Artigos
Recepción: 03 Marzo 2023
Aprobación: 02 Junio 2023
Publicación: 15 Julio 2023
DOI: https://doi.org/10.20952/revtee.v16i35.19177
Resumo: O presente artigo objetiva cartografar o plano de afetos no encontro de uma psicóloga com corpos de mulheres violadas. Para tal problematiza as capturas do movimento feminista pautado num suposto esvaziamento político, inclusive com a própria produção da mulher enquanto sujeito de direito, uma vez que, parte-se de um conceito uno de mulher, erigido por engrenagens biopolíticas. Ao interpelar tal captura tenta abrir fendas a partir de um cartografar com as mulheres por fora da linha do “sujeito de direito do feminismo”, visualizando um caminho que pode gestar outros modos para se livrar das engrenagens biopolíticas. Conclui-se que o feminismo precisa rever alguns de seus pressupostos históricos, além disso, faz-se necessário rever algumas questões de sua luta a partir de outras epistemologias (outros modos, outros encontros, outros fazeres) a fim de pautar políticas públicas para mulheres.
Palavras-chave: Feminismo, Mulheres violadas, Políticas públicas, Cartografia.
Abstract: The present paper aims to map the field of affections in a psychologist's encounter with the bodies of violated women. To do so, it problematizes the captures of the feminist movement based on a supposed political emptying, including the production of women as subjects of law, since it is based on a single concept of woman, built by biopolitical mechanisms. When interpellating such capture, it tries to open cracks starting from a mapping with women outside the line of the "subject of feminism's right", visualizing a way that can generate other ways to get rid of the biopolitical mechanisms. We conclude that feminism needs to review some of its historical assumptions, and that it is necessary to review some issues of its struggle from other epistemologies (other ways, other encounters, other deeds) in order to guide public policies for women.
Keywords: Feminism, Violated women, Public policies, Mapping.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo mapear el plano de los afectos en el encuentro de una psicóloga con los cuerpos de mujeres violadas. Para tal, problematiza las capturas del movimiento feminista a partir de un supuesto vaciamiento político, incluyendo la propia producción de la mujer como sujeto de derecho, pues parte de un concepto unificado de mujer, erigido por engranajes biopolíticos. Al cuestionar tal captura, se intenta abrir grietas desde un mapeo con mujeres fuera de la línea del “sujeto de derechos del feminismo”, visualizando un camino que puede generar otras vías para desprenderse de los engranajes biopolíticos. Se concluye que el feminismo necesita revisar algunos de sus presupuestos históricos, además, es necesario revisar algunos temas de su lucha desde otras epistemologías (otros modos, otros encuentros, otras acciones) con el fin de orientar políticas públicas para las mujeres.
Palabras clave: Feminismo, Mujeres violadas, Políticas públicas, Cartografía.
INTRODUÇÃO
Este artigo tensiona o movimento feminista na produção do sujeito mulher contemporâneo, naquilo que a faz sujeito de direitos, centro de discussões jurídicas e institucionais, que produzem políticas públicas, e produz subjetividades, ou seja, modos de ser e estar Mulher no mundo, em um movimento de Educação dos corpos. Produzir subjetividade é produzir sentidos políticos e estéticos, produzir subjetividades é produzir corpos educados.
Diante disso, o objetivo deste escrito é cartografar o plano de afetos no encontro de uma psicóloga com corpos de mulheres violadas. Sejam das meninas abusadas, sejam das mulheres processadas por negligência, aliciamento, sejam pelas mulheres que se produzem enquanto dependentes, submissas, sem espaços de fala. Objetivamos cartografar o corpo de mulheres violadas, para assim tensionar afetos alegres em seus corpos, a partir da produção de linhas de fugas. Este é o problema que esse texto interpela enquanto pesquisa. O presente escrito foi produzido enquanto parte de uma pesquisa de Doutorado em Educação, que se propôs pensar a produção dos corpos mulheres, diante do fazer de políticas públicas.
A Cartografia foi escolhida enquanto metodologia para esta pesquisa por sua dimensão ético-política, a qual por entre a problematização das linhas de poder/saber que atravessam a produção das individualidades contemporâneas, nos possibilita um encontro com certa subjetividade e as relações de seu tempo que a produziram.
O campo de pesquisa, do qual este texto é fruto, foi um Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), de uma cidade do centro sul sergipano. Trata-se de um equipamento da média complexidade da Rede de Proteção da Assistência Social, o qual atua com crianças, adolescentes, idosos, deficientes, comunidade LGBTQI+, vítimas de violações de direitos, seja negligência, maus tratos, violência sexual, psicológica, patrimonial, entre outras.
Com um modo de atuação que tem a família enquanto centro de atenção, a Política de Assistência Social é uma importante ferramenta biopolítica na produção de corpos e subjetividades. Como nossa pesquisa esteve centrada na produção de corpos de mulheres, nossa amostra foi composta por três mulheres atendidas no CREAS. Como critério elegemos mulheres acompanhadas por vários equipamentos, inclusive pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça, que possuem histórico de várias violações de direitos, dentre elas violência sexual, doméstica e, que tiveram histórico de acolhimento institucional de alguma criança e/ou adolescente.
Para lograr o objetivo desse texto organizamos o mesmo a partir de outros três momentos para além dessa introdução. Na sequência do texto apresentamos o traçar metodológico onde dissertamos sobre o campo empírico, as companheiras de jornada e a cartografia enquanto linha sob a qual traçamos nosso estudo. No terceiro momento do escrito interrogamos as capturas do feminismo, para tal utilizamos o artigo definido “O”, com o qual o feminismo é tomado por certo esvaziamento político, inclusive com a própria produção da mulher enquanto sujeito de direito, uma vez que, parte de um conceito uno de mulher, erigido por engrenagens biopolíticas. Na quarta e última parte tecemos algumas proposições finais interpelando “uns” feminismos problematizando o objeto de nosso estudo a partir de outras perspectivas epistemológicas a fim de tentar abrir fendas ético-políticas no fazer com as políticas públicas. Escrever a partir da cartografia dos corpos violados dessas mulheres é tentar escrever outras epistemologias, outros modos, outros encontros, outros fazeres em política pública para mulheres.
METODOLOGIA
A cartografia
Cartografar é a um só tempo, desenredar os discursos de poder e saber que produzem um corpo Mulher enquanto sujeito de direito, ou seja, é traçar as linhas sobre estes corpos a fim de desenredar o poder dos dispositivos que os atravessam e a “(des)potência” que eles lhe causam. É revertermos a lógica de fazer ciência, de uma coleta de dados, para uma produção de dados, no acompanhar de uma processualidade, através do mapeamento dos discursos, das relações que engendraram um tempo, um corpo, modos de ser e estar no mundo.
Cartografar aqui objetiva pôr em suspensão os discursos que fizeram do feminismo lugar de identificação de uma certa mulher; que fazem dela sujeito de direito; ao passo que fazem delas sujeitos de intervenção de diversas políticas públicas em um movimento engendrado de práticas, que produzem um corpo Mulher, atravessado por inúmeras políticas, educacionais, assistenciais, de saúde em um movimento que diz fazê-las sujeito de direito de uma política feminista. Vai-se, assim, aqui, produzir um mapa de práticas discursivas e não discursivas, de uma psicóloga que atua em um CREAS com vítimas de violações de direitos, desenredando as forças que fazem de tantas meninas e mulheres público de intervenção de políticas públicas, em especial da política de Assistência Social e, do poder Judiciário, em sua relação com a própria produção da Mulher enquanto sujeito de Direito. Para tanto, foi escolhido três histórias de três mulheres e suas filhas, repletas de estórias e intervenções vastas de inúmeros saberes e poderes.
O campo de pesquisa
Como mencionado acima, nosso campo de pesquisa foi um Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) localizado numa cidade do centro sul do estado de Sergipe. A Rede de Assistência Social é dividida entre a Básica, Média e Alta. A Básica, realizada nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), a qual atua principalmente com situações de vulnerabilidade socioeconômica e fortalecimentos de vínculos familiares, em uma perspectiva, principalmente, preventiva. A Média, realizada nos CREAS, com a perspectiva de atuar junto às famílias e às comunidades para que as violências sejam superadas. A Alta quando a necessidade de acolhimento institucional por parte de crianças e adolescentes, de modo que necessitam ser afastados do contexto familiar.
Diante das situações de violações, os casos acompanhados no CREAS, em sua grande maioria, são casos judicializados, de modo que as equipes da Assistência atuam em parceria com o Ministério Público e o Tribunal de Justiça. Relação que nem sempre é tranquila e harmoniosa, uma vez que, por vezes há uma confusão sobre os papéis de cada um, havendo em muitas situações a tentativa de imposição por parte do judiciário, para que as equipes da Assistência Social atuem de modo regulador da vida dos usuários. Este fato iremos discutir com mais profundidade ao longo do texto, ao passo que problematizaremos a própria produção do sujeito Mulher, enquanto sujeito de direito.
As principais ferramentas de trabalho utilizadas no CREAS são as visitas domiciliares; acolhimentos individualizados e familiares; encaminhamentos para outros serviços (seja da própria Assistência Social, seja de outras políticas públicas); reuniões com as Redes para discussão de casos e construção de intervenções; elaborações de relatórios de acompanhamento para a Rede de Proteção, ações estas que compõem o acompanhamento psicossocial, haja vista que, o mesmo se dá por equipe multidisciplinar composta por psicólogo e assistente social. A equipe mínima de um CREAS, para uma cidade de porte pequeno (como é o caso em questão) é composta por coordenador, psicólogo, assistente social, advogado, auxiliar administrativo, profissional de nível médio ou superior para realizar abordagens aos usuários. Essas abordagens geralmente se referem a buscas de pessoas que estejam em situação de rua, e/ou crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, na perspectiva de atuar com as situações de vulnerabilidades sociais.
Dentro do equipamento CREAS, alguns serviços são ofertados, como o PAEFI (Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e indivíduos), com o qual se atua com as vítimas de violações; o Serviço de Medidas socioeducativas, que atua com adolescentes infratores, os quais cumprem suas medidas socioeducativas com equipe interdisciplinar do CREAS; serviço de abordagem de pessoas em situação de rua, na perspectiva de inseri-las em programas socio assistências, reinserção familiar.
Conhecendo as companheiras de jornada
Alguns critérios foram traçados, para orientar a escolha das famílias que iriam compor esta pesquisa. Quais sejam: mulheres acompanhadas por vários equipamentos, inclusive pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça, que possuem histórico de várias violações de direitos, dentre elas violência sexual, doméstica e, que tiveram histórico de acolhimento institucional de alguma criança e/ou adolescente. Os critérios foram traçados, por sua vez, por demonstrarem famílias e situações que necessitaram atravessar toda a Rede de Proteção, composta por inúmeras políticas, desde a da Assistência, Saúde, Educação, apontando certa ineficiência das políticas na resolutividade das problemáticas. Ineficiência, esta, que abriu uma fenda para iniciar o traçar das linhas desta cartografia, que aqui buscou se desenhar, qual seja: ineficiência da Rede de Proteção ou vidas que se desviaram das capturas? Ineficiência da Rede de Proteção ou o próprio modelo de Estado que produziu esses corpos enquanto indivíduos inacessíveis por entre o jogo biopolítico – fazer viver e/ou deixar morrer? (Foucault, 2005).
Vidas que se fazem enquanto vidas vigiadas na relação com o Estado, na medida em que não respondem a determinações sociais, mulheres que suas filhas não possuem frequência regular na escola, e que não “aderem” às intervenções postas, aos acordos realizados nas audiências, nas reuniões com as equipes. E no jogo biopolítico de produção de vidas em seus direitos, como o feminismo e suas sujeitas de direitos atravessam a visualização dessas mulheres enquanto objeto de intervenção estatal? Solo arenoso este, mas é por ele que essa cartografia pretendeu se inscrever.
Segue abaixo uma breve descrição das usuárias. Frisa-se, por sua vez, que não há muito o que descrever sobre essas mulheres, suas filhas e filhos, não há muito sobre suas histórias de vida, o que há, porém, é a história delas enquanto objeto de Políticas Públicas. Fato que ajuda a compreender o modo como essas mulheres são tomadas enquanto indivíduos e sujeitos de direito, haja vista que suas histórias enquanto sujeito – os atravessamentos sócio-históricos de suas vivências e, de suas experiências não devem ser pauta no jogo biopolítico de produção desses corpos de Maria, Joana e Olga1.
Maria (40 anos), oito filhas, vivia em uma casa condenada pela Defesa Civil do município. A Secretaria Municipal de Assistência Social lhe concedeu Auxílio Aluguel, um benefício chamado de eventual, por ter tempo determinado de concessão. Benefício que a própria Maria só resolveu com a equipe responsável, depois que suas filhas foram acolhidas na Casa Acolhedora do Município. Até esse momento, Maria e suas filhas dividiam espaço numa casa com rachaduras das paredes. Foram alguns acolhimentos e desacolhimentos das meninas, pois Maria e sua família acabavam voltando para a casa condenada. A cada volta um acolhimento, a cada liberação de um novo benefício um desacolhimento. E nesse ínterim, Maria dá à luz a mais uma menina, de um novo relacionamento. Além da negligência que Maria já era apontada, colocava suas filhas para realizar mendicância pelo município com ela. Maria também foi acusada de aliciar2 uma de suas filhas para um traficante da região. Essa última denúncia nunca foi investigada. Porém, a sua negligência de “má mãe” manteve- se como o centro dos processos e intervenções. Encaminhadas ao CREAS, a equipe detectou conflitos entre mãe e filhas.
Joana (49 anos), mãe de sete filhos, e alguns netos, procurou a equipe do CRAS para dizer que suas filhas, na época menores de idade, passavam a noite fora de casa, fazendo uso de bebidas alcoólicas e, se envolvendo com “muitos homens”. A equipe do CRAS a encaminhou para o CREAS. Acolhimentos realizados com mãe e filhas percebeu-se que havia conflitos entre elas. A mais jovem, que será chamada aqui de Joyce (na época com treze anos) foi residir com um homem. No entanto, em poucos dias, chegou a notícia de que ela sofria violência doméstica. Foi quando, junto com o Conselho Tutelar, foi realizado o acolhimento institucional dela como forma protetiva. Neste momento, descobriu-se que ela estava gestante. Joyce completa 14 anos e decide ter sua filha, mais uma menina na família. Após o nascimento da filha, Joyce foi desacolhida, retornou para a casa da mãe e, posteriormente para a casa do pai da filha. Nesse ínterim, o companheiro dela tenta contra a vida de Joyce e é preso. Joyce volta para o acolhimento com a filha, e posteriormente para a mãe. O pai de Joyce e sua irmã residem em outro município. Em audiência ele alegou que não tinha nenhuma vinculação e contato com suas filhas. Na última visita domiciliar, no início da pandemia em 2020, na casa de Joana, constatou-se que ela está com dividindo a casa com suas duas filhas e sua neta. Todas alegaram que a convivência estava tranquila.
Já Olga (32 anos) não é tão velha conhecida assim da rede, apesar de estar sempre sob a atenção da rede. Olga tem quatro filhos, a mais velha está sob responsabilidade de sua mãe, a segunda com uma prima, o terceiro com o pai e a mais nova, um bebê, com a avó paterna. Olga é usuária de drogas nunca teve paciência com os filhos, por várias vezes foi vista pelas equipes xingando os filhos. Com sua segunda filha parecia até disputar atenção do atual companheiro. Recebemos denúncia de suposto abuso contra essa menina de doze anos e, a mãe demonstrava raiva da filha. Culpava os filhos a todo instante. Essa segunda menina e o menino foram acolhidos algumas vezes também, a família sempre se negou a acolhê-los, dizia que eles são muito mal- educados. Até que por fim, foram recebidos, ela por uma prima, ele pelo pai, este residindo em outro Estado. Olga se movimentava para tirar seus filhos do abrigo, quando eram acolhidos, porém, pouco tempo depois que estava com eles, começavam as queixas por parte dela sobre o comportamento dos filhos, as denúncias de consumo de drogas, de aglomerações em sua casa.
No período da pandemia do coronavírus houve redução da carga horária da equipe e, os grupos de acompanhamento que aconteciam no CREAS foram suspensos, de modo que, o contato com as famílias reduziu. Pós pandemia, na busca ativa para continuar os acompanhamentos, não mais se sabia o paradeiro de Olga e Joana. Soubemos que a filha de Olga estava a conviver maritalmente com um homem. Já as filhas de Joana, uma estava a residir sozinha com a filha, mas não se sabia o endereço, e a outra que já havia alcançado a maioridade, estava a morar com uma irmã.
Maria, por sua vez, diante da situação de vulnerabilidade, procurou os equipamentos públicos com a queixa de que as filhas passaram a estar mais tempo nas ruas e, em casas de estranhos, algumas a fazer consumo de drogas. Diante disso as equipes eram acionadas constantemente pelo Ministério Público e Tribunal de Justiça, acontecendo mais um acolhimento de uma das filhas, que por iniciativa própria pediu ao Conselho Tutelar para ser acolhida, pois estava com medo do atual companheiro da mãe, o qual, segundo ela, estava a lhe assediar. Essa jovem foi desacolhida, com apoio de uma irmã mais velha e, do genitor, porém, as últimas informações que se tem, ao buscarem essa jovem para inseri-la no Programa Jovem Aprendiz do município, é que ela não está comparecendo a escola, e permanece boa parte do tempo nas ruas, com suspeita de aliciamento para a prostituição. E nesse ínterim, o que as equipes mais se perguntam: “o que iremos fazer com Maria?”
Durante todos esses acompanhamentos, pouco se soube dos pais das crianças, pouco se procurou saber, por sua vez, a representação da maternidade e da família atreladas à figura da mulher não é algo por acaso, mas construído no próprio fazer do sujeito Mulher. E é nesse ínterim, do fazer dessas políticas públicas, com esses corpos feitos enquanto objetos de inúmeras intervenções, que o feminismo é discutido em sua dimensão ético-político de produção de seu sujeito de direito Mulher.
O período de contato com estas mulheres, a fim de cartografar seus corpos violados para esta pesquisa, se deu no período que compreende o espaço temporal de três anos de acompanhamento, ou seja, de 2019 até 2022.
“O” FEMINISMO?
Ao pensar sobre a produção do corpo da mulher, pareceu inevitável, ao longo da pesquisa, não pensar com o feminismo. Sendo a pesquisadora mulher, problematizando o seu fazer enquanto psicóloga, na Política de Assistência Social, com mulheres vítimas de violações de direitos, citar e analisar com o movimento feminista tornou-se, em certo momento, parte a ser feita. E inicialmente, várias questões se compuseram, sendo a autora branca, poderia escrever com o feminismo negro? Estando a autora inserida no mercado de trabalho, a qual tanto falava para as mulheres/usuárias que acompanhava sobre autonomia financeira, poderia e/ou teria que incluir uma discussão sobre a categoria de classe?
Esses questionamentos, somados a um certo desencantamento com o próprio movimento feminista fizeram postergar essa discussão. Após uma imersão em bibliografias feministas, e repensando várias questões, duas linhas acentuaram-se sobre o assunto. Uma é o próprio conceito de Mulher arraigado às discussões de identidade, tão atreladas a um certo movimento de identificação, naquilo que toma as mulheres enquanto sujeito de direito, na produção das políticas públicas. A outra, a um certo endurecimento do próprio movimento, que na busca pela centralidade da mulher, enquanto sujeito de poder, pareceu lançar seu próprio fazer em uma disputa para com os homens. O feminismo passou a apresentar-se, por vezes, como um lugar de captura e, o próprio conceito do sujeito Mulher passou a incomodar, de modo que, como falar de feminismo cartografando com mulheres que sequer sabem o que é isso? Ao mesmo tempo em que, como cartografar corpos de mulheres vítimas de violações de direitos, sem falar do movimento que as fizeram sujeito de direitos e sujeitos/objetos dessa escrita? Foi partindo, principalmente, dessas duas últimas questões, que o livro de Bell Hooks (2018), intitulado “O Feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras”, que muitas outras inquietações foram tomadas, a começar com: seria mesmo o feminismo para todo mundo?
Em 2022, a pandemia do coronavírus, após a vacinação da população, passou a ser menos letal, e uma sensação de certo controle do vírus pairou, de modo que, os equipamentos da Assistência Social começaram a se mexer para retornar as atividades, sendo que a maioria são grupais. Nesse ínterim de retornos, em busca dos usuários para reavaliar quem seria mantido no acompanhamento, para que as atividades grupais de fortalecimento dos vínculos familiares pudessem ser organizadas, passou-se a avaliar caso a caso que estava em aberto.
Como já citado, de Maria as equipes não se afastaram durante a pandemia, uma vez que ao longo dos dois anos pandêmicos, vários foram os acolhimentos e desacolhimentos de algumas de suas filhas, regados a audiências e visitas domiciliares. No início de 2022, em meados de abril, em uma ligação entre a equipe do CREAS com a do Conselho Tutelar (CT), para atualizar uns endereços, quando a conselheira atendeu, foi perguntando o que seria feito com Maria, pois uma de suas filhas havia ido ao CT, novamente, realizar queixas contra a mãe. A conselheira com tom de voz alto e indignado no telefone, contava que durante uma visita domiciliar, Maria bateu em uma de suas filhas na frente dos conselheiros, além de gritar vários palavrões com as outras. A conselheira estava muito chateada, alegando que aquela atitude, para com as filhas, era uma total falta de respeito por parte de Maria contra os conselheiros, os quais tentavam em mais uma visita para conversar com ela sobre os cuidados para com as filhas. A conselheira contou que falava a ela, como que ela poderia ter o respeito das filhas, com tantos palavrões e tapas que ela diferia sobre elas, sendo que uma de suas filhas estava a acusar seu atual companheiro de assédio e, a mesma estava a culpar a filha.
No dia anterior a esse diálogo telefônico, uma colega de trabalho havia mostrado uma foto de Maria com sua filha mais nova, de pouco mais de um ano, pedindo esmola em um dos bairros nobres da cidade, sendo que ela sempre costuma colocar as filhas para pedir de porta em porta, mesmo recebendo vários benefícios eventuais, como já foi citado, como o aluguel social, o auxílio emergencial, cesta básica, o PAA (Programa de Aquisição Alimentar)3. No momento da ligação foi passada essa informação para a conselheira, e o questionamento sobre “o que fazer com Maria?” tornou-se quase um mantra por entre vários técnicos de vários serviços.
Já Joana, não se conseguiu notícias, e ninguém da rede soube informar seu paradeiro, assim como o de Joice, uma de suas filhas, que já maior de idade foi desligada da rede de proteção às crianças e aos adolescentes. Jaque, sua outra filha, soube-se que está residindo sozinha com sua filha, vivendo com a ajuda de amigos e vizinhos, mas que está bem, que sua casa é organizada e que cuida “direitinho” de sua filha. Jaque ainda é “menor de idade” e, enquanto uma mulher/mãe que cuida bem da filha e mantém a casa organizada, foi esquecida pela rede.
Por sua vez, Olga, foi encontrada por acaso em um banco da cidade. Ao ser questionada pelo paradeiro da filha Letícia, prontamente respondeu que está morando com um homem de dezoito anos, deu o endereço e, disse que a filha sempre vai a sua casa. Perguntou-se como ela estava, e sorridente respondeu que bem, que sua bebê estava dentro do banco com o pai, o mesmo que responde por tentativa de feminicídio conta ela. Perguntada sobre a frequência escolar de Letícia, ela disse que a adolescente não quer mais estudar. Aquela mãe foi orientada a conversar com a filha, mostrando que não é porque ela se casou que ela precisa largar os estudos, mas sim, da importância de se ter um trabalho e, assim, sua independência financeira. Esse momento, foi discutido entre a equipe do CREAS e da Casa Acolhedora, por onde Letícia passou algumas vezes. Permeados por sentimentos de fracasso, as equipes com discursos como: “tomara que ela não engravide logo”, sobreimplicadas estavam no entre do fazer de política pública para a produção de autonomia e a reprodução de um certo modo de ser mulher pautado na dependência de um homem. E o questionamento de Donna Haraway (1995, p.26): “Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”, atravessava o olhar das equipes, também de mulheres, uma vez que, com o corpo de quem foi produzido o discurso feminista tão neoliberal, arraigado na independência financeira como caminho? Com o corpo de quem, uma menina que sobrevive da ajuda de vizinhos, “tornou-se mulher” por “cuidar bem de sua filha e de sua casa”?
“O Feminismo é para todo mundo”, de Bell Hooks (2018) trouxe alguns esclarecimentos, que propuseram certa reconciliação com o feminismo, enquanto ferramenta política. Um é em relação ao próprio uso indiscriminado do movimento enquanto pauta generalizada, especialmente por mulheres e homens conservadores. No início das prévias eleitorais para presidência do Brasil, em meados de abril de 2022, partidos políticos investiram em propagandas para atrair mais adeptos. Em muitos desses, mulheres que pregam pela família tradicional, por costumes morais bíblicos, iniciam suas falas dizendo que lugar de mulher é onde ela quiser. Um movimento que paradoxalmente tem-se tornado tão naturalizado, como que por serem mulheres que falam, essas interjeições feministas dialogam com a defesa de um único modelo de família como verdade, com a criminalização de mulheres que cometem aborto, com o não poder de mulheres decidirem por métodos contraceptivos. Hooks, por sua vez, aponta como o capitalismo toma o feminismo enquanto estilo de vida, através de um certo esvaziando político, fazendo dele mais aceitável socialmente. Hooks (2018, s/p) nos diz que,
O feminismo como estilo de vida introduziu a ideia de que poderia haver tantas versões de feminismo quantas fossem as mulheres existentes. De repente, a política começou a ser aos poucos removida do feminismo. E prevaleceu a hipótese de que não importa o posicionamento político de uma mulher, seja ela conservadora ou liberal, ela também pode encaixar o feminismo em seu estilo de vida. Obviamente, essa maneira de pensar fez o feminismo ser mais aceitável, porque seu pressuposto subjacente é que mulheres podem ser feministas sem fundamentalmente desafiar e mudar a si mesmas ou à cultura.
A dualidade mulher x homem que certos discursos parecem produzir, se proliferam. Nos últimos cinco anos, por exemplo, a expressão feminazi4, em alusão a “feministas nazistas”, que querem a morte dos homens, se disseminou de tal forma, que movimentos conservadores se utilizam dessa expressão para “combater” o feminismo. A questão aqui, porém, não é apontar as ramificações do feminismo, em um contar histórico de suas fases, mas sim, como o próprio movimento foi se diluindo na malha social neoliberal, e caindo em capturas molares, como nos diz Deleuze e Guattari (2012).
Enquanto pauta, tão fortemente usada, nas eleições presidenciais de 2019, a ala conservadora utilizava-se da associação do feminismo à morte, em decorrência da defesa da descriminalização do aborto, entre outras pautas, acirrando o discurso, também, do movimento enquanto luta das mulheres pelo lugar dos homens, fazendo do poder uma insígnia medíocre por cadeiras de quem manda e de quem é mandado. Tão claro podemos ver o paradoxo que apresentou Donzelot (1999), ao falar do moralismo econômico na produção do Estado liberal, nas pautas políticas desse tempo – a defesa da não interferência do Estado nas questões econômicas, e da total usurpação da vida das pessoas, dos corpos das mulheres, pelo poder do Estado. A “defesa” da família e a “libertação” da economia. E apesar de Hooks (2018) apontar que houve um deslocamento da individualização da questão do homem, para a do patriarcado dentro do movimento com o avanço dos estudos, de modo que todos os sujeitos (sejam homens ou mulheres) passam a fazer parte da produção desse modelo social. Com o acirramento da individualização neoliberal em seu movimento moralizante, a disseminação do feminismo também sofreu capturas que ao saírem dos espaços acadêmicos, chegou à população de forma também individualizada, esvaziada politicamente, como mencionou Hooks (2018).
E nesse ínterim do fazer na Assistência Social, enquanto trabalhadores sociais, que dizem de um lugar de Estado, não se podem esquecer que essas mulheres acompanhadas são mulheres pobres, moradoras da área mais vulnerável da cidade. E enquanto lugar de fala acadêmico, alguns conceitos necessitam ser postos em análise, para que o próprio conceito Mulher, interposto na malha social, seja aqui problematizado. Conceito este, que possibilita o próprio fazer das políticas públicas e, do nascer do feminismo. Gênero, por sua vez, tão disseminado no contemporâneo, o que tem a dizer?
Freitas, Félix e Carvalho (2018), ao questionarem se homens podem ser feministas, apontam o conceito do significante gênero, ao citarem Louro (1997, p.864), enquanto “relacional e utilizado para referir-se tanto às relações entre mulheres e homens, quanto entre homens e homens, e mulheres e mulheres, as quais são estruturadas a partir de características de masculinidade e feminilidade”. Deste modo, os estudos que partem do gênero necessitam analisar diferenças hierárquicas sociais desde gênero, classe, raça e geração, entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres. E, deste modo, pode-se ter o engajamento de homens com o feminismo enquanto uma aposta política pedagógica para produzir “um mundo mais justo, na medida em que a transformação cultural só ocorrerá efetivamente quando os homens deixarem a posição de opressores” (Louro, 1997, p. 869), posição esta criada e produzida diariamente pelo modo como se constituem as relações.
Scott (1995), ao discutir o conceito de gênero enquanto uma categoria útil de análise histórica, aponta que o termo gênero surge inicialmente entre as feministas americanas, as quais buscavam enfatizar o caráter social das distinções baseadas no sexo. Citando Natalie Davis, que em 1975, afirmou que “nosso objetivo é descobrir o leque de papéis e de simbolismos sexuais nas diferentes sociedades e períodos, é encontrar qual era o seu sentido e como eles funcionavam para manter a ordem social ou para mudá-la” (Scott, 1995, p. 72) Scott (1995) busca analisar o termo gênero enquanto uma tecnologia de poder na produção de certos modelos sociais. Partindo de duas definições para gênero, as quais, segundo ele, têm diversos subconjuntos inter-relacionados, mas analiticamente diferenciados, afirma que: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e, (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.” (Scott, 1995, p. 87), de modo que, “o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (Scott, 1995, p. 89). E, é justamente essa afirmação que interessa, para pensar o corpo da mulher enquanto dispositivo em uma cartografia que a faz objeto de poder/saber de um Estado Neoliberal.
Citando o estado de bem-estar, com “seu paternalismo protetor através de leis dirigidas às mulheres e crianças” (Scott, 1995, p. 89). Scott (1995) aponta que os regimes democráticos do séc. XX constroem suas ideologias políticas sob as insígnias das generificações. Enquanto forma de possibilitar o poder no ocidente, nas tradições judaicas-cristãs e islâmicas, o gênero, em seu conjunto objetivo de referências, organiza de forma simbólica e concreta a vida social, “na medida em que essas referências estabelecem distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos), o gênero torna-se implicado na concepção e na construção do próprio poder.” (Scott, 1995, p. 89).
A cartografia da mulher enquanto dispositivo de poder dá-se, assim, com a própria tessitura dela enquanto sujeito, com a própria materialidade dos conceitos de corpo biológico, no seu aspecto de sexo; e de gênero, em seu aspecto social de sujeito do feminismo. Questionar, desse modo, se o feminismo é para todo mundo, nesse emaranhado de linhas que aqui se tece, é justamente colocar em análise todo o discurso que faz essas mulheres sujeitos materializados em um corpo como tal.
Figueiredo (2018) aponta que Butler considera que, no processo de materialização dos corpos, há a produção dos estilos de gênero, já que para ela não há uma essência anterior ao gênero, como muito se quis com a biologização do corpo pelo sexo – macho x fêmea – mas, sim uma construção em ato, um estilo corporal, uma performance, a qual oculta sua gênese erguida nas e pelas relações de poder/saber, em processos de múltiplas construções discursivas (Vasconcelos; Cardoso; Félix, 2018).
Inúmeras são as marcas que ensejam os corpos que se atritam nas práticas cotidianas. Corpos que por vezes parecem tão indesejados e indigestos. Silva (2020, p.9) ao discutir os conceitos de precariedade de Butler e de biopolítica de Foucault, menciona que:
A vulnerabilidade, ou seja, as formas pelas quais corpos se tornam vulneráveis à ação dos outros, é tanto parte da condição que atravessa a vida física, como o exercício político do poder sobre alguns corpos de forma acentuada. Nesta perspectiva, a violência se torna a prática pela qual o poder legitima sua produção de precariedade, os modos de produção de vidas precárias. Práticas políticas que produzem a alocação diferencial da vulnerabilidade nos corpos.
O conceito de precariedade de Butler, segundo Silva (2020), diz das vidas qualificadas enquanto tal, passíveis a causarem processos de luto, efeito, por sua vez, das práticas biopolíticas. “Aqui no Brasil, por exemplo, a população negra, os travestis e transexuais, as comunidades indígenas, pessoas em situação de rua etc. sofrem de forma acentuada, em um cotidiano que não reconhece seus corpos como vivos, vidas consideradas dispensáveis.” (Silva, 2020, p. 9). Seriam essas mulheres vidas dispensáveis? Olga, Letícia, Joana, Jaque, Maria poderiam ser apenas só mais um número nas estatísticas de violência doméstica? E as tentativas de ensinar-lhes a serem autônomas financeiramente? E as inúmeras violências sofridas e desferidas por elas?
Violência ao atuar com pessoas em situações de violações de direitos, é algo que se dissemina e se alastra de diversas formas. Tanto em relação a violências institucionais, a dos companheiros contra as usuárias, quanto das usuárias para com suas filhas. A forma agressiva com que Olga fala com seus filhos, com xingamentos; as agressões físicas, o ciúme para com Letícia frente a seu companheiro, suspeito de cometer violência sexual contra esta e, o qual quase matou Olga em uma das surras lhe dera; as violências sofridas por Jaque por seu ex-companheiro, desde sexual, físicas e psicológicas; as violências sofridas por Joana, inclusive pelo ex-companheiro de Jaque que cometeu tentativa de homicídio contra ela, tentando arrancar-lhe a língua, situação que culminou com sua prisão; a relação marcada por desentendimentos e agressões físicas de Joana e suas filhas Jaque e Joice. A violência de Maria para com suas meninas, tanto psicológica, marcada, também, por xingamentos, gritos, agressões físicas e suspeitas de aliciamento. Maria que já disse algumas vezes que já apanhou muito de alguns dos pais de suas filhas. E a qual em uma das audiências, em 2020, por volta de abril, disse que seu atual companheiro a havia empurrado contra a geladeira, justificando o ato do homem, ao dizer que ele fez isso porque ela havia deixado a filha deles com as irmãs mais velhas para ir olhar um comício de um vereador. Protegeu ele, mesmo após denúncias de que esse mesmo homem estava a assediar uma de suas filhas, mesmo após suas filhas afirmarem que não gostam dele, em decorrência das agressões que a mãe sofre. Sim! Diante de tantas coisas, Maria justificou a violência sofrida, dizendo, inclusive, que ele nunca havia batido nela, mas que apenas havia lhe empurrado.
Nesse resumo de violências, duas situações se fizeram presente durante essa escrita. Situações que arrebataram a equipe e, que são atravessadas por diversos contextos de violência. A primeira, a violência doméstica que Jaque passou, inclusive com cárcere privado, o qual culminou em seu acolhimento institucional (uma jovem de 13 anos, já gestante). E a segunda, de uma mulher, que com seus cinco filhos, fugiu do município e se escondeu no banheiro de uma rodoviária na cidade vizinha. Acionados pela Rede de Proteção dessa cidade, essa família foi levada para outra cidade, na qual residiam familiares que poderiam dar-lhes apoio, inclusive a ajudar-lhe com trabalho, com a perspectiva da tal autonomia financeira, que lhe daria a liberdade que todos desejavam para ela. Em 2022, recebeu-se solicitação do TJ para acompanhamento dessa mesma família, pois as crianças, atualmente boa parte adolescentes, apresentavam comportamentos agressivos, chegando à automutilação da única filha do casal. Esta, foi encaminhada para acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico na Rede de Saúde. A equipe teve dificuldade de encontrar a família, que após anos havia voltado para o município, uma vez que, viviam a mudar de endereço por medo do ex-companheiro. Essas situações, por vezes, pareceram lançar a equipe à dualidade apolítica homem x mulher, que certas ramificações do feminismo têm construído, culpava-se apenas os homens, apontando-os como os grandes algozes, sem em análise mais ampla da própria produção do conceito gênero, naquilo que também diz do modo de ser e estar do homem.
Hooks (2018), por sua vez, aponta um revês nesse pensar. Amplia o conceito de violência doméstica enquanto violência patriarcal, criando, assim, um outro modo político que parece desenhar-se em outras linhas e, quem sabe em outros mapas o modo individualizado que homens e mulheres são vistos nessas relações de violência.
A violência patriarcal em casa é baseada na crença de que é aceitável que um indivíduo mais poderoso controle outros por meio de várias formas de força coercitiva. Essa definição estendida de violência doméstica inclui a violência de homens contra mulheres, a violência em relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e a violência de adultos contra crianças (Hooks, 2018, s/p).
Hooks (2018) descreve, assim, de uma violência em âmbito relacional, que se produz entre o modo como o poder se estrutura e organiza-se com as relações. Para tanto, a autora cita os abusos que crianças sofrem tentando proteger suas mães, as violências empreendidas contra as crianças pelas mães, como parte do contexto doméstico, de modo que, só quando se sair o foco da violência do homem contra a mulher, como a pior forma de violência no contexto doméstico, é que se poderá ampliar a compreensão para o sexismo que enseja as relações, de modo que só assim haverá mudanças em si mesmo, sejam homens, sejam mulheres. “Devemos enxergar tanto homens quanto mulheres nesta sociedade como grupos que apoiam o uso de violência, se quisermos eliminá-la.” (Hooks, 2018, s/p).
Certa vez, o CREAS recebeu uma solicitação de um dos Conselhos Tutelares para acompanhamento de um adolescente de dezesseis anos que tinha muitos conflitos com a mãe, chegando a agressões físicas entre ambos. Realizado acolhimento familiar individualizado com mãe, pai, filho e posteriormente, em outro momento, com o grupo familiar, ficou claro que a mãe era vítima de violência pelo esposo no contexto doméstico, especialmente psicológica, era constantemente tratada como um sujeito inferior, mesmo sendo independente financeiramente, mesmo sendo a grande responsável pelo custeio das despesas domésticas. E seu filho estava, apenas, replicando o comportamento do pai. Foram marcados outros acolhimentos familiares, com o objetivo de atuar nos vínculos familiares, para ampliar o diálogo, porém, não houve adesão dos homens e, como o município já tinha um CREAM (Centro de Referência Especializado de Atendimento à Mulher), com um trabalho de atuação específico com mulheres vítimas de violência doméstica, a senhora foi encaminhada, com o objetivo de fortalecê-la para que conseguisse lhe dar melhor com as dores cotidianas.
É certo que a independência financeira não acaba com a violência patriarcal. “Mais importante, aprendi com minha própria experiência que trabalhar por salários baixos não libertava mulheres pobres da classe trabalhadora da dominação masculina.” (Hooks, 2018, s/p). Donna Haraway (2009), todavia, nos fala de uma feminização do trabalho, a qual se atrela ao movimento de precarização e subalternização do mesmo. “Ser feminizado significa: tornar-se extremamente vulnerável; capaz de ser desmontado, remontado, explorado como uma força de trabalho de reserva; que as pessoas envolvidas são vistas menos como trabalhadores/as e mais como servos/as” (Haraway, 2009, p. 69).
Donna Haraway (2009) trata ainda, de uma feminização da pobreza, causada pelo desmantelamento do Estado de bem-estar, de modo que o trabalho caseiro é integrado à economia, com a falta de trabalhos estáveis, a desigualdade dos salários das mulheres em relação aos homens, e o quantitativo de lares chefiados por mulheres/mães, responsáveis pelo sustento dos lares. Sobre isso, menciona ela, “é o contexto no qual as projeções para o desemprego estrutural, como consequência das novas tecnologias, se tornam, mundialmente, parte do quadro da economia do trabalho doméstico” (Haraway, 2009, p. 72). Baseado em uma economia que a autora, citando Richard Gordon, chama de “economia do trabalho caseiro”, “uma reestruturação do trabalho que, de forma geral, tem as características anteriormente atribuídas a trabalhos femininos, trabalhos que são feitos, estritamente, por mulheres” (Haraway, 2009, p. 69).
Diante dos contextos políticos e culturais do capitalismo, Donna Haraway (2009) cita que se podem esquematizar formas específicas de famílias, diante das três principais fases do mesmo, quais sejam, comercial/industrial inicial, monopolista e multinacional. No modelo comercial/industrial inicial, Donna Haraway (2009) aponta uma família acompanhada pela ideologia burguesa branca, baseada na separação entre a esfera pública e privada, e pelo feminismo burguês anglo-americano do séc. XIX; já no monopolista, a família é mediada pelo Estado de bem-estar, com instituições como o salário-família, ao passo que, há o florescimento de ideologias heterossexuais a-feministas; e na multinacional, a “‘família’ da economia do trabalho caseiro, caracterizada por sua contraditória estrutura de casas chefiadas por mulheres, pela explosão dos feminismos e pela paradoxal intensificação e erosão do próprio gênero” (Haraway, 2009, p. 72). E com isso, o questionamento novamente se abre: O feminismo é para todo mundo? Há O Feminismo? É para essas companheiras, que mesmo enquanto chefes de suas famílias, não se veem enquanto tal, entrando em relacionamentos marcados por gestações e violências diversas?
Ao mesmo tempo em que, Jaque é, aos dezesseis anos, imposta enquanto chefe de sua família, mesmo que sem sua independência financeira; Letícia, que tomada enquanto dona-de-casa, resolve não mais estudar; Maria, que diante de tantos benefícios que recebe de programas municipais, estaduais e federias, é tão atravessada por instituições, ver-se, como diz Donna Haraway (2009, p.72) “a paradoxal intensificação e erosão do próprio gênero”, naquilo que atravessa os próprios discursos feministas de independência financeira, com o modo paradoxal das políticas intensificado na produção do sujeito de direito mulher, que as tornam objetos. E, assim, volta-se a uma questão Ética do fazer em políticas públicas: como caminhar por entre linhas ético-políticas que produzam sujeitos outros, nesses paradoxos erosivos que se fazem por entre a produção do gênero e do próprio movimento feminista?
“UNS” FEMINISMOS… OU SOBRE ALGUMAS PROPOSIÇÕES FINAIS
“Não existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mesmo uma tal situação – “ser” mulher” (Haraway, 2009, p. 47). Com essa colocação, Donna Haraway (2009), assim como Butler (2000; 2003), faz repensar a partir de ferramentas epistemológicas que produziram certo sujeito mulher e, assim, suas identidades e identificações. Porém, o que de fato seria o feminismo, diante de tantas ramificações? Segundo Hooks (2018, s/p) “feminismo é um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão.” Freitas, Félix e Carvalho (2018, p.863) o conceituam da seguinte forma:
O feminismo é um movimento social, teórico e político, que busca a igualdade – legal, social, cultural – entre mulheres e homens (Lorber, 2010). Parte do pressuposto de que vivemos em uma sociedade engendrada, que, entre outras coisas, atribui às mulheres os lugares de menor prestígio em suas diversas esferas e naturaliza o lugar dos homens (particularmente os homens brancos e heterossexuais) nas posições estratégicas de liderança e tomada de decisão. Surge como um movimento de mulheres que busca transformar as relações de dominação de gênero.
Butler (2003, p.18), ao discutir com Foucault, cita que se “os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que subsequentemente passam a representar”, de forma que, sendo essa análise correta, a constituição jurídica que produz a mulher enquanto sujeito do feminismo é uma formação discursiva e efeito de certa versão política representacional, a qual, segundo a autora, ao se apelar para um formato acrítico do próprio sistema, na busca de uma emancipação política das mulheres, esse sistema representacional encontra-se inelutavelmente fadado ao fracasso.
Fracasso, por sua vez, é um sentimento inelutável nos discursos das equipes da Rede de Proteção. Mulheres forjadas enquanto tal, por entre um sistema jurídico, que atua em concomitância com trabalhadores sociais, que a princípio seguem políticas que se dizem públicas para a produção de sujeitos autônomos de suas vidas, esquecem-se, porém, de frisar, que a principal autonomia desejada no modelo neoliberal é a econômica, sendo o modo de vida das populações mais pobres, a linha de acesso do controle a essas vidas. Figueiredo (2018), todavia, ao escrever sobre gênero, a partir de um desfazer de suas teorizações naturalizadas, aponta que não há sexualidade, nem antes, nem depois do poder. Ao citar a apreensão do conceito de devir de Deleuze e Guattari feito por Butler, o qual nos diz de agenciamentos, que são coletivos, os quais produzem desterritorializações e reterritorializações, de modo que, “mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e re-significações” (Butler, 2010, p. 59)”. A discussão que esses autores nos trazem, assim, são das próprias engrenagens de poder que materializam os corpos enquanto sexo biológico – macho x fêmea e, os generificam – masculino x feminino.
Como foi citado no tópico sobre os casos escolhidos para análise na pesquisa, o não saber das histórias de vida de Maria, Olga, Joana e suas filhas, é parte da própria engrenagem do poder que esvazia essas vidas de significações afetivas e, as fazem vivas na relação com o Estado. Vidas conhecidas por entre as violações sofridas e realizadas. Mulheres produzidas no discurso de direito, que não as tocam, mas que as cortam. Nada se sabe sobre suas infâncias, laços, dores, relações comunitárias, a feitura dessas mulheres enquanto pessoas do bairro mais pobre do município, se sabe dos seus “pecados”, de suas faltas, dos seus não cumprimentos de acordo, dos seus comportamentos de “más mães”.
No jogo discursivo, os sujeitos jurídicos são produzidos. Sujeitos estes, que segundo Butler (2003), são imprescindíveis para a política, e particularmente para a política feminista, todavia, sendo produzidos por práticas excludentes, que por entre as relações de poder não aparecem, “a construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento.” (Butler, 2003, p. 19). Fundamento este que naturaliza o sujeito mulher, que dita quantas Marias tornam-se requeridas em processos judiciais, e quantas outras se tornam estatísticas de violência doméstica.
O poder jurídico "produz" inevitavelmente o que alega meramente representar; consequentemente, a política tem de se preocupar com essa função dual do poder: jurídica e produtiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a noção de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei. Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das "mulheres”, o sujeito do feminismo, produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca a emancipação. (Butler, 2003, p. 19).
Porém, não se pode simplesmente recusar a política representacional que estrutura as linguagens jurídicas e políticas contemporâneas do poder, cabe, segundo Butler (2003, p.22) uma “genealogia crítica de suas próprias práticas de legitimação” – cartografia dos corpos – no caso aqui dessa escrita, das engrenagens de poder que possibilitam a produção desses corpos.
Butler (2000, p.110) ao questionar: “Por que nossos corpos deveriam terminar na pele?”, discute a própria materialidade do corpo por meio da materialidade do sexo, de modo que, problematizar o sexo é problematizar as normas regulatórias que materializam os corpos em certos modos identitários de sexo, gênero. “Se pensamos realmente no corpo como tal, não existe nenhum possível contorno do corpo como tal. Existem pensamentos sobre a sistematicidade do corpo, existem codificações que atribuem valores ao corpo.” (Butler, 2000, p. 110).
Sendo a diferença sexual evocada por questões materiais, e estas formadas por práticas discursivas, o sexo não é apenas uma norma regulatória, mas sim uma prática regulatória que fomenta os próprios corpos que governa. “O poder que, assim, toma a seu cargo a sexualidade, assume como um dever roçar os corpos; acaricia-os com os olhos; intensifica regiões; eletriza superfícies; dramatiza momentos conturbados. Açambarca o corpo sexual.” (Foucault, 1988, p. 44). O que existe, então, são codificações que valoram os corpos, em certas performatividades corporificadas nas expressões de sexo e gênero naturalizados, que se dá por meio das práticas regulatórias do sexo que atuam de forma performativa a materializar o sexo do corpo (Butler, 2000). De modo que, “subjetivado pelo gênero, o "eu" não precede nem segue o processo dessa generificação, mas emerge apenas no interior das próprias relações de gênero e como a matriz dessas relações.” (Butler, 2000, p. 116).
É essa naturalização do sexo e dos construtos sociais que produzem o gênero que embasa a própria produção do sujeito mulher, que conduz a política representacional que quer defender, e é esse natural corpóreo que Butler (2000; 2003) problematiza, diante das discussões feministas, uma vez que, se baseia em uma epistemologia da substância, de um corpo que tem em sua própria materialidade erigida em discursos de saber/poder que são encarnados como naturais. “Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por força, a identidade.” (Louro, 2000, p. 8), através de marcas que somos treinados a identificar e a nos identificar enquanto emergência dos sujeitos – emergência de nossa subjetividade. “Treinamos nossos sentidos para perceber e decodificar essas marcas e aprendemos a classificar os sujeitos pelas formas como eles se apresentam corporalmente, pelos comportamentos e gestos que empregam e pelas várias formas com que se expressam.” (Louro, 2000, p. 9).
Dando um revês ao próprio corpo, Donna Haraway (2009), ao pensar por meio da metáfora de um ciborgue, menciona que as feministas devem codificar os desmontes e remontagens do ciborgue, o qual
...é uma criatura de um mundo pós-gênero: ele não tem qualquer compromisso com a bissexualidade, com a simbiose pré-edípica, com o trabalho não alienado. O ciborgue não tem qualquer fascínio por uma totalidade orgânica que pudesse ser obtida por meio da apropriação última de todos os poderes das respectivas partes, as quais se combinariam, então, em uma unidade maior. Em certo sentido, o ciborgue não é parte de qualquer narrativa que faça apelo a um estado original, de uma “narrativa de origem”, no sentido ocidental, o que constitui uma ironia “final”, uma vez que o ciborgue é também o telos apocalíptico dos crescentes processos de dominação ocidental que postulam uma subjetivação abstrata, que prefiguram um eu último, libertado, afinal, de toda dependência – um homem no espaço. (Haraway, 2009, p. 39).
Kunzru (2009) ao discutir com o conceito-força ciborgue de Donna Haraway aponta que “os modems estão no centro da política ciborguiana. Ser uma ciborgue não tem a ver simplesmente com a liberdade de se autoconstruir. Tem a ver com redes.” (Kunzu, 2009, p. 27). E isto rompe com uma perspectiva epistemológica na medida em que decreta fim ao “eu penso, logo existo” de Descartes, que consolidou o pensamento moderno em certa condição do “eu”. Episteme esta que ensina aos sujeitos que existe um interior dentro de seu pensamento, que se conecta com o mundo. O ciborgue de Haraway, por sua vez, “não está sujeito à biopolítica de Foucault; o ciborgue simula a política, uma característica que oferece um campo muito mais potente de atividades.” (Haraway, 2009, p. 63), produzindo, dessa forma, o pensamento em outra perspectiva – em termos de rede, fluxos, intensidades. Exatamente como sugere a perspectiva deleuziana, já que, “o mundo não seria constituído, então, de unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas unidades em sua passagem.” (Tadeu, 2009, p. 13). A metáfora ciborguiana, assim, diz de outra epistemologia, que arromba com o pensamento cartesiano de construção do Homem, que embasa a produção das identidades, para uma epistemologia que se dá no fluxo dos agenciamentos, de forma a tencionar junto às feministas- ciborgue, “que “nós” não queremos mais nenhuma matriz identitária natural e que nenhuma construção é uma totalidade” (HARAWAY, 2009, p. 52).
Donna Haraway (2009, p.64) ao construir seu conceito-força ciborgue a partir da premissa de que “as tecnologias de comunicação e as biotecnologias são ferramentas cruciais no processo de remodelação de nossos corpos”, toma o próprio corpo enquanto engrenagem de um processo de coprodução de si e do mundo, haja vista que,
...as ciências da comunicação e as biologias modernas são construídas por uma operação comum – a tradução do mundo em termos de um problema de codificação, isto é, a busca de uma linguagem comum na qual toda a resistência ao controle instrumental desaparece e toda a heterogeneidade pode ser submetida à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca. (Haraway, 2009, p. 64).
Rompendo, também, com o movimento da mulher “mãe-natureza”, o qual aponta que para as mulheres encontrarem-se consigo mesmas, necessitam romper com o mundo moderno, e se conectar espiritualmente com a mãe terra. Donna Haraway é famosa por ter uma vez afirmado: “prefiro ser uma ciborgue a ser uma deusa”, “desafiando a tradicional concepção feminista de que a ciência e a tecnologia são pragas patriarcais a assolar a superfície da natureza” (Kunzru, 2009, p. 22). Essa tomada da subjetividade como um movimento high-tech, que muda o modo de pensar as fronteiras, que são constantemente modificáveis, maleáveis e perecíveis, produz um corpo que se faz por entre as codificações de seu tempo, corpos que “se tecem encarnando normas regulatórias de gênero, mas também (re)existem, (trans)formam-se, desfazem toda uma linearidade e fixidez de gênero dada de antemão.” (Vasconcelos; Cardoso; Félix, 2018, p. 15).
Linhas duras, linhas que se flexibilizam, linhas que potencializam fugas (Deleuze & Parnet, 1998) é o que o ciborgue, na relação homem/máquina de nossos tempos, por entre redes, fluxos e intensidades, tenciona, em uma guerra de fronteiras, como nos diz Haraway (2009), nos territórios da produção, reprodução e imaginação, borrando as tradições da ciência e da política ocidentais, do progresso, da apropriação da natureza enquanto matérias culturais. “O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica.” (Haraway, 2009, p. 38).
Deleuze e Guattari (2012) mencionam que “parece que as sociedades modernas promoveram a segmentaridade dual ao nível de uma organização suficiente. A questão, portanto, não é saber se as mulheres ou os de baixo têm um estatuto melhor ou pior, mas de que tipo de organização tal estatuto decorre” (Deleuze & Guattari, 2012, p. 94), organização esta que toma as mulheres enquanto dispositivo, produzindo-as dentro de um sistema identitário. É por isso, então, que a mulher do feminismo necessitou ser problematizada, por meio do encontro em ato dos corpos da pesquisadora com as mulheres “objetos”, em um dançar de afetos e afecções, em uma linguagem que se quis pensar com o corpo, haja vista que,
A escrita é, preeminentemente, a tecnologia dos ciborgues – superfícies gravadas do final do século XX. A política do ciborgue é a luta pela linguagem, é a luta contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz todo significado de forma perfeita – o dogma central do falogocentrismo. É por isso que a política do ciborgue insiste no ruído e advoga a poluição, tirando prazer das ilegítimas fusões entre animal e máquina. São esses acoplamentos que tornam o Homem e a Mulher extremamente problemáticos, subvertendo a estrutura do desejo, essa força que se imagina como sendo a que gera a linguagem e o gênero, subvertendo, assim também, a estrutura e os modos de reprodução da identidade “ocidental”, da natureza e da cultura, do espelho e do olho, do escravo e do senhor. (Haraway, 2009, p. 88).
Maria, Joana, Olga e suas filhas são encontros atravessados por inúmeras linhas, em uma cartografia que possibilita ver o bailar biopolítico da vida, assim como, fronteiras de outros modos, cada uma com sua ruptura por entre as políticas. Repensar, assim, a tomada desses corpos enquanto sujeito de direitos, problematizando com outras perspectivas epistemológicas como a ciborgue, abre uma fenda ético-política no fazer com as políticas públicas, qual seja, tocar e sentir com esses corpos, permitir o encontro com os mesmos, escrever com eles suas histórias, tecendo com eles outras linhas que os enredam em tais lugares de afecção de poder biopolítico, como quando Maria em uma audiência questionou a juíza ao ser inquirida em como poderia mais uma vez estar grávida, diante de sua condição econômica com mais oito filhas para criar, e sua resposta de: “o que é que tem?”, aponta um corpo que ali enfrenta inúmeras tecnologias de governamentalidade. Qual a relação de Maria com a maternidade? Com seu papel de mulher dentro de uma relação matrimonial? Não se sabe, e talvez tecer com ele esse saber, seja um caminho para possibilitar-lhe a produção de outro poder sobre si, sua vida. E nesse ínterim, volta-se a questão: o feminismo é para todo mundo? Hooks (2018), por sua vez, nos responde que: “Para assegurar a relevância contínua do movimento feminista em nossa vida, a teoria feminista visionária deve ser constantemente elaborada e reelaborada, de maneira que se relacione a nós, onde vivemos, em nosso presente... O feminismo é para todo mundo.” (Hooks, 2018, s/p), em um bailar de corpos que podem perder suas fronteiras, virar, revirar, fazer-se, desfazer-se.
Esta cartografia, com mulheres vítimas de violações de direitos acompanhadas pela Rede de Proteção da Assistência Social, pretendeu desenredar linhas duras compostas por entre tecnologias biopolíticas de governamentalidade, que produziram certos corpos mulheres, por entre o próprio discurso identitário de sujeitos de direito, apontando como a própria política do feminismo em seu modelo substancial produz as ferramentas para a tomada desses corpos, que esquecidos enquanto vida pulsante de afetos e afecções são tornados objetos de intervenção. Os casos escolhidos foram três entre inúmeros. Três famílias com suas mulheres objetos de processos e procedimentos jurídicos. Maria, Olga, Joana e suas filhas são conhecidas e reconhecidas pela Rede de Proteção pelos números de seus processos no Tribunal de Justiça e de seus procedimentos no Ministério Público, nos outros equipamentos da Rede, como os da própria Assistência Social, que diz de uma política comunitária, pouco se sabe além dos discursos jurídicos policialescos de regulação do modo como tais mulheres vivem suas vidas e cuidam de suas filhas.
REFERÊNCIAS
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Notas
Entretanto, o termo vem sendo mais popularizado atualmente, tomando proporções que vão além dos direitos reprodutivos, acirrando ainda mais a luta feminista pela igualdade de direitos.
Os meios de comunicação e a internet, com a invenção das redes sociais, são espaços onde é possível encontrar diversos casos em queo uso do termo feminazi seja utilizado para deslegitimar ou descaracterizar o espaço de fala dado a uma mulher feminista.
Disponível em: https://www.significados.com.br/feminazi/
Notas de autor
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Como citar: Rodrigues, A. M. P., & Zoboli, F. (2023). “Feminismo é para todo mundo?”: notas sobre mulheres vítimas de violações de direitos. Revista Tempos e Espaços em Educação, 16(35), e19177. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v16i35.19177
Contribuições dos Autores: Rodrigues, A. M. P.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Zoboli, F.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.