possuem sobre os cientistas e a atividade científica. Descreve também o efeito de uma intervenção pedagógica - a realização de entrevistas a cientista através de vídeo-chamada - nessas visões. Os dados foram recolhidos através do Draw a Scientist Test (DAST), de notas de campo e de um questionário final. Antes da intervenção, os alunos tinham muitos dos estereótipos comuns associados aos cientistas. Os resultados mostram que as visões dos alunos mudaram em virtude das entrevistas realizadas, tanto ao nível da aparência dos cientistas, como ao nível da localização e natureza das atividades científicas.
Palavras-chave: Draw a scientist test – DAST, Estereótipos, Imagem dos cientistas, 1º ciclo do ensino básico.
Abstract: In Portugal, like in other countries, children have stereotyped visions of scientists and of their work. This article describes the visions that 3rd-grade children have about scientists and scientific activity. It also describes the effect of a pedagogical intervention – the realization of interviews with scientists by video call – in these visions. The data was collected through the Draw a Scientist Test (DAST), field notes, and questionnaires. Before the intervention, the students had a lot of common stereotypes associated with scientists. The results show that the visions of the students changed in virtue of the interviews carried out, both in terms of the appearance of scientists and in terms of the location and nature of scientific activities.
Keywords: Draw a scientist test – DAST, Scientist image, Stereotypes, First cycle of basic education.
Resumen: En Portugal, como en muchos otros países, los niños tienen una visión estereotipada de los científicos y del trabajo que realizan. Este artículo describe las visiones que tienen los niños de 3° grado sobre los científicos y la actividad científica. También describe el efecto de una intervención pedagógica (realizar entrevistas con un científico a través de una videollamada) en estos puntos de vista. Los datos fueron recolectados a través de la prueba Draw a Scientist (DAST), notas de campo y un cuestionario final. Antes de la intervención, los estudiantes tenían muchos de los estereotipos comunes asociados con los científicos. Los resultados muestran que las opiniones de los estudiantes cambiaron a raíz de las entrevistas realizadas, tanto en cuanto a la apariencia de los científicos como en cuanto a la ubicación y naturaleza de las actividades científicas.
Palabras clave: Draw a scientist test – DAST, Estereótipos, Imagen de científicos, 1er ciclo de educación básica.
Artigos
Promovendo imagens mais realistas dos cientistas e da atividade científica: a entrevista como estratégia de ensino e aprendizagem
Promoting more realistic images of scientists and scientific activity: the interview as a teaching and learning strategy
Promover imágenes más realistas de los científicos y la actividad científica: la entrevista como estrategia de enseñanza y aprendizaje
Recepción: 27 Diciembre 2022
Aprobación: 10 Marzo 2023
Publicación: 08 Mayo 2023
Vários estudos empíricos revelam que os estudantes possuem visões pouco informadas e, habitualmente, estereotipadas sobre a ciência e os cientistas (e.g. Bozzato et al., 2021; Chambers, 1983; Emvalotis & Koutsianou, 2018; Miller et al., 2018) o que poderá ter implicações no interesse e participação dos alunos na ciência (Finson, 2002). Situação semelhante é descrita no contexto português (Martins et al., 2021; Reis et al., 2006; Reis & Galvão, 2004).
Desde cedo, as investigações têm procurado compreender quais as causas das visões estereotipadas dos cientistas e do trabalho que realizam. Já Mead e Métraux (1957) consideraram os meios de comunicação social como uma fonte importante para o aparecimento dessas imagens. Desde então, vários estudos internacionais têm demonstrado que as concepções dos estudantes são influenciadas por filmes, séries, livros e revistas onde os cientistas são representados por homens loucos, muito inteligentes e com pouca ou nenhuma interação social, assim como por imagens de algumas personalidades históricas (Mehmet Buldu, 2006; Steinke et al., 2007). Também Reis et al. (2006), na análise de histórias e de desenhos sobre o trabalho de cientistas, elaborados por um grupo de alunos portugueses do 2.º e do 4.º ano de escolaridade, constataram que "as ideias dos alunos sobre este tema resultam, fundamentalmente, da observação de desenhos animados, filmes, livros de banda desenhada e das notícias transmitidas pelo telejornal” (p. 67). Por isso mesmo, nas últimas décadas, em vários países, tem se procurado promover uma melhoria dos conteúdos mídia criados para crianças sobre as ciências, procurando apresentar factos e imagens reais, ao invés de imagens infantilizadas e estereotipadas sobre as ciências e os cientistas.
Alguns autores apontam, ainda, a escola e o trabalho (não) desenvolvido pelos professores como uma variável importante para explicar, por um lado, o aparecimento de alguns estereótipos e, por outro, a não clarificação de estereótipos criados a partir da comunicação social. Direta e/ou indiretamente, o professor desempenha um papel muito importante no desenvolvimento de visões mais realistas dos cientistas e da atividade científica (Finson, 2002). Por exemplo, o tipo de atividades desenvolvidas pelos professores, ao valorizarem a execução de receitas e atividades laboratoriais, em detrimento de saídas de campo e atividades investigativas abertas, pode promover, ou manter, uma visão estereotipada sobre a natureza e a localização das investigações científicas.
Estudos de natureza interventiva, que explorem o impacto de diferentes estratégias de ensino e aprendizagem na redução destes estereótipos e no desenvolvimento de ideias mais realistas e humanizadas da ciência têm sido desenvolvidas ao longo das últimas décadas. O contato, direto ou indireto, com os cientistas e o trabalho que realizam é uma das abordagens mais investigadas. O principal pressuposto destas iniciativas é de que o contato com os cientistas poderá ter impacto na visão dos alunos sobre os cientistas e sobre a atividade científica. Apesar da razoabilidade do pressuposto, as evidências empíricas nem sempre apontam nesse sentido. A natureza específica da intervenção parece ser um fator importante para determinar se e como as visões dos alunos podem ser influenciadas. Por outras palavras, a diversidade de estratégias, tempos e modos de operacionalização do contato com os cientistas poderá ser um elemento importante a ter em consideração. É, por isso, necessário descrever as especificidades e singularidades de cada intervenção, de forma a relacionar os efeitos com os processos vividos.
O contato indireto pressupõe que os estudantes são expostos à história de vida de alguns cientistas, recorrendo por exemplo, a livros, vídeos, mas sem interação direta com os mesmos. No estudo desenvolvido por Erten et al. (2013) foram observadas mudanças nas ideias dos alunos de 11-12 anos sobre a ciência e os cientistas após a utilização de histórias científicas como contexto para a aprendizagem. Após a intervenção, os desenhos passaram a incluir menos símbolos de investigação e de tecnologia e mais cientistas a estudarem seres vivos e a desenvolver a sua atividade ao ar livre. Observaram, ainda, mudanças na compreensão da natureza da ciência, nomeadamente o reconhecimento da utilização de vários métodos científicos, o facto de os cientistas usarem a imaginação e o objeto de estudo da ciência não se limitar a um campo do saber.
A utilização de histórias sobre cientistas contribuiu ainda para que os alunos do 1.º ano de escolaridade desenvolvessem uma visão mais informada sobre a natureza social do trabalho científico, nomeadamente, que os cientistas trabalham de forma colaborativa, que comunicam com o público e que utilizam recursos socialmente construídos (Sharkawy, 2009). Noutro estudo as histórias contribuíram para a enriquecer as visões dos alunos sobre os cientistas (passando a representar cientistas de origens socioculturais menos dominantes) e sobre o trabalho científico (passando a incluir dimensões cognitivas e afetivas positivas) (Sharkawy, 2012).
Mais recentemente, Shimwell et al. (2021) procuraram investigar um projeto em que, a cada semana, um cientista era apresentado a crianças entre os 5 e os 11 anos, recorrendo a diferentes recursos (powerpoint, folhetos e cartazes). Durante a semana, o trabalho e as discussões promovidas pelo professor passavam a ter como contexto o cientista, o seu trabalho e os atributos que selecionou para se apresentar. Portanto, a intervenção não envolveu alterações ao currículo, nem visitas de estudo ou visitas de cientistas à escola. Os resultados sugerem que a intervenção parece ter sido capaz de efetuar mudanças nas visões estereotipadas dos cientistas, tendo o efeito sido mais pronunciado entre os alunos do sexo masculino.
Para a promoção do contato direto com os cientistas, alguns programas promovem a visita dos cientistas à escola e/ou dos alunos às instituições científicas. O estudo realizado por Buck et al. (2002) avaliou o impacto de um projeto que levou cientistas do sexo feminino às salas de aulas para realizarem atividades de investigação sobre magnetismo e eletricidade e para conduzirem discussões sobre o seu trabalho. Os resultados sugerem que a intervenção não foi capaz de alterar as visões estereotipadas que os alunos, entre os 9 e os 11 anos, tinham sobre os cientistas. Ao invés de questionarem os seus próprios estereótipos, os alunos questionaram a identidade das visitantes, considerando serem professoras e não cientistas. Noutra investigação, Hillman et al. (2014) procuraram o efeito da presença de cientistas na sala de aula para apoiar o ensino das ciências, dez horas por semana. Os resultados sugerem que os “cientistas residentes” contribuíram para a diminuição dos estereótipos entre crianças mais velhas, mas não entre crianças nos primeiros anos de escolaridade.
Outras investigações, pelo contrário, sugerem ser possível provocar mudanças nas visões que os alunos possuem através do contacto direto com cientistas. Por exemplo, Scherz e Oren (2006) desenvolveram um projeto que procurava estabelecer ligações entre alunos de 13-14 anos e cientistas numa tentativa de melhorar a sua compreensão sobre quem são os cientistas e o que fazem. Os alunos, no papel de jornalistas, exploraram uma área científica de interesse e realizaram visitas a laboratórios para observarem e entrevistarem os cientistas. Posteriormente, os alunos relataram as descobertas aos colegas. O estudo indica que, em virtude destas experiências, os alunos alteraram as suas concepções, passando a ter uma imagem mais informada e positiva das ocupações científicas.
Num projeto dirigido para alunos entre os 12 e 13 anos, contemplando diferentes iniciativas, como os estudantes visitarem os cientistas, assim como os cientistas visitarem a escola, verificou-se que os alunos passaram a encarar os cientistas como 'pessoas comuns' com famílias e vidas sociais (Cakmakci et al., 2011). Efeito semelhante foi reportado noutro estudo em que alunos, entre os 13 e os 15 anos, participaram em duas sessões, com duração entre 10 a 20 minutos, onde tiveram a oportunidade de conversar com cientistas (Woods-Townsend et al., 2016).
Em síntese, embora alguns estudos indiquem que o contacto direto com cientistas contribui para ampliar ou mudar a imagem que os alunos têm dos cientistas, esta mudança parece ser mais desafiante entre alunos nos primeiros anos de escolaridade. Além disso, visitas de cientistas à escola ou de estudantes aos laboratórios, numa base regular, apresentam alguns constrangimentos relacionados com a distância, com os custos de deslocação e com a agenda dos cientistas. Importa, por isso, explorar novas estratégias que promovam interações entre os cientistas e os alunos através de novas tecnologias, como por exemplo a vídeo-chamada. O presente trabalho enquadra-se nesta linha, uma vez que visa avaliar o impacto de uma estratégia – a realização de entrevistas a cientista através de vídeo-chamada - na visão dos alunos do 3.º ano de escolaridade sobre a ciência e os cientistas.
A intervenção teve lugar numa turma de 3.º ano de escolaridade, de uma escola pública da região Metropolitana de Lisboa. Apesar de a turma ser constituída por 24 alunos, apenas 23 alunos, 10 rapazes e 13 raparigas, com idades compreendidas entre os 8 e os 11 anos, participaram neste estudo.
Os dados foram recolhidos antes, durante e após a realização das entrevistas a três cientistas. Antes das entrevistas, o principal instrumento de recolha de dados foi o mDAST (Farland-Smith, 2012), um teste baseado no Draw a Scientist Test (DAST) (Chambers, 1983), em que se pede aos alunos para desenharem o cientista ocupado a realizar o seu trabalho de cientista. Além disso, foram adicionadas três questões com o objetivo de obter mais informação sobre o cientista desenhado e, dessa forma, aumentar a validade das interpretações realizadas (o cientista que desenhaste é um homem ou uma mulher?; o cientista que desenhaste está no interior ou no exterior?; o que está o cientista a fazer no desenho?).
Durante a planificação do guião de entrevista, assim como da realização das entrevistas, a principal técnica de recolha de dados foi a observação participante.
Após as entrevistas, foi novamente aplicado o mDAST, assim como um breve questionário com as seguintes perguntas abertas: i) Após as entrevistas que realizaste, o que mudou nas tuas ideias sobre os cientistas e o seu trabalho?; ii) Fizeste alguma coisa diferente no teu desenho por causa das entrevistas?; e iii) O que aprendeste sobre os cientistas e sobre o seu trabalho que não sabias antes de realizares as entrevistas?. Desta forma, pretendia-se compreender se as alterações nos desenhos eram consequência das entrevistas e das interações que tiveram com as cientistas.
Os desenhos foram analisados em conjunto com as respostas escritas, permitindo assim uma análise mais consistente. A análise teve por base os 15 indicadores patentes na Draw a scientist checklist (DAST-C) (Finson et al., 1995). Além destes indicadores, foi ainda analisada a presença de cientistas com cabelos em pé. Cada desenho foi ainda codificado tendo por base o tipo de ação desenvolvida pelos cientistas. Em cada desenho, e para cada indicador, foi atribuída uma pontuação de 1 ou 0, consoante a identificação, ou não, do indicador estereotipado em análise. As duas autoras codificaram os desenhos de forma independente. Após discussão dos pontos ambíguos, atingiu-se um nível de concordância de 100%.
Posteriormente, foram criadas três novas variáveis: a variável “imagem estereotipada tradicional”, correspondendo ao somatório das pontuações atribuídas nos primeiros sete indicadores do DAST-C (bata de laboratório; óculos; pelos faciais; símbolos de pesquisa; símbolos de conhecimentos; símbolos de tecnologia; expressões simbólicas); a variável “imagem estereotipada alternativa”, correspondendo ao somatório dos restantes indicadores (homem; caucasiano; indicadores de perigo; presença de lâmpadas; estereótipos místicos; indicadores de secretismo; cientista no interior; cientista de meia idade ou velho); e, por fim, a variável “imagem estereotipada total” correspondendo ao somatório da pontuação atribuída nos 15 indicadores analisados. Pontuações mais altas indicam imagens altamente estereotipadas dos cientistas, enquanto pontuações mais baixas indicam representações menos estereotipadas.
As respostas ao questionário aplicado após a realização das entrevistas foram alvo de uma análise de conteúdo (Bardin, 2008).
Para comparar os dados antes e após as entrevistas, foi aplicado o teste McNemar para duas amostras emparelhadas para os dados nominais, e o teste Wilcoxon para os dados quantitativos. O valor de significância α=0,05 foi utilizado como referência para todos os testes de hipóteses realizados.
No desenho da intervenção foram contempladas quatro fases distintas, mas sequenciais: diagnóstico das concepções prévias dos alunos sobre os cientistas e a atividade científica; planeamento das entrevistas; realização das entrevistas; e avaliação das aprendizagens decorrentes das entrevistas realizadas.
Na primeira fase, foi aplicado o mDAST. Esta tarefa foi pensada com o objetivo de, por um lado, permitir diagnosticar as visões que a turma apresentava e, desta forma, contribuir para decisões mais informadas acerca dos cientistas a convidar e, por outro lado, para ajudar os alunos a consciencializarem-se acerca das suas visões e as visões da turma.
Na segunda fase, procedeu-se à apresentação da tarefa e à identificação das cientistas a entrevistar. Os alunos, inicialmente organizados em pequenos grupos, escreveram algumas dúvidas e curiosidades que gostariam de perguntar às cientistas e, de seguida, apresentaram o que tinham escrito à turma. Entre as várias questões formuladas, as mais frequentes foram: O trabalho é muito difícil?; Onde trabalhas?; O que estudaste?/Que curso tiraste?; Como trabalhas?; Que conselho nos podes dar?. Após a partilha, e respetiva seleção das questões mais frequentes, foi redigido o guião da entrevista, tendo sido estruturado em duas partes: a primeira com questões mais gerais, comuns a todas as cientistas e a segunda com questões específicas para cada uma das cientistas. Por fim, os alunos organizaram-se em grupos e distribuíram as perguntas a realizar por eles, de modo que todos pudessem participar.
A terceira fase foi dedicada à realização das entrevistas. Antes do início das mesmas, os alunos organizavam-se, retiravam o guião da entrevista, e iam buscar os seus cadernos para apontarem as respostas das cientistas. Durante as entrevistas, para além das questões inicialmente previstas no guião, foi ainda possível dar resposta a várias dúvidas e curiosidades que foram emergindo. Foram entrevistadas três cientistas da área da biologia. As entrevistas foram realizadas por videochamada, via Zoom, através de um computador, e a imagem foi projetada no quadro da sala para todos os alunos. Cada entrevista teve a duração média de 1 hora.
No início de cada sessão, as cientistas fizeram uma breve apresentação, referindo o seu nome, profissão, o seu trabalho atual, a sua formação académica e alguns trabalhos realizados durante a sua carreira. Após esta apresentação, um dos alunos, selecionado previamente, apresentou a turma e explicou o propósito daquele encontro virtual. Após este momento inicial, seguindo o guião elaborado, começaram a surgir as perguntas sobre o trabalho das cientistas. Através das respostas às questões, surgiram novas perguntas que, após todas as perguntas do guião terem sido respondidas, foram colocadas às entrevistadas. Estas questões centravam-se no trabalho das cientistas, no balanço entre a sua vida profissional e pessoal, no seu percurso académico e na razão pela escolha desta profissão. No final, houve ainda um período de conversa mais informal, tendo surgido dois convites das cientistas para os alunos as visitarem nos seus locais de trabalhos. No final, foram realizadas as devidas despedidas e desligadas as vídeo-chamadas.
Por fim, na quarta fase, foi novamente aplicado o DAST, assim como um questionário sobre a avaliação dos alunos relativamente ao seu envolvimento na realização de entrevistas a cientistas.
Na tabela 1 estão presentes as pontuações médias obtidas no DAST-C. Antes das entrevistas, a pontuação média total foi de 4,78 (DP=1,35), o que revela que cada desenho tinha, em média, quase cerca de cinco dos 15 indicadores analisados. A pontuação média para os 7 primeiros indicadores analisados, relativo à imagem estereotipada tradicional, foi de 2,26 (DP=0,92), enquanto para os restantes indicadores, foi de 2,52 (DP=1,04).
O teste Wilcoxon foi utilizado para examinar potenciais diferenças entre as pontuações médias obtidas no DAST-C antes e após as entrevistas. Como ilustrado na tabela 1, as distribuições da pontuação relativa à imagem tradicional (Z=-3,455; p<0,001), à imagem estereotipada alternativa (Z=-2,995; p=0,003) e à imagem estereotipada global (Z=-2,803; p=0,005) são diferentes antes e após as entrevistas, havendo maior probabilidade de os desenhos realizados antes apresentarem estes estereótipos.
A tabela 2 evidencia a frequência dos diferentes indicadores estereotipados analisados. Nos desenhos iniciais, os seis indicadores estereotipados mais frequentes foram: cientista caucasiano (100%), símbolos de investigação (91%), ambiente indoor (65%), bata (52%), cientista do sexo masculino (43%) e indicadores de perigo (43%). No pós-teste, detectou-se uma diminuição bastante acentuada nos seguintes itens: indicadores de perigo (de 43% para 0%), bata de laboratório (de 52% para 13%), ambiente indoor (de 65% para 43%) e cabelo em pé (de 35% para 17%). No entanto, apenas o decréscimo no indicador bata de laboratório (X2=4,267, p=0.035) e indicadores de perigo (X2 =8,100, p=0.002) foi estatisticamente significativo. Alguns exemplos dos desenhos encontram-se na figura 1.
Antes das entrevistas, os alunos apresentavam visões muito limitadas sobre as práticas científicas: 34,8% dos alunos indicou que o cientista estava a realizar uma experiência, sem qualquer informação adicional; 30,4% descreveu a atividade científica como algo perigoso, envolvendo explosões; 17,4% referiu que o cientista estava a descobrir algo, maioritariamente a cura para o COVID-19. Após as entrevistas, os alunos reportaram práticas mais realistas. Por exemplo, surge a categoria “recolher dados” (47,8%), com particular destaque para a observação ("O cientista que eu desenhei está a observar os peixes e a apanhar os peixes”). Para outros alunos, o cientista encontra-se a desenvolver atividades de natureza mais tecnicista, como tratar/cuidar (26,1%) ou a preparar materiais (13,0%) (Tabela 3).
Todos os alunos indicaram que, após as entrevistas, as suas ideias sobre os cientistas e a atividade científica mudaram, mas de formas diferentes. A mudança mais invocada, referida por 56,5% dos estudantes, relaciona-se com o local de trabalho do cientista, em grande medida porque não tinham percepção de que os cientistas podiam desenvolver a sua atividade no exterior. É de salientar que, antes das entrevistas, o termo escritório surge mais frequentemente associado ao local de trabalho do cientista, do que o termo laboratório. Os seguintes excertos ilustram esta aprendizagem: "Eu pensava que os cientistas estavam sempre no laboratório, mas afinal não"; "As minhas ideias mudaram por exemplo neste desenho eu estou a fazer a praia antes fazia dentro de escritório"; "Eu pensava que os cientistas trabalhavam sempre num escritório, mas afinal não"; “Que há sítios como a praia onde podem trabalhar”.
O confronto entre as ideias estereotipadas que os alunos tinham sobre o local de trabalho e o conteúdo das entrevistas parece ter sido significativo. Foi principalmente durante a segunda entrevista, que os alunos manifestaram muita curiosidade sobre o local de trabalho da cientista. Como os alunos tinham a ideia estereotipada de que os cientistas apenas trabalhavam em espaços indoor, ao serem confrontados com imagens e relatos de experiências de trabalho de campo da cientista, ficaram muito intrigados, querendo até descobrir mais sobre como o trabalho de campo se processava:
Cientista: Eu às vezes tenho que ir numa expedição de campo para recolher as amostras. Que por acaso vou amanhã para uma, por isso é que tivemos que nos encontrar hoje.
Aluna: O que é isso?
Cientista: É quando eu vou a um local procurar coisas novas.
Aluna: Então tu não estas sempre no teu trabalho.
Cientista: Estes sítios também fazem parte dos locais do meu trabalho, não estou sempre na Universidade. (Notas de Campo)
Para 34,8% dos estudantes, as entrevistas foram particularmente úteis, dado terem contribuído para aumentar conhecimentos científicos, assim como alterarem as suas atitudes relativamente aos animais. Além disso, 21,7% dos estudantes referiu explicitamente que, após as entrevistas, desenvolveu uma visão mais plural do objeto de estudo da ciência: “não sabia que os cientistas trabalhavam com plantas”; “eu não sabia que os cientistas estudavam os peixes, pensava que era apenas o vírus”; “eu aprendi que há muitos tipos de cientistas”.
Já 26,1% dos estudantes mencionou aprendizagens relacionadas com a atividade científica, tal como é evidente nos seguintes excertos: “Eu pensava que os cientistas só faziam experiências, mas não fazem”; “eu pensava que os cientistas faziam só explosões” “e também não arranjam só curas”. Importa ainda referir que um aluno indica mudanças relativamente à natureza da atividade científica, pois “pensava que era muito, muito, muito fácil, mas agora sei que não é”.
Por fim, 8,7% dos alunos reportou aprendizagens relacionadas com as caraterísticas dos cientistas, como o facto de serem inteligentes, trabalharem muito e de gostarem/estarem motivados para o estudo das plantas/animais (Tabela 4).
Os resultados evidenciam que antes das entrevistas os desenhos dos alunos incluíam, em média, aproximadamente o mesmo número de indicadores do DAST-C reportado noutras investigações (Chambers, 1983; Emvalotis & Koutsianou, 2018). Os alunos retratavam o cientista como um indivíduo caucasiano, que veste bata, que trabalha em ambientes fechados, rodeados de símbolos de investigação, e de indicadores de perigo. Já outros estereótipos, como indicadores místicos, indicadores de secretismo, presença de lâmpadas, cientistas velhos e com pelos faciais não foram identificados. Esta imagem está, globalmente, em consonância com a imagem descrita na literatura e em estudos conduzidos em Portugal (Emvalotis & Koutsianou, 2018; Martins et al., 2021). Há apenas duas diferenças que importa realçar. Por um lado, a frequência de indicadores de perigo nos desenhos da turma é superior à reportada noutros estudos e, por outro lado, a frequência de cientistas do sexo masculino é menor. A primeira diferença, resulta, em grande parte de uma associação entre a atividade científica e o perigo de explosões. Já a segunda diferença denota que a tendência de esbatimento do estereótipo do cientista do sexo masculino, já registada em alguns estudos, se continua a acentuar, como reflexo de uma maior representatividade das mulheres na ciência e no contato com o público (Miller et al., 2018).
O presente estudo sugere que a interação entre alunos do 3.º ano de escolaridade, num contexto virtual, amigável e informal, contribuiu para alterar as ideias estereotipadas que tinham, contribuindo para o desenvolvimento de uma visão mais real e humanizada da ciência. A opção pelo formato de entrevista permitiu o envolvimento dos alunos na própria seleção dos conteúdos a abordar na entrevista, assim como uma participação ativa dos alunos durante a sessão. Para além das questões previamente formuladas, outras emergiram ao longo da própria entrevista, conferindo flexibilidade e interatividade à sessão com a cientista.
Após as entrevistas verificou-se uma diminuição do número de estereótipos associados aos cientistas. Uma análise mais fina, evidenciou um decréscimo em vários indicadores estereotipados, mas apenas estatisticamente significativo no que concerne à bata de laboratório e à presença de indicadores de perigo. No entanto, outras evidências sugerem um impacto positivo das entrevistas na perspectiva que os alunos têm acerca do local onde os cientistas trabalham. Mesmo alunos que optaram por representar o cientista num ambiente indoor indicaram, como consequência das entrevistas, terem aprendido que o laboratório/escritório não constitui o único local onde os cientistas trabalham. As entrevistas também parecem ter contribuído para a melhoria do conhecimento dos alunos sobre o tipo e natureza do trabalho desenvolvido pelos cientistas.
Por fim, importa mencionar que o estudo apresenta limitações. Em primeiro lugar, não foi possível, tal como se desejava, entrevistar cientistas que refletissem um elevado espectro de caraterísticas. O facto de as entrevistas se terem iniciado no final do 3.º período, associado a algumas dificuldades na resposta e agendamento com os cientistas, impossibilitou a realização de mais entrevistas e a diversificação das caraterísticas dos/as cientistas convidados. Por exemplo, não se incluiu nenhum/a cientista não caucasiano/a, um aspeto relevante, tendo em conta a pouca representatividade de minorias nas disciplinas STEM. Em segundo lugar, é de realçar que a avaliação do impacto da estratégia foi realizada logo após as entrevistas, ou seja, foca-se apenas nos efeitos a curto prazo.
Mas, apesar das limitações, o estudo reforça que a realização de entrevistas a cientistas, mesmo via on-line, produz impactos significativos na percepção de alunos dos primeiros anos de escolaridade sobre os cientistas e a atividade científica. Dado que muitos professores dos primeiros anos de escolaridade compartilham os mesmos estereótipos que as crianças (Milford & Tippett, 2013; Moseley et al., 2003; Valente et al., 2018) é fundamental, ao longo da formação inicial e contínua dos professores, sensibilizá-los para a importância de explorarem a natureza da ciência e de promoverem visões mais informadas do empreendimento científico.
Como citar: Ferreira, C., & Valente, B. (2023). Promovendo imagens mais realistas dos cientistas e da atividade científica: a entrevista como estratégia de ensino e aprendizagem. Revista Tempos e Espaços em Educação, 16(35), e18533 http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v16i35.18533
Contribuições dos Autores: Ferreira, C.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Valente, B.: concepção e desenho, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
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