Resumo: O objetivo do artigo é analisar as concepções de inovação educacional presentes na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC) e nas propagandas publicitárias do Novo Ensino Médio. De cunho qualitativo, documental e bibliográfico, o estudo analisou as propagandas do Novo Ensino Médio veiculadas na TV, rádio, redes sociais, além do documento oficial da BNCC e da Lei 13415/2017. Com base nos dados, adotamos a abordagem da Análise Crítica do Discurso, desenvolvida por Fairclough, na qual considera a prática discursiva como uma forma de confronto por hegemonia, capaz de reproduzir, reorganizar ou contestar as normas discursivas estabelecidas. Nas propagandas, o Novo Ensino Médio é apresentado como uma inovação, mas a BNCC é, intertextual e interdiscursiva baseada em filosofias educacionais neoliberais das décadas de 70 e 90, dando prioridade a uma educação centrada nos princípios do mundo do trabalho e negligenciando outras áreas do conhecimento.
Palavras-chave: BNCC, Inovação, Novo ensino médio.
Abstract: The aim of the article is to analyze the conceptions of educational innovation presented in the National Common Curricular Base of High School (BNCC) and in the advertising campaigns of the New High School. Employing a qualitative, documentary, and bibliographic approach, the study examined the advertisements of the New High School disseminated on TV, radio, and social media, as well as the official BNCC document and Law 13415/2017. Drawing on the data, we adopted Fairclough's Critical Discourse Analysis, which regards discursive practice as a form of hegemonic confrontation capable of reproducing, reorganizing, or contesting established discursive norms. In the advertisements, the New High School is presented as an innovation, yet the BNCC is intertextual and interdiscursive, based on neoliberal educational philosophies from the 70s and 90s, prioritizing an education centered on the principles of the labor market while neglecting other areas of knowledge.
Keywords: BNCC, Innovation, New high school.
Resumen: El objetivo del artículo es analizar las concepciones de innovación educativa presentes en la Base Nacional Común Curricular de la Educación Secundaria (BNCC) y en las campañas publicitarias de la Nueva Educación Secundaria. Con un enfoque cualitativo, documental y bibliográfico, el estudio examinó los anuncios de la Nueva Educación Secundaria transmitidos en televisión, radio, redes sociales, así como el documento oficial de la BNCC y la Ley 13415/2017. Basándonos en los datos, adoptamos el enfoque del Análisis Crítico del Discurso desarrollado por Fairclough, que considera la práctica discursiva como una forma de confrontación hegemónica capaz de reproducir, reorganizar o cuestionar las normas discursivas establecidas. En los anuncios, la Nueva Educación Secundaria se presenta como una innovación, pero la BNCC es intertextual e interdiscursiva, basada en filosofías educativas neoliberales de las décadas de 1970 y 1990, dándole prioridad a una educación centrada en los principios del mundo laboral y descuidando otras áreas del conocimiento.
Palabras clave: BNCC, Innovación, Nuevo liceo.
Artigos
Tudo é novo? uma análise das significações de “inovação curricular” no Novo Ensino Médio
Is everything new? an analysis of the meanings of curriculum innovation around the New High School
¿Todo es nuevo? un análisis de los significados de la innovación curricular en torno a la Nueva Escuela Secundaria
Recepción: 07 Abril 2023
Aprobación: 07 Junio 2023
Publicación: 15 Agosto 2023
O cenário educacional brasileiro que compreende as mudanças em torno do Ensino Médio destaca sentidos de inovação como tendência cada vez mais presente no debate das políticas curriculares. O que poderia ser producente, caso o tema não fosse mobilizado a atender a uma lógica de produção capitalista e de transformação da educação num negócio lucrativo. Entendemos que a política curricular nacional é endereçada e anuncia o que é importante para conhecer e que tipo de sujeito precisa ser formado na ordem societal.
Logo, a presente investigação diz respeito à produção documental e publicitária do Novo Ensino Médio e suas concepções de inovação educacional. Ao centro desse processo de análise, estarão os sentidos textuais de inovação curricular presentes no documento oficial que trata a BNCC. Nesse campo de disputas, nas quais submergem as políticas curriculares e o currículo, propomos investigar: quais as hegemonias discursivas em torno da inovação educacional no Novo Ensino Médio? Como as propagandas investiram discursivamente nessa proposição? Como se configura na BNCC o sentido de inovação educacional? Que concepções de educação ela resguarda? Partiremos do pressuposto que nem toda inovação implica necessariamente a promoção de justiça educacional.
Essa escolha investigativa ocorreu em face da urgência adotada na elaboração e implementação da BNCC, e como essa política investiu discursivamente em torno de um consenso de inovação educacional. Pretendemos enxergar potencialidades de analises na interdiscursividade e intertextualidade como maneiras de captar contradições dentro do texto oficial da BNCC de 2017 e as propagandas publicitárias do Novo Ensino Médio.
Um olhar atento para as significações de inovação educacional investida no documento que norteia a reforma curricular de 2017 e as propagandas publicitárias do Novo Ensino Médio possibilita desnudar a tentativa de empregar termos progressistas a tal política, bem como, permite entender o currículo, não como parte limitante a uma base, mas expressivo de significações em sua dimensão sócio político. Não há inovação educacional, se o processo for fundamentado em competências “para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Brasil, 2018). “Sob a aparência do “novo”, acobertam-se velhos discursos e propósitos” (Silva, 2018).
É incontestável que a necessidade de inovação está presente na construção das políticas curriculares. No entanto, quando há uma desconexão com as realidades escolares, isso pode levar ao fracasso, ao atribuir aos educadores a responsabilidade pelos problemas educacionais. Diante desse cenário, questionamos, junto com Silva (2016), a viabilidade de um "currículo nacional" contextualizado. Uma vez que, a uniformização está alinhada com o cerceamento do exercício da liberdade e autonomia escolar, docente e discente, afetando a produção conjunta do projeto educacional que fundamenta a proposta curricular da escola.
Acreditamos que a inovação é um processo e/ou atitude construído nas relações entre o conhecimento, os sujeitos e os processos da escola (Nóvoa, 1988), o que impossibilita sua imposição. Contrariando essa concepção de inovação, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ressalta que "a sociedade contemporânea exige uma abordagem inovadora e inclusiva para questões centrais do processo educativo: o que aprender, para que aprender, como ensinar, como promover redes de aprendizagem colaborativa e como avaliar o aprendizado" (Brasil, 2018). No entanto, essa ideia de inovação é limitada por fronteiras estabelecidas para os processos didártico- pedagógicos na relação entre ensinar-aprender. Conforme destacado por Cardoso (1997), buscar a inovação implica em trazer algo genuinamente "novo" para a realidade educacional, em vez de apenas renovar, o que implica em apresentar algo com uma nova aparência, sem modificar o essencial.
Assim, a BNCC é um documento normativo, que define aprendizagens essenciais para o público em todas etapas e modalidades da Educação Básica (Brasil, 2018). Aprovada em 2017 pelo Conselho Nacional de Educação, em um processo formulador que segundo Albino (2019), negas as diferenças por estar marcada por ideologias e tensões. Corroboramos com a construção de percursos curriculares equitativos, representativos e democráticos que incorporem as necessidades locais e os sujeitos que estão no chão da escola. É importante compreender a realidade da escola e reconhecer que a inovação depende de elementos como garantir condições de trabalho adequadas para os professores, superar as desigualdades e implementar políticas que busquem promover a mudança social e aprimorar a educação e formação.
Assim, este trabalho estar dividido em três partes, as considerações teóricas e metodológicas são realizadas no primeiro tópico. No segundo momento trataremos dos aspectos históricos em torno da BNCC, que visa detalhar o processo de elaboração e as principais influências tecidas sob tal política. A terceira parte contém as significações da inovação na educação, no documento da BNCC e nos matérias publicitários, apresentado contradições sobre o ato de inovar: por um lado, os documentos oficiais; por outro lado, a análise discursiva dos textos midiáticos.
Este estudo consiste em uma pesquisa qualitativa e exploratória que tem como objetivo analisar os sentidos de inovação presentes na Base Nacional Comum Curricular do ensino médio (BNCC) e como as propagandas publicitárias são utilizadas para esse propósito. Dessa forma, a abordagem qualitativa da pesquisa busca obter uma compreensão específica do objeto de estudo, concentrando-se em aspectos particulares, singulares e individuais, buscando sempre compreender, em vez de explicar, os fenômenos investigados (Prodanov & Freitas, 2013).
Considerando que o foco de análise é a política curricular nacional e os sentidos de inovação educacional, nossa fundamentação teórica se baseia em diversas fontes, como literatura especializada, documentos e pesquisas no campo do currículo. Para isso, utilizamos como principais fontes de pesquisa o documento orientador da BNCC, a Lei 13415/2017 e as propagandas publicitárias relacionadas ao Novo Ensino Médio. Complementamos essas fontes com estudos teóricos presentes em periódicos, livros, blogs e jornais.
O recorte analítico foi direcionado especificamente para as propagandas do Novo Ensino Médio, veiculadas em diferentes meios de comunicação, como televisão aberta, rádio e redes sociais, além do texto oficial da BNCC e da Lei 13415/2017. Abordamos esses materiais sob uma perspectiva discursiva, considerando-os como campos de estudo que exercem influência e buscam estabelecer hegemonia.
A abordagem analítica adotada neste estudo segue a perspectiva da Análise Crítica do Discurso (ACD), baseada nas ideias de Fairclough (2001). Segundo essa abordagem, a prática discursiva é considerada como um "modo de luta hegemônica, que reproduz, reestrutura ou desafia as ordens de discurso existentes" (Fairclough, 2001). A Análise Crítica do Discurso (ACD) é tanto uma teoria quanto um método de análise, e suas proposições apontam para o caráter linguístico- discursivo de questões sociais e políticas-chave. Nessa perspectiva, a dialética é vista como uma parte essencial, pois é moldada pela estrutura social e, por sua vez, contribui para a constituição dessa estrutura.
A análise do discurso no contexto da pesquisa sobre os sentidos de inovação priorizará a prática social. Assim, destacamos algumas hegemonias discursivas em torno do Ensino Médio, e os sentidos de novidade/inovação que incidem com maior destaque na mídia e nos documentos (BNCC e na Lei 13415/2017).
Para obter uma compreensão da trajetória histórica da BNCC, é relevante examinar documentos legais que enfatizam a elabaração de uma política de currículo comum no ambito nacional. Esses documentos incluem a Constituição Federal de 1988, a Lei nº 9.394/1996, a Resolução CNE/CEB nº 4/2010 e a Lei nº 13.005/2014 (Figura 1).
É evidente que, desde o processo de redemocratização no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988, documentos oficiais já indicavam o desenvolvimento de uma política curricular padronizada para as redes de ensino brasileiro. Posteriormente, outros documentos legais foram elaborados com exigências normativas em torno do currículo, de modo que, no Plano Nacional de Educação de 2014 (PNE), houve um aumento no debate em torno de uma base nacional. Conferindo a BNCC como estratégia fundamental para atingir as metas 1, 2, 3 e 7 do documento.
No processo de elaboração do PNE (2014-2024), observou-se a influência significativa de autores ligados ao terceiro setor. Houve uma pressão exercida pelos reformadores empresariais do setor educacional, composto por grandes corporações empresariais, fundações do setor privado, instituições filantrópicas, bancos e políticos. Além disso, “a mídia desempenhou um papel importante ao difundir e legitimar sua visão de mundo, valores, concepção de sociedade e de educação” (Freitas, 2012). Para Rodrigues, Pereira, e Mohr (2020), a referência inicial citada a uma "base nacional comum dos currículos" para a educação básica é feita de forma mais evidente em 2014 com o PNE, referenciada pela Lei 13.005/14. No ano de 2017, após anos da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), ocorre uma modificação através da Lei nº 13.415, que passa a mencionar a "Base Nacional Comum Curricular".
A influência dos reformadores empresariais do setor educacional teve um papel decisivo na elaboração da BNCC, com a aproximação do MEC aos bancos, grupos empresariais, fundações e sociedades filantrópicas, tais como: Lemann, Bradesco, Gerdau, Santander, Natura, Fundação Victor Civita, Volkswagen, Fundação Roberto Marinho, CENPEC, Itaú (Unibanco), Todos pela Educação e Amigos da Escola. No entanto, é cabível questionar: O que leva esses coletivos, corporações do setor privado e filantrópico a ganhar maior influência na elaboração da BNCC do que estudiosos do currículo e professores e gestores que atual diretamente na educação básica?
Para compreender a trajetória da BNCC, Tarlau e Moeller (2020) apontam que o objetivo da Lemann foi oferecer substância à ideia de uma estrutura curricular de “base”. Houve ainda um movimento oportunista que aproveitou o próprio processo de produção do Plano Nacional de Educação.
Esse fator ímpar nos parece bastante preocupante, pois, na época, ainda não havia articulação entre os pesquisadores e acadêmicos do Currículo Escolar para justificar um projeto político curricular comum para a educação. Contudo, grupos privados já articulavam tais propostas alinhadas ao Banco Mundial. Assim, apresenta Souza (2019):
Entre os pesquisadores de currículo do Brasil não havia qualquer articulação em defesa da proposta de criação de uma base, por outro lado, as demandas do Banco Mundial, numa perspectiva que atrela a educação ao crescimento econômico e às necessidades de mercado, se veem refletidas nesse documento. Isso nos leva a considerar que o surgimento de tal demanda é também resultado de articulações de agentes privados que veem na educação um caminho para manutenção do sistema econômico que garante sua existência e sua prosperidade financeira (Souza, 2019).
A elaboração da BNCC ocorreu em três versões distintas. A primeira versão foi iniciada em 2015 e envolveu três grupos com diferentes perspectivas sobre o processo de formulação. O primeiro grupo era composto por reformadores liberais, representantes de empresas educacionais e instituições privadas. O segundo grupo era formado por reacionários que defendiam o projeto "Escola sem Partido". Já o terceiro grupo estava ligado a entidades acadêmicas, professor e estudiosos do currículo que atuaram em defesa da escola pública de qualidade, bem como em prol aos movimentos sociais, a Constituição de 1988 e a LDB de 1996 (Aguiar, 2018).
A primeira versão da BNCC foi publicada no portal do Ministério da Educação e Cultura (MEC) em 2015, no qual no mesmo ano passou por um processo de consulta pública. Segundo informações obtida no portal do MEC, cerca de 12 milhões de participações, que foram recebidas da sociedade civil e por professores através de fóruns virtuais. Segundo Triches e Aranda (2018), os fóruns virtuais foram realizados em três categorias: individual, organização e redes. Os professores puderam contribuir individualmente ou em redes, como membro escolar. A baixa taxa de participação da rede escolar pode ser verificada considerando que apenas 45.049 escolas e contribuíram no portal. Os dados revelam que somente 25% das escolas acessaram o portal e efetuaram o registro de sua participação.
Em 2016, o MEC divulgou uma segunda versão do documento em meio à instabilidade econômica e política que levou ao golpe que destituiu a presidente eleita Dilma Rousseff. Essa proposta curricular foi acompanhada por uma série de oficinas e seminários realizados pelas redes estaduais e municipais de ensino para os professores da educação básica. Segundo Rodrigues, Pereira e Mohr (2020), a BNCC é um documento que carece de um embasamento teórico- metodológico consistente e apresenta grandes divergências entre suas três versões. Além disso, os autores envolvidos na sua elaboração estiveram “intimamente ligados às atividades do MEC, CONSED, UNDIME (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e ao Movimento pela Base (principalmente o grupo Todos pela Educação), organizações que sofrem forte influência de grupos empresariais”.
A terceira versão da base foi homologada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2017 de forma apressada. Para Tarlau e Moeller (2020), “essa versão era muito mais parecida com as iniciativas curriculares do governo do PSDB nos anos 1990 do que as versões desenvolvidas sob o governo do PT”. De tal forma que, “é no contexto pós-golpe que as políticas públicas educacionais abandonaram suas contradições explícitas e se apresentam pautadas, de forma cristalina, no tecnicismo e gerencialismo de caráter meritocrático e excludente” (Cury et al., 2018).
Analisar esse desenho que vem se estabelecendo na política curricular nas últimas três décadas e, sobretudo na reforma curricular de 2017, revela histórias que não são apresentadas na escola ou no documento oficial. A “arena de influência” de setores privados em torno da BNCC, expressa velhos propósitos neoliberais para a educação. Conforme mencionado por Freitas (2014), os reformadores estão simplesmente resgatando uma filosofia pragmatista do início do século XIX, mas em contextos tecnológicos e de controle social mais exigente, e a apresentam como "inovação". No entanto, isso se resume, mais uma vez, em adequar a escola às demandas do mundo do trabalho e, principalmente, ao aumento a produtividade para restaurar taxas de acumulação de riqueza.
O Movimento pela Base tem defendido a BNCC, ao alegar que a desigualdade educacional ocorre pelo fato de existirem várias propostas curriculares. Essa visão simplificada, de problemas maiores e mais complexos, reduz as experiências, as necessidades e o trabalho docente a uma padronização dita como "justa" e "competente", mas para quem serve essa semântica de justiça e competência? Nos moldes nos quais foram elaboradas, não seria uma pretensão autoritária propor soluções curriculares verticalizadas para coletivos que têm nos cotidianos a construção de experiências e conhecimentos capazes para a transformação?
Em 2015, a ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação) e a ABdC (Associação Brasileira de Currículo) expressaram sua oposição ao documento da BNCC no período de consulta pública. Ao destacarem a falta de compromisso do MEC com políticas democráticas, a nota emitida pela ANPEd e ABdC apontou que nos últimos anos o MEC tem dado voz a um projeto de unificação e mercantilização, seguindo as "tendências internacionais de uniformização/centralização curricular + testes em larga escala + responsabilização de professores e gestores", como evidenciado na BNCC e em suas avaliações padronizadas externas complementares e hierarquizantes.
A ANPEd, no ano de 2017, em nota contrária a terceira versão da BNCC, elencou uma série de preocupações em torno do documento:
- A BNCC é um documento inspirado em experiências de centralização curricular, tal como o modelo do Common Core Americano, o Currículo Nacional desenvolvido na Austrália, e a reforma curricular chilena - todas essas experiências amplamente criticadas em diversos estudos realizados sobre tais mudanças em cada um desses países;
- A retirada do Ensino Médio do documento fragmentou o sentido da integração entre os diferentes níveis da Educação Básica, ao produzir centralização específica na Educação Infantil e Ensino Fundamental;
- É preocupante também a retomada de um modelo curricular pautado em competências. Esta “volta” das competências ignora todo o movimento das Diretrizes Curriculares Nacionais construídas nos últimos anos e a crítica às formas esquemáticas e não processuais de compreender os currículos;
- A retirada de menções à identidade de gênero e orientação sexual do texto da BNCC reflete seu caráter contrário ao respeito à diversidade e evidencia a concessão que o MEC tem feito ao conservadorismo no Brasil;
- A concepção redutora frente aos processos de alfabetização e o papel da instituição escolar na educação das crianças (Diretoria da ANPEd, 2017).
A partir dessas colocações é pertinente analisar os percursos e contextos em torno da elaboração da BNCC, como um espaço de luta e manutenção do poder sob a ótica de Foucault (2003): “[...] o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força”. A base afirma ser uma novidade no cenário educacional e uma política necessária para melhoria da educação brasileira, porém, entendemos que o sentido de inovação sucumbe à preservação do poder e dos interesses de grupos privilegiados. A base não se destina a resolver os problemas estruturais da educação no Brasil. A realidade escolar sufoca a base assim como a base tenta sufocar a realidade.
No contexto da produção curricular no tempo e no espaço histórico, os discursos de inovação na política curricular são inconsistentes. Escolher como conduzir esse diálogo não é uma tarefa fácil, especialmente pela carência de pesquisas relacionadas à aproximação entre inovação e a BNCC. Ao considerar esse campo de discussão antagônico, recorremos a autores como Nóvoa (1988), Teixeira (2010), Messina (2001), Cardoso (1992) e Paulo Freire (1992), que enfatizaram os sentidos de inovação no campo da educação.
Como pano de fundo, o termo inovação é polissêmico e contém múltiplos significados. Um ponto importante a ser analisado na construção desse sentido, é, para que o termo é utilizado e em que contexto. Comumente, a inovação imprime a novidade como algo necessário e urgente para melhorar um problema que precisa de mudança. No entanto, como aponta Cardoso (1992), a inovação não pode ser vista como mera reforma de algo que é imposto:
A inovação não é sinónimo de reforma, na medida em que esta poderá ser apenas assimilável ao conceito de "inovação instituída", quer dizer, uma inovação que resulta do exercício de um poder instituído de que dispõe o planificador e o legislador, elementos que, em geral, são exteriores à escola onde esta deve ser aplicada. Como se depreende facilmente, o conceito de inovação ultrapassa largamente o conceito de reforma (Cardoso, 1992).
Nessa abordagem, Messina (2001), menciona a respeito da fragmentação de sentido sobre a inovação:
Um ponto central é que, a partir dos anos oitenta, a inovação foi adotada como bandeira por grupos que definem as políticas no campo da educação. Ao tornar-se oficial, a inovação tornou- se conservadora. Em um mundo tão globalizado como fragmentário, a inovação educacional é atualmente uma estratégia que parte do centro, portanto, um mecanismo a mais de regulação social e pedagógica. Também opera como um mecanismo de recentralização e de homogeneização. Ao transformar-se em uma das estratégias preferenciais das reformas, a inovação foi ela mesma reformada. Decorre daí que o primeiro ponto a problematizar é o lugar em que se situa a inovação e para que (e para quem) foi pensada. Falta encarar como promover o novo em sistemas de relações que se distanciem da divisão entre centro e periferias. Ficam pendentes também a relação entre história e inovação, entre capital simbólico, patrimônio e inovação. Finalmente, o debate leva à relação entre reforma e revolução (Messina, 2001).
De acordo com as investigações realizadas por Teixeira (2010), o sentido de inovação envolve elementos fundamentais, tais como, transformação, desenvolvimento e aprimoramento. Para o autor, inovação remete à compreensão de novidade, mas dentro de um processo sistematizado e consciente para melhoria do trabalho pedagógico.
Ao mesmo tempo Nóvoa (1988) vem afirmar que a inovação não se decreta. Ou seja, a abordagem inovadora na educação é uma postura que demanda tempo, ação persistente, além de exigir esforço contínuo de reflexão e avaliação por parte de todos os envolvidos no processo.
O pensamento de Freire (1992) entende-se que a inovação passa pelo princípio de liberdade e autonomia, e, é percebido por meio da categoria do “inédito viável”. Além disso, em seu entendimento, o novo aceita a realidade enquanto momento histórico e contesta todas as injustiças. Vejamos:
O inédito viável é na realidade uma coisa inédita, ainda não conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um percebido destacado pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade. Portanto, na realidade são essas barreiras, essas situações-limites que mesmo não impedindo, depois de percebidos- destacados, a alguns e algumas de sonhar o sonho, vêm proibindo à maioria a realização da humanização e a concretização do ser mais (Freire, 1992).
Pelo exposto, a necessidade de inovação, sobretudo no campo da educação, tem se tornado uma arena conflituosa. A conotação de inovação nas políticas curriculares se apresenta de forma sedutora e perigosa, na medida em que, sua elaboração não almeja uma educação equitativa, emancipatória e democrática. Assim, é sempre pertinente lançar um olhar crítico sobre o que é enunciado por inovação. Nesta perspectiva, nos preocupamos com os processos inovadores que continuam, segundo Veiga (2003), “a orientar-se por preocupações de padronização, de uniformidade, de controle burocrático, de planejamento centralizado. Se a inovação é instituída, há fortes riscos de que seja absorvida pelas lógicas preexistentes, pelos quadros de referência reguladores”.
A reforma se baseia no pressuposto de que os problemas são claramente definidos e podem ser resolvidos de modo sequencial e fragmentados (Canário, 1996). No entanto, os problemas não estão circunscritos, mas são evidenciadas situações problemáticas. As reformas educacionais afetam a estrutura de todo o sistema educacional e por razões políticas, econômicas e sociais (Sebarroja, 2001).
Nessa perspectiva, é importante destacar que reforma não deve ser confundida com inovação. O processo de inovar na educação está relacionado à renovação pedagógica, mudança e melhoria do ensino, considerando o contexto sociocultural, econômico e político, bem como o processo participativo dos diversos atores educacionais (Oliveira & Courela, 2013).
Compreendemos que a inovação precisa estabelecer um diálogo com os indivíduos que vivenciam os verdadeiros desafios e obstáculos presentes no ambiente escolar, incluindo professores, gestores, alunos e toda a comunidade educacional. É tornar legítima a competência de inovar para aqueles que vivem na escola e que são cobrados pelos índices de insucesso obtidos nas avaliações em larga escala. Portanto, reconhecemos a importância de perceber a realidade como um contexto histórico e de questionar as injustiças visando o aprimoramento na educação, partindo do "microespaço" em que a escola está inserida e alcançando o "macroespaço" das políticas educacionais.
As alterações implementadas na reforma do Ensino Médio apresentaram propostas e mudanças regulatórias preocupantes que estão alinhadas à lógica educacional neoliberal. Isso pode ser observado na redução da carga horária dedicada à formação básica estabelecida pela BNCC, direcionando o foco para a parte flexível do currículo, e no controle do trabalho dos professores associado a avaliações em larga escala. No que diz respeito ao trabalho docente, os processos decisórios indicam uma intensificação das tentativas de controle, vinculadas às avaliações em larga escala, seguindo a lógica da accountabilty, desonerando o papel do Estado e tornando culpados os professores pelos baixos índices avaliativos (Ortega & Militão, 2022).
Assim qualidade da educação fica restrita unicamente aos índices do IDEB. Atingir as metas identificadas em cada avaliação, torna-se condição de bonificação para profissionais da educação, que são desvalorizados e mal pagos. Nesse sentido, a BNCC reforça a abordagem meritocrática na educação, que teve início com a implementação do sistema de avaliação na década de 1990 e intensificada a partir da proposta da BNCC (Ortega & Militão, 2022).
Durante o governo de Michel Temer, em 2017, o MEC divulgou dois anúncios sobre o Novo Ensino Médio na televisão aberta, rádio e redes sociais. Um dos vídeos retrata uma cena em sala de aula, onde atores representando alunos e professores, no qual detalham as mudanças introduzidas pelo novo modelo curricular. Em uma parte do vídeo, o ator que interpreta um aluno explica à turma que os estudantes do ensino médio agora têm a liberdade de escolha por qual áreas de conhecimento se aprofundarem, além de estudarem os conteúdos essenciais de cada área e construírem seus projetos de vida.
Na figura 2, a propaganda em sua primeira cena, ressalta a identidade da novidade, com o nome dado: “Novo Ensino Médio”. Assim, provoca ao telespectador o entendimento da lógica de mudança na estrutura do ensino médio, mobilizado pelo sentido de resolver problemas educacionais vigente na atual composição, por meio da BNCC.
Conforme descrito na BNCC, os elementos determinantes da inovação são apresentados aos professores de maneira verticalizada, por meio de um documento curricular normativo que estabelece os saberes essenciais. Nesse contexto, observa-se uma volta a um modelo curricular baseado em competências e habilidades de forma mais estruturada e menos processual na compreensão dos currículos.
A formação técnica profissional ganha destaque no texto midiático, ao resgatar o viés mercadológico da educação da década de 70 e 90, bem como, ao privilegiar campos específicos do conhecimento e tornar outros subalternos sob a forte influência do setor empresarial.
Acentua-se assim, uma tendência em que os estudiosos nacionais do currículo não são reconhecidos na proposta e o mérito e validação de qualidade é posta a partir de outras experiências curriculares. O sentido de “mudança” não atende a uma identidade nacional, assim visto na propaganda. De acordo com Cabral Neto e Castro (2005), as mudanças curriculares em andamento nos países latino-americanos fazem parte de um amplo processo de reforma estrutural pelo qual o continente tem passado nas últimas décadas. Essas reformas são uma parte integrante do projeto neoliberal, que busca reorientar o papel do Estado, incluindo-o em movimentos de liberalização, privatização e desregulamentação. Essas mudanças ocorrem em um contexto em que o papel do Estado na política social está sendo redefinido. Nesse novo cenário, o Estado de provedor é substituído por um Estado indutor e avaliador das políticas educacionais.
A diretoria da ANPEd destaca a BNCC como um documento que se baseia em experiências de centralização curricular, “baseados na estrutura do Common Core Americano, o Currículo Nacional da Austrália e a reforma curricular do Chile. Todas essas experiências têm sido alvo de críticas em diversos estudos realizados sobre as mudanças implementadas em cada um desses países”.
Vejamos as falas dos personagens na propaganda publicitária a seguir, conforme é mostrado no primeiro comercial:
Estudante: “E aí galera! Vocês já conhecem o novo ensino médio? Essa proposta que está todo mundo comentando por aí? Sabia que ela foi baseada nas experiências de vários países? Países que tratam a educação como prioridade. E que ela vai deixar o aprendizado muito mais estimulante e compatível com a realidade dos jovens de hoje? Pois é! Agora, além de aprender o conteúdo obrigatório, essencial para a formação de todos e que será definido pela base nacional comum curricular já em discussão. Eu vou ter a liberdade de escolher entre quatro áreas de conhecimento para me aprofundar tudo de acordo com a minha vocação e com o que eu quero para minha vida. E para quem prefere terminar o ensino preparado para começar a trabalhar, poderá optar por uma formação técnica profissional, com aulas teóricas e práticas”.
No segundo vídeo: “Novo Ensino Médio Comercial MEC 2017”. Há vários personagens representando jovens estudantes dentro de um ambiente com pouca luz e com a voz do locutor conduzindo as cenas. Na medida em que o locutor vai pontuando acerca do Novo Ensino Médio, uma luz se acende, destacando os personagens ao mesmo tempo em que eles dão seus curtos depoimentos acerca da BNCC, figura 3.
Vejamos as falas e interpretações dos personagens:
Locutor: O novo ensino médio. Quem conhece a prova.
Estudante 1: Eu quero fazer jornalismo.
Estudante 2: Eu quero ser professora. É o que eu amo.
Estudante 3: E eu, design de games.
Estudante 4: Eu quero um curso técnico para já poder trabalhar.
Locutor:Com um novo ensino, você tem a liberdade para escolher o que estudar, de acordo com sua vocação. É a liberdade que você queria para decidir o seu futuro.
Estudante 5:Quem conhece o novo ensino médio aprova!
A estrutura do discurso em torno do slogan proferido pelo locutor: “Novo Ensino Médio. Quem conhece aprova.” Sustenta o sentido de desinformação para quem se posiciona contrária à proposta. O encaminhamento publicitário conduz o receptor a pensar que, só não aprova quem desconhece, tomando o “Novo Ensino Médio” como modelo imbatível e impossível de não aprovação, exceto por quem o “desconhece”. Além disso, vale destacar que, em determinados contextos geográficos, o debate em torno da BNCC não tem ocorrido de maneira esclarecedora, e muitos professores ainda desconhecem essa formulação.
Durante o governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2023), o MEC veiculou uma propaganda nos meios de comunicação. Os atores interpretaram pais, professores, gestores e estudantes. As cenas aconteceram no ambiente da escola, no ponto de ônibus e em uma casa.
Na Figura 4, os textos apresentam a inovação como marca do Novo Ensino Médio, com a presença de cinco estrelas para simbolizar o sentido de qualidade educacional. A mudança é apresentada como algo abrupto e retoma uma filosofia pragmatista de controle educacional. Mas, no entanto, trata-se novamente de criar um consenso do público para aprovação da proposta, além de adaptar o modelo educacional às exigências do mundo do trabalho.
Em atenção às mudanças estabelecidas na carga horária, Amaral (2017) pontua que, uma das primeiras mudanças ocorreu na “elevação da carga horária mínima anual de 800 horas para1.400 horas”. Embora a Reforma tenha “ampliado o tempo do aluno na escola”, alguns fatores nos parece preocupante: o viés mercadológico da educação, ao privilegiar campos específicos do conhecimento e tornar outros subalternos; a massiva influência do setor empresarial na elaboração da BNCC; a condução da política por meio de medidas provisória, sem o devido diálogo com os pesquisadores e estudiosos do currículo; o aspecto conteudista e dualista no ensino, na medida em que, propõem solucionar os problemas educacionais por meio de uma base mínima de conhecimentos que todos os sujeitos deverão receber, esquecendo as desigualdades sociais.
Assim, a organização da estrutura curricular do Ensino secundarista se dividiu por áreas do conhecimento e por uma parte de formação tecnológica (figura 5). Segundo Albino et al. (2019), as experiências sociais e culturais assumem um percentual na proporção de definição do currículo (40% local para 60% nacional), que deve ser elaborado pelos estados e municípios.
Outro fator importante a ser analisado são os elementos que compõem o anúncio – espaço, trilha sonora, identidade dos alunos, entusiasmo, expressões corporais, objetos. As cenas ocorrem em uma escola com diversos espaços, como laboratórios, salas amplas, área verde e corredores. No entanto, o anúncio do Novo Ensino Médio omite o fato que falta infraestrutura, faltam professores/as e faltam políticas de permanência estudantil para permitir que os jovens possam frequentar as escolas de tempo integral. A trilha sonora que compõe a obra, passa ao telespectador o sentimento de potência do anúncio ao meio de sorrisos e cenas entusiasmadas protagonizadas pelos atores.
A apropriação de discursos afirmativos e energizados nega os padrões curriculares do passado e anuncia a "mudança" na proposta atual. Dessa forma, percebem-se as tentativas paradoxais de declarar o “novo” sobre a intertextualidade do “velho”. Vejamos o diálogo dos personagens:
Estudante 1: Você está pronta para isso?
Locutor: Em 2022...
Pais: Ela vai poder escrever a sua história.
Locutor: O governo federal, por meio do ministério da educação... Apresenta...Novo ensino médio.
Estudante 2: É real agora a gente vai pode escolher em qual área de conhecimento quer se aprofundar.
Estudante 3: E até escolher fazer uma formação profissional e tecnológica.
Professor 1: E nós, professores, vamos ajudar vocês a construir um projeto de vida.
Professor 2: Prepará-los para o pleno exercício da cidadania e para o mundo do trabalho.
Gestor 1: A qualidade da educação vai dar um salto!
Locutor: Novo ensino médio, deixe a educação transformar sua história. Breve, nas escolas de todo país.
É importante notar que as peças publicitárias sempre destacam o “protagonismo juvenil” e a “autonomia estudantil” na tentativa de justificar a proposta de flexibilização curricular. Afirmações progressistas sobre inovação educacional são vistas como valores embebidos em tal proposta, na tentativa de estabelecer soluções para problemas educacionais e facilitar o ingresso ao mundo do trabalho.
Outros fatores problemáticos apresentados nos comerciais são vistos nas falas: “A qualidade da educação vai dar um salto!”. Nessa perspectiva, entende-se a qualidade da educação como algo estático e não como um processo holístico. Além disso, reiterou que a proposta transformará a educação a partir do "novo" e nega o modelo curricular anterior. “Com um novo ensino, você tem a liberdade para escolher o que estudar, de acordo com sua vocação; É a liberdade que você queria para decidir o seu futuro”. Liberdade e a vocação são as novidades nesta apresentação e transferem para os sujeitos a responsabilidade pelo seu futuro, porém, é importante entender que não existem escolhas singulares em um contexto de problemas sociais e econômicos.
As propagandas têm mostrado verbalmente e não verbalmente que o ensino por competências é visto como uma “receita de sucesso para melhorar a qualidade da educação e adequá-la aos princípios de empregabilidade” (Borges, 2020). Além disso, para o convencimento do público, a peça publicitária reforça que a proposta se baseia em experiências curriculares de outros países. Vejamos no trecho: “Sabia que ela foi baseada nas experiências de vários países? Países que tratam a educação como prioridade.” Nessa perspectiva, fica evidente uma aculturação dos saberes e força do Brasil enquanto país que também pode fundamentar qualquer bom currículo.
As análises acerca dos discursos presentes nas peças publicitárias têm por finalidade compreender quais práticas discursivas são abordadas com a intenção de convencer a aprovação da opinião pública através das mídias visuais, além de compreender o jogo discursivo em torno da inovação e/ou novidade na proposta.
Ao analisarmos a intertextualidade e a interdiscursividade presentes nos documentos oficiais que trata o Novo Ensino Médio, a exploração discursiva acerca da inovação educacional nas propagandas publicitárias se apresenta de forma inconsistente. Percebe-se que as dimensões do discurso da novidade são conflitantes com o texto da BNCC, pois ora se manifesta como mudanças e avanços na publicidade promocional, e ora a intertextualidade e interdiscursividade da BNCC é visto em documentos curriculares anteriores ao desenvolvimento da proposta.
A apropriação de palavras como “mudança”, “progresso”, “inovação” ganha sentido infundado em proporção as novidades presentes na política curricular, como: ensino profissional técnico, ensino por habilidades e competências, itinerários formativos e o projeto de vida. Uma vez que estes são vistos em documentos anteriores e/ou contrariam as condições sociais e escolares atuais.
As discussões em torno da educação técnica profissional são mais explícitas no Brasil durante a ditadura militar, por meio da Lei nº 5. 5.692/71, que estabelece a obrigatoriedade da profissionalização no 2° grau, bem como, reestrutura o currículo em uma parte comum e outra parte diversificada destinada à formação técnica profissional, visando à formação para o mercado de trabalho. No contexto atual, há tentativas de restaurar a lógica educacional do neoliberalismo e do dualismo nos moldes da ditadura militar.
No que diz respeito ao ensino baseado em competências, observa-se um aumento no debate sobre a pedagogia por competências no campo educacional, especialmente após a publicação das DCNEM e dos PCN’s (Ricardo, 2010). Nesse sentido, “as competências estabelecidas pela BNCC e os interesses do capital na educação estão relacionados aos tipos de habilidades exigidas pelo novo paradigma produtivo-capitalista, que envolve a criação de novas formas de interação interpessoal com o objetivo de fomentar iniciativas individuais e motivações para o trabalho” (Caetano, 2020). A Figura 6 representa uma linha do tempo que ilustra a evolução histórica das principais políticas elaboradas até a criação da BNCC.
A seguir, destacamos no Quadro 1, à medida que exploramos como os textos dos principais documentos legais que orientam o currículo brasileiro nas últimas décadas, influenciaram a formulação da BNCC. Também mostraremos recortes de discursos em propagandas, divulgadas na grande mídia, se desvinculam dos textos que antecederam a formulação da BNCC, ao apresentar tal proposta como a mudança, a inovação e a novidade dentro das políticas curriculares.
Nessas reformulações, alguns aspectos são importantes e precisam ser analisados, como: as alterações ocorreram em um curto período de tempo e considera apenas a dimensão da estrutura "conteudista" curricular.
Vale destacar a prevalência de algumas políticas hegemônicas neste recorte histórico. A influência do neoliberalismo que se refletiu fortemente na política educacional dos anos 90 é bastante presente na BNCC, na medida em que há um resgate da escolarização voltada para o mundo do trabalho. Em alguns documentos, como a Medida Provisória 746/16, aproxima-se da Lei 13415/2017, que trata do Novo Ensino Médio. Notadamente, a MP 746/16 reorganiza o currículo ministrado por áreas de conhecimento e competências.
A análise das significações da inovação nos documentos do Ensino Médio revela que, as afirmações em torno da novidade/mudança no Novo Ensino Médio, escondem antigas finalidades presentes em documentos anteriores à BNCC. O discurso da novidade presente campanha de mídia visa criar movimentos de “adornos regulatórios” sobre a política, na tentativa de estabelecer concessões positivas e inovadoras à proposta. Compreender esses jogos discursivos possibilita ver a educação como um campo de disputa e não como parte restrita a uma base de conteúdos, mas expressivo de significados em seu nível sociopolítico.
Reiteramos assim, que não pode haver inovação educacional se os processos forem baseados em competências “para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Brasil, 2018). Inovação passa pela ousadia epistemológica compartilhada por Paulo Freire (1992), a partir do desafio da realidade do oprimido em diálogo com os instrumentos de análise da reflexão teórica. Caso contrário, seguiremos propostas curriculares aparentemente "novas", escondendo velhos discursos e propósitos.
Este artigo analisou propagandas midiáticas que traziam consigo investimentos discursivos em torno de um consenso de inovação educacional vinculadas na mídia. Ao longo do percurso de pesquisa resgatamos os sentidos de inovação educacional, conforme apresentado na revisão bibliográfica conceitual.
Observamos que, o sentido de inovação defendido nos textos oficiais e nas mídias publicitária é visto como um ato de mudança/novidade na estrutura curricular e desconsiderar fatores estruturais das escolas e socioeconômicos das localidades, bem como, a autonomia docente é reduzida a um conjunto de conhecimentos essenciais que os estudantes devem aprender. Do mesmo modo, os princípios de liberdade e autonomia docente são controlados através de tendências de testagem em larga escala e responsabilização por desempenho. Compreendemos que, a mudança e a novidades compõem o sentido de inovação, mas não são suficientes para defini-la. A inovação passa pelos princípios de liberdade e autonomia para pensar utopicamente a melhoria de algo imposto.
Este estudo compreende o currículo como um campo de disputa e o sentido de inovação como força contrária à preservação do poder. Entretanto, pondera-se que toda essa discussão, não pode abrir mão da realidade escolar, por entender que o “chão da escola” é o lugar de desafios e de criação de currículos e inovações. Assim, o descompasso com a realidade escolar é um aspecto chave que leva ao sentimento de não pertencimento da política curricular vigente. Ora por não promover a valorização do trabalho docente e desconsiderar o conhecimento científico e humanístico como igualmente fundamentais ao desenvolvimento humano, ora porque conduz concepções subjacentes de tornar os professores responsáveis pelo insucesso educacional e produzir semântica de justiça educacional incompatíveis com a realidade.
Também há de se destacar as posturas discursivas das propagandas publicitárias, ao que se refere o sentido de inovação, inclusive porque se trata de um veículo de largo alcance e de construção de consenso do público. Nas peças publicitárias, a aparência do Novo Ensino Médio é apresentada como uma mudança inovadora, porém a BNCC é intertextual e interdiscursiva baseada em modelos e experiências antigas, sobretudo em enquadramentos tecnicistas e essencializantes.
Portanto, o entendimento que sustenta a conotação de inovação educacional é refletido com mais destaque nas propagandas publicitárias, ao anunciar o novo/novidade com aspecto de progresso e avanço. No entanto, o texto documental revela que a BNCC foi reformulada a partir de filosofias educacionais passadas mediadas por nuances tecnicistas. Assim, a base curricular foi mobilizada a partir das políticas neoliberais dos anos 70 e 90, privilegiando uma educação pautada nos princípios do mundo do trabalho e subalternizada em outras áreas do conhecimento. Por fim, o trabalho de analisar os sentidos de inovação não se esgotam neste estudo. O processo analítico se põe aberto a outras possibilidades de continuação investigativa.
Como citar: Silva, D. M., Albino, A. C. A., & Honorato, R. F. S. (2023). Tudo é novo? uma análise das significações de “inovação curricular” no Novo Ensino Médio. Revista Tempos e Espaços em Educação, 16(35), e19341. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v16i35.19341
Contribuições dos Autores: Silva, D. M.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Albino, A. C. A.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Honorato, R. F. S.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
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