Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
O professor de educação física com deficiência física e sua atuação profissional: um estudo de caso entrelançando preconceitos e estereótipos
Fabrício de Paula Santos; Marco Antônio Melo Franco
Fabrício de Paula Santos; Marco Antônio Melo Franco
O professor de educação física com deficiência física e sua atuação profissional: um estudo de caso entrelançando preconceitos e estereótipos
The physical education teacher with physical disabilities and his professional performance: a case study interlawing prejudices and stereotypes
El profesor de educación física con discapacidad física y su desempeño profesional: un estudio de caso entrejurando prejuicios y estereotipos
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 16, núm. 35, e18568, 2023
Universidade Federal de Sergipe
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Na última década temos visto um aumento da literatura, no campo da Educação Física, abordando casos de pessoas com deficiência, particularmente, casos de alunos. O estudo aqui proposto direciona o foco para o professor de Educação Física objetivando investigar a atuação de uma professora com deficiência física, que atua como personal training em uma academia de ginástica. A partir de uma abordagem qualitativa de investigação, optou-se por desenvolver um Estudo de Caso. Como resultados foi possível identificar uma profissão e um ambiente de trabalho atravessado pelo preconceito e pelo estereótipo, principalmente, no que diz respeito à estética do corpo. Por outro lado, os resultados também evidenciam a negação, por parte da personal training, sobre esses mesmos aspectos. O estudo considera que há uma tensão entre o preconceito velado e a posição de negação, desse preconceito, pela profissional.

Palavras-chave: Deficiência, Educação Física, Personal Training.

Abstract: In the last decade we have seen an increase in literature in the field of Physical Education, addressing cases of people with disabilities, particularly cases of students. The study proposed here directs the focus to the Physical Education teacher aiming to investigate the performance of a teacher, with physical disability, who works as personal training in a gym. From a qualitative research approach, it was decided to develop a Case Study. As a result, it was possible to identify a profession and a work environment crossed by prejudice and stereotype, especially with regard to the aesthetics of the body. On the other hand, the results also show the denial, on the part of personal training, about these same aspects. The study considers that there is a tension between the veiled prejudice and the position of denial, of this prejudice, by the professional.

Keywords: Disability, Physical Education, Personal training.

Resumen: En la última década hemos visto un incremento en la literatura, en el campo de la Educación Física, abordando casos de personas con discapacidad, particularmente, casos de estudiantes. El estudio propuesto aquí dirige el foco al profesor de Educación Física, con el objetivo de investigar el desempeño de un profesor con discapacidad física, que actúa como entrenador personal en un gimnasio. Desde un enfoque de investigación cualitativa, se decidió desarrollar un Estudio de Caso. Como resultado, fue posible identificar una profesión y un ambiente de trabajo atravesado por prejuicios y estereotipos, principalmente en lo que se refiere a la estética corporal. Por otro lado, los resultados también muestran negación, por parte de la formación personal, sobre estos mismos aspectos. El estudio considera que existe una tensión entre el prejuicio velado y la posición de negación de ese prejuicio por parte del profesional.

Palabras clave: Deficiencia, Educación Física, Entrenamiento personal.

Carátula del artículo

Artigos

O professor de educação física com deficiência física e sua atuação profissional: um estudo de caso entrelançando preconceitos e estereótipos

The physical education teacher with physical disabilities and his professional performance: a case study interlawing prejudices and stereotypes

El profesor de educación física con discapacidad física y su desempeño profesional: un estudio de caso entrejurando prejuicios y estereotipos

Fabrício de Paula Santos1
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
Marco Antônio Melo Franco1
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 16, núm. 35, e18568, 2023
Universidade Federal de Sergipe

Recepción: 07 Enero 2023

Aprobación: 12 Abril 2023

Publicación: 16 Mayo 2023

INTRODUÇÃO

Na última década temos visto a literatura, no campo da Educação Física, abordar casos de pessoas com deficiência (Andrade, 2018). O foco tem sido, na maioria das vezes, o aluno com deficiência e a sua inserção nas aulas de Educação Física. Alguns estudos costumam abordar a prática pedagógica do professor para a inclusão destes alunos em suas aulas (Gregorutti et al., 2017).

Em contrapartida, poucos estudos estão focados no professor com deficiência no ambiente profissional. Destaca-se o estudo de Thomaz (2016), que teve como objetivo conhecer os desafios encontrados por professores com deficiência em seus trabalhos como docentes, graduados em cursos de licenciaturas. O estudo desse autor analisou os desafios da formação inicial e o processo de inserção profissional de cinco professores, por meio de entrevista e análise de conteúdo, constatando o quanto a presença desses professores ressignificou o conceito social atribuído à pessoa com deficiência nos locais de trabalho, contribuindo assim para um novo olhar sobre a deficiência.

Outra perspectiva de estudo acerca das pessoas com deficiência costuma abordar o ingresso das mesmas em universidades. De acordo com Cruz (2013), as pessoas com deficiência enfrentam dificuldades para ingressarem na universidade e diversos obstáculos quando estão nesses espaços, devido à falta de acessibilidade nos prédios, falta de capacitação docente e outros recursos necessários para um efetivo processo inclusivo, que leve em conta não apenas o seu ingresso, mas a sua permanência, a qualificação da sua formação e sua diplomação. Independente dessa realidade, ainda permeada por dificuldade, tem-se uma evolução no quadro de matrículas desses alunos em cursos de graduação presencial e a distância (Martins et al., 2015). A presença de estudantes com deficiência no ensino superior reforça os direitos desses indivíduos que foram conquistados ao longo dos anos, bem como os avanços travados pelas lutas sociais. Porém, desvela os conflitos Institucionais que são exclusivamente classificatórios e seletivos (Lustosa & Ribeiro, 2020). Apesar disso, as pessoas com deficiência representam uma camada mínima de apenas 0,56% do total de estudantes matriculados no ensino superior, como aponta o Censo do Ensino Superior de 2019- INEP (2019). Para Magalhães (2006), a educação superior ainda é elitista e voltada para poucos. As minorias ou grupos não hegemônicos têm acesso restrito e falta de condições adequadas para a permanência.

Quando tratamos de pessoas com deficiência física, foco deste estudo, existem evidências de que tendem a ter estilos de vida menos ativos em relação às pessoas sem deficiência (Rimer, 2004). Comparados aos demais, aqueles com deficiência demonstram, com maior frequência, comportamentos sedentários, prevalência de sobrepeso/obesidade e níveis mais precários de aptidão física (Cervantes & Porreta, 2010). Nesta direção, muitos são os fatores que dificultam a esse indivíduo a se graduar em Educação Física e, menos ainda, a se tornar um personal training, uma vez que estão mais propensos ao sedentarismo, à falta de acessibilidade e à baixa demanda no ingresso ao ensino superior, além de todo o estigma e preconceito que carregam e enfrentam.

Na contemporaneidade, percebe-se que o corpo, no sentido estético, se configura como um fator importante para os professores atuantes como personal training. O corpo, neste sentido, passa a ser critério valioso na avaliação do aluno quando vai contratar um professor. De acordo com Dantas (2011), o corpo torna-se facilmente lugar de concretização do bem-estar através da forma e da manutenção da juventude. Numa sociedade em que a felicidade, muitas vezes, está vinculada à aparência, ao status e ao sentir bem o tempo todo, o corpo torna-se objeto de constante investimento e preocupação. Este ponto foi um dos motivos que deu origem a esta pesquisa, que investigou a atuação de uma professora de Educação Física com deficiência física, considerando a ideia contra hegemônica, na perspectiva da formação profissional e atuação como personal training.

Trata-se de um estudo de caso de uma profissional de Educação Física com deficiência física adquirida, lesão medular, em decorrência de um acidente automobilístico, ocorrido antes do seu início na graduação. Tem por objetivo investigar a atuação de uma professora de Educação Física, com deficiência física, que atua como personal training em uma academia de ginástica. Busca-se também identificar, a partir de sua percepção, como aspectos relacionados ao estigma, estereótipo e preconceito se manifestam em sua atuação.

ENTRELAÇANDO CONCEITOS: ALGUMAS REFLEXÕES

As pessoas com deficiência, ao longo da sua existência, vivenciam cotidianamente processos de exclusão nos diferentes contextos sociais. Isso pode ser atribuído ao fato de a sociedade estabelecer meios de categorização e padronização das pessoas, de acordo com seus atributos e normas de referências/valores, em detrimento de um determinado padrão de normalidade. Goffman (1998) ao cunhar o conceito de estigma, o caracteriza como um atributo que está desacreditado profundamente e o distingue em três diferentes tipos. O primeiro é descrito como abominações do corpo, e neste se encaixa a categoria das deficiências físicas ou desfigurações. O segundo seriam as manchas de caráter individual, como o transtorno mental, homossexualidade, alcoolismo. Classificou, em uma categoria final, o estigma tribal incluindo raça, cultura e minorias religiosas, aspectos esses que podem ser transmitidos através da linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família. Logo, o estigma refere-se a uma forma pejorativa, depreciável do ser humano, por meio de suas características ou comportamentos fora das regras ou normas sociais. Para Souza e Barros (2012, p.208), “O estereótipo é definido enquanto um produto social fruto das relações sociais estabelecidas entre os indivíduos, determinados sociologicamente”.

Ainda, segundo Hall (2016), o estereótipo reduz, naturaliza e fixa a diferença. Para o autor, o estereótipo está fortemente relacionado ao preconceito que acaba por refletir julgamentos sociais, geralmente de cunho negativo e pejorativo, baseados em falsas crenças ou não verdades construídas a partir de padrões normativos. Considera-se que as caracterizações que ajudam a compor um estereótipo estão relacionadas a um grupo ou a grupos sociais sendo que parte do que está sendo representado pode refletir, em certa medida, uma “verdade” parcial, (Pessoa, 2018).

Discutir e refletir sobre o preconceito, principalmente quando este é direcionado às minorias sociais, é fundamental para que a sociedade possa se desprender das amarras culturais que normalizam e padronizam os indivíduos. Para tanto, McLaren, descreve que o preconceito é

o prejulgamento negativo de indivíduos e grupos com base em evidências não reconhecidas, não pesquisadas e inadequadas. Como essas atitudes negativas ocorrem com muita frequência, elas assumem um caráter de consenso ou cunho ideológico que é, muitas vezes, usado para justificar atos de discriminação (McLaren, 1997, p. 212).

No entendimento de Silva (2006), o preconceito incorpora fenômenos contemporâneos, resultantes das relações sociais cada vez mais impeditivas para a reflexão sobre a própria impotência diante de uma ordem social que diferencia pela estigmatização. Ainda, segundo a autora, as atitudes de preconceito desenvolvem-se no processo de socialização que é fruto da cultura e da sua história. Para Crochík (1996), as relações pessoais dos preconceituosos se dão através de categorias que permitem classificar os indivíduos, o que impede que a experiência individual possa se contrapor ao estereótipo. O indivíduo preconceituoso fecha-se dogmaticamente em determinadas opiniões, sendo assim impedido de ter algum conhecimento sobre o objeto que o faria rever suas posições e, dessa maneira, ultrapassar o juízo provisório (Silva, 2006).

De acordo com Buscaglia (1997, p. 80), “o preconceito pode ser dirigido à raça, cor, religião, condição, ao status social e até mesmo a diferenças físicas e mentais e se constituirá em uma força potente e influente no comportamento da família”. No caso das pessoas com deficiência, um dos termos que ajuda a compreender e explicar o processo de preconceito e exclusão é o capacitismo. Para Mello (2016) o capacitismo é um “tipo de discriminação que se materializa na forma de mecanismos de interdição e de controle biopolítico de corpos com base na premissa da (in)capacidade, ou seja, no que as pessoas com deficiência podem ou são capazes de ser e fazer”. Ainda, na perspectiva da autora, o conceito de capacitismo alude a uma postura preconceituosa que hierarquiza determinados corpos, considerados como inferiores, incompletos ou passíveis de reparação/reabilitação em função da corponormatividade.

O conceito de atitude é fundamental para compreensão dos problemas atuais, como a exclusão provocada pelo preconceito. Para Cardoso (1992), a atitude pode ser encarada como uma disposição a reagir de maneira favorável ou desfavorável a um determinado referente. Nesta perspectiva, o preconceito tem haver com a atitude, que seria um comportamento diante de um objeto e/ou indivíduo. A autora propõe três componentes para o entendimento das atitudes, sendo elas: a cognitiva, que seria a apreensão ou representação cognitiva do objeto; a afetiva, que seria no campo do sentimento e emoções e a comportamental, tendência ou intenção de agir. Isso nos ajuda a pensar e a refletir sobre a questão do preconceito e do estigma para melhor compreendê-los.

METODOLOGIA

A pesquisa caracteriza-se como estudo de caso e utiliza-se de análise qualitativa, descritiva e exploratória. Segundo Minayo (1999), existem múltiplas possibilidades de abordagens metodológicas na pesquisa qualitativa. Desse modo, a metodologia inclui um conjunto de técnicas que possibilitam a apreensão da realidade, concepções teóricas de abordagens diversas, como também a capacidade criativa do pesquisador. Como destacam Passos e Barbosa (1999), o estudo de caso permite uma investigação aprofundada do campo de análise, possibilitando a construção de problematizações sobre a realidade abordada em diferentes níveis (Passos & Barbosa, 1999). Ludke & André (1986), definem o estudo de caso como uma estratégia de pesquisa indo da simplicidade à complexidade do fenômeno, tendo um interesse próprio, único e particular.

O estudo de caso aqui proposto tem como foco a percepção de uma profissional de Educação Física, com deficiência física adquirida, sobre a sua atuação como personal training em academias de ginástica. De acordo com Matos & Jardilino (2016), a percepção pode ser entendida como um fator importante para interpretação de uma realidade. Isso significa que não percebemos o mundo diretamente porque a nossa percepção é sempre uma interpretação desse mundo. Para realizar a coleta de dados, o instrumento utilizado foi a entrevista semi-estruturada. De acordo com Minayo (1999), a entrevista semi-estruturada permite identificar as hipóteses ou pressupostos do investigador, contemplados numa espécie de conversa com finalidade.

A seleção da participante da pesquisa se orientou pelos seguintes critérios: I - ser professor (a) de Educação Física em academias de ginástica; II - ser pessoa com deficiência física que utiliza cadeira de rodas para locomover-se; III - atuar como personal training.

Considerando tais critérios, a participante da pesquisa é uma personal training, com deficiência física adquirida aos 20 anos de idade, em decorrência de um acidente automobilístico. Ressaltamos que a graduação em Educação Física foi realizada após o acidente. A profissional atua em uma academia de grande porte, situada na região Sudeste do Brasil.

Para tratamento dos dados, foi utilizado análise de conteúdo. A análise de conteúdo foi construída a partir da leitura sistemática da entrevista, possibilitando a formulação de hipóteses iniciais a respeito dos temas centrais presentes nos diálogos. Para Minayo (1999), o analista de conteúdo exercita com maior profundidade esse esforço de interpretação e o faz não só sobre os conteúdos manifestos, mas também sobre os latentes. Neste sentido, foram construídas as categorias de análise, sendo elas: Preconceito, estigma e estereótipo, identidade social e autopercepção profissional.

PRECONCEITO, ESTIGMA E ESTEREÓTIPO: SUAS RELAÇÕES COM A DEFICIÊNCIA

A forma como nos referirmos às pessoas com deficiência pode evidenciar um processo de segregação e preconceito em vários segmentos sociais nos quais ela transita, ainda que seja velado. Esse processo foi discutido, sob a visão da professora entrevistada, demonstrando como o preconceito, o estigma e o estereótipo fizeram ou fazem parte da sua trajetória profissional. Ao entrevistá-la a primeira pergunta feita foi: “você já percebeu algum preconceito no ambiente profissional?”

“Nunca, pra mim, nunca. Porque eu tento, através das minhas atitudes, desconstruir qualquer pré-julgamento. Tanto que, os meus alunos que iam pra competição de ginástica, por exemplo, eles iam cumprindo com todos os regulamentos, pra fazer, por exemplo, um duplo mortal. E aí, como é que a Maria1 ensina um duplo mortal, sem ir lá na frente e fazer? Então, minhas portas estão sempre abertas das aulas, abertas, e as pessoas podem ver como é que tudo acontece. Nesse momento, é desfeito, é desconstruído qualquer pré-julgamento. As pessoas vêem que tudo acontece naturalmente, normalmente, de formas diferentes, porque a gente é muito robotizado e não imagina que as coisas podem acontecer de formas diferentes. Então, não tenho nenhum tipo de preconceito, não tive, não permito isso com as minhas atitudes. Acredito muito nisso, assim. Ninguém, agora, o preconceito velado, também ele pode ocorrer, mas eu também consigo captar bastante, assim... E eu já fico de olho quando isso acontece. Vou lá e cerco esse indivíduo até ele expor e a gente conversar. Mas assim, é muito raro, eu nunca passei por nenhuma situação de preconceito escancarado assim não. Porque as pessoas só julgam aquilo que não conhece”.

Quanto ao preconceito no campo profissional, segundo a professora, ela não passou por nenhuma situação que julgasse ter sofrido discriminação por ser uma pessoa com deficiência. Este fato pode ser considerado positivo quando se concebe uma sociedade contemporânea que valoriza o corpo, a estética e a eficiência, principalmente nos profissionais de Educação Física. Porém, admite que exista o preconceito velado, quando afirma que, ao perceber olhares preconceituosos, aborda a pessoa para uma conversa.

Chama-nos a atenção a sua fala que por um lado afirma não ter sofrido preconceito e por outro alega que percebe, em alguns momentos, olhares de julgamento. Ao identificar tais olhares ela utiliza como estratégia a antecipação. Aborda as pessoas e procura dialogar sobre a sua condição com o intuito de diminuir o preconceito. Isso pode evidenciar que a professora embora diga que não sofre preconceitos, se antecipa a eles como possível estratégia de defesa. Além disso, diz manter as portas abertas em suas aulas para que as pessoas vejam e desconstruam seus preconceitos. Podemos, de alguma maneira identificar, que a professora utiliza estratégias para manter o seu bem-estar emocional e lidar com a situação do preconceito. Por outro é preciso questionar o motivo de tal antecipação. Será uma dificuldade da própria professora em lidar com a sua condição de deficiência física e, dessa forma, necessita antecipar ações de esclarecimento para evitar a concretização dos julgamentos? Porque ela precisa antecipar e não esperar que a situação se concretize para então lidar com ela? Estaria, neste sentido, evitando o julgamento e isso lhe deixaria em uma situação mais confortável? Esses são alguns possíveis questionamentos que levantamos e que nos remetem à ideia de como os padrões hegemônicos de normalidade podem subjetivar os sujeitos e, de alguma maneira, encobrir os preconceitos que criamos diante das nossas próprias condições. Aqui ressaltamos a perversidade da padronização de um modelo de sociedade que responsabiliza o sujeito pelo corpo que possui (Pereira, 2008). De acordo com Silva (2006), o corpo com deficiência nunca passa desapercebido aos olhares da sociedade que exige desse corpo um enquadramento de modelo estético e hegemônico.

Também foi possível observar a temática em torno do preconceito através da resposta da professora frente a seguinte pergunta: “Para você, quais são os motivos que levam seus alunos a te contratarem?”

“Nenhum, porque eu que escolhi os meus alunos... [risos]... Na verdade, eu que escolho os alunos, porque não sou uma personal comercial, de ter vários alunos, passei um pouco dessa fase. Então, mas respondendo a sua pergunta, eu imagino que, aqueles alunos que me contratam, eles têm uma pegada especial também. Eles têm um olhar além do estético. Eles têm um olhar um pouco mais ampliado, não é qualquer pessoa, já é uma pessoa com um grau a mais de evolução aqui. Então, esses são os alunos que me contratam”.

Em um primeiro momento de sua fala, tem-se a sensação de que ela é disputada por alunos e se dá o direito da escolha. Novamente nos chama a atenção a possível estratégia da autodefesa. Por outro lado, ao longo de sua resposta, ela modifica o discurso dizendo que os alunos que a procuram têm também algo especial. Aqui fica um questionamento do que seria esse especial. Seria, aquilo que foge ao padrão? No caso, a professora diz que o interesse dos alunos não está muito centrado no aspecto estético. O olhar para além do estético pode ser um olhar voltado para questões de saúde, bem-estar emocional, qualidade de vida, entre outros, se configurando assim no que os diferencia de outros alunos.

Além disso, destacam-se duas situações de preconceito observadas na fala. A primeira, quando relata que seus alunos têm um grau a mais de “evolução”, ou seja, seriam eles pessoas que não possuem preconceitos? Isso é algo questionável, uma vez que as pessoas não estão isentas do preconceito e nem de senti-lo. Por outro lado, podemos pensar que lidam de uma forma menos preconceituosa com a situação e que a contratam pela sua capacidade profissional. Outra possibilidade é pensar que o preconceito acontece também por parte dela ao dizer que os alunos que não a contratam não são “evoluídos”. Esta fala, de alguma forma, corrobora com a afirmação de Silva (2006) sobre a estratégia defensiva. Uma outra possibilidade se dá quando ela confirma que nem todo aluno compreende a capacidade dela de ser uma boa profissional, e que por isso não a contratam. Aqui reforça a transferência do conceito de preconceito para o de capacidade. Na percepção da professora a questão está na não percepção das pessoas sobre sua capacidade profissional. Será que a isso não poderíamos chamar de preconceito? Para Tomas (2016), as pessoas com deficiência precisam provar que, para além das suas limitações, há um indivíduo com capacidades e potencialidades para aprender e fazer na sociedade contemporânea.

Entendendo que o olhar preconceituoso e estereotipado para a pessoa com deficiência reforça o estigma social, questionamos a personal se ela percebia o estigma e o estereótipo da pessoa com deficiência na sociedade contemporânea.

“Bastante. O movimento das pessoas com deficiência ele é um movimento recente, ele não é tão antigo. Então, ele tem aproximadamente 50 anos que a gente, né? Tá tentando, que a gente tenta mostrar pra sociedade que existe um cidadão pleno de direitos ali. Então, as conquistas, as legislações, elas estão aí, mas é um movimento recente. Então, em função desse movimento não ser tão antigo, por ser ainda recente, carregamos esse estigma da exclusão. Ainda, até hoje, você pode ver exemplo que as pessoas param nas vagas das pessoas com deficiência, de estacionamento, justamente porque entendem que a pessoa com deficiência, ou um cadeirante nunca vai dirigir, que aquela vaga está ali só pra enfeitar. Então eu paro porque ele nunca vai vir aqui, ele não anda de carro, nem se quer dirige. Então eu paro na vaga. Esses estigmas ainda existem. É claro que a falta de civilidade é maior, mas esses estigmas ainda prevalecem”.

Ela explica que o estigma social que gera exclusão se faz presente na sociedade. Este fato, mesmo depois das conquistas dos direitos das pessoas com deficiência, está presente nas relações cotidianas, quando uma pessoa não respeita uma vaga exclusiva para cadeirantes, por exemplo. Segundo a professora, as pessoas não respeitam essas vagas de estacionamento por acreditarem que os cadeirantes não dirigem, não circulam. Aqui é preciso ir além de uma visão romântica sobre a deficiência e ter claro a invisibilidade das pessoas com deficiência na sociedade e a presença forte de um padrão cultural de normalidade que desconsidera o outro corpo diferente desse padrão.Ainda sobre estigma e preconceito, a professora também relatou:

“A falta de um professor que entenda libras. Na academia, onde eu atendia, fui professora de sala durante mais de 3 anos, quando chegava um surdo eu que atendia, não tinha ninguém que pudesse conversar com ele em libras, e o pouco que eu sei foram os próprios amigos surdos que me ensinaram e a gente conseguia então se comunicar”.

Temos presente nas duas falas acima não somente a questão do preconceito e estigma, como também da acessibilidade. Em relação ao preconceito e estigma ficam presentes as marcas que os sujeitos com deficiência possuem aos olhos da sociedade. Seja cadeirante ou surdo, como o exemplificado acima, já é o suficiente para definir quem são esses sujeitos. Para Siqueira e Cardoso (2011, p. 94),

o processo de estigmatização não ocorre devido à existência do atributo em si, mas, pela relação incongruente entre os atributos e os estereótipos. Os normais criam estereótipos distintos dos atributos de um determinado indivíduo, caracterizando, portanto, o processo de estigmatização.

Segundo Goffman (1988) os "normais" de forma geral, não sabem lidar com o estigmatizado, pois a diferença fica evidente na relação entre estigmatizado (neste estudo, a pessoa com deficiência) e não estigmatizado. Para o autor esse processo das relações sociais entre pessoas estigmatizadas e pessoas não estigmatizadas, em geral, seguem o fluxo das pessoas não estigmatizadas. Isto se dá devido ao modo de percepções desses indivíduos, os quais não as permitem pensar uma pessoa estigmatizada em uma categoria equiparada com a sua.

Em relação à acessibilidade, se, em um momento anterior, a professora ressalta a ausência de intérpretes nas academias para a pessoa surda, a fala a seguir reforça a exclusão daqueles que necessitam utilizar a cadeira de rodas.

“O outro ponto é a acessibilidade física mesmo, arquitetônica das academias, que muitas ainda não tem esse acesso. Então a disposição dos aparelhos pra circulação, pense o seguinte: onde você circula bem, aliás, é o contrário, onde eu circulo bem, você vai circular muito melhor, porque acessibilidade é muito importante pra todos nós. Enquanto tivermos pensando na acessilibilidade só para a pessoa com deficiência ou cadeirante, ainda vai ser uma visão muito reducionista e a gente não vai conseguir incorporar essa questão, esse conceito da acessibilidade na sociedade. Então a acessibilidade tem que ser vista como boa para todos. Enquanto tiver vista só para a Maria, para outros cadeirantes, a gente não vai avançar. Então a questão da acessibilidade também é um ponto que impede as pessoas com deficiência a estarem na academia, né?”.

Deve-se considerar que nem todas as academias são acessíveis para cadeirantes. É muito comum que elas estejam instaladas em andares superiores ao solo, no qual o acesso precisa ser feito por meio de escadas. Outro fato a considerar são aparelhos muito próximos, dificultando o deslocamento de um cadeirante. Antes disso, tem o percurso para chegar à academia, ou seja, as vias públicas. Nem todos os cadeirantes possuem carro para o deslocamento, dependendo de vias acessíveis, ruas, transporte e passeios para fazerem o trajeto. Um questionamento feito por Diniz (2012, p.17) reforça a fala da professora, apontando o modelo social da deficiência. “Quem é deficiente para o modelo social da deficiência? Seria um corpo com lesão o que limitaria a participação social ou seriam os contextos pouco sensíveis à diversidade o que segregaria o deficiente?” Nesse sentido, temos claro a privação ao direito de participação social daqueles que trazem no corpo a marca que os diferencia dos “normais”. Em uma sociedade padronizada para um determinado grupo maioritário de pessoas, em determinadas situações, não há espaço para aqueles que fogem a esse padrão. Enquanto a pessoa com deficiência for considerada como um grupo a parte da sociedade, fora desse padrão ou da norma, isso vai acontecer. O máximo que poderia acontecer talvez seriam adaptações pontuais que atenuassem as diferenças dando a falsa sensação de que se está construindo espaços inclusivos.

A respeito do estereótipo físico/estético do profissional de Educação Física, no qual os serviços oferecidos por estes profissionais, principalmente em redes sociais, versam sobre o corpo magro e definido, foi perguntado à professora se ela julgava importante o professor de Educação Física estar nos “padrões estéticos sociais de corpo”. O questionamento vincula-se às categorias discutidas anteriormente, pois se trata de uma questão que é muito valorizada no mercado de trabalho do personal training, o corpo como forma de valor na profissão.

“Pois é, eu não julgo nada nem ninguém, mas, falando nesses padrões estabelecidos não sei aonde, nem por quem, eu estaria completamente fora, né? Desse meio. Mas, eu não acredito que tenha que ser por aí. E, infelizmente, quando a gente se depara com situações assim, a gente também se depara como é pobre esse profissional e tanto quanto quem requer esse serviço, contrata, como são pobres de conhecimento, experiência e conteúdo, né? Então, é uma faca de dois gumes, né? Eu prefiro estar fora dos padrões estéticos estabelecidos por não sei quem e nem sei quando, nem onde e ter consciência de movimento, ter propriedade do meu trabalho, ter conhecimento, know-how, que estar padronizado esteticamente”.

A professora afirma que a qualidade técnica do profissional deve prevalecer quando se contrata um personal. Ou seja, as pessoas não devem considerar só as questões estéticas. Deve-se ir além do corpo belo ou referencial. O profissional de Educação Física que atua em academias fica sujeito ao sistema de mercadorização do corpo.

Outro fator apontado pela professora é que os profissionais que valorizam as questões estéticas são pobres de conhecimento, experiência e conteúdo. Tal afirmação revela novamente uma perspectiva de autodefesa em contraposição ao preconceito que sofre (Silva, 2006). Assim, dizer que são pobres de conhecimento não pode ser uma justificativa facilmente aceitável. É preciso analisar essa fala considerando que o mercado da estética tem comandado comportamentos na contemporaneidade e se contrapor a essa lógica mercadológica não é algo simples de se fazer. Segundo Lima (2009), somente é considerado como um bom profissional quando o número de alunos é elevado. Assim, o qualitativo fica tomado pelo quantitativo e esse profissional passa a ser um mero repetidor de técnicas de marketing, adestrado para alcançar as expectativas de lucro da empresa, respondendo à lógica do mercado e do corpo. Por outro lado, como se posicionar diante de uma realidade tão excludente carregando a marca de uma deficiência? Essa não é uma questão simples de responder e nem é pretensão do estudo. Porém, entendemos ser importante trazê-la como forma de chamarmos a atenção para a complexidade do tema, que sabemos, não se esgota aqui.

A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL APÓS O ACIDENTE: O QUE MUDOU?

Para refletir sobre o a construção da identidade do sujeito, coloca-se aqui o corpo como foco dessa construção, pois, no que tange ao aspecto físico, é por meio dele que os outros definem quem nós somos. As sociedades em geral, são caracterizadas pela diferença. Elas são atravessadas por distintas divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de sujeitos, resultando assim, em construções identitárias (Silva, 2014). Por mais que se construa reflexões sobre identidade é preciso ressaltar a dificuldade de se romper com uma ordem hegemônica previamente estabelecida. Nesse caso, se pensarmos sobre a diferença como uma marca da sociedade, e como uma condição geral (Burbules, 2012) temos aqui a emergência do conflito que desnuda as relações de poder nos âmbitos social e cultural. É nesse movimento dialético que as identidades são produzidas e, por conseguinte, os sujeitos e os seus estereótipos. Neste sentido, acordo com Silva (2014), os sujeitos vão configurando as suas respectivas identidades a partir das percepções e representações dos que estão à sua volta, ou seja, de acordo com a cultura em que vivem.

Ao abordar o tema identidade é preciso ressaltar que se trata de um campo tenso e atravessado por relações de poder. Ao discutir a identidade Silva (2000) nos leva a refletir sobre a sua construção social e cultural além de defini-la como resultado de produção simbólica e discursiva. Para o autor identidade e diferença estão sempre relacionados à processos de inclusão e exclusão, de pertencimento e não pertencimento implicando em um processo de classificação social.

No caso da participante da pesquisa, ressaltamos que a mesma possui uma deficiência física adquirida após um acidente ocorrido aos vinte anos de idade. Vale dizer que anteriormente ao acidente ela praticava ballet. Tal fato é relevante ao pensarmos que o corpo do bailarino requer determinados padrões socialmente determinados. Sofrer um acidente que resulta na modificação desse corpo exigirá a releitura dessa nova configuração corporal que perde o seu lugar anteriormente conquistado e socialmente definido. Ao perguntá-la sobre o que mudou na percepção do seu corpo após o acidente ela responde:

“Muita coisa mudou, viu? Eu precisei, após o meu acidente, fazer uma releitura do meu corpo. É claro que o ballet me ajudou muito e me ajuda até hoje nessa nova percepção. O ballet foi fundamental. Estar envolvida com o movimento me deu certas facilidades pra encarar as resistências e pra fazer uma nova releitura física. Tanto é que eu sou vegetariana há 24 anos e essa é uma escolha que eu fiz depois dessa releitura corporal. Então, todo mundo me pergunta se eu sou vegetariana por causa de alguma outra situação e não é, foi exatamente por causa dessa releitura. A carne era uma situação que eu entendia que não me deixava rápida e leve, sentada. Eu precisava tá... preciso tá sempre leve e rápida. Então alimentação era imprescindível. Essa leitura pra mim é bem clara assim, do antes e do depois. Mas é claro que eu tive mudanças absurdas físicas, mas em compensação eu tenho 27 anos de lesão medular e eu não tenho nenhuma dor, não tenho nenhuma limitação de coluna, de movimento da coluna e consigo manter meu corpo dentro de uma situação que, com 27 anos de lesão, posso dizer que sou uma privilegiada, porque meu pé é pé, meu joelho é joelho, você tem as situações que são naturais de uma lesão medular, decorrentes dela, as atrofias, mas eu corro muito em busca dessa saúde física. Então eu mantenho a fisioterapia até hoje como uma manutenção, me exercito bastante e no que eu posso executar sozinha, eu to sempre fazendo. Então eu tô sempre em movimento também”.

No início de sua resposta ela afirma ter que realizar uma releitura do seu corpo. Por um lado, não fica claro as tensões vivenciadas na construção dessa nova identidade. Por outro, ela relata que o ballet, praticado anteriormente ao acidente, foi de fundamental importância para a sua releitura. O ballet aparece aqui como ponto de referência para a construção de novos movimentos impostos pelos limites de um corpo que sofreu uma lesão medular. É interessante destacar que, como diz Silva (2000), a identidade é sempre um processo em construção e uma busca pelo pertencimento a alguma classificação. Tal fato pode ser observado ao ressaltar os cuidados com a alimentação. Considera a alimentação um fator importante para estar mais ágil e leve para se deslocar, uma vez que a sua cadeira não é motorizada. Todo trajeto feito por ela é realizado com as mãos que passam a cumprir um papel fundamental no exercício de sua profissão em função das limitações funcionais adquiridas pelo corpo. Podemos observar aqui a busca por estratégias que possibilitem o exercício da profissão e que não a excluam desse lugar, uma vez que seu corpo já não pertence ao padrão funcional e socialmente aceito em uma sociedade da normalização (Silva, 2000 & Pereira, 2008).

Para além dessas questões é importante chamar a atenção para aspectos estéticos que aparecem na fala da professora. Há uma preocupação em manter ou pelo menos se aproximar de um padrão estético socialmente definido. A luta pela manutenção do corpo pode, de alguma maneira, evidenciar uma tentativa de pertencimento a certos grupos sociais. Quando pensamos em construções identitárias, é preciso considerar as identidades são formadas e transformadas no interior das representações (Hall, 2015). Em relação à identidade social, foi perguntado a ela como percebia a sua identidade social antes e depois de se tornar cadeirante?”

“Uma coisa é fato assim... A deficiência me tornou muito popular. E eu acredito que é em função da deficiência, me deixou muito popular. Mas, eu não sou uma pessoa antes do acidente, uma pessoa depois do acidente. Eu sou a mesma pessoa, o que se aflora são as características que eu já tenho, já tinha e que talvez eu tivesse que utilizar mais agora. Mas eu não sou uma pessoa diferente do que era antes do meu acidente. Eu sou a mesma pessoa. Mas sou uma pessoa diferente depois da análise... [risos]”.

Como é possível perceber, a profissional afirma que a deficiência a tornou popular. Neste sentido, é possível inferir que há uma tentativa de evidenciar que sua identidade atual está atrelada à deficiência que surgiu como um fator positivo, afinal se tornou popular. Fica, portanto, aqui, a dúvida se isso pode ser visto como benefício ou se é uma manifestação de autodefesa. Observamos que há uma inclinação a definir sujeito e deficiência como sendo uma coisa única. Ela ressalta que não mudou e é a mesma pessoa antes e depois do acidente. Nesse caso, será que no seu entendimento a deficiência foi acoplada a ela após o acidente? Um dos grandes questionamentos feito no campo dos estudos sobre deficiência é exatamente essa representação social do sujeito via deficiência. O sujeito não é a deficiência. Ela é apenas uma característica como qualquer outra, considerando aqui, a perspectiva social da deficiência.

A fala apresenta contradições sutis. Uma hora diz ser a mesma pessoa, outra diz se tornar popular após o acidente e outra diz que a mudança se deu com análise. São três aspectos diferentes que podem revelar um conflito na construção dessa identidade. Para Bauman (2005) existem algumas individualidades que são impostas na sociedade, como o estereótipo, estigma, rótulos, que são promovidos por forças inimigas. Assim sendo, a identidade escolhida persiste frente às sobras das antigas impostas pela sociedade. A entrevistada contrapõe a ideia de personalidade imposta socialmente às pessoas com deficiência, afirmando que a deficiência lhe deu popularidade e, de certo modo, prestígio social. Porém, a cultura molda o sentido da experiência ao tornar possível optar, entre várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade (Hall, 2015).

Outro aspecto a ser ressaltado é sobre a sua percepção como profissional. Desta forma, perguntamos sobre o como é, para ela, a sua atuação como personal com deficiência:

“Olha, eu não consigo ver nenhuma diferença, porque eu participo integralmente das aulas dos meus alunos. O que eu precisei desenvolver e que eu acho que o ballet e a ginástica contribuíram demais com essa minha percepção corporal, essa consciência corporal, foi desenvolver essas ferramentas de como ensinar. Então, por exemplo, se você vai ali na frente e dá três pulinhos pro seu aluno repetir os seus três pulinhos, eu encontro ferramentas pra fazer com que ele entenda quais são os movimentos, são três pulos, e como vou fazê-lo executar isso dentro do que eu espero e dentro do que ele espera também. Então, não vou lá na frente fazer os três pulinhos pra ele repetir. Então essa ferramenta é que eu percebo que é um diferencial de você ter bastante propriedade sobre a execução de um determinado movimento e fazê-lo entender apenas com sua explicação e o olhar pra saber se está executando corretamente. Agora com relação a socialmente, assim, não vejo nenhuma diferença. Não há nada que o meu aluno não possa fazer nas minhas aulas e não há nada, nenhum limite que me impeça de ensinar qualquer coisa a ele”.

“Eu estou preparada pra qualquer coisa. Se você tiver passando perto de mim e eu tiver oportunidade, eu vou pedir pra que você faça algum movimento pro meu aluno olhar, não tem problema nenhum... Mas, eu consigo utilizar das duas ferramentas, só que é bem mais fácil você demonstrar e o aluno copiar, do que você fazer com que o aluno tire dele a sua própria identidade de movimento, né? Então, isso que eu acho que é um grande diferencial. Isso que eu acho que falta em muitos profissionais, o feeling”.

A técnica de instrução oral utilizada pela professora, para explicar um determinado movimento, é a mais aplicada. Após a explicação, a professora espera que o aluno entenda o gesto e o execute de maneira correta, sob seu olhar atento. Segundo a mesma, o ballet e a ginástica (práticas realizadas antes do acidente) contribuíram para a percepção dos movimentos executados no corpo do aluno. Porém, em relação ao exercício físico, essas práticas não são essenciais e nem garantem diferencial de prática profissional. O feedback da personal, após a execução, é importante e faz diferença.

Como diferencial, ela ressalta que esse método permite que o aluno tenha uma consciência maior do gesto em comparação ao profissional que utiliza da demonstração/execução como método de ensino. Assim, ela afirma que a forma de instrução oral permite ao aluno pensar no movimento. Cabe destacar que tal método relatado como um diferencial é legítimo a qualquer profissional de Educação Física, com ou sem deficiência.

Chamamos a atenção a busca, talvez não percebida por ela, pela negação da deficiência. É importante ressaltar que as diversas falas da personal, ao longo da entrevista, são atravessadas por contradições. Em um momento a deficiência a torna popular, em outra não vê diferença entre ela e um profissional que não tenha deficiência física. É nítido aqui o conflito identitário e a busca por se encaixar em uma classificação socialmente aceita. Recorrendo a Silva (2000) podemos dizer que as falas da personal, mesmo que tacitamente, estão sempre em busca da identidade normal, aquela que se dá de forma natural.

Importante salientar também que o profissional sem deficiência pode utilizar, além do artifício citado por ela, a metodologia de executar o movimento e o aluno reproduzi-lo. Assim, o aluno teria mais um recurso de ensino/aprendizagem. Porém, a prática da atividade física não se fundamenta ou se justifica somente na reprodução sem embasamento. A informação, a vivência e a experiência que é passada pelo professor ao aluno não se caracterizam como uma prática repetitiva dos conteúdos, mas reflexiva, crítica e participativa (Faggioon, 2011). Logo, a forma com que o professor utiliza determinada técnica para ensinar o aluno, vai diferenciar a qualidade do processo de execução dos movimentos. Também, quanto mais recursos didáticos o professor possuir, melhor será o entendimento do aluno na prática de atividade física. Isso não significa que o que a professora utiliza como recurso não produza bom resultado.

CONCLUSÃO

A pesquisa centrou-se nas questões de preconceito, estigma, estereótipo e identidade, a partir da percepção de uma professora de Educação Física (personal training) com deficiência física. O estudo se deu por meio de um estudo de caso realizado com uma personal. Cabe problematizar que o discurso da professora pesquisada é de um lugar singular, de um sujeito específico, que não retrata uma realidade geral dos professores de Educação Física cadeirantes, que atuam como personal training. Mesmo considerando essa especificidade, a pesquisa permitiu analisar muitos pontos a respeito da profissão e a inserção social desse profissional no mercado de trabalho.

Sobre preconceito, estigma e estereótipo no campo de atuação como personal training, ela afirmou não ter passado por nenhuma situação desse tipo no ambiente profissional, mas admite existir o preconceito velado. A profissional acredita que, quando as pessoas veem o trabalho que ela faz com seus alunos, desconstroem o olhar preconceituoso que possa existir, tanto que mantém a porta aberta durante os seus atendimentos profissionais. Podemos ressaltar aqui que a preocupação com o pré-julgamento se faz constante para a professora. Ela costuma concentrar suas ações na desconstrução do preconceito que os alunos e outras pessoas possam ter sobre ela se antecipando aos comentários que venham a surgir. Para tanto ela mantém-se atenta aos olhares no seu entorno.

Relatou que as próprias pessoas com deficiência podem ter rejeição de frequentar academias, por acreditarem na suposição, construída na sociedade, de que academias não são lugares para elas. Na percepção da professora, o preconceito existe quando as pessoas não reconhecem sua capacidade profissional, reforçando a ideia de que o capacitismo faz parte do olhar social para as pessoas com deficiência. A personal afirma que as pessoas com deficiência ainda carregam o estigma da exclusão social, atribuindo isso a valores construídos culturalmente, que segregavam esses indivíduos. Ela destacou a falta de acessibilidade como uma forma de exclusão social, afirmando que deficientes são os locais que não permitem o acesso aos cadeirantes. Por fim, o pensamento do estereótipo do corpo magro e definido, muitas vezes vinculado aos profissionais de Educação Física, é questionado por ela. Acredita que a qualidade técnica de ministrar aulas é o que deve prevalecer ao contratar um profissional. Consideramos que a valorização da estética e do corpo, atribuída ao profissional de Educação Física, traz importantes questionamentos para esse campo. No caso do personal training com deficiência física, considerando a lógica da eficiência e do corpo referencial, que muitas vezes é atribuído a esses professores, esse profissional, independente da qualidade do trabalho oferecido para seus alunos, passa por um olhar de estranhamento e de preconceito.

Em relação a sua identidade social após o acidente, a professora destacou que precisou fazer releituras do seu corpo. Afirmou que a prática da atividade física foi fundamental nessa nova percepção de corpo, pois entendia que a mesma ajudaria nas atividades de vida diária, como deslocar-se com a cadeira. Evidenciamos os aspectos estéticos que apareceram na sua fala destacando a preocupação em manter ou pelo menos aproximar de um padrão estético socialmente definido e aceitável. Finalizou dizendo que a deficiência a tornou popular, que trouxe benefícios profissionais devido a sua nova condição. Este fato, associamos a um comportamento de autodefesa diante do preconceito.

Quanto a autopercepção profissional da professora, destacamos a metodologia de instrução oral como a mais utilizada por ela para explicar um determinado movimento. Afirma não enxergar uma distinção em comparação a um profissional sem deficiência. Tal afirmação estaria intrinsicamente relacionada às metodologias de ensino praticadas pela profissional. Ainda pontuou que não há nenhum exercício ou atividade que seus alunos não façam.

Por fim, é importante salientar que poucos estudos foram desenvolvidos a respeito do tema. Neste sentido, é preciso ressaltar que há lacunas importantes no campo a serem estudadas e a necessidade da realização de mais pesquisas sobre a temática, com enfoque em professores de Educação Física com deficiência física.

Material suplementario
Información adicional

Como citar: Santos, F., & Franco, M. A. M. (2023). O professor de educação física com deficiência física e sua atuação profissional: um estudo de caso entrelançando preconceitos e estereótipos. Revista Tempos e Espaços em Educação, 16(35), e18568. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v16i35.18568

Contribuições dos Autores: Santos, F.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Franco, M. A. M.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.

Aprovação Ética: Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da FUMEC (CEP/FUMEC), sob parecer de número 3.376.826.

REFERÊNCIAS
Andrade, M. M. A., & ARAÚJO, R. C. T. (2018). Características de alunos com deficiência física na percepção de seus professores: Um estudo sobre os parâmetros conceituais da classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. Rev. Bras. Ed. Esp., 24(1), 3-16.
Bauman, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Burbules, N. C. (2012). Uma gramática da diferença: algumas formas de pensar a diferença e a diversidade como tópicos educacionais. In: Garcia R. L; Moreira, A. F. B. Currículo na contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo, Cortez.
Buscaglia, L. (1997). Os deficientes e seus pais. 3. Ed. Rio de Janeiro: Record.
Cervantes, C.M. & Porreta, D.L. (2010). Physical activity measurement among individuals with disabilities: a literature review. Adapted Physical Activity Quarterly, Champaign, 27, 173-90.
Crochík, J. L.(1996). Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas psicol., 4(3), 47-70.
Cruz, R.A.S (2013). Políticas públicas de educação especial: o acesso de alunos com deficiência, da educação básica ao ensino superior. In: Caiado, K.R.M. Trajetórias escolares de alunos com deficiência. São Carlos: Edufscar.
Dantas, J. B. (2011). Um ensaio sobre o culto ao corpo na contemporaneidade. Estudo e pesquisa em psicologia, 11(3), 898-912.
Diniz, D. (2012). O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense.
Goffman, E. (1998). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. Rio de Janeiro: LTC.
Gregorutti, C. C., Zafanis, M. D., Omote, A., & Baleotti, L. R. (2017). A tarefa de casa na inclusão escolar: Alunos com deficiência física. Rev. Bras. Educação Especial, 23(2), 233-244.
Hall, S. (2015). A identidade cultural na pós-modernidade.; tradução: Tomaz Tadeu da Silva & Guaciara Lopes Louro. Rio de Janeito: Lamparina.
Hall, S. (2016). Cultura e representação/ Stuart Hall; tradução: Daniel Miranda e Willian Oliveira. Rio de Janeiro: ed. Puc-Rio: Apicuri.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais- INEP (2019). Censo da Educação Superior: Sinopse Estatística. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2020/Apresentacao_Censo_da_Educacao_Superior_2019.pdf.
Lima, M. (2009). Mercadorização do corpo, corpolatria e o papel do profissional de Educação Física. Estudos, 36(10), 1061-1071.
Ludke, M. & André, M. E. D. A (1986). Pesquisa em educação: Abordagens qualitativas. São Paulo: EPU.
Lustosa, F. G. & Ribeiro, D. M (2020). Inclusão de estudantes com deficiência no Ensino Superior: exigências de reconfiguração de saberes, concepções e práticas docentes. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 15(2), 1523-1537.
Magalhães, R. C. P. (2006). Ensino superior no Brasil e inclusão de alunos com deficiência. In: Valdés, M.T.M. (org). Inclusão de pessoas com deficiência no ensino superior no Brasil: caminhos de desafios. Fortaleza: EDUCERE.
Martins, D. A.; Leite, L. P. & Lacerda, C. B. F. (2015). Políticas públicas para acesso de pessoas com deficiência ao ensino superior brasileiro: uma análise de indicadores educacionais. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 23(89), 984-1.014.
Matos, D. A. S. & Jardilino, J. R. L. (2016). Os conceitos de concepção, percepção, representação e crença no campo educacional: similaridades, diferenças e implicações para a pesquisa. Educação & Formação, 1(3), 20-31.
Mclaren, P. (1997). A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas.
Mello, A. G. (2016). Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência e Saúde Coletiva.
Minayo, M.C de S. (1999). O desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco.
Passos, I. C. F; & Barboza, M. A. G. (1999). A pesquisa etnográfica no contexto da reforma psiquiátrica brasileira: especificidade, importância e o estado da arte. In PASSOS, I. C. F. (Org). Loucura e Sociedade: Discursos, práticas e significações sociais. (pp.15-26) Belo Horizonte: Argymentvm.
Pereira, Ray. (2008). Anatomia da diferença: normalidade, deficiência e outras invenções- São Paulo. Casa do psicólogo.
Pessoa, S. C. (2018). Imaginários sociodiscursivos sobre a deficiência: experiências e partilhas - Belo Horizonte: PPGCOM.
Rimmer J. H. (2004). Physical activity participation among persons with disabilities: barriers and facilitators. Am J Prev. Med.
Silva, L. (2006). O estranhamento causado pela deficiência: preconceito e experiência. Revista Brasileira de Educação, 11(33), 1-20.
Silva S., Karla C. & Barros, J. de D. V. (2012). Estereótipos étnicos e representações sociais: uma breve incursão teórica. Revista Educação e Emancipação, 5(2), 1-16.
Silva, T. T. (2000). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais /Toma.Z Thdeu da Silva (org.), Stuart Hall, Kathryn Woodward.- Petrópolis, RJ: Vozes.
Silva, T. T. (2014). Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais/ Tomaz Tadeu da Silva (Org.) Stuart Hall, Kathryn Woodward. 15. ed. Petrópolis, RJ:Vozes.
Siqueira, R. de & Cardoso, H. (2011). O conceito de estigma como processo social: uma aproximação teórica a partir da literatura norte-americana. Imagonautas.
Tomaz et al. (2016). Professores com deficiência: Vivência de in/exclusão na formação incial e contribuições para o trabalho docente. Revista COCAR, 10(19), 382-403.
Thomaz, D. (2016). Os desafios do trabalho docente pela voz de professores com deficiência. Dissertação de mestrado em Educação- Universidade da região de Joinville: UNIVILLE.
Notas
Notas
1 Nome fictício dado a professora entrevistada.
Notas de autor
1 Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.
1 Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.

fabricio_fps@yahoo.com.br

Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por Redalyc